BRUNO GONÇALVES DOS SANTOS MÚSICA E EXPERIÊNCIA PSÍQUICA Ressonâncias entre Autismo e Laço Social ASSIS 2021 B R U N O G O N Ç A L V E S D O S S A N T O S M Ú S IC A E E X P E R IÊ N C IA P S ÍQ U IC A : R e ss o n â n c ia s e n tr e A u ti sm o e L a ç o S o c ia l BRUNO GONÇALVES DOS SANTOS MÚSICA E EXPERIÊNCIA PSÍQUICA Ressonâncias entre Autismo e Laço Social Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Doutor em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientador: Gustavo Henrique Dionísio Bolsista: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) – Processos Nº 2017/07157-3 (bolsista no país) e Nº 2019/09195-5 (bolsa de estágio de pesquisa no exterior). ASSIS 2021 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ana Cláudia Inocente Garcia - CRB 8/6887 Santos, Bruno Gonçalves dos S237m Música e experiência psíquica: ressonâncias entre autismo e laço social / Bruno Gonçalves dos Santos. Assis, 2021. 281 f. : il. Tese de Doutorado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Dr. Gustavo Henrique Dionísio 1. Música - Aspectos psicológicos. 2. Autismo. 3. Lalangue. 4. Silêncio Simbólico. 5. Estrutura Aberta. I. Título. CDD 616.8588206 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Assis ATA DA DEFESA PÚBLICA DA TESE DE DOUTORADO DE BRUNO GONÇALVES DOS SANTOS, DISCENTE DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA, DA FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS - CÂMPUS DE ASSIS. Aos 21 dias do mês de setembro do ano de 2021, às 08:00 horas, por meio de Videoconferência, realizou-se a defesa de TESE DE DOUTORADO de BRUNO GONÇALVES DOS SANTOS, intitulada MÚSICA E EXPERIÊNCIA PSÍQUICA Ressonâncias entre Autismo e Laço Social. A Comissão Examinadora foi constituida pelos seguintes membros: Prof. Dr. GUSTAVO HENRIQUE DIONISIO (Orientador(a) - Participação Virtual) do(a) Departamento de Psicologia Clínica / UNESP/Assis, Profa. Dra. INÊS CATÃO HENRIQUES FERREIRA (Participação Virtual) do(a) Faculdade de Medicina / ESCS/DF, Prof. Dr. DANIEL CAMPARO AVILA (Participação Virtual) do(a) Universidad de la Republica / UNILAR/Uruguay, Prof. Dr. EDSON OLIVARI DE CASTRO (Participação Virtual) do(a) Departamento de Psicologia / UNESP/Bauru, Prof. Dr. JEAN-MICHEL VIVES (Participação Virtual) do(a) Universidade Côte d'Azur (UCA Nice). Após a exposição pelo doutorando e arguição pelos membros da Comissão Examinadora que participaram do ato, de forma presencial e/ou virtual, o discente recebeu o conceito final: APROVADO. Nada mais havendo, foi lavrada a presente ata, que após lida e aprovada, foi assinada pelo(a) Presidente(a) da Comissão Examinadora. Prof. Dr. GUSTAVO HENRIQUE DIONISIO AGRADECIMENTOS À Rosilene e Mauro, além de mãe e pai, minhas referências de luta e vida. Aos meus irmãos, Fin e Carol, que me ensinam sobre a simplicidade da nossa complexa existência. À Clarissa, companheira de muitas histórias e aprendizados da vida, pelo cultivo enriquecedor do afeto. Ao meu orientador Gustavo, pela sabedoria, parceria e compartilhamento da vida acadêmica. Aos sujeitos da pesquisa, Guga, Yago, por me ensinarem tanto a entender o mundo de modo singular, e aos seus familiares, que acreditaram na pesquisa e no trabalho musical como caminho possível ao tratamento do autismo. Às amigas e amigos musicantes, dançantes, cantautores e artistas, pelas tantas fogueiras musicais sob o céu de Assis e de Buenos Aires. À FAPESP, processos nº 2017/07157-3 (bolsa no país) e nº 2019/09195-5 (bolsa de estágio de pesquisa no exterior), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, e à Universidade Estadual Paulista (UNESP), por darem a oportunidade de alguém das populações marginalizadas se tornar doutor e seguir a carreira acadêmica. Um salve à educação pública de qualidade! Um salve ao SUS! Um salve ao SUAS! Um salve ao nosso povo, que sobrevive a tempos sombrios! Se o tempo é ritmo, logo o movimento será outro. SANTOS, Bruno Gonçalves dos. Música e experiência psíquica. Ressonâncias entre Autismo e Laço Social. 2021. 281 f. Tese (Doutorado em Psicologia). Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2021. RESUMO Este trabalho discute os efeitos da música no psiquismo e a possibilidade de uma clínica do autismo norteada pela musicalidade, fazendo mediação com o laço social. Os sons encadeados, antes da representação, estão destituídos de significado e fazem relação imediata com a produção de afetos que estão fora da linguagem. Para discutir a hipótese da pesquisa, o ritmo é retomado como qualidade fundamental da sensorialidade e da percepção corporal e psíquica, possibilitando o estabelecimento de espaço intersubjetivo de constituição de linguagem. O ritmo é articulado ao conceito de estrutura, que neste trabalho é reformulado e proposto na qualidade de estrutura aberta, a partir de fenômenos de superposição e emaranhamento significante. Retoma-se, a partir dessa proposta, o significante no Real em um viés conceitual, apontando modos de coexistência de dois ou mais estados de estrutura. O significante no Real se articula diretamente com o fenômeno da elisão, mecanismo vigente na dinâmica psíquica autística e que atua como um bloqueio do sistema perceptivo para evitar a saturação psíquica do sensorial corpóreo. Trazendo o relato de dois casos clínicos decorrentes da pesquisa, o trabalho também discorre sobre as operações de alienação e separação, propostos por Lacan, articulando-os com a carta 52 de Freud, em relação ao processo de estratificação do aparato psíquico. Tais considerações se encontram com a proposta de um Silêncio Simbólico sobre a linguagem, que surge como suplência ao ponto surdo ausente no autismo. Por fim, os conceitos abordados direcionam a reflexão para o conceito de lalangue, que é o substrato que sustenta a estruturação da linguagem. Antes da constituição do modo de relação significante-significado, a musicalidade de lalangue estabelece o protagonismo da percepção sobre o sentido, demarcando a multiplicidade de afetos em fruição pela sonoridade humana. O fenômeno musical possibilita ao psiquismo fruir com o afeto em estrutura aberta, criando condições de trocas intersubjetivas que não são cerceadas pela lógica da significação. Conclui-se que o elemento fundamental para uma clínica que lida com o autismo se dá em torno da musicalidade de lalangue, pois a música demonstra ser um tipo de discurso que articula o mais singular do sujeito com o compartilhável da vida coletiva. A musicalidade dos sons influi e cria soluções de mediação entre a experiência subjetiva particular do sujeito autista e os modos de organização do laço social. Palavras-chave: Música – Aspectos psicológicos. Autismo. Lalangue. Silêncio Simbólico. Estrutura Aberta. SANTOS, Bruno Gonçalves dos. Music and experiences of the psyche. Resonances between Autism and the Social Bond. 2021. 