Mateus Dias Santana Uma abordagem linguístico-discursiva da junção na escrita infantil São José do Rio Preto 2022 Câmpus de São José do Rio Preto Mateus Dias Santana Uma abordagem linguístico-discursiva da junção na escrita infantil Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Orientadora: Profª. Drª. Lúcia Regiane Lopes-Damasio São José do Rio Preto 2022 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. S232a Santana, Mateus Dias Uma abordagem linguístico-discursiva da junção na escrita infantil / Mateus Dias Santana. -- São José do Rio Preto, 2022 194 f. : il., tabs. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto Orientadora: Lúcia Regiane Lopes-Damasio 1. Letras. 2. Linguística. 3. Heterogeneidade da escrita. 4. Tradição discursiva. 5. Mecanismos de junção. I. Título. Mateus Dias Santana Uma abordagem linguístico-discursiva da junção na escrita infantil Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Comissão Examinadora Titulares Profª. Drª. Lúcia Regiane Lopes-Damasio UNESP – Câmpus de Assis Orientadora Profª. Drª. Cristiane Carneiro Capristano UEM – Universidade Estadual de Maringá Prof. Dr. Lourenço Chacon Jurado Filho UNESP – Câmpus de Marília Suplentes Profª. Drª. Fernanda Correa Silveira Galli UFPE – Universidade Federal de Pernambuco Profª. Drª. Geovana Carina Neris Soncin Santos UNESP – Câmpus de Marília São José do Rio Preto 30 de maio de 2022 À minha mãe Celeste e ao meu professor e mestre de vida A. München (In memoriam) com quem aprendi le langage de l‟amour et de la vie, dedico este trabalho. AGRADECIMENTOS À minha mãe, Celeste, por ter sido a minha fortaleza nos momentos difíceis, por ter me ensinado a lutar e superar cada obstáculo que a vida me apresentou. Obrigado mãe, por ser a minha grande admiração e por me proporcionar muitos ensinamentos. Ao meu pai, Edenilson, por nossas conversas, por me incentivar aos estudos desde muito cedo e por ser luz no meu caminho. À professora Lúcia, minha orientadora e amiga, por quem eu tenho muita honra de ter sido orientando. Obrigado professora, por todos os ensinamentos acadêmicos e de vida, por me inspirar e me fazer apaixonar pela Linguística, especialmente em suas aulas de Aquisição da Linguagem e nas reuniões de orientação. À minha prima, Thaís, por sempre me escutar, pelas nossas conversas, desabafos, por compartilharmos ideias e por todo apoio desde o período da minha graduação até a finalização do mestrado. Ao meu namorado, Élisson, por todo apoio, amor e escuta do meu processo acadêmico. Agradeço por ter sido presente em todos os momentos e por compartilharmos projetos de vida. Agradeço também o apoio e o carinho de sua família. Aos professores Lourenço e Cristiane, pelas preciosas leituras e pelas enriquecedoras contribuições realizadas neste trabalho, que contribuíram também para a minha formação científica. Agradeço imensamente à profa. Cristiane por ter debatido o meu trabalho no SELin e pelas aulas de Aquisição da Escrita na UEM. Às professoras Fernanda e Geovana, por terem participado deste processo. À professora e amiga Maria de Fátima, carinhosamente Fah, por ter me apresentado a sua paixão pela Aquisição da Linguagem no Grupo de Estudos Linguísticos de São Paulo, em 2016, na UNESP de Assis, que me deixou encantado pela pesquisa em Linguística. Aos meus amigos e amigas que me acompanharam durante o meu período acadêmico de graduação e/ou pós-graduação: Alain, Amanda, Ana Teresa, Brigitte, Camila López (Mme López), Daniela Callipo (Mme Callipo), Diego, dona Nena, dona Isolda, Gláubia, Grazi, Henrique, Jaque, Joyce, Karina, Larissa, Léo, Letícia, Maria, Mirlene, Norma, Paloma, Simony e Tatiane. Agradeço pelos incentivos, desabafos, tristezas, risadas e felicidades compartilhadas. Aos professores de Linguística da UNESP de Assis, por ter me ensinado os primeiros passos nos Estudos Linguísticos e por ter me guiado para esse caminhado de pesquisa e aos professores de Linguística da UNESP de Rio Preto, por toda formação acadêmica e científica na área dos Estudos Linguísticos. Ao IBILCE e à FCL por terem me proporcionado muito aprendizado e conhecimento de forma que mudou a minha visão de mundo. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, à qual agradeço pelo financiamento da minha pesquisa. “[...] Je n'ai pas rêvé cet héroïsme. Je l'ai choisi. On est ce qu'on veut”. Jean-Paul Sartre (1947, p. 90) RESUMO Esta pesquisa tem por objetivo geral realizar uma análise linguístico-discursiva de mecanismos de junção (MJs) na comparação entre as tradições discursivas (TDs) narrativa e argumentativa, produzidas por sujeitos regularmente matriculados no 7º ano do Ensino Fundamental II, e é direcionada aos linguistas e aos professores de português. Nesse sentido, se justifica por colaborar com a área dos estudos linguísticos e com a construção de um quadro científico relacionado à escrita infantil, buscando entender a articulação de aspectos gramaticais e textual-discursivos. Fundamenta-se no conceito de escrita constitutivamente heterogênea (CORRÊA, 1997), associado a uma concepção dialógica de texto, a partir do conceito de TDs (KABATEK, 2006), e ao modelo funcionalista de junção (RAIBLE, 2001). O objetivo geral desdobra-se nos seguintes objetivos específicos: (i) descrever e analisar os MJs, em textos pertencentes às TDs narrativa e argumentativa, no modo escrito de enunciação, a partir das relações semânticas e da interdependência existente entre as porções componentes da oração complexa; (ii) buscar rastros da relação entre o comportamento da junção e a heterogeneidade da escrita, mediante traços do oral/falado e letrado/escrito, a partir de relações entre o funcionamento dos MJs e os eixos da gênese da escrita e do código escrito institucionalizado; e (iii) relacionar o funcionamento dos MJs às características das TDs analisadas, numa abordagem desse funcionamento como práticas resultantes da dialogia com já falado/ouvido e escrito/lido (eixo 3). O corpus é composto por 26 textos narrativos e 26 argumentativos e a metodologia apresenta uma análise qualitativo-quantitativa, com levantamento das frequências token e type (BYBEE, 2003) dos MJs. Os resultados alcançados, conforme o objetivo específico (i), mostraram que a arquitetura paratática prevalece nas duas TDs, apontando o que é fixo nessas tradições, e que as relações de adição, causa, tempo posterior e contraste foram as mais frequentes, nos textos analisados. Em relação ao objetivo específico (ii), os sujeitos circulam pelos eixos 1 e 2, com frequência superior, nas duas TDs, para o eixo 1, numa escrita que se constitui a partir do imaginário dos sujeitos sobre o (seu) modo escrito de enunciar, o que se marca, na superfície do texto, com maior repetibilidade, a partir da justaposição e e, atuando como gestos que apontam para o contexto de enunciação. Ao eixo 2, vinculam-se MJs em forma de paralelismo sintático, dentro de listagem fechada e convencional, e em espaços configurados por maior dependência tático-semântica. Em relação ao objetivo específico (iii), no eixo 3, as TDs complexas narrativa e argumentativa se constituem, composicionalmente, mediante mesclas com diferentes TDs, por meio da dialogia com o já falado/ouvido e escrito/lido. Dessa forma, esta pesquisa ilustra a simultaneidade dos três eixos, tomados em articulação teórico-metodológica com o conceito de TD, à luz da observação dos MJs num enfoque linguístico-discursivo. Palavras-chave: Heterogeneidade da Escrita. Tradição Discursiva. Junção. ABSTRACT This research has the general objective of performing a linguistic-discourse analysis of joining mechanisms (JMs) in the comparison between narrative and argumentative discourse traditions (DTs), produced by subjects regularly enrolled in the 7th grade of Middle School, and is aimed at linguists and Portuguese professors. In this sense, it is justified for collaborating with the area of linguistic studies and with the construction of a scientific framework related to children's writing, seeking to understand the articulation of grammatical and textual-discursive aspects. It is based on the concept of constitutively heterogeneous writing (CORRÊA, 1997), associated with a dialogic conception of text, from the concept of DTs (KABATEK, 2006), and the functionalist model of joining (RAIBLE, 2001). The general objective unfolds in the following specific objectives: (i) to describe and analyze the JMs, in texts belonging to narrative and argumentative DTs, in the written mode of enunciation, from the semantic relations and the interdependence existing between the component portions of the complex sentence; (ii) to search for traces of the relation between the behavior of the join and the heterogeneity of writing, by means of oral/spoken and literate/written traces, based on relations between the functioning of the JMs and the axes of the genesis of writing and the institutionalized written code; and (iii) to relate the functioning of the JMs to the characteristics of the DTs analyzed, in an approach of this functioning as practices resulting from the dialogic with already spoken/heard and written/read (axis 3). The corpus is composed of 26 narrative and 26 argumentative texts and the methodology presents a qualitative-quantitative analysis, with a survey of token and type frequencies (BYBEE, 2003) of the JMs. The results achieved, according to specific objective (i), showed that the paratactic architecture prevails in both DTs, pointing out what is fixed in these traditions, and that the relations of addition, cause, posterior time and contrast were the most frequent in the texts analyzed. In relation to the specific objective (ii), the subjects circulate through axes 1 and 2, with higher frequency, in both DTs, for axis 1, in a writing that is constituted from the imaginary of the subjects about (their) written way of enunciating, which is marked, on the surface of the text, with greater repeatability, from the juxtaposition and and, acting as gestures that point to the context of enunciation. To axis 2, MJs are linked in the form of syntactic parallelism, within a closed and conventional list, and in spaces configured by greater tactical-semantic dependence. In relation to specific objective (iii), in axis 3, the narrative and argumentative complex DTs are compositionally constituted by means of blends with different DTs, through the dialog with what is already spoken/heard and written/read. Thus, this research illustrates the simultaneity of the three axes, taken in theoretical- methodological articulation with the concept of DT, in the light of the observation of the JMs in a linguistic-discursive approach. Keywords: Heterogeneity of Writing. Discursive Tradition. Junction. LISTA DE ILUSTRAÇÕES ESQUEMAS Esquema 1: Fala e escrita no continuum dos gêneros textuais 33 Esquema 2: Distribuição dos gêneros textuais no continuum fala e escrita 34 Esquema 3: A oralidade e escrita pelo meio de produção e concepção discursiva 35 Esquema 4: Tradição Discursiva 54 Esquema 5: Evocação 57 Esquema 6: Tradição textual e história da língua 65 Esquema 7: Tradição discursiva e gramaticalização 66 Esquema 8: Continua parataxe, hipotaxe e subordinação 76 Esquema 9: Junktion segundo Raible (1992) 78 Esquema 10: Macroestrutura do universo semântico das relações oracionais segundo Kortmann (1997) 81 Esquema 11: Critério bidimensional de análise dos mecanismos de junção 83 Esquema 12: Cruzamento dos eixos tático e semântico segundo Raible (1992) 99 Esquema 13: Análise dos mecanismos de junção segundo critério bidimensional 99 GRÁFICOS Gráfico 1: Eixo vertical – arquitetura tática em TDs narrativa e argumentativa 105 Gráfico 2: Eixo horizontal – escala de sentidos nas TDs narrativa e argumentativa 110 Gráfico 3: Trânsitos semânticos na TD narrativa 120 Gráfico 4: Trânsitos semânticos na TD argumentativa 120 Gráfico 5: MJs e os eixos 1 e 2 132 Gráfico 6: MJs e Eixo 1 na TD narrativa 133 Gráfico 7: MJs e Eixo 1 na TD argumentativa 133 Gráfico 8: MJs e Eixo 2 na TD narrativa 145 Gráfico 9: MJs e Eixo 2 na TD argumentativa 145 Gráfico 10: Proposta “Rompimento Amoroso” 157 Gráfico 11: Proposta “Vivências de mal entendido” 162 Gráfico 12: Proposta “Carta argumentativa” 166 Gráfico 13: Proposta “Uma grande conquista” 171 Gráfico 14: Composicionalidade das TDs narrativa e argumentativa 176 QUADROS Quadro 1: Concepção dicotômica 26 Quadro 2: Características da visão culturalista 28 Quadro 3: Características estanques da visão variacionista 29 Quadro 4: Características da visão interacionista 30 Quadro 5: Distribuição de quatro gêneros textuais segundo o meio de produção e a concepção discursiva 36 Quadro 6: Estrutura geral da linguagem segundo Coseriu (1980) 51 Quadro 7: Modelo de combinação de orações, adaptado de Halliday (1985) 75 Quadro 8: Esquema simplificado do eixo tático – graus de integração 78 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CLG Curso de Linguística Geral EF Ensino Fundamental GPEL Grupo de Pesquisa “Estudos sobre a Linguagem” GR Gramaticalização GT Gramática Tradicional MJ Mecanismo de Junção SMS Serviço de Mensagens Curtas SN Sintagma Nominal TD Tradição Discursiva SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 13 1. 