281 f. Thesis (Doctorate in Psychology). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Letters, Assis, 2021. ABSTRACT This work discusses the effects of music on the psyche and the possibility of a clinic of autism guided by musicality, mediating the social bond. The linked sounds, before the representation, are devoid of meaning and have an immediate relationship with the production of affections that are outside language. To discuss the research hypothesis, Rhythm is resumed as a fundamental quality of sensoriality and of bodily and psychic perception, enabling the establishment of an intersubjective space for language constitution. Rhythm is articulated to the concept of structure, which in this work is reformulated and proposed in the form of an Open Structure, based on phenomena of superposition and significant entanglement. From this proposal, the signifier is presented in the Real, which points out ways of coexistence of two or more states of structure. The signifier in the Real is directly articulated to the phenomenon of elision, a mechanism in the autistic psychic dynamic, which acts as a blockage in the perceptual system to avoid the psychic saturation of the corporeal sensorial. Whilst bringing the report of two clinical cases resulting from the research, the work also discusses the processes of alienation and separation, proposed by Lacan, articulating them to Freud's letter 52, on the process of stratification of the psychic apparatus. Such considerations meet with the proposal of a Symbolic Silence on language, which appears as a substitute for the absent deaf point in autism. Finally, the discussed concepts direct the reflection to the concept of Lalangue, which is the substratum that sustains the structuring of language. Before the constitution of the signifier-signified relation mode, the musicality of lalangue establishes the protagonism of perception over meaning, demarcating the multiplicity of affections in fruition by the human sonority. The musical phenomenon allows the psyche to relish affection in an open structure, creating conditions for intersubjective exchanges that are not restricted by the logic of signification. It is concluded that the fundamental element for a clinic of autism is around the musicality of lalangue, as music demonstrates itself to be a type of discourse that articulates the most singular aspects of the subject with what can be shared in collective life. The musicality of sounds influences and creates mediation solutions between the particular subjective experience of the autistic subject and the ways of organization of the social bond. Keywords: Music - Psychological aspects. Autism. Lalangue. Symbolic Silence. Open Structure. LISTA DE ILUSTRAÇÕES IMAGENS Figura 1: Ossículos do ouvido humano....................................................................................21 Figura 2: Localização do ouvido externo, médio e interno......................................................22 Figura 3: Estrutura geral do aparelho auditivo.........................................................................24 Figura 4: Localização do cerebelo e divisões principais..........................................................26 Figura 5: Integração do ouvido interno ao cerebelo.................................................................27 Figura 6: Exemplo de alteração da visão pela falta de ritmo ocular.........................................46 Figura 7: Espectro de percepção sonora do Ritmo ao Tom......................................................49 Figura 8: Faixa de amplitude de percepção humana do som....................................................65 Figura 9: Exemplo de significante e significado na teoria da linguagem em Lacan.................78 Figura 10: Desiree Palmen, Interior Camouflage / Bookcase – 2004.........................................81 Figura 11: Amarração significante e significado imaginário....................................................82 Figura 12: Registro das imagens do feixe de luz vermelho e do feixe de luz infravermelho..........................................................................................................................105 Figura 13: Um camaleão-folha macho e uma fêmea da espécie Brookesia Decaryi..............107 Figura 14: Frequências puras produzidas em sintetizador: Lá Maior (vermelho), Dó Sustenido (amarelo) e Mi (verde).............................................................................................................108 Figura 15: Soma de frequências das notas Lá (vermelho) + Dó Sustenido (amarelo) + Mi (verde), resultando em uma superposição de ondas (cinza) e o acorde Lá Maior (roxo) como resultado da superposição............................................................................................................................108 Figura 16: Diferentes fonogramas das vocalizações de Yago que antecediam às crises de autoagressão............................................................................................................................150 Figuras 17, 18, 19 e 20: Desenhos iniciais de Guga nos primeiros meses do tratamento................................................................................................................... .............157 Figuras 21 e 22: Desenhos intermediários de Guga no início do tratamento...........................158 Figuras 23, 24 e 25: Desenhos intermediários de Guga no decorrer do tratamento................160 Figuras 26, 27, 28 e 29: Desenhos intermediários de Guga após meses de tratamento…………………………………………………………………………..........…..161 Figuras 30, 31, 32, 33 e 34: Desenhos finais de Guga após meses de tratamento...................162 Figura 35: Nó borromeano amarrado pelo objeto a.................................................................224 Figura 36: Nó borromeano amarrado pelo sinthoma...............................................................225 VÍDEOS Vídeo 1: Funcionamento do ouvido externo, médio e interno..................................................23 Vídeo 2: Bata do feijão em Irará/BA.........................................................................................56 Vídeo 3: Bata do milho em Serra Preta.....................................................................................56 Vídeo 4: Preparação da terra pela tribo Dinka, no Sudão..........................................................57 Vídeo 5: Música Willy Wonka w/ drums, de David Dockery....................................................62 Vídeo 6: Exemplo sonoro do espectro auditivo humano simulado por sintetizador.................66 ÁUDIOS Áudio 1: Passagem do Ritmo ao Tom simulado por sintetizador...............................................49 Áudio 2: Música Pensamento Positivo, de Hermeto Pascoal....................................................62 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO........................................................................................................11 CAPÍTULO I – Do som à música: sensorial e simbólico..............................................19 Aspectos evolutivos e sensoriais com relação ao som...................................................19 Música e laço social.......................................................................................................28 CAPÍTULO II – Dos sinais ao código: música e linguagem.........................................40 Inventando sons..............................................................................................................40 O Ritmo..........................................................................................................................44 A Fala.............................................................................................................................64 CAPÍTULO III – Do sensorial ao psíquico: linguagem e psicanálise............................75 A teoria da linguagem na Psicanálise.............................................................................75 O que pode ser uma Estrutura?.......................................................................................88 CAPÍTULO IV – Autismo: história, política e clínica..................................................114 Alguns apontamentos históricos sobre o autismo..........................................................114 DSM e autismo: política e diagnose..............................................................................127 Autismo e avanços da clínica psicanalítica...................................................................140 CAPÍTULO V – Discussão...........................................................................................145 Caso Yago.....................................................................................................................145 Caso Guga.....................................................................................................................156 Aprofundando a discussão............................................................................................166 O corpo no autismo.......................................................................................................180 Percepção e linguagem: recepção sensorial e filtro psíquico........................................191 Autismo e inconsciente.................................................................................................199 CAPÍTULO VI: A música como direção do tratamento no autismo............................209 A música é feita de silêncios: Silêncio Real e Silêncio Simbólico...............................209 Lalangue para além do som...........................................................................................224 CONCLUSÃO...............................................................................................................233 REFERÊNCIAS............................................................................................................245 APÊNDICE A – Trailer do documentário SOMOS, que compõe a parte complementar desta pesquisa........................................................................................268 APÊNDICE B – Documentário SOMOS (filme completo)..........................................268 APÊNDICE C – O Método utilizado............................................................................269 1) Coleta de dados bibliográficos e referências.....................................................269 2) Método psicanalítico.........................................................................................270 3) Dispositivo Intercessor.......................................................................................271 4) Microanálise.......................................................................................................273 5) Entrevistas audiovisuais.....................................................................................274 Sobre a metodologia empregada para a realização do trabalho clínico..........................274 a) Local de pesquisa................................................................................................274 b) Participantes........................................................................................................275 c) Instrumento.........................................................................................................275 d) Coleta de dados...................................................................................................276 e) Procedimentos de análise....................................................................................278 REFERÊNCIAS SOBRE O MÉTODO..........................................................................278 11 APRESENTAÇÃO Música. Alguém pode conceber um mundo sem ela? Em uma carta enviada em 1888 a seu amigo e músico Heinrich Köselitz (Peter Gast), Nietzsche tornou célebre a afirmação de que “a vida sem a música seria um erro”. Essa afirmação apenas ressalta uma reflexão sobre música e humanidade que sempre se atualiza. Existiria vida sem música ou música sem a vida? Não há um momento que registre o nascimento da música na história da humanidade. Tampouco é sensato afirmar que haverá um fim. A música é a própria manifestação da condição humana, é parte de nossa existência em nossos afazeres diários e em nossa forma de perceber o mundo. Ela acompanha a trajetória humana em contínuo movimento – não se extingue nem repousa, é constante fluxo. Não podemos apontar a origem da música, mas sabemos que a