1.1 Apresentação: contexto e vínculo 13 2. 1.2 Proposta e objetivos do trabalho 16 3. 1.3 Organização do trabalho 18 PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 21 1 CAPÍTULO 1 – HETEROGENEIDADE DA ESCRITA 22 1.1 Primeiras palavras 22 1.2 A relação entre oralidade e letramento e entre fala e escrita 23 1.2.1 Perspectiva da dicotomia radical 25 1.2.2 A perspectiva fenomenológica de caráter culturalista 27 1.2.3 A perspectiva variacionista 28 1.2.4 A perspectiva interacional 30 1.2.4.1 Aspectos relevantes da perspectiva interacionista para a observação da relação entre fala e escrita 32 1.3 A escrita constitutivamente heterogênea 37 1.3.1 Eixos metodológicos 43 1.4 Em suma 46 2 CAPÍTULO 2 – TRADIÇÕES DISCURSIVAS 48 2.1 Primeiras palavras 48 2.2 O conceito de Tradição Discursiva 48 2.3 Repetição e evocação 56 2.4 TD e gênero discursivo 60 2.5 Aplicação dos estudos das TDs 64 2.5.1 TD e gramática histórica 65 1.5.2 2.5.2 TD e aquisição da escrita 67 1.5 2.6 Em suma 68 3 CAPÍTULO 3 – MECANISMOS DE JUNÇÃO 70 3.1 Primeiras palavras 70 3.2 A perspectiva funcionalista em paralelo com o modelo da gramática tradicional 71 3.3 Mecanismos de junção sob a perspectiva funcionalista 80 3.4 Mecanismos de junção, tradições discursivas e escrita infantil 83 3.5 Em suma 87 PARTE II – UNIVERSO DE INVESTIGAÇÃO E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 89 1 MATERIAL E METODOLOGIA 90 1.1 Primeiras palavras 90 1.2 Material: o texto escrito e suas condições de produção 90 1.3 Metodologia: um olhar para os dados de escrita 98 PARTE III – APRESENTAÇÃO DA ABORDAGEM E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 102 Apresentação 103 1 CAPÍTULO 1 – DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS MJs NAS TDs NARRATIVA E ARGUMENTATIVA 104 1.1 Primeiras palavras 104 1.2 MJs e(m) TDs narrativa e argumentativa 104 1.2.1 MJs em trânsitos semânticos 119 1.3 Discussão dos resultados 124 1.4 Sistematização 128 2 CAPÍTULO 2 – MJs E A HETEROGENEIDADE DA ESCRITA 131 2.1 Primeiras palavras 131 2.2 Relações entre MJs e heterogeneidade da escrita 131 2.2.1 Os MJs e a gênese da escrita 132 2.2.2 Os MJs e o código escrito institucionalizado 144 2.3 Discussão dos resultados 151 2.4 Sistematização 153 3 CAPÍTULO 3 – MJs E AS TDs NARRATIVA E ARGUMENTATIVA 155 3.1 Primeiras palavras 155 3.2 Análise das TDs narrativa e argumentativa: da proposta de produção à composicionalidade dos textos 155 3.3 Discussão dos resultados 175 3.4 Sistematização 180 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 183 REFERÊNCIAS 188 13 INTRODUÇÃO 1.1 Apresentação: contexto e vínculo Esta pesquisa propõe um estudo comparativo 1 das tradições discursivas (TDs) narrativa e argumentativa a partir do funcionamento linguístico-discursivo dos mecanismos de junção (MJs), com intuito de descrever e analisar a junção, em textos pertencentes a essas TDs, nos domínios tático, semântico e pragmático-discursivo. Destaca-se, de forma genérica, que o domínio tático refere-se à sintaxe, dividida em parataxe (correspondente à coordenação e à oposição na Gramática Tradicional) e hipotaxe (correspondente às orações relativas não restritivas, orações interligadas por relações circunstanciais e orações de fala reportada na Gramática Tradicional); o semântico refere-se aos significados/sentidos das relações entre orações (adição, alternância, modo, comparação, causa, tempo, condição, contraste e concessão); e o pragmático-discursivo refere-se à observação do contexto enunciativo na análise das TDs narrativa e argumentativa. 2 Esta pesquisa é direcionada a todos aqueles que se interessam pela escrita infantil: de um modo específico, interessa aos linguistas, e, de um modo geral, aos professores de língua portuguesa. Busca contribuir com os estudos da área em que se insere, na Linguística, a partir de resultados de descrições e análises do fenômeno da junção, no âmbito da escrita infantil, em contexto de escolarização formal, assim como mediante resultados de descrições e análises das TDs focalizadas, no âmbito da aquisição da escrita. Por fim, busca contribuir com os estudos voltados à construção de um espaço de articulação desses resultados, numa perspectiva linguístico-discursiva, direcionada pelo entendimento da escrita como constitutivamente heterogênea. Para os professores que não tiveram, em sua formação acadêmica, contato com diferentes perspectivas de abordagem da relação fala e escrita, sobretudo com a possibilidade de entender suas aproximações e afastamentos teórico-metodológicos, este trabalho realiza um panorama geral acerca dessas diferentes perspectivas, numa versão da história proposta por Marcuschi (1997), para que se possa entender o percurso, nele realizado, e a escolha da fundamentação teórica que se firma no entendimento da escrita como constitutivamente heterogênea, de acordo com a proposta de Corrêa (1997). 3 Nesse espaço, o presente trabalho 1 Este trabalho realiza-se no âmbito do Grupo de Pesquisa Estudos sobre a linguagem (GPEL/CNPq processo 400183/2009-9), coordenado pelo Prof. Dr. Lourenço Chacon. 2 O entendimento teórico e metodológico relativo a cada um desses domínios será explicitado ao longo das Partes I e II desta dissertação. 3 Segundo Feres e Coelho (2021), professores de língua portuguesa apresentam um descompasso entre os conteúdos abordados em sala de aula e o ideal de desenvolvimento de diferentes atividades com textos, pois não 14 propõe-se a mostrar que há pontos teórico-metodológicos que podem ser revistos, na proposta de Marcuschi (1997), a partir da proposta da escrita constitutivamente heterogênea que busca relacionar o linguístico ao discursivo, de modo que Corrêa (1997) mostrará uma ruptura em relação ao entendimento de escrita daquele autor, descartando a escrita enquanto objeto e apresentando-a na relação sujeito e linguagem, conforme será exposto no Capítulo 1 da Parte I desta dissertação. Sob esse viés, Cunha e Tavares (2016, p. 13) afirmam que algumas perspectivas linguísticas contemporânea têm se direcionado para a análise de fenômenos que emergem do uso da língua no cotidiano, mas dificilmente os resultados têm chegado ao professor dos níveis fundamental e médio, o que poderia contribuir para que o ensino de língua portuguesa considerasse o funcionamento da língua em situação de comunicação ao invés de reproduzir noções da Gramática Tradicional 4 . Para as autoras, alguns aspectos que a Gramática Tradicional aborda e que precisam ser revistos são: classes de palavras e funções sintáticas são apresentadas uma a uma, ou seja, são isoladas como se não contribuíssem todas concomitantemente para a construção do discurso e não interagissem entre si; os tópicos gramaticais são observados no âmbito de orações isoladas, o que faz com que não se abordem as relações de sentido, de forma não reduzida à oração, mas indo além do todo como um todo. Diante disso, dois passos importantes a serem seguidos para ajudar o professor e o linguista, conforme Cunha e Tavares (2016), são: (i) um conhecimento amplo para o professor e para o linguista a respeito da estrutura e do funcionamento da língua, em que eles possam entender sobre o seu objeto de estudo, não somente se fundamentando em estudos linguísticos de diferentes perspectivas, porém buscando refletir sobre e observar, por si mesmos, os fenômenos linguísticos do dia a dia – no caso do professor, com intuito de estimular o aluno a também observá-los; e (ii) entender que os aspectos formais, semânticos e discursivos de uma língua precisam ser articulados numa abordagem linguístico-discursiva. Para tanto, a escolha do conceito de TD fundamenta-se no fato de permitir lidar com diferentes estruturas linguísticas (como, por exemplo, construções textuais, atos de fala, tipos contaram, em sua formação profissional, com uma fundamentação teórica que os afastasse da dicotomia entre “erro” e “acerto”. De modo geral, esse descompasso é resultado da imposição dos currículos que perpetum uma prática escolar, repleta de regras, sem espaço para a reflexão sobre a linguagem. Nesse contexto, os autores afirmam que os trabalhos de Marcuschi (2012, 2008, 2004, 2002, dentre outros) se destacam, na Linguística Textual, no Brasil, por apresentarem, para o ensino de língua portuguesa, reflexões que suscitam, até o presente momento, renovação diária do pensamento sobre o que é o texto, seus processos de construção e como ensiná-lo, uma vez que se propõem a relacionar questões discursivas e as conjugar à materialidade linguístico-textual, numa prática fundamentada nas teorias sociointeracionistas. 4 Gramática Tradicional se refere “ao conjunto de conceitos e categorias derivados dos estudos gramaticais de tradição greco-latina que, há alguns séculos, geração após geração, vêm sendo transmitidos nas escolas de modo degenerado, fragmentário, dogmático, prescritivo e irrefletido” (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 13-14). 