musicalidade se confunde com o próprio fenômeno da linguagem na humanidade. Música e musicalidade são termos que costumam ser empregados de maneiras distintas, de acordo com o tipo de reflexão. Na longa jornada que estamos prestes a fazer neste trabalho, tratarei de conciliar esses dois conceitos, pois, ainda que sejam diferentes, não são objetivamente distinguíveis. Nesta tese, música e musicalidade serão compreendidas no campo dos fenômenos psíquicos de interação com os sons. Ao optar pela conciliação dos dois conceitos, esta investigação trata de escapar de dualismos técnicos para pensá-los a partir da experiência humana com a linguagem e com o laço social através das sonoridades, em nível ainda anterior a uma estética musical dos sons. Refletir sobre a música neste trabalho será muito mais do que simplificá-la em termos como canção, tema, trilha sonora, fonograma, ou qualquer outra categoria formal. O que norteará nossa viagem neste texto é uma concepção de música que abarca em si a capacidade humana de interagir com sons e de produzir sonoridades musicais. É uma concepção que se refere ao senso intuitivo humano de ouvir sons em determinados encadeamentos e associações, assim como produzi-los em certos arranjos e intensidades, independente de um padrão estético, estilo, ou norma cultural. A música que aqui abordaremos é aquela que não prediz instrumentos musicais, arranjos definidos, letras e refrões, e sim aquela que remonta uma anterioridade radical, de uma condição sui generis da interação do psiquismo com o fenômeno sonoro: a própria musicalidade humana. Nesse sentido, quando nos relacionamos com sons, independente de serem ou não considerados “música”, estamos falando de “musicalidade”. Abordar a música aqui será, necessariamente, abordar a musicalidade. Essa consideração parece ser importante para evitar interpretações de uma 12 suposta omissão conceitual no que se refere aos dois termos. Antes, se trata de uma conciliação muito zelosa, principalmente por já ter dedicado uma pesquisa de mestrado1 à diferenciação desses dois conceitos. O caminho desta tese, por sua vez, considerando a pesquisa anterior, parte de uma certa reconciliação de música e musicalidade em seu caráter primordial da experiência humana. Advertidos dessa abordagem, o convite para a leitura deste texto apresenta uma série de reflexões sobre a musicalidade humana. Em um panorama histórico, é inegável que toda e qualquer cultura tenha a música como parte vital da comunidade. Em todas as culturas, por mais diversas e distintas possíveis, lá está a música em todas as civilizações, sejam elas pré-históricas, primitivas ou atuais. Para Wiora (1961), a música está “(...) ligada à vida da comunidade, não a um grupo especificamente musical, mas à ambientação geral, por exemplo, de toda uma aldeia” (p. 37). Candé (1981), por seu turno, afirma que “(...) a música é um ato comunitário. Não há público, não há autor, não há obra: os assistentes são, quase todos, participantes” (p. 29). Os tipos de música, maneiras de cantar, de tocar e das intenções que elas propagam têm relação direta com as realizações da dinâmica social e, consequentemente, dos rumos que esta toma (FREIRE, 2010, p. 39). Por ter relação direta com o trabalho, com a guerra, com a religião, com a cura, e com os acontecimentos gerais de um povo, a evolução da música se deu no próprio cerne do desenvolvimento das leis do laço social. Destarte, para além do viés racional, a música ainda comporta uma capacidade fundamentalmente emocional, de produção de afeto. Freud (1915), que discorre sobre o conceito de afeto desde os primórdios de sua metapsicologia, dizia que o afeto se opõe ao sistema da representação e da memória, ainda que tenha certa relação com eles. Em outras palavras, o afeto é aquilo que sentimos, mas que a linguagem não consegue apreender no todo. Segundo Green (1973), O afeto pode deixar-se dizer pela linguagem, porém, sua essência está fora dela. [...] Pode-se sem dúvida pensar, sem forçar os fatos, que Freud vê nos afetos [...] a parte mais arcaica do homem: aquela que a linguagem pode acompanhar, mas que segue seu caminho independente dela (p. 61). Para Behares e Giménez (2020), “la representación se opone al ‘afecto’”, mas não só, pois não se trata de uma hétero-oposição, e sim de um gradiente na transição entre percepção e memória. “(...) o afeto, como tradução subjetiva de uma variação quantitativa, também pode ser 1 SANTOS, B., G. Autismo, psicose e musicalidade: o faz(s)er do sujeito e sua legitimação no laço social. 2017. 151 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2017. Disponível em: < https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150043 >. https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150043 13 entendido como um conceito que articula mente e corpo, porém, sem que estes sejam considerados como duas substâncias distintas” (MARQUES, 2012, p. 76). Na carta 52 a Fliess, Freud (1896) propõe um esquema de estruturação do aparato psíquico que tem íntima ligação com o afeto no que concerne às instâncias de passagem entre a sensação e a representação. De modo geral, podemos compreender o afeto como um fenômeno de metabolização da recepção sensorial em transição ao processo de transmutação psíquica. O afeto, como aquilo que está fora da racionalização, denota estados não mensuráveis e não “palavreáveis” que, por vezes, nos é misteriosa, justamente por não adentrar ao campo do sentido. Curiosamente, a música consegue acessar e alterar nossos estados afetivos de maneira muito eficaz, apontando ter íntima relação com a afetação psíquica e corporal. A música ressoa uma potência que coloca o sujeito diante de uma experiência que articula o inominável com o sensível do corpo, abarcando condições de linguagem que estão aquém dos discursos do laço social. A música convoca o sujeito a um modo particular de linguagem que está antes do plano da significação, antes até da imaginarização dos sons que nomeia tal experiência como “música”. Esse fenômeno de afetação do psiquismo e do corpo através das sonoridades, há muito tempo, já é um tema de interesse da psicologia, e, particularmente, da psicanálise. Isso porque a música transita entre os pólos da experiência humana, do corpo dessubjetivado ao encontro com o simbólico da linguagem. Onde há emparelhamento psíquico, lá está o efeito da musicalidade, na subjetividade que se constitui e se dinamiza no sujeito. Ela atravessa e estabelece uma relação