15 textuais e gêneros discursivos), a fim de respaldar um trabalho voltado tanto à materialidade linguística do texto quanto a questões discursivas. Assim, pretende-se colaborar com a construção de um quadro mais geral, no qual se procura entender a articulação entre aspectos gramaticais e textual-discursivos na escrita infantil, conforme os trabalhos que foram e vem sendo desenvolvidos nessa área (LOPES-DAMASIO, 2019a/b, 2018, 2017, 2014; ALVARES, 2020; BAVARESCO, 2019; TAURA, 2019; RODRIGUES, 2018; SILVA, 2016; BRITO, 2014), em que se busca entender como as TDs se caracterizam em termos de dialogismo, no que diz respeito ao funcionamento dos MJs; como esse funcionamento mostra a circulação dos sujeitos pelas práticas de escrita; e como se dá a mescla entre diferentes TDs. A escolha da proposta de Corrêa (2008, 2004, 1997), acerca do entendimento da escrita como constitutivamente heterogênea, fundamenta a adoção, nesta pesquisa, dos conceitos de fala e escrita como modos de enunciação, considerando o fato de que a escrita nunca se realiza sem a representação de um outro/leitor/destinatário. A relação entre TD e escrita constitutivamente heterogênea fundamenta-se, por sua vez, na presença do dialogismo em toda a linguagem, conforme será especificado na seção 2.2. O conceito de Tradição Discursiva do Capítulo 2 - Parte I. É a partir desse caráter de réplica da linguagem que se busca associar, nesta pesquisa, o conceito de TD, mediante a proposta de Kabatek (2006), e a heterogeneidade da escrita, conforme a proposta de Corrêa (2004, 1997), na linha de outros trabalhos que também se fundamentam no diálogo entre essas teorias (cf. LONGHIN- THOMAZI, 2011a/b; LOPES-DAMASIO, 2020, 2019a/b, 2017, 2016, 2014; LOPES- DAMASIO; SILVA, 2018) e de acordo com os deslocamentos teóricos necessários a esse fim. Na linha proposta por Kabatek (2006), a junção é tomada como fenômeno para a apreensão de TDs, numa abordagem quantitativa e qualitativa dos MJs, que conjuga sua distribuição no texto e sua relação morfossintática e semântica. Diante dessa proposta inicial, no espaço teórico fundamentado na articulação entre TD e heterogeneidade da escrita, tais mecanismos passam a ser observados por meio de uma relação entre o linguístico e o discursivo, sendo tomados como rastros – identificados diante de seu funcionamento – da circulação do sujeito pela escrita constitutivamente heterogênea (LOPES-DAMASIO, 2019b). Contudo, a opção pela junção, segundo Longhin-Thomazi (2011b, p. 236), na observação do modo escrito de enunciação, é referente a três fatores fundamentais: (i) os juntores são itens funcionais – significação interna – da gramática da língua, que possivelmente tendem a maiores dificuldades de aquisição do que os itens lexicais; (ii) a junção é um fenômeno que possibilita descobrir as faces morfossintática e semântica dos textos; e (iii) a junção é de importância singular para a compreensão das TDs. 16 1.2 Proposta e objetivos do trabalho A presente pesquisa tematiza, no centro da investigação, a relação entre os estudos das TDs e dos MJs, em contexto do modo escrito de enunciação. De forma inédita, propõe um estudo comparativo entre as TDs narrativa e argumentativa, em textos produzidos por sujeitos do 7º ano do segundo ciclo do Ensino Fundamental II público. O ineditismo da presente proposta justifica-se em relação às TDs focalizadas, numa abordagem comparativa – resultados de estudos anteriores (cf. LOPES-DAMASIO, 2022, 2020, 2019a/b; ALVARES, 2020; TAURA, 2019; ÁLVARES, 2020; BAVARESCO, 2019; RODRIGUES, 2018; SILVA, 2016) apontam que o escrevente circula por várias TDs antes de inserir-se no modo escrito de enunciação e, desse modo, ter um olhar direcionado para o entendimento das relações entre TDs é essencial para a compreensão acerca dos modos de enunciação desses sujeitos por práticas de escrita. Com isso, a presente pesquisa propõe um estudo comparativo de TDs narrativa e argumentativa, ainda não realizado, de modo a colaborar com a construção de um quadro científico relacionado à escrita infantil, em que se busca entender a articulação de seus aspectos gramaticais e textual-discursivos. Sob esse tema, propõe-se, portanto, uma análise fundamentada na articulação entre os conceitos de TD – que considera os aspectos do universo textual e das relações entre o sujeito e a linguagem –, heterogeneidade da escrita – que estabelece uma relação dialógica entre fala/escrita, enquanto fatos linguísticos, e oralidade/letramento, enquanto práticas sociais – em correlação com os processos de junção – que concretizam quaisquer técnicas para juntar porções textuais de maneira variável por meio dos domínios tático, semântico e pragmático-discursivo –, na linha de Lopes-Damasio (2020, 2019a/b, 2018, 2017) e Longhin- Thomazi (2011a/b). Assim, a relação entre os conceitos de TD, MJs e escrita constitutivamente heterogênea configura uma abordagem linguístico-discursiva das TDs narrativa e argumentativa no modo de enunciação escrito. Nessa direção, esta pesquisa está direcionada pelas seguintes perguntas e hipóteses: Pergunta (1): qual o funcionamento tático-semântico dos MJs nas TDs narrativa e argumentativa, produzidas por alunos regularmente matriculados no 7º ano do Ensino Fundamental II, e de que modo esse funcionamento revela-se sintomático das tradições investigadas? Hipótese (1): relacionada à possibilidade de os elementos juntivos serem tomados como “sintomáticos” de diferentes TDs (cf. KABATEK, 2008, 2006, 2005, 2004): de acordo com essa hipótese, a noção de constituição de TDs, em contexto de aquisição de TDs do modo 17 escrito de enunciação, pode ser pautada pelo funcionamento dos MJs, tomados como possíveis índices de TDs e de mescla 5 de TDs; Pergunta (2): Quais as relações entre as TDs analisadas e questões referentes à fala/oralidade e escrita/letramento, enquanto fatos linguísticos – fala e escrita – e práticas sociais – oralidade e letramento? Hipótese (2): relacionada à heterogeneidade constitutiva da escrita (CORRÊA, 1997; 2004): o escrevente, em seu processo de escrita, circula por um imaginário sobre a escrita em suas diferentes manifestações e variedades. Esse imaginário é particularizado pelas situações específicas e concretas de uso da língua, de acordo com a tradição, e se estende aos diferentes e instáveis modos de conceber a relação escrita/mundo e escrita/fala. Sendo assim, esta hipótese é a de que a circulação do escrevente pelos três eixos que determinam o modo heterogêneo de constituição da escrita (o da gênese da escrita, o do código escrito institucionalizado e o da relação com o já falado/escrito, conforme fundamentação teórica que será apresentada no Capítulo 1 - Parte I desta dissertação) pode indiciar, em intrínseca relação aos MJs empregados, as (mesclas de) TDs; Pergunta 3: O que os resultados descritivo-analíticos do funcionamento dos MJs podem mostrar acerca dessas tradições (narrativa e argumentativa) em correlação com as relações entre o sujeito e a linguagem a partir da (sua) imagem 6 do modo escrito de enunciação? Hipótese 3: relacionada às condições de produção das TDs (LOPES-DAMASIO, 2018, 2019a/b): as condições de produção somam-se às propriedades constitutivas das TDs, como presentes no processo de constituição dos fatos discursivos. Portanto, a terceira hipótese é a de que as condições de produção de TDs distintas são determinantes na circulação do escrevente pelo imaginário sobre a escrita e, consequentemente, no funcionamento dos elementos juntivos no âmbito textual. A fim de responder a essas perguntas, direcionadas pelas hipóteses, o objetivo geral da pesquisa é realizar uma análise linguístico-discursiva de MJs no âmbito da comparação entre 5 Mescla de TD refere-se a uma TD que compõe/constitui outra TD, por isso, denominada TD complexa. Por exemplo, a TD conto de fada constitui-se pela TD “Era uma vez”, caracterizada como uma construção linguística, pela TD diálogo, caracterizada por atos de fala que caracterizam discursos direto e indireto, entre outras possibilidades, conforme o Capítulo 2, seção 2.3., p. 54, em que será realizada a apresentação teórica, mais aprofundada, da composicionalidade das TDs. Aqui, vale destacar que as TDs narrativa e argumentativa, serão focalizadas, neste trabalho, enquanto TDs complexas. 6 A imagem do modo escrito de enunciação refere-se à representação social (da escrita), entendida como “noções prefiguradas que, em certa medida, comandam as práticas sociais (e de escrita), mas também como o modo pelo qual essas práticas cunham, não menos concretamente, os seus produtos materiais e simbólicos” (CORRÊA, 2004, p. XIX). Em outras palavras, o imaginário sobre a escrita, conforme Corrêa (2004), é entendido tanto como o produto das imagens socialmente construídas sobre ela, isto é, as representações sociais da escrita, bem como o processo de construção no interior das diferentes práticas sociais. 18 as TDs narrativa e argumentativa, produzidas por sujeitos regularmente matriculados no 7º ano do Ensino Fundamental II. Esse objetivo geral desdobra-se nos seguintes objetivos específicos: (1) descrever e analisar os MJs, em textos pertencentes às TDs narrativa e argumentativa, no modo escrito de enunciação, a partir das relações semânticas e da interdependência existente entre as porções componentes da oração complexa, na perspectiva de Halliday (1985) e Raible (2001); (2) buscar rastros 7 da relação entre o comportamento da junção e a heterogeneidade da escrita, mediante traços do oral/falado e letrado/escrito, a partir de relações entre o funcionamento dos MJs (cf. resultados do objetivo (1)) e os eixos da gênese da escrita e do código escrito institucionalizado, na perspectiva de Corrêa (1997). (3) relacionar o funcionamento dos MJs às características das TDs narrativa e argumentativa, numa abordagem desse funcionamento como práticas resultantes da dialogia com já falado/ouvido e escrito/lido, a partir de relações com o eixo 3 de Corrêa (1997). 1.3 Organização do trabalho Este trabalho está organizado em três PARTES, além desta Introdução e das Considerações finais, a saber, PARTE I: Pressupostos teóricos, PARTE II: Universo de investigação e procedimentos metodológicos e PARTE III: Análise e discussão dos dados. A PARTE I, Pressupostos teóricos, é composta por três Capítulos. No primeiro Capítulo, denominado Heterogeneidade da Escrita, apresenta-se a perspectiva de escrita constitutivamente heterogênea, entendida enquanto modo de enunciação, conforme a proposta de Corrêa (2007, 2006, 1997). Nessa direção, antes de apresentar a concepção da heterogeneidade da escrita, é feito um panorama geral das diferentes perspectivas sobre a relação entre fala e escrita, a partir do trabalho de Marcuschi (1997), com a breve exposição das perspectivas da dicotomia radical, fenomenológica de caráter culturalista, variacionista e interacional. A construção desse percurso, voltado ao professor de língua portuguesa, subsidia a discussão de alguns aspectos relevantes para a observação da relação entre fala e escrita, tal como se assume neste trabalho. Esse panorama geral tem por objetivo mostrar o estado do conhecimento científico acerca das relações entre fala e escrita e localizar a proposta de Corrêa (1997). No entanto, vale ressaltar que não há uma ideia de desenvolvimento da proposta de Marcuschi (1997) até chegar à 7 Os rastros são entendidos, conforme Lopes-Damasio (2019b), como pistas da circulação dos sujeitos por (sua) imagem de escrita, que se configura, em espaços de junção, a partir da observação linguístico-discursiva da movimentação dos sujeitos. 19 proposta de Corrêa (1997), pois o último autor traz a discussão da escrita para o campo da relação sujeito/linguagem e faz uma ruptura em relação à concepção de escrita enquanto objeto. Após essa revisão bibliográfica, apresenta-se, com a profundidade necessária, o modo heterogêneo de constituição da escrita, em que os aspectos mais importantes são expostos, numa discussão teórica, baseada em trabalhos de diferentes autores. Em seguida, apresentam- se os três eixos que orientam a circulação do escrevente pelo (seu) imaginário sobre a escrita, conforme Corrêa (1997). No Capítulo 2, denominado Tradições discursivas, parte-se de uma revisão bibliográfica que leva à conceitualização das TDs, a partir da apresentação: dos postulados de Coseriu (1979), fundamentados em uma perspectiva de língua histórica e concreta, em contraste com os estudos de Saussure (CLG, 1916); da origem do conceito de TD, conforme a proposta de Kabatek (2006); dos traços de repetição e evocação que definem uma TD; da distinção entre TD e gênero discursivo; e, por fim, das aplicações dos estudos de TDs, primeiramente, na gramática histórica, respaldando-se na perspectiva diacrônica, inaugurada por Kabatek (2012, 2008, 2006, 2005, 2004), e, em seguida, nos estudos da escrita infantil, em um recorte sincrônico, inaugurado em trabalhos realizados no âmbito do Grupo de Pesquisa “Estudos sobre a Linguagem” (LOPES-DAMASIO, 2020, 2019a, 2019b, 2018, 2017, 2014; LONGHIN- THOMAZI, 2014, 2011a, 2011b). No Capítulo 3, denominado Mecanismos de junção, apresenta-se a perspectiva funcionalista e sua forma de analisar os MJs, por meio das possibilidades de realização da estrutura sintática e das relações semânticas. Em vista disso, é apresentado um panorama geral das propostas funcionalistas, sempre em contraste com a abordagem tradicional de gramática, no que concerne ao modo como cada uma delas compreende e caracteriza os MJs (BALLY, 1965; HALLIDAY, 1985; RAIBLE, 2001; CARVALHO, 2004; LONGHIN-THOMAZI, 2004, 2011a; LOPES-DAMASIO, 2011). Em seguida, são apresentados os processos sintáticos e semânticos relacionados à articulação de orações, de acordo com a perspectiva funcionalista, e o entendimento de junção, conforme Raible (2001). Por fim, apresenta-se a noção de junção em correlação ao paradigma das TDs, retomando a hipótese de Kabatek (2006), de que os MJs são elementos sintomáticos na identificação de TDs, e, em seguida, no âmbito dos estudos da escrita infantil, é realizado um recorte sincrônico, mediante os trabalhos de Longhin-Thomazi (2014, 2011a, 2011b) e Lopes-Damasio (2020, 2019a, 2019b, 2018, 2017, 2016, 2014), em que os MJs são tomados como rastros da circulação do sujeito pelo modo escrito de enunciar. 20 Na PARTE II, Universo de investigação e procedimentos metodológicos, são apresentados o corpus e a metodologia de análise dos dados. Para a apresentação do corpus, são mostradas a organização da coleta do material escrito, as propostas de produção textual que a condicionaram e as referências das ocorrências que foram usadas para identificar os textos analisados. Em relação ao método de análise, apresentam-se as etapas que organizam a conjugação das abordagens quantitativa e qualitativa. A PARTE III, Análise e discussão dos resultados, é composta por três Capítulos: no primeiro Capítulo, Descrição e análise dos MJs nas TDs narrativa e argumentativa, apresentam-se os resultados da descrição e análise dos MJs nas TDs focalizadas, no modo escrito de enunciação, a partir das relações semânticas e da interdependência existente entre as porções componentes da oração complexa, conforme o objetivo específico (i); no segundo Capítulo, MJs e heterogeneidade da escrita, apresentam-se os rastros da relação entre o comportamento da junção e a heterogeneidade da escrita, mediante traços da relação oral/falado e letrado/escrito, conforme o objetivo específico (ii), mostrando, especificamente, os rastros da circulação dos sujeitos por dois eixos – o primeiro, da gênese da escrita, e o segundo, do código escrito institucionalizado – propostos por Corrêa (1997); no terceiro Capítulo, MJs e as TDs narrativa e argumentativa, apresenta-se uma análise dessas TDs a partir da proposta de produção textual em relação à composicionalidade das tradições, mostrando especificamente os rastros, representados pelos MJs nos espaços de junção que ocupam, da circulação dos sujeitos pelo terceiro eixo proposto por Corrêa (1997) – o da dialogia com o já falado/ouvido escrito/lido, conforme o objetivo específico (iii). 21 PARTE I FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 22 CAPÍTULO 1 HETEROGENEIDADE DA ESCRITA 1.1 Primeiras palavras Neste capítulo, serão discutidos os pressupostos teóricos fundamentais para o escopo desta pesquisa, relacionados à perspectiva adotada acerca da concepção de escrita constitutivamente heterogênea e entendida enquanto modo de enunciação. Respaldando-se nos trabalhos desenvolvidos por Corrêa (2007, 2006, 2004, 1997), o modo heterogêneo de constituição da escrita está fundamentado “na existência sócio-histórica da linguagem, a partir da qual pode-se pensar o cruzamento das práticas orais/faladas e letradas/escritas” (CORRÊA, 1997, p. 404), de modo que pode ser observado por meio de três eixos metodológicos, propostos pelo autor, que orientam a circulação do escrevente. No que concerne à ideia de competência comunicativa, é interessante reconhecer a relação histórica entre sujeito e linguagem, presente na heterogeneidade das várias culturas e, especialmente, nas suas práticas faladas e/ou escritas. Com esse intuito, e pensando no texto escrito, Corrêa (1997, p. 35) expõe que “é importante que estabeleçamos um consenso a partir da ideia de que o texto varia de acordo com o grau de convivência entre o oral/falado e o letrado/escrito, convivência que se ancora nas representações que o sujeito faz de sua própria prática lingüística”. No entanto, antes de apresentar a concepção da heterogeneidade da escrita, na seção 2.2, será feito um panorama geral das diferentes perspectivas sobre a relação entre fala e escrita, a partir do trabalho de Marcuschi (1997), denominadas como perspectiva da dicotomia radical, perspectiva fenomenológica de caráter culturalista, perspectiva variacionista e perspectiva interacional, e, também, serão discutidos aspectos relevantes para a observação da relação entre fala e escrita. Por um lado, essas diferentes perspectivas são aquelas que resultam de uma versão da história das relações entre fala e escrita, aquele apresentada sob o olhar teórico de Marcuschi (1997). Por outro, a versão da história aqui apresentada não deve permitir que se entenda uma noção de desenvolvimento entre as perspectivas expostas, até a proposta de Corrêa (1997), já que se trata do resgate de uma ruptura, proposta/realiza por Corrêa, em relação às demais perspectivas. Além de mostrar o estado atual do conhecimento científico acerca das relações entre fala e escrita, esse panorama deve cumprir o objetivo de guiar e localizar o leitor, especialmente o professor de língua portuguesa, nesse quadro geral, de modo a conduzi-lo por aquilo que pode ser reconhecível 23 como pressupostos teóricos de sua prática docente 8 até suas relações com a proposta de Corrêa (1997). Essa proposta será discutida, com profundidade, na seção 1.3, em que os aspectos mais importantes sobre a concepção do modo heterogêneo de constituição da escrita serão expostos, numa discussão teórica, baseada em trabalhos de diferentes autores, com o intuito de consubstanciar a apresentação da proposta em que se fundamenta a presente pesquisa. Em seguida, na subseção 1.3.1, serão apresentados os três eixos que orientam a circulação do escrevente pelo (seu) imaginário sobre a escrita, conforme Corrêa (1997). 1.2 A relação entre oralidade e letramento e entre fala e escrita Em um ensaio, publicado em 1997, Marcuschi parte da hipótese de que não é possível analisar as relações entre “língua falada e língua escrita” 9 , centrando-se somente no código linguístico. Nessa direção, propõe a distinção entre oralidade e letramento como práticas sociais e fala e escrita como modalidades de uso, de modo que observa a primeira a partir da realidade sociocomunicativa e, a segunda, a partir de fatores linguísticos. Desse modo, apresenta também diferentes perspectivas que abordam essa relação e recusa a visão dicotômica 10 e simplista sobre a questão, já que ambas as práticas – orais e letradas −, se relacionam num continuum de usos e gêneros textuais (MARCUSCHI, 1997, p. 136). Segundo Marcuschi (1997), a oralidade seria compreendida como uma prática social que se apresenta sob uma diversidade de gêneros textuais, de modo que podem ir desde o mais informal (diálogo familiar, cotidiano) até o mais formal (exposições acadêmicas, sermão) 11 , além de estar inserida em vários contextos de uso. 8 Portanto, objetiva-se contribuir para que o docente de língua portuguesa possa estabelecer, de forma crítica, relações entre as diferentes propostas teóricas e os efeitos dessas relações no contexto do ensino de língua materna, especialmente no tocante aos conceitos de fala e escrita. 9 Esta formulação retrata o posicionamento de Marcuschi (1997), uma vez que deixa indícios de sua concepção ainda dicotômica de fala e escrita – apesar de, explicitamente, rechaçar esse posicionamento em sua discussão. Isso pode ser afirmado uma vez que, em sua formulação, o autor refere-se à existência de duas “línguas”, uma falada e outra escrita. 10 Embora Marcuschi (1997) afirme um distanciamento total de uma visão dicotômica, seu trabalho deixa sinais de uma dicotomização que, apesar de não ser mais radical, ainda se mantém, de forma didática ou metodológica, conforme destaca Corrêa (1997). Para além da própria denominação “língua falada” e “língua escrita”, que, por si só, evidencia tal dicotomização, também as noções de fala e escrita defendidas por Marcuschi (1997), de acordo com Corrêa (2008, p. 77-78), “definem-se fundamentalmente, por referência às bases semióticas da fala (o som) e da escrita (traço gráfico) e essa diferença entre materiais semióticos tem servido indevidamente para validar a oposição radical entre práticas faladas e escritas”, de modo que parece considerar o aspecto da base semiótica como se fosse o único relevante. Outros aspectos ligados a essa consideração serão apresentados na subseção 1.2.4, em que se expõe a perspectiva assumida por Marcuschi para o tratamento das relações entre fala e escrita. 11 O que Marcuschi afirma em relação aos gêneros pode ser pensado, correlativamente, também em relação às TDs, com a necessidade de se especificar que o fato de uma TD ser realizada em práticas orais, mais ou menos formais, não deve redundar no entendimento de que ela esteja mais ou menos sob a influência ou interferência da fala, uma vez que o encontro das práticas orais/faladas e letradas/escritas, conforme Capristano (2010, p. 177) 24 O letramento é entendido como o uso da escrita, na sociedade, podendo ir desde uma apropriação mínima da escrita, como, por exemplo, o indivíduo que é analfabeto, porém tem noção do valor do dinheiro, sabe o ônibus correto que deve pegar, consegue diferenciar as mercadorias pelas marcas, apesar de não escrever cartas e/ou ler jornais. Assim, o autor afirma que há uma diferença entre letramento e alfabetização, mas que é possível, eventualmente, relacioná-los. De acordo com Marcuschi (2010, p. 21-22), o letramento é um processo de aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para usos utilitários, compreendendo, assim, um conjunto de práticas. Já a alfabetização pode ocorrer, como de fato ocorreu historicamente, à margem da instituição escolar, porém é sempre um aprendizado conforme o ensino e que está no domínio ativo e sistemático das habilidades de ler e escrever que acontece na instuição escolar. Tfouni (1994), que defende uma concepção discursiva de letramento e que se opõe a trabalhos que o apresentam como sinônimo de alfabetização, aponta que o letramento é um processo mais amplo do que a alfabetização, de natureza sócio-histórica, e que está intrinsicamente associado à existência e influência de um código escrito. Assim, conforme Tfouni (1994, p. 58), assumir o letramento como processo sócio-histórico significa mostrar que “o discurso oral do analfabeto pode estar perpassado por características do discurso escrito, ou seja: que a função-autor não é prerrogativa possível apenas para aqueles que aprendem a ler e escrever, mas, antes, [...] é um discurso letrado”, de modo que, por ser sócio e historicamente constituído, assim como os outros discursos são, pode também ser acessível àqueles que não dominam o código escrito. Portanto, Tfouni (1994), assim como Marcuschi (2010), compreende o letramento como um processo de natureza social e histórica, em que a escrita impacta na sociedade, e não como um sinônimo de alfabetização. No entanto, apesar de ambos os autores mostrarem o letramento como uma prática social e histórica, Tfouni (1994, p. 61) afirma que “[...] a dimensão histórica do letramento só se dará se o sujeito ocupar uma posição tal no interdiscurso que lhe possibilite organizar o intra-discurso (oral ou escrito) que está produzindo, de forma a produzir um texto”. Em outras palavras, a autora se difere de Marcuschi (2010) ao tratar do letramento sob um viés interdiscursivo, na linha da análise do discurso pêcheutiana. A fala, de acordo com Marcuschi (1997), é considerada como uma forma de produção textual-discursiva, baseada no som, que não precisa de uma tecnologia e possui aparato destaca, com base em Corrêa (2004, p. 34), não marcaria uma suposta intervenção e/ou interferência danosa da fala na escrita, mas, pelo contrário, esse encontro seria constitutivo do modo de enunciação escrito. 