entre corpo e psiquismo produzindo efeitos que marcam a singularidade do sujeito em um modo próprio e compartilhado de estar no mundo, justamente porque ela circula no campo do afeto e da linguagem, isto é, naquilo que é singular do sujeito e, também, próprio do laço social. A psicanálise pode se debruçar sobre a musicalidade em toda sorte de fenômenos: da recepção sensorial do som em seus encadeamentos e isolamentos, da produção e emissão de sonoridades, intensidades e improviso, do discurso sonoro não-verbal com ou sem endereçamento, da enunciação sonora sem significação, da intuição e dinâmica de afetos, entre muitos outros. É sobre esse campo, entre corpo e linguagem envolvido pela musicalidade, que a psicanálise se interessa, principalmente porque possibilita uma interface entre o que é mais singular do sujeito e o que se estabelece como ordem simbólica do laço social. Nesse ponto, a música surge mais que um campo de interesse à psicanálise, pois se evidencia também como uma aposta no trabalho com singularidades psíquicas dessincronizadas com o laço social. Isso se dá, pois, já é um fato e um consenso que a música é parte estruturante da coletividade. Se a sonoridade que atravessa o corpo também surte efeitos simbólicos através da musicalidade, é 14 legítimo reconhecer que a música possibilita relações de comunhão do singular com o comunitário, justamente porque, além de uma linguagem compartilhada socialmente, a musicalidade carrega em seus sons algo que está fora da linguagem. Esse “algo” que está fora da linguagem e comparece nos sons da música é o que enigmaticamente nos afeta e causa estados emocionais diante de um tema musical. Se a música carrega afeto para além da linguagem, podemos pensar em um possível elo com sujeitos que não compartilham a linguagem do laço social, mas que podem inscrever seus afetos por meio de sonoridades. É aí que a proposta desta tese se permite debruçar na articulação da música com certas condições psíquicas singulares, particularmente naquela conhecida como autismo. Há relativamente pouco tempo, o autismo foi reconhecido formalmente como uma condição psíquica singular. Foi a partir dos estudos de Leo Kanner (1943) que o autismo passou a ter visibilidade nos campos da psiquiatria e da psicologia. É claro que o fenômeno autístico já existia há muito tempo, antes mesmo de ser assim denominado e reconhecido nas áreas médicas e psicológicas. No entanto, as discussões de possibilidades de intervenção que viabilizem a relação de tais sujeitos com laço social, respeitando suas singularidades, ainda nos parecem nebulosas. Inclusive, o próprio entendimento dessa condição psíquica nos é anuviado frente às particularidades de cada sujeito autista. Considerando discussões mais atuais, é legítimo se referir ao autismo no plural, ou seja, “autismos”, por ser uma condição psíquica tão particular em cada sujeito que não é possível generalizar. Cada sujeito autista aponta um autismo diferente. Desde que atentos a essa noção, podemos usar o termo “autismo” para nos referirmos aos diversos “autismos” possíveis. É a partir dessa prudência que esse trabalho se refere ao autismo, isto é, não como uma categoria clínica geral, mas sim considerando toda a gama de pluralidade que os diversos autismos nos apresentam. Com efeito, essa condição psíquica parece estar em um terreno demasiadamente enigmático para nós, e ainda ser pouco conhecido nas leituras das ciências atuais. Há quem acredite que o autismo é condição exclusivamente genética, orgânica, enquanto existem outros que o entendem como resultado de fatores relacionais. Existem, também, correntes que articulam os fatores orgânicos e os sociais. O fato é que a criança autista, desde seu nascimento, não apresenta nenhum déficit no organismo que possa apontar que desenvolverá tal condição. Relatos de pais de crianças autistas mostram que seus filhos desenvolveram tal condição, geralmente, nos primeiros anos de vida, demonstrando ausência de olhar e gestos ou balbucios direcionados ao outro. Quando maiores, apresentam pouca ou nenhuma sociabilidade, mantêm- se em circuitos fechados de movimentos e gestos estereotipados e, quando falam, na maioria das vezes, apontam um discurso sem intuito de comunicação. A pergunta que fica é: como 15 pensar em uma clínica, em uma intervenção, com tais sujeitos, que respeite suas construções subjetivas singulares? Como possibilitar uma via de laço social que não os enquadre numa lógica adaptativa de comportamento? Essas considerações, somadas às anteriores sobre a música, podem nos levar a uma questão geral: como intervir uma clínica que, ao invés de “inserir” tais sujeitos na sociedade, legitime-os no laço social, a seu modo particular de existência psíquica e uso da linguagem? Nesse ponto, apresento as reflexões desta tese que reúne discussões teóricas, práticas e clínicas de uma práxis psicanalítica que ocorreu desde 2017, com esta pesquisa de doutorado, e que também considerou as discussões levantadas desde 2014, com a anterior pesquisa de mestrado sobre a temática. No primeiro capítulo, apresento a discussão sobre a passagem do som à música, de acordo com os processos sensoriais e simbólicos vigentes na capacidade humana. O capítulo é dividido em duas partes, uma que trata dos aspectos evolutivos e sensoriais do aparato auditivo humano, e outra que trata da qualidade simbólica dos sons em forma de música no laço social. O segundo capítulo se debruça sobre a relação entre os sinais e os códigos articulados nas sonoridades. Das três partes que compõem esse capítulo, a primeira faz uma reflexão sobre qual o estatuto simbólico que determina um som como ruído ou como música. A segunda parte introduz o conceito de ritmo, que passa a ser um importante elemento na linha de raciocínio desta pesquisa. Ali é apresentado o conceito de rhuthmos, de Pascal Michon, e o conceito de ritmicidade conjunta, de Victor Guerra, articulando-os com a lógica rítmica no aparato orgânico do corpo e simbólico do psiquismo. A terceira parte toma o gancho do tema do ritmo relacionando-o com a fala humana. Ali são apresentados os conceitos de sons transitivos e inarticulados de Anton Ehrenzweig, demonstrando como a função psíquica de recalque atua sobre a musicalidade dos sons durante a vocalização de uma língua. Esses conceitos são, mais tarde, articulados com a discussão sobre o conceito de voz, o conceito de ponto surdo e o conceito de silêncio simbólico, no último capítulo. No terceiro