25 disponível no próprio corpo do ser humano, além de ser adquirida, naturalmente, em contextos informais do cotidiano. Já a escrita, ao contrário, é adquirida, com maior frequência, em contextos formais, tais como as instituições de ensino, e necessita de uma tecnologia própria, desenvolvida a partir do traço gráfico. Marcuschi (1997, p. 126) aponta que ela “seria, além de uma tecnologia de representação abstrata da própria fala 12 , um modo de produção textual-discursiva com suas próprias especificidades”. De modo geral, mediante essas considerações gerais, Marcuschi (1997) apresenta diferentes perspectivas que se ocupam das relações entre fala e escrita, até expor sua proposta, atentando-se para algumas questões, aqui explicitadas. Essas perspectivas serão discutidas nas subseções seguintes. 1.2.1 Perspectiva da dicotomia radical A primeira perspectiva, apontada por Marcuschi (1997) como a de grande tradição entre os linguistas, propõe analisar as relações entre duas modalidades de uso da língua (fala x escrita) e observa principalmente que há diferenças discriminadas numa perspectiva dicotômica. Diante disso, Marcuschi (1997) apresenta alguns autores da seguinte forma: (i) aqueles que representam as dicotomias mais polarizadas e uma visão restrita: Bernstein (1971), Labov (1972), Halliday (1985) (na primeira fase), Ochs-Kennan (1979); (ii) aqueles que observaram as relações entre a fala e a escrita dentro de um continuum, seja tipológico ou da realidade social: Chafe (1982, 1984, 1985), Tannen (1982, 1985), Gumperz (1982), Biber (1986), Blanche-Benveniste (1990), Halidday/Hasan (1985). Seguindo nesse viés, de acordo com Marcuschi (1997), o conjunto de autores representantes das dicotomias mais polarizadas e os que percebem as relações entre fala/escrita dentro de um continuum, abrangem, de maneira geral, uma análise voltada para o código e se mantêm na imanência do fato linguístico. Essa perspectiva deu origem ao prescritivismo e à norma linguística, em sua forma rigorosa e restritiva, conforme foi observada pelos gramáticos, de acordo com as seguintes dicotomias: 12 Para uma discussão aprofundada sobre a concepção de escrita como representação dos sons da fala e, também, a naturalização da continuidade da escrita em relação à oralidade, ver Lemos (1998, dentre outros). 26 FALA ESCRITA Contextualizada Dependente Implícita Redudante Não-planejada Imprecisa Não-normalizada Fragmentária Descontextualizada Autônoma Explícita Condensada Planejada Precisa Normalizada Completa Quadro 1: Concepção dicotômica (MARCUSCHI, 2003, p. 27) Segundo Marcuschi (1997), essas dicotomias têm origem em uma observação fundada na natureza das condições empíricas de uso da língua, de modo que envolvem planejamento e verbalização, e não são características dos textos produzidos ou mesmo da fala ou da escrita. Por essa razão, o autor salienta a existência de análises distorcidas do próprio fenômeno textual. Ao observar as diferenças entre fala e escrita através da base dicotômica, Koch (1997, p. 33, destaques da autora) afirma que: O texto falado apresenta-se “em se fazendo”, isto é, em sua própria gênese, tendendo, pois, a “pôr a nu” o próprio processo da sua construção. Em outras palavras, ao contrário do que acontece com o texto escrito, em cuja elaboração o produtor tem maior tempo de planejamento, podendo fazer rascunhos, proceder a revisões e correções, modificar o plano previamente traçado, no texto falado, planejamento e verbalização correm simultaneamente, porque ele emerge no próprio momento da interação: ele é o seu próprio rascunho. De modo geral, Koch (1997, p. 33) considera que “a escrita é o resultado de um processo, portanto estática, ao passo que a fala é processo, portanto, dinâmica”. Para exemplificar, a autora cita o trabalho de Halliday (1985, p. 74), em que capta bem essa diferença através da metáfora do quadro e do filme. O texto é visto pelo leitor de maneira sinóptica, ou seja, existe diante de uma página, e por trás dele é que se vê um quadro. No entanto, no caso do ouvinte, o texto é exposto de forma dinâmica, coreográfica, isto é, através de uma viagem pelo ar, existindo, assim, por trás dele um filme. Nessa mesma direção, Marcuschi (2008) destaca, ao fazer referência ao Quadro 1, que nem todas as características nele apresentadas são exclusivas de uma ou de outra das duas modalidades (fala e escrita), mas que foram construídas num parâmetro ideal de escrita, e de uma forma de ver a fala através das lentes desse ideal de escrita, a partir de uma gramática projetada para ele. Desse modo, resultou em uma visão preconceituosa da fala, em que é 27 definida como descontínua, pouco organizada, rudimentar e sem qualquer planejamento e, de forma também distorcida, em uma visão idealista da escrita 13 . Segundo Marcuschi (2008), um aspecto que seria próprio da fala, em um paradigma caracterizado como tipicamente falado, e que pode ser exemplificado pela conversação face- a-face espontânea, seria sua natureza interacional, que é relativamente não planejável de antemão, isto é, ela precisa ser planejada e replanejada conforme cada novo lance do jogo da linguagem. Por fim, Marcuschi (1997) compreende que esta perspectiva da dicotomia radical, embora apresente bons resultados no que concerne à descrição estritamente empírica 14 , manifesta grande insensibilidade para os fenômenos dialógicos e discursivos. Por essa razão, o autor aponta também que é uma tendência restritiva e que a própria ideia de regras, associadas a dicotomias estanques, na separação entre forma e conteúdo, e entre língua e uso, por ela proposta, é exageradamente rígida, uma vez que uma de suas conclusões é a que requer, para a fala, um menor grau de complexidade e, para a escrita, um grau de complexidade maior. De resto, considera-se uma opção que “conduz a seleções aparentemente fundadas em algum valor intrínseco aos signos linguísticos, mas na realidade, as decisões fundam-se em critérios e mecanismos sócio-culturais não explícitos” (MARCUSCHI, 1997, p. 128). 1.2.2 A perspectiva fenomenológica de caráter culturalista Essa segunda perspectiva tem o intuito de analisar a natureza das práticas da oralidade versus escrita, e apresentar análises principalmente de cunho cognitivo, antropológico ou social, de modo a produzir o desenvolvimento de uma fenomenologia da escrita e seus efeitos na forma de produção do conhecimento. Nesse sentindo, Marcuschi (1997) chama esse paradigma de visão culturalista e ressalta sua baixa adequação para a análise de aspectos linguísticos, por se firmar como perspectiva epistemológica que busca identificar as variações operadas nas sociedades com sistema de escrita. 13 Segundo Corrêa (2015), a escrita como modo de enunciação inclui, como parte da apreensão do já falado/escrito, a presença do sujeito, uma vez que a relação entre o falado e o escrito passa a ganhar a dinâmica das relações e das práticas sociais. Assim, as relações e as práticas sociais de natureza falada ou escrita, “cruzam- se para produzir não mais um código homogeneamente constituído em função da normalização de uma variedade como padrão, mas a escrita no discurso, efetivamente submetida às condições de sua produção atual e, portanto, heterogeneamente constituída no que se refere à presença do falado no escrito” (CORRÊA, 2015, p. 134). 14 É importante ressaltar que, no presente trabalho, diferentemente da avaliação realizada por Marcuschi acerca da perspectiva da dicotomia radical, entende-se que é muito difícil separar aspectos dialógicos e discursivos de uma análise que focalize a descrição empírica da linguagem. 28 Em suma, segundo Marcuschi (1997), as principais características da visão culturalista são: cultura oral versus cultura letrada pensamento concreto versus pensamento abstrato raciocínio indutivo versus raciocínio dedutivo atividade artesanal versus atividade tecnológica cultivo da tradição versus inovação constante ritualismo versus analiticidade Quadro 2: Características da visão culturalista (MARCUSCHI, 1997, p. 129) Biber (1988, apud MARCUSCHI, 1997, p. 129, destaques do autor), que observa criticamente esta perspectiva, inicia seu estudo sobre as relações entre fala e escrita e considera que a inserção da escrita no mundo teve “um efeito notável e correspondeu à transição do „mito‟ para a „história‟ se nos apoiamos na realidade dos documentos”. Foi a escrita que possibilitou, segundo Biber, tornar a língua um objeto de estudo sistemático. Assim, a partir da escrita, começa a institucionalização, de forma rigorosa, do ensino formal da língua com o intuito essencial de toda formação individual para lidar com as exigências das sociedades consideradas letradas. Aprofundando-se um pouco mais nessa perspectiva culturalista da escrita, Marcuschi (1997) faz referência ao trabalho de Gnerre (1985), que observa, nos autores que defendem esse mesmo posicionamento, problemas que podem ser sintetizados em três pontos: etnocentrismo, supervalorização da escrita e o seu tratamento globalizante. O primeiro, relativo ao etnocentrismo, refere-se à prática de olhar para as culturas alienígenas através da própria cultura. O segundo, relativo à supervalorização da escrita, principalmente a escrita alfabética, refere-se a uma posição de supremacia das culturas com escrita ou até mesmo dos grupos que apresentam o domínio da escrita numa sociedade desigualmente desenvolvida. O terceiro, relativo ao tratamento globalizante da escrita, diz respeito à desatenção para o fato de que não há sociedades letradas, mas grupos de letrados, elites que mantêm o poder social também por meio de seu domínio da escrita, já que as sociedades não são homogêneas e têm diferenças internas, como, por exemplo, a própria sociedade brasileira que não é homogênea em relação ao letramento. 1.2.3 A perspectiva variacionista Essa perspectiva tem o intuito de tratar o papel da escrita e da fala a partir do ponto de vista dos processos educacionais, apresentando propostas sobre o tratamento da variação na 29 relação entre padrão e não-padrão linguístico, nos contextos de ensino formal. Marcuschi (1997, p. 131) afirma que “aqui se situam os modelos teóricos preocupados com o que vem se denominando currículo bidialetal, por exemplo”, ou seja, estudos que tentam detectar as mudanças dos usos da língua em sua forma dialetal. Nesse paradigma, não se fazem distinções dicotômicas ou caracterizações estanques, mas se busca observar regularidades e variações. Assim, é possível perceber a distinção entre: - língua padrão - variedades não-padrão - língua culta - língua coloquial - norma padrão - normas não-padrão Quadro 3: Características estanques da visão variacionista (MARCUSCHI, 1997, p. 131) Segundo Marcuschi (1997), há alguns autores, no Brasil, que seguem a perspectiva variacionista: Bortoni (1992, 1995), Kleiman (1995) e, em uma concepção um pouco mais diversificada, porém dentro do mesmo âmbito, também, Soares (1986). Embora o autor afirme que se identifica com essa perspectiva, ainda não a considera como resolvida, de modo que ressalta os trabalhos de sociolinguistas, como Trudgill (1975) e Labov (1972), que mostram a impossibilidade de um desempenho bidialetal. Por fim, Marcuschi (1997) retoma o trabalho de Bernstein (1971), para dizer que é possível o domínio do dialeto padrão na atividade de escrita, permanecendo no dialeto não-padrão no desempenho oral. As relações entre fala e escrita dizem respeito, para Marcushi (1997), a questões referentes ao uso da língua. Por consequência, destaca que a variação ocorre tanto na fala como na escrita, o que deveria evitar, assim, o equívoco de reconhecer a língua escrita como o padrão da língua, ou seja, não seria possível reconhecer a escrita como equivalente à língua padrão. Contudo, o autor considera que a fala e a escrita não são propriamente dois dialetos, mas duas modalidades de uso da língua, e que, portanto, quando o aluno domina a escrita, torna-se bimodal. Dessa maneira, torna-se fluente em dois modos de uso da língua (fala e escrita) e não em dois dialetos. Por fim, o mais importante a respeito dessa perspectiva é que ela, pela primeira vez, considerando as demais perspectivas expostas até aqui, deixa de fazer dicotomizações estanques, valorizando uma preocupação com regularidades e variações. No entanto, ainda assim, levando em consideração os pontos extremos destacados no Quadro 3, é mantida uma dicotomização metodológica, no âmbito da variação. Segundo Marcuschi (2010), é notável 30 também, nessa perspectiva, o fato de ela observar as variedades linguísticas distintas, destacando que todas as variedades estão submetidas a algum tipo de norma, porém como nem todas as normas podem ser padrão, sempre haverá uma ou outra que deixará de ser tida como norma padrão. Um outro ponto, conforme o autor, é o de que é possível, na linha de Stubbs (1986), ver as relações entre fala e escrita como uma questão de variação linguística (aspecto amplamente admitido hoje), em contextos educacionais, já que as línguas não são homogêneas sob o ponto de vista de seu uso e as relações de fala e escrita concernem às questões de uso da língua. 1.2.4 A perspectiva interacional Marcuschi (1997, p. 132) inicia sua apresentação da perspectiva interacional, aquela em que se insere seu próprio trabalho, qualificando-a como uma série de postulados um tanto desconexos, 15 cujo intuito é abordar as relações entre fala e escrita dentro de um continuum textual. O autor define-a como sendo uma visão interacionista e afirma que sua fundamentação central se respalda na percepção da relação dialógica, no uso da língua, das estratégias linguísticas, das funções interacionais, do envolvimento, da situacionalidade e, por último, da formulaicidade, conforme o seguinte quadro: 16 relação dialógica no uso da língua estratégias linguísticas funções interacionais envolvimento e situacionalidade formulaicidade Quadro 4: Características da visão interacionista (MARCUSCHI, 1997, p. 132) Para Marcuschi (1997), esse modelo apresenta, com maior sistematicidade, a língua enquanto fenômeno dinâmico e, concomitantemente, estereotipado, mas, ainda assim, apresenta baixo potencial explicativo e descritivo no que concerne a aspectos sintáticos e 15 Vale lembrar que o autor faz essa afirmação sobre a própria proposta teórico-metodológica que seu trabalho ajuda a construir, à luz, especialmente, de estudos realizados por Koch e Oesterreicher (2007), de modo a sinalizar seu estágio ainda incipiente. 16 É importante destacar, aqui, que Marcuschi (1997) apresenta as principais percepções de cada perspectiva em Quadros, construídos a partir de duas colunas. No entanto, diante da perspectiva interacionista, o autor deixa de lado as duas colunas, com aspectos distintos, e passa a apresentar um único bloco de percepções. Assim, é possível perceber o avanço da teoria em direção a um abandono, mesmo que parcial, das concepções que dicotomizam a fala e a escrita. 31 fonológicos da língua. Por isso, se concebida na fusão com a visão variacionista, seria possível alcançar, segundo o autor, resultados mais adequados, do ponto de vista empírico e teórico. Dessa forma, o autor compreende que: Talvez seja esse o caminho mais sensato no tratamento das correlações entre formas linguísticas (dimensão linguística), contextualidade (dimensão funcional) e interação (dimensão interpessoal) no tratamento das semelhanças e diferenças entre fala e escrita nas atividades de formulação textual-discursiva. Nesta visão interacional cabem análises de grande relevância que se dedicam a perceber as diversidades das formas textuais produzidas em coautoria (conversações) e formas textuais em autoria (monólogos), que até certo ponto determinam as preferências básicas numa das perspectivas da relação fala e escrita. Além disso, tem-se, aqui, a possibilidade de tratar os fenômenos de compreensão na interação verbal e na interação com o texto escrito, de maneira a detectar especificidades na própria atividade de construção dos sentidos (MARCUSCHI, 1997, p. 132- 133). Essa perspectiva, como é possível observar, encontra-se numa linha discursiva e interpretativa. Contudo, as relações entre oralidade/letramento e fala/escrita, propostas por ela, não se referem a algo consensual, nem mesmo como objeto de análise. Marcuschi (1997, p. 133) refere-se a “fenômenos de fala e escrita enquanto relação entre fatos lingüísticos (relação fala x escrita) e enquanto relação entre práticas sociais (oralidade versus letramento)”. Nessa direção, o autor considera que as relações entre fala e escrita não ocorrem de maneira clara, nem linear, uma vez que apresentam um constante dinamismo fundado no continuum que se manifesta entre essas duas modalidades de uso da língua. Além disso, também não há como postular polaridades estritas e dicotomias estanques. Embora o autor afirme que dicotomias estanques não sirvam para explicar fatos de fala/escrita e oralidade/letramento, tomados enquanto fatos linguísticos e práticas sociais, e postule a pertinência do continuum entre essas modalidades, pode-se perceber que, em alguns pontos de seu texto, ainda se refere a esses fatos e a essas práticas numa oposição, o que é “traduzido”, no texto, pelo uso de versus. Nessa linha, têm-se indícios do que será denominado, por Corrêa (1997), de dicotomização metodológica ou didática das relações entre fala e escrita/oralidade e letramento, conforme será apresentado com mais detalhes na sequência deste Capítulo. De modo geral, no recorte temporal da produção de seu ensaio, Marcuschi (1997) ressalta que aqueles que se dedicavam aos estudos da relação entre fala e escrita quase sempre se voltavam ao texto falado e poucas vezes observavam a escrita, porém as análises eram, muitas vezes, realizadas sob a ótica da escrita. Por outro lado, as afirmações feitas sobre a escrita respaldavam-se na gramática codificada e não no fenômeno textual-discursivo da 32 escrita. Dessa forma, em síntese, segundo Marcuschi (1997, p. 133), naquele contexto histórico, o que conhecíamos não eram nem as características da fala como tal, nem as características da escrita como tal. Em outras palavras, o que conhecíamos eram as características de um sistema normativo da língua. Contemporaneamente, vários estudos voltados para fala/oralidade e para escrita/ letramento não se pautam mais por essas diretrizes (a de olhar a fala a partir da escrita e a escrita a partir do prescritivismo gramatical). Nesse quadro, insere-se o presente trabalho, que focaliza questões de escrita, numa fundamentação teórica dessa forma atualizada. A fim de expor as bases teóricas aqui adotadas, serão abordados, na subseção 1.2.4.1, aspectos da perspectiva textual-interativa, assumida por Marcuschi como uma forma de se afastar das práticas que o autor afirmou serem recorrentes nos estudos de fala e escrita, a saber: as características da fala e da escrita como modalidades do uso da língua, o continuum tipológico em que se encontram os diferentes tipos de textos e as concepções e o funcionamento de língua de acordo com a proposta de Marcuschi (1997). Na seção 1.3, serão apresentados os pontos básicos para o entendimento da escrita constitutivamente heterogênea, tal como o seu distanciamento da dicotomização, seja a radical, seja a metodológica, as características que indiciam a escrita heterogênea e as principais proposições que sustentam a maneira particular de compreender o funcionamento dessa escrita, conforme Corrêa (1997). Por fim, na subseção 1.3.1., serão abordados os três eixos de circulação imaginária do escrevente, proposto por esse autor. 1.2.4.1 Aspectos relevantes da perspectiva interacionista para a observação da relação entre fala e escrita Para Marcuschi (1997), a língua, seja na sua modalidade falada ou escrita, reflete a organização da sociedade, uma vez que mantém complexas relações com as representações e as formações sociais. Para o autor, trata-se de uma funcionalidade, em geral, mais identificável na fala. Por esse motivo é possível encontrar muitos correlatos entre variação sociolinguística e variação sociocultural. Dessa forma, percebe-se ainda a postulação da separação entre fala e escrita. Marcuschi (1997) faz uma observação sobre a própria visão comparativa entre fala e escrita e afirma que, quando se olha para a escrita, é possível ter a sensação de se estar contemplando algo naturalmente claro e definido, no sentido de que se trata de um fenômeno, que, se não é homogêneo, ao menos, mostra-se bastante estável e com pouca variação. Para o autor, o contrário acontece com a consciência espontânea construída sobre a fala, que se 33 mostra variada, já que, curiosamente, não vem à mente a fala padrão. Por conseguinte, o autor afirma que fala e escrita são intuitivamente construídas como tipos ideais, provindos de origens opostas e que não correspondem a nenhuma realidade, a não ser que as identifiquemos com um fenômeno que as realize. Diante da hipótese defendida, Marcuschi (1997, p. 136, destaques, em itálico, do autor) considera que: As diferenças entre fala e escrita se dão dentro do continuum tipológico das práticas sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois pólos opostos. Em consequência, temos a ver com correlações em vários planos, surgindo daí um conjunto de variações e não uma simples variação linear. Diante dessas diferenças, o autor mostra, em um gráfico, que fala e escrita ocorrem através de dois contínua: (i) na linha de vários tipos de textos (TF1, TF2...TFn e TE1, TE2...TEn); e (ii) na linha das características específicas de cada modalidade. Assim, é possível visualizar, de forma mais clara, essa proposta no Esquema 1: Esquema 1: Fala e escrita no continuum dos gêneros textuais (MARCUSCHI, 1997, p. 136) Em um segundo Esquema, Marcuschi insere os gêneros textuais, distribuindo-os nesse continuum: 34 Esquema 2: Distribuição dos gêneros textuais no continuum fala e escrita(MARCUSCHI, 1997, p. 137) Diante do Esquema 1, Marcuschi (1997) afirma que um determinado texto falado, como, por exemplo, uma conversa espontânea, seria o TF1 e poderia ser representado como o protótipo dessa modalidade e que, por isso, não seria possível compará-lo ao TE1, definido como o protótipo da escrita. Um exemplo de TE1 são os textos acadêmicos. Dessa forma, o autor considera, a partir dessa hipótese, que “o contínuo tipológico distingue e correlaciona os textos de cada modalidade quanto às estratégias de formulação textual que determinam o contínuo das características que distinguem as variações das estruturas e tanto a fala como a escrita se dão num contínuo de variações” (MARCUSCHI, 1997, p. 137, grifos do autor). O Esquema 2, que complementa o anterior, com a inserção de exemplos relativos aos gêneros textuais que podem ser distribuídos ao longo do continuum, caracteriza as práticas orais e letradas, nas modalidades falada e escrita. Nesse Esquema 2, quando se compara uma carta pessoal (escrita), em estilo descontraído, com uma narrativa espontânea (falada), de acordo com Marcuschi (1997), haverá menos diferenças do que quando se compara uma narrativa (falada) e um texto acadêmico (escrito). Também o contrário se sustentaria, ou seja, uma conferência universitária (falada) bem preparada terá uma relação mais próxima com determinados gêneros de textos escritos. Assim, o autor cita como exemplo o equívoco de autores que acreditam que a fala é dialogada e a escrita é monologada, o que os leva a confundir uma das diversas maneiras de textualização da fala com a modalidade de uso da língua. 