capítulo, atento a uma ética de trabalho que se mostra acessível também a iniciantes ou não estudiosos da psicanálise, se apresenta como uma explanação da teoria da linguagem na psicanálise, para enfim demonstrar qual o uso específico que dedico a fazer dessa teoria. Esses apontamentos configuram o fio de argumentação da última parte do capítulo, que trata de uma discussão sobre o conceito de estrutura, para propor um modelo estrutural singular. Faço uma profunda reflexão sobre os conceitos de estrutura ausente, de Humberto Eco, de rizoma, de Deleuze, e os conceitos de superposição e emaranhamento, retomados da Física e Mecânica Quântica, para propor uma diferente noção de estrutura derivada à psicanálise. Essa 16 proposição, que passa a ser chamada de estrutura aberta, se define como outro importante conceito na fundamentação desta tese, pois nos ajuda a compreender os fenômenos presentes no autismo e em alguns fenômenos particulares da música. No quarto capítulo, introduzo as discussões sobre o autismo. Apresento, na primeira parte, um panorama histórico dos principais fatos sobre a condição psíquica. A parte dois traz uma discussão crítica sobre a política e a diagnose presente nas diferentes abordagens psicológicas e psiquiátricas. A parte final faz o contraponto à segunda parte, apresentando e discutindo a posição ética, teórica e clínica da psicanálise sobre o autismo. O final desse capítulo faz relação com o capítulo anterior, apontando a necessidade de articulação da teoria psicanalítica com outros saberes e teorias, além da criação de novos conceitos que sejam mais operativos e transclínicos. O quinto capítulo passa a ser uma discussão teórica da prática clínica que ocorreu ao longo dos anos de realização da pesquisa, retomando toda a reflexão feita nos quatro primeiros capítulos. Apresento ali o caso Yago e o caso Guga em forma de relato de experiência clínica, apontando elementos importantes que são discutidos ao longo do capítulo. Em seguida à apresentação dos casos, a discussão se torna mais aprofundada e técnica, demarcando a utilização de conceitos importantes na teoria da linguagem psicanalítica. Discorro sobre a sensorialidade física e percepção simbólica, a Carta 52 de Freud, o uso de linguagem específico no autismo e exploro o conceito de significante no Real. Em seguida, o trabalho se direciona sobre a noção de corpo no autismo, explanando as noções de motricidade, de tempo e espaço, da lógica do desenvolvimento biológico e da estruturação psíquica e da lógica da estereotipia, encapsulamento e interesses específicos do sujeito autista. Em seguida, discuto os conceitos de alienação e separação, de elisão e foraclusão, compreendendo os fenômenos de hipersensibilidade física e modulação simbólica. Por fim, os desdobramentos do capítulo recaem sobre a relação entre autismo e inconsciente, apontando aproximações e distanciamentos acerca das especificidades dos mecanismos de linguagem. Especulo ali o campo do sujeito da linguagem evanescente no autismo, que não é o mesmo do sujeito do inconsciente prevalecente no laço social, ainda que não sejam modos psíquicos que se contrapõem e possam coexistir. A consequência imediata dessa especulação é o tratamento singular de uma clínica diferencial do autismo, que considera o objeto autista e as diferenças entre transferência e laço sutil, conforme Silvia Tendlarz. O sexto e último capítulo busca um direcionamento do tratamento do autismo a partir da música, traçando uma rede com todos os conceitos trabalhados ao longo da tese. Essa última parte do trabalho se divide em dois temas. O primeiro trata do silêncio, importante conceito 17 para se pensar a música, o autismo e a clínica. Ali o silêncio é destrinchado em dois tipos, o silêncio Real e o silêncio Simbólico, que são articulados ao conceito de ponto surdo, de Jean- Michel Vives. O segundo tema direciona o foco sobre o conceito lacaniano de lalangue, que é entendido como gérmen de linguagem que está para além do som e mais próximo dos afetos suscitados na musicalidade. A conclusão desta tese, por fim, é apresentada após os seis capítulos, buscando sintetizar a articulação dos principais conceitos que sustentaram a fundamentação teórica desta pesquisa. Todos os conceitos fundamentais que guiaram a investigação são entrelaçados para demonstrar a confirmação da hipótese proposta anteriormente, sendo reforçados pelas reconhecidas proposições de Alain Didier-Weill sobre a musicalidade no psiquismo humano, das quais faço uso. A tese que aqui apresento não é somente o resultado de um trabalho acadêmico, ela é efeito de uma confluência de experiências pessoais, vivências, ensaios, tentativas e recomeços no mundo da música, que em certo momento de minha vida se cruzaram com os trabalhos técnicos da carreira acadêmica. É pessoal porque, durante toda minha vida e toda minha formação como psicólogo, foi a música que me deu disposição para tocar a vida, nos dois sentidos da palavra. A música acompanhou meus processos de existência, de sobrevivência, de cuidado e de afeto. Ela sustentou um envoltório que me permitiu ser movimento, mesmo que não acompanhasse a lógica social. Paralelamente, a psicologia foi montando uma base orientativa em minha vida, uma base que é subjetiva e que dialoga muito bem com a tessitura da estrutura social. A psicologia me localizou dialeticamente num mundo que é subjetivamente objetivo. Quando tive a oportunidade de desenvolver uma pesquisa de mestrado, pude ter o privilégio de juntar os dois temas – que também são paixões – de minha vida. Música e Psicologia passam a ser a face moebiana de uma exploração da vida em interface com a pesquisa acadêmica. A trajetória da pesquisa de mestrado, que era sobre a musicalidade implicada na psicose e no autismo, ocorreu de maneira bastante satisfatória e superou minhas expectativas. Foi ela que me fez interessar particularmente sobre o ponto de consonância entre autismo e musicalidade, que parece apontar uma potência gigantesca. Tanto que, após finalizada com sucesso a pesquisa de mestrado, esta atual pesquisa de doutorado foi aprovada, debruçando-se especificamente sobre essa relação. Música, autismo e psicanálise compõem a tríade na qual estabeleço relações e constituo o objeto da minha investigação. Seria possível uma clínica que dialogue a teoria psicanalítica da linguagem com a música, culminando em trocas produtivas de sujeitos autistas com o laço 18 social? Bem, a hipótese que esta investigação sustenta é que a música, em seu estatuto de linguagem que também transita fora dela, possibilita caminhos múltiplos da manutenção do afeto, tanto no modo singular do funcionamento psíquico quanto na correspondência simbólica com o laço social. É essa a grande discussão desta tese, entremeada por subtemas e “microobjetos” que envolvem este estudo. Convido os(as) leitores(as) a participarem dessa viagem reflexiva em torno da música para se sentirem tocados(as) e tocantes, ressoados(as) e sonantes, conforme assim sentirem. 