35 Nessa mesma direção, o Esquema 3 também representa os gêneros, na relação fala e escrita, considerando as condições de produção (concepção) e a recepção falada e escrita (aspecto medial – gráfico ou fônico): Esquema 3: A oralidade e escrita pelo meio de produção e concepção discursiva (MARCUSCHI, 2010, p. 39) O Esquema 3 mostra, em (a), o domínio do tipicamente falado (oralidade) quanto ao meio e quanto à concepção. Já a sua contraparte seria o domínio (c), que corresponde ao tipicamente escrito. Por outro lado, tanto (b) como (d) seriam os domínios mistos de modalidades. A concepção concerne ao modo como o texto foi concebido originalmente e o meio concerne ao modo de recepção, à sua base semiótica. Assim, a concepção direciona para a natureza do meio em que o texto será originalmente expresso ou exteriorizado. É dessa forma que, por exemplo, um poema declamado não se torna uma linguagem falada no ato da declamação e sim um texto escrito oralizado, pois sua concepção foi no formato escrito. Com fundamento nessa consideração, o som deixa de ser uma condição suficiente para a definição de fala e torna-se apenas uma condição necessária da oralidade, sem a qual não existiria. Da mesma forma, o traço gráfico deixa de ser condição suficiente para a definição de escrita que se realiza em um feixe de materiais significantes (CORRÊA, 1997) 17 . O Quadro 5 exemplifica a correlação entre concepção e meio, na correlação com os gêneros, de acordo com a proposta de Marcuschi: 17 Corrêa (1997) discute, ao considerar fala e escrita como modos de enunciação relacionados às práticas sociais, que, limitar a escrita a seu material significante (gráfico-visual) e/ou sua base semiótica, é olhar para escrita como produto, pois seu caráter heterogêneo é apresentado a partir de outras dimensões que constituem o processo de sua produção. Essa discussão será aprofundada, na seção 1.3, sobre a escrita constitutivamente heterogênea. 36 Gênero textual Meio Concepção Sonoro Gráfico Falada Escrita Conversação espontânea [a] X X Texto científico [c] X X Noticiário de TV [d] X X Entrevista publicada Veja [b] X X Quadro 5: Distribuição de quatro gêneros textuais segundo o meio de produção e a concepção discursiva (MARCUSCHI, 2010, p. 40) A partir dessa consideração, compreende-se que tanto a fala como a escrita estão dentro de um continuum de variações, isto é, fala e escrita variam. Desse modo, essa comparação considera, como critério central de análise, a inserção dos gêneros textuais nesse continuum, com o objetivo de abandonar as dicotomias estritas 18 . Diante desse continuum tipológico em que se encontram os diferentes tipos/gêneros de textos, Koch & Oesterreicher (1990, apud KOCH, 1997, p. 32) apresentam a utilização do oral ou escrito de acordo com o critério da proximidade/distância 19 . Koch (1997, p. 31) compreende fala e escrita como duas modalidades de uso da língua, assim como Marchuschi (1997), em que cada uma delas possui características próprias, ou seja, a escrita não se constitui mera transcrição da fala, mesmo tendo o mesmo sistema linguístico. Portanto, para os autores, fala e escrita têm características próprias e não devem ser observadas de forma dicotômica, estanque. O bom resultado da aplicabilidade dessa proposta, segundo Marcuschi (1997), depende também das concepções de língua e de funcionamento dessa língua. Nesse caso, o autor parte da noção de: funcionamento da língua como fruto também das condições de produção, ou seja, da atividade de produtores/receptores de textos situados em contextos reais e submetidos a decisões que seguem estratégias nem sempre dependentes apenas do 18 Apesar do objetivo de se afastar das dicotomias estritas ou radicais, a proposta defendida por Marcuschi (1997) não consegue se afastar, totalmente, da dicotomização, uma vez que se preservam, nos pólos extremos do continuum, o que pode ser compreendido como o tipicamente/prototipicamente falado, de um lado, e escrito, de outro, o que, de acordo com o autor, abrigaria os gêneros que preservariam as principais distinções, como, por exemplo, um artigo científico e uma conversação espontânea. 19 Destaca-se, aqui, que na proposta do continuum tipológico de gêneros textuais é possível observar a relação entre os trabalhos de Koch e Oesterreicher (2007) e de Marcuschi (1997, 2001), uma vez que, conforme Lopes- Damasio (2019a), se localizam, no contínuum, os referidos pontos intermediários entre os extremos do suposto como típico oral, por um lado, e do suposto como típico escrito, por outro. Outro fator é que as bases semióticas exercem o papel de relevância para a constituição desse continuum, mesmo estando ligadas a outros fatores, vinculados a saberes sociais. Assim, “[p]ara os autores, trata-se de noções solidárias que devem ser avaliadas a partir do meio de realização (fônico ou gráfico) e da concepção de texto oral e texto escrita, que pode se dar num „contínuo de intermináveis formas intermediárias‟”, conforme Lopes-Damasio (2019a, p. 92) aponta ao ressaltar o trabalho de Kabatek (2002, p. 42). 37 que se convencionou chamar de sistema lingüístico. Daí a necessidade de se adotar um componente funcional para analisar a relação fala x escrita enquanto modalidades de uso (MARCUSCHI, 1997, p. 138, grifos do autor). A concepção de sistema, segundo Marcuschi (1997), não deveria ter mais do que a ideia central de estrutura virtual, isto é, um constructo abstrato e teórico, fundamentado em um objeto da teoria e não como fato empírico. O autor considera, também, que a língua se concretiza principalmente como heterogeneidade e variação, e não como um sistema abstrato e único. Contudo, quando há o emprego da palavra língua, Marcuschi (1997) não se refere a um sistema de regras determinado, abstrato, regular e homogêneo, bem como também não se refere às relações linguísticas imanentes. Pelo contrário, sua concepção de língua propõe um fenômeno heterogêneo (no sentido de múltiplas formas de manifestação), variável (em seu sentido dinâmico e suscetível a mudanças), histórico e social (oriundo de práticas sociais e históricas), indeterminado por meio do aspecto semântico e sintático (na condição de produção) e que se mostra em situações de uso real como texto e discurso. Portanto, apesar de heterogeneidade e indeterminação acharem-se na base da concepção de língua pressuposta em Marcuschi, o entendimento da relação fala e escrita é ainda distinto daquele proposto por Corrêa (1997), conforme se apresenta na sequência. 1.3 A escrita constitutivamente heterogênea Os estudos sobre o modo heterogêneo de constituição da escrita, na proposta de Corrêa (1997), mostram uma reflexão que dialoga criticamente com a proposição de Marcuschi (1995) sobre as relações entre oralidade/letramento e fala/escrita, que, segundo o autor, são “fenômenos de fala e escrita enquanto relação entre fatos linguísticos (relação fala x escrita) e enquanto relação entre práticas sociais (oralidade x letramento)” (MARCUSCHI, 1995, apud CORRÊA, 1997, p. 18). Consequentemente, leva-se a assumir o falado e o escrito como práticas sociais vinculadas à oralidade e ao letramento. Portanto, Corrêa (1997) rompe com a proposta de Marcuschi (1995) e se afasta dela, pois traz à tona a discussão da escrita para o campo da relação sujeito/linguagem. O modo heterogêneo de constituição da escrita, apresentado por Corrêa (1997, p. 87- 88): [...] é, pois, uma particularização, para o domínio da escrita, do encontro das práticas orais/faladas e letradas/escritas, considerada, ao mesmo tempo, a dialogia com o já 38 falado/ouvido e com o já escrito/lido. Esse encontro, que está presente nas duas modalidades, embora registrado localmente, regulado pelas instituições; tipicamente particular, é, no entanto, historicizado. Desse modo, em determinados momentos do processo de escrita e de acordo com as circunstâncias em que se pratica a textualização, os escreventes expõem esse movimento de maneira privilegiada. Assim, a heterogeneidade constitutiva da escrita resulta, portanto, do encontro das práticas orais/faladas e letradas/escritas. Segundo Chacon (2005, p. 79, grifo do autor), “esse encontro caracteriza, para este autor [Corrêa], a heterogeneidade da escrita (e não a heterogeneidade na escrita)”. Por conseguinte, a heterogeneidade é compreendida como constitutiva da escrita e não algo exterior que a compõe como uma marca pontual e acessória. Desse modo, o autor aponta que: [...] ao mesmo tempo em que a relação entre o falado e o escrito deixa de ser vista como uma questão de interferência, fato que traria, implícita, a consideração de ambas as modalidades como puras (CORRÊA, 1997, p. 86), a heterogeneidade constitutiva da escrita é explicada pela relação que o sujeito mantém com a linguagem, em seus diferentes modos de enunciação (CHACON, 2005, p. 79, grifos do autor). Portanto, é nessa perspectiva que Corrêa (1997) vislumbra o encontro entre as práticas sociais do oral/letrado e os fatos linguísticos do falado/escrito, e analisa, em sua tese, textos de vestibulandos, defendendo a ideia de um modo heterogêneo de constituição da escrita, observável a partir de três eixos de circulação, identificáveis em qualquer tipo de texto escrito. Assim, o autor cria a hipótese de que, em diferentes graus e com diversas possibilidades de adequação ao gênero produzido, essa circulação está sempre marcada. A utilização da proposta de Corrêa (1997), nesta pesquisa, tem como fundamento tomar fala e escrita como modos de enunciação 20 , ressaltando o fato de que a escrita nunca se realiza sem a representação de um outro/leitor/destinatário, o que a aproxima do modo escrito de enunciação da fala, uma vez que, além da presença física dos falantes, leva em consideração sua representação, conforme aponta Corrêa (2008, 2004). A concepção de escrita heterogênea, assumida na presente pesquisa, afasta-se da dicotomização radical, isto é, de visões “fundamentadas numa dicotomia entre fala e escrita e distancia-se, ainda, daquela proposta por Koch e Oesterreicher (2007), seguidos, no Brasil, 20 Corrêa (2013, p. 490) assume que o caráter processual e histórico da escrita é marcado no termo modo, enquanto modalidade só permite entender a escrita como código alfabético, em uma perspectiva estática. Com esse intuito, compreende-se, segundo o autor, que o uso do termo modo seja necessário para explicitar a semântica dos modos de atualização da língua heterogeneamente constituídos, diante da escrita, e, concomitantemente, para abandonar todo entendimento dicotômico por vezes associado ao termo modalidade na literatura. 39 por Marcuschi (1997, 2001), conhecida como dicotomização metodológica da relação fala/escrita” (LOPES-DAMASIO, 2019a, p. 92, grifo da autora). Corrêa (1997) afasta-se da dicotomia metodológica, apresentada por Marcuschi (1994b, 1995), a partir de Koch e Oesterreicher (2007), para propor não uma compartimentação de gêneros em um continuum, mas um modo heterogêneo de constituição da escrita, aproximando-se, assim, das ideias de Street (1994) e Chacon (1996). Nesse sentido, cria uma metodologia fundamentada em três eixos de representação da escrita, pelos quais os escreventes circulam em sua prática textual escrita. Diante das características que indiciam a escrita heterogênea, Corrêa (2008, p. 77 - 78, grifos do autor) afirma: [...] [descarto] a noção de escrita como modo de apresentação da língua, por meio da qual se passou a opor, de forma bastante imprecisa, língua falada e língua escrita. Descarto, ainda, a noção de escrita como modalidade. Tal como são conhecidas e utilizadas, as modalidades oral e escrita definem-se, fundamentalmente, por referência às bases semióticas da fala (o som) e da escrita (o traço gráfico) e essa diferença entre materiais semióticos tem servido indevidamente para validar a oposição radical entre práticas faladas e escritas, como se, nelas, o aspecto da base semiótica fosse o único relevante. Para sistematizar a discussão realizada até aqui, recorre-se a Capristano (2010, p. 176) que apresenta as principais proposições que sustentam a maneira particular de compreender o funcionamento da escrita heterogênea nos trabalhos de Corrêa (2008, 2007, 2006, 2004, dentre outros). A primeira refere-se à fala e à escrita vistas como modos de enunciação que se relacionam às práticas de oralidade e de letramento, ou seja, fala e escrita são consideradas, ao mesmo tempo, como fatos linguísticos e como práticas sociais. Com essa delimitação, a autora aponta que Corrêa questiona a visão de que a escrita poderia ser reduzida a seu material significante e/ou a sua base semiótica e posiciona-se no intuito de entendê-la em seu processo de produção. Dessa forma, recusa a visão puramente formal da escrita, isto é, aquela que observa a escrita como um produto acabado, para tratá-la como um modo particular de enunciação. Em relação à segunda proposição, Capristano (2010, p. 176) destaca que “marcas de fatos ligados à enunciação oral presentes em enunciados escritos constituem indícios do modo heterogêneo de constituição da escrita”. Diferentemente dos trabalhos que buscam defender uma dicotomia radical entre o falado e o escrito e daqueles que adotam a dicotomização apenas como recurso metodológico, Corrêa defende que a heterogeneidade é uma 40 característica da escrita (constitutiva e interior a ela) e não uma característica que se marcaria na escrita. A terceira proposição, segundo Capristano (2010), refere-se à escrita vista em seu processo de produção. Destaca-se o fato de ter a escrita como processo e não como produto, uma vez que o caráter heterogêneo da escrita não se restringe ao material significante, mas a outras dimensões que constituem o processo de sua produção. Assim, “na avaliação, no exame e/ou na análise de fatos linguísticos escritos, a atenção volta-se prioritariamente para aquilo que, no produto escrito, aponta para o seu processo de constituição” (CAPRISTANO, 2010, p. 177). O material significante presente na escrita, segundo Corrêa (1997), pode aproximar o falado do escrito e servir como argumento para a recusa da dicotomia entre essas duas modalidades. Para argumentar nesse sentido, o autor se respalda em Luria (1988) que aponta que a criança apresenta desde cedo uma tendência à diferenciação rítmica quando escreve palavras ou frases curtas e linhas longas, com bastante quantidade de rabiscos, ou frases longas. De acordo com Corrêa (1997, p. 68, grifo meu), “o papel do gesto como um dos elementos não-verbais co-atuantes na enunciação pela escrita está ligado a outros materiais significantes, como os sinais gráficos de pontuação e as marcas fônico-acústicas aos padrões rítmico-entonacionais”. Para isso, o autor, constata que o feixe de materiais significantes faz parte do modo pelo qual a escrita se processa e, que, por sua vez, o caráter integrador do ritmo da escrita – conforme ressaltado no trabalho de Chacon (1996) – compõe o fluxo discursivo como movimento entre o que é considerado produto e o que é considerado processo na atividade verbal, se levada em consideração a atividade do sujeito que produz linguagem. Segundo Chacon (2005), ao reconhecer os vínculos entre os dois modos de enunciação da língua na escrita e, muito provavelmente, por supor que, na escrita, esses dois modos seriam uma representação direta ou de transparência, a criança procura orientar a produção de sua escrita através de características da língua que, possivelmente, seriam identificadas em seu modo de enunciação oral. Para o autor, “é o caso do ritmo, que, já estruturado na língua, marca-se na oralidade, por exemplo, por meio de contrastes entre sílabas acentuadas e não- acentuadas” (CHACON, 2005, p. 81). Segundo Corrêa (1997), esse conceito denominado de ritmo da escrita, proposto por Abaurre (1991), foi analisado por Chacon (1996), que “toma os sinais de pontuação como ponto de partida de observação do ritmo da escrita e, [...] assume a ideia de uma 41 descontinuidade/continuidade resultante da alternância que caracteriza o ritmo da linguagem como um dos traços do ritmo da escrita” (CORRÊA, 1997, p. 67). Corrêa (1997, p. 28), citando o trabalho de Abaurre (1991), considera que a autora “ao reclamar maior atenção para o fenômeno do ritmo da „língua falada‟, bem como do „ritmo que se apresenta no texto escrito‟, afirma que o próprio gesto rítmico com o qual o texto foi produzido se 'congela' em signos gráficos sobre uma página em branco”. Para Corrêa, essa metáfora tenta registrar a materialização linguística do processo de produção da escrita e pode ser estendida para o papel do ritmo da escrita no que diz respeito a organizar o heterogêneo da linguagem. O ritmo da escrita não deve ser, segundo Corrêa (1997), considerado como uma pura forma, mas a impressão de um gesto de alcance multidimensional – ao mesmo tempo fonológico, sintático, semântico-pragmático e enunciativo – marcado, por parte do sujeito, no momento de sua enunciação pela escrita. O autor aponta que a escrita se realiza por um modo heterogêneo de constituição caracterizado por representações do escrevente, de sintaxes próprias e tipos particulares de enunciação. Dessa forma, a especificidade da enunciação escrita é compreendida como processo pelo qual se nota, em sua constituição heterogênea, a relação do sujeito com a linguagem. Segundo Capristano (2010), a quarta proposição, na proposta de Corrêa (2004), é a circulação dialógica do escrevente e/ou a imagem que o escrevente faz da escrita, como parte de um imaginário socialmente partilhado. Quando valoriza a representação que o escrevente faz da (sua) escrita, do interlocutor e de si mesmo, de acordo com Corrêa (2004), o autor busca apreender uma representação adquirida do grupo do qual ele faz parte e, não, uma representação que o escrevente faria individualmente. De acordo com Capristano (2010), a defesa do modo heterogêneo de constituição da escrita, a partir, principalmente, dessa última proposição, ocorre em duas vias distintas e interligadas: (i) a escrita heterogênea indiciada pela representação que se encontra no registro da atividade discursiva do escrevente; e (ii) a heterogeneidade da escrita que possibilita essa mesma representação, justificada pela presença do modo heterogêneo de constituição da escrita já nas práticas sociais das quais participam os escreventes, tanto escolarizadas quanto não-escolarizadas. Desse modo, a escrita é concebida em sua produção e também em sua recepção, que, segundo a autora, corresponde à escrita com que os escreventes entram em contato, seja nas práticas escolarizadas ou não, mas tendo a mesma natureza heterogênea. Sobre a heterogeneidade mais própria da escrita infantil, Capristano (2010, p. 178) considera que “não pode ser interpretada apenas como um movimento transitório dos 42 escreventes em direção à escrita padrão (homogênea, ou não-heterogênea) ou, ainda, como tentativas malsucedidas de adequação às convenções que caracterizam essa escrita”, ou seja, movimentos ou tentativas que, em último caso, mostrariam apenas um conhecimento que, ainda, estaria para se formar. Para a autora, a heterogeneidade que marca a escrita, de maneira mais específica, a escrita infantil, é constituída pela caracterização inequívoca da relação sujeito/linguagem, portanto, é um indício da circulação do escrevente por práticas orais/letradas, em termos de usos da escrita em geral. Para a identificação da heterogeneidade que constitui a escrita inicial, Capristano (2010) apresenta duas formas: (i) atentar-se para essa heterogeneidade de modo a examinar, em um mesmo enunciado, os fatos linguísticos que marcariam as diferentes formas de circulação do escrevente pelos modos de enunciação, o já falado e o já escrito; (ii) examinar um único fato linguístico, que estaria marcando as diferentes formas de circulação do escrevente pelos modos de enunciação falado e escrito. Nesse caso, conforme a autora aponta, seriam destacados os fatos linguísticos que constituiriam efeito de entrelaçamentos entre falado/escrito. 21 Segundo Capristano (2010), esse modo de circulação por práticas orais/letradas não é considerado único dos enunciados infantis, como bem afirma Corrêa, em seus trabalhos; porém é parte constitutiva da escrita como um todo, quando observada através das representações que o sujeito faz da (sua) escrita. A autora cita, como exemplo, as ocorrências de segmentação não-convencional, retiradas dos textos produzidos por crianças em aquisição da escrita. As segmentações como soquero (só quero) e quenamora (quer namorar) permitem identificar os traços de um imaginário infantil sobre a escrita vinculado, principalmente, ao imaginário que se encontra nas práticas sociais (orais e letradas) em que as crianças estão inseridas. Desse modo, “considerar a heterogeneidade da escrita permite [...] avaliar aspectos da „fala‟ que, em geral, estão na base da segmentação gráfica feita pela criança não como uma intervenção danosa da fala na escrita, mas, sim, como constitutiva e determinante dela” (CAPRISTANO, 2013, p. 674, grifo da autora). Nessa mesma direção, Lopes-Damasio (2019b, p. 166 - 167), em seus estudos sobre os MJs na aquisição da escrita, mostra, no âmbito da junção, que usos de “justaposição”, “e”, “aí”, “e também”, entre outros, relacionam-se com o eixo da gênese da escrita de Corrêa (1997), ao mesmo tempo que usos de “que”, em TDs religiosas, relacionam-se ao eixo do 21 Destaca-se que a presente pesquisa está alinhada a esse modo de examinar/identificar indícios da heterogeneidade na escrita infantil, quando se volta, especificamente, para o fato linguístico da junção, uma vez que busca identificar rastros da relação entre o comportamento da junção e a heterogeneidade da escrita, mediante traços da relação oral/falado e letrado/escrito, conforme a proposta de Corrêa (1997). 43 código institucionalizado. Dessa forma, assim como as segmentações, e também outros aspectos, como a ortografia e a pontuação, as junções permitem identificar traços de um imaginário infantil sobre a escrita, vinculado às práticas sociais em que as crianças estão inseridas. 22 1.3.1 Eixos metodológicos Nesta seção, apresentam-se, de acordo com Corrêa (1997), os três eixos metodológicos que orientam a circulação do escrevente pelo (seu) imaginário sobre a escrita: o primeiro se refere à suposta gênese da escrita, em que o escrevente, ao tentar apropriar-se da escrita, procura representar termo a termo a fala 23 ; o segundo eixo caracteriza-se como a apropriação da escrita em seu estatuto de código institucionalizado, inverso à concepção da escrita em sua suposta gênese, em que o escrevente reproduz o que imagina ser um modo autônomo de representar a oralidade; e o terceiro eixo ca