19 CAPÍTULO I – Do som à música: sensorial e simbólico Aspectos evolutivos e sensoriais com relação ao som A percepção do som em sua forma audível nem sempre foi tão bem desenvolvida entre os animais. Foram precisos centenas de milhões de anos de evolução para que o som pudesse ser ouvido, além de apenas sentido. A possibilidade de ouvir e codificar os sons só surgiu quando os animais desenvolveram a coluna vertebral – à exceção de alguns invertebrados, como certos crustáceos, aranhas e insetos (LUCHIARI, 2010). Nos vertebrados, o processo de evolução da audição é bem mais complexo e foi bem mais longo, culminando em um sistema nervoso integrado que produz sensações através dos sons. Jourdain (1998) nos revela que a audição foi, e talvez ainda seja, o sentido mais lento para se desenvolver na natureza animal, uma vez que “(...) depende das mais intrincadas e frágeis estruturas mecânicas do corpo” (p.20). Segundo o autor, em todo o processo evolutivo dos animais, a audição foi o mais tardio dos sentidos, seguindo-se do olfato, da visão, do tato e do paladar. Costa (1999) faz uma recapitulação dos aspectos básicos da evolução dos sentidos e sugere que o olfato e a gustação teriam sido os primeiros e mais antigos. Teriam surgido quando seres unicelulares desenvolveram prolongamentos protoplasmáticos para interagir e responder estímulos químicos do ambiente. Em seguida, os organismos pluricelulares teriam desenvolvido o tato como mecanismo de resposta a estímulos mecânicos, térmicos e vibratórios. A visão viria depois, com animais que utilizavam a locomoção e o voo como meio de orientação, tais como os artrópodes e os insetos. O desenvolvimento da coordenação e complexificação dos movimentos foi, aos poucos, originando o senso de equilíbrio nos primeiros vertebrados, e essa evolução do equilíbrio estaria em íntima ligação com o desenvolvimento da audição (COSTA, 1999, p.151). A audição é um mecanismo sensorial que existe em diversas espécies e é muito importante para a existência dos animais, incluindo nós, humanos. Perceber os sons e as vibrações ao entorno é uma qualidade que permite ao animal não só detectar suas presas e ameaças, mas também de se localizar no ambiente e estabelecer comunicação por meio de sons (BALBANI; MONTOVANI, 2008, p. 39). Balbani e Montovani (2008) dizem que as espécies, conforme saíram do ambiente aquático e passaram a habitar ambientes terrestres, aos poucos foram adaptando o sistema auditivo para perceber as variações de pressão sonora no ar, que é bem diferente da vibração da água. O som percorre uma velocidade de 1.500 metros por segundo na água e apenas 340 metros 20 por segundo no ar. Os animais terrestres, portanto, tiveram que evoluir para um aparelho auditivo que se adaptasse a uma baixa impedância acústica da vida na terra. Répteis, aves e nós, mamíferos, desenvolvemos o tímpano há 250 milhões de anos, algo que teve grande impacto na capacidade auditiva dos animais. O tímpano é uma membrana elástica e ultrafina (cerca de 0,1 milímetro de largura) que recebe as vibrações do som ambiente e as conduz para as estruturas internas e terminações nervosas do ouvido. A energia sonora externa é recebida pelo tímpano, que direciona as vibrações desses sons para outros órgãos e pequenos ossos (ossículos) na parte interna do ouvido que, por sua vez, decodifica as vibrações em sinais elétricos para o cérebro. Além dessa função, o tímpano ainda tem a tarefa de proteger o ouvido interno de infecções e inflamações. O desenvolvimento do tímpano permitiu aos animais saírem da zona de percepção de sons graves – comum para animais aquáticos – para perceberem altas frequências sonoras, aquelas acima de 1.000 Hz. O tímpano é o órgão vital para a recepção sonora em mensagens auditivas. Esse órgão se desenvolveu de maneira diferente nas diversas espécies, resultando em diferentes maneiras de perceber o som entre os animais. As espécies terrestres possuem o tímpano mais espesso e recoberto por pele, enquanto que algumas espécies aquáticas já têm uma membrana mais fina e sensível. Essas diferenças se dão pela adaptação do corpo ao meio: a água diminui a intensidade do som, enquanto que no ar o som é mais acentuado. As evidências indicam que a audição foi o resultado de uma evolução que acompanhou o desenvolvimento e a mutação das formas de vidas aquáticas para o meio terrestre. Dessa forma, as brânquias dos peixes foram o ponto de partida para a evolução das maxilas dos répteis, que mais tarde evoluíram para os ossículos da audição nos mamíferos (SANTOS, 2011). Os ossículos do sistema auditivo dos mamíferos surgiram a cerca de 160 milhões de anos atrás, através de um processo de deslocamento da mandíbula até sua separação do sistema mastigatório. Esses ossículos, chamados martelo, bigorna e estribo, ao se distanciar da mandíbula, passaram a ser mais leves e a ter movimentos mais flexíveis, algo que deu maior eficiência na condução de sons de alta frequência. 21 Figura 1 – Ossículos do ouvido humano. Fonte: https://www.digsom.com.br/como-funciona-a-nossa-audicao/anatomia-do-ouvido-humano-ouvido-medio/#iLightbox[postimages]/0 . O sistema auditivo dos mamíferos, através dessa morfologia e fisiologia modeladas por um longo processo evolutivo, constitui ainda o equilíbrio, uma função vital para os seres que andam sobre a terra. Por meio de uma engenhoca biomecânica, a evolução permitiu a alguns animais desenvolverem um senso de movimento e localização espacial extremamente especializado, de tal forma que os pássaros conseguem direcionar suas asas de acordo com a direção do vento e se locomover sem esforço, e um leopardo consegue utilizar seu rabo como um contrapeso aerodinâmico, aumentando sua velocidade na caça. As estruturas do ouvido interno dos animais vertebrados estão posicionadas em diferentes graus de inclinação em relação ao corpo de tal forma que, quando uma está em posição horizontal, a outra fica em posição vertical. Desse modo, os animais percebem se estão de cabeça para cima ou para baixo; qual o movimento que executam e em que velocidade estão se deslocando (QUEIROZ, 2005). Existem muitos e muitos exemplos extraordinários sobre a noção de equilíbrio desenvolvida no mundo animal graças às complexificações do sistema auditivo. Nos humanos, por exemplo, há um refinado sistema que se divide em três partes: ouvido externo, ouvido médio e ouvido interno. Esse sistema recebe e catalisa os estímulos em ações fisiológicas que transformam as percepções auditivas em sinais cerebrais que, por sua vez, são interpretados como sinais acústicos e sinais de movimentação no espaço. O ouvido externo é formado pelo pavilhão auricular (a orelha) e pelo canal auditivo externo. A orelha é formada por cartilagens cobertas por pele e sua finalidade é, basicamente, coletar as ondas sonoras e dirigi-las para o canal auditivo externo. Este recebe e direciona a ressonância sonora para o tímpano, que tem a função de direcionar o som e de proteger a passagem da parte externa para a parte interna do ouvido através da produção de cera, que reveste o canal e impede a invasão de microrganismos. https://www.digsom.com.br/como-funciona-a-nossa-audicao/anatomia-do-ouvido-humano-ouvido-medio/#iLightbox%5Bpostimages%5D/0 22 O ouvido médio é uma cavidade oca, cheia de ar, que fica entre o tímpano e a cóclea e, nela se encontram os três ossículos: martelo, bigorna e estribo. Sua função é transmitir a energia sonora do ouvido externo ao ouvido interno. Ao receber os estímulos sonoros do ouvido externo, o tímpano vibra na mesma frequência das ondas sonoras e amplifica ou diminui sua intensidade, de acordo com a situação, e transmite as vibrações para os três ossículos. Estes, por sua vez, formam um mecanismo de alavanca que amplifica as vibrações do tímpano e são convertidas mecanicamente em ondas de pressão, para serem introduzidas no ouvido interno. Esta é a parte mais profunda do ouvido, composta pela cóclea e pelo aparato vestibular. Na cóclea, a energia mecânica transmitida pelos ossículos é transformada em impulsos elétricos, que são enviados para o cérebro. O cérebro, então, interpreta os impulsos nervosos e conduz a reação e o reflexo a partir da informação. Figura 2 – Localização do ouvido externo, médio e interno. Fonte: https://www.biologianet.com/anatomia-fisiologia-animal/aparelho-vestibular.htm . https://www.biologianet.com/anatomia-fisiologia-animal/aparelho-vestibular.htm 23 Vídeo 1 – Funcionamento do ouvido externo, médio e interno. Fonte: https://youtu.be/d2UXsffjI2E . Dentro do ouvido interno há um aparelho responsável não só pela audição, mas também pela nossa capacidade de ficar em pé, andar, correr, agachar, saltar e realizar todos os movimentos possíveis com o corpo sem que percamos o equilíbrio. Esse é o aparelho vestibular, formado por um conjunto de órgãos, que são: três canais semicirculares que se juntam a uma região central chamada vestíbulo, que por sua vez, apresenta duas estruturas chamadas sáculo e utrículo. Há ainda a cóclea, que também se liga ao vestíbulo e é a base do sentido da audição. Esse conjunto de órgãos e estruturas que nos dá equilíbrio é chamado de labirinto. O aparelho auditivo, considerando todas essas estruturas, se distribui anatomicamente do seguinte modo: https://www.youtube.com/watch?v=D7QHPqllMpU 24 Figura 3 – Estrutura geral do aparelho auditivo. Fonte: https://www.infoescola.com/anatomia-humana/audicao/ . Os canais semicirculares estão relacionados com a percepção dos movimentos que o corpo executa. São três tubos ósseos ocos e interconectados em cada ouvido, denominados de superior (ou anterior), lateral (ou horizontal) e posterior (ou frontal). Eles estão dispostos em ângulos que representam os três planos que percebemos do espaço: acima/abaixo, esquerda/direita e frente/atrás. Dentro desses ossos ocos existe um líquido incolor chamado endolinfa, que atua como um sistema biomecânico de percepção espacial: quando a cabeça se move em uma direção, a inércia faz com que a endolinfa se desloque amplamente pelo canal semicircular lateral, enquanto que nos outros dois canais – superior e posterior – o movimento é bem menor. Essa discrepância do deslocamento do líquido, e também da velocidade desse deslocamento, faz com que as células ciliadas se sensibilizem pela pressão do movimento do líquido e transforme essas informações em impulsos nervosos e sensoriais. Isso é o que ocorre quando nos colocamos a rodopiar por um bom tempo e, depois, paramos bruscamente. Perdemos o equilíbrio e torna-se difícil manter-nos de pé. Essa situação tem relação direta com o aparelho vestibular. Rodar a cabeça a uma velocidade constante faz com que a endolinfa fique em uma mesma posição dentro dos canais semicirculares pela inércia, diminuindo a pressão sobre as células sensoriais. O líquido do ouvido se adapta ao movimento de giro e se estaciona nos canais, mesmo que o corpo ainda esteja em movimento. Quando https://www.infoescola.com/anatomia-humana/audicao/ 25 paramos bruscamente, a endolinfa continua o movimento do giro nos canais semicirculares e estimula as células sensoriais. A sensação de tontura, então, se dá por um desajuste de percepções: os olhos enviam mensagens ao sistema nervoso de que o corpo está parado, ao passo que o ouvido interno comunica que a cabeça ainda está girando. A sensação de desequilíbrio se dá porque o sistema vestibular é um mecanismo que detecta a posição e o movimento da cabeça no espaço transformando a energia mecânica das células sensórias em sinal biológico (QUEIROZ, 2005). Esses sinais biológicos são decodificados psicologicamente, estabelecendo vários reflexos de estabilização da cabeça no espaço. Dentre eles, os três mais gerais são: o reflexo de direcionamento, que detecta a posição da cabeça em relação à gravidade; o reflexo de equilíbrio estático, que corrige a posição da cabeça nas mudanças de posição do corpo, mantendo-a em posição horizontal; e, por fim, o reflexo de equilíbrio dinâmico, que mantém a sustentação cervical e corporal nas mudanças repentinas de orientação no espaço ou durante os deslocamentos do corpo (QUEIROZ, 2005). Além desses, o aparelho vestibular ainda integra reflexos envolvidos na estabilização dos olhos no espaço a fim de propiciar o equilíbrio do corpo também a partir da visão. O Reflexo Vestíbulo-ocular, por exemplo, controla os movimentos dos olhos durante os deslocamentos da cabeça. Esse reflexo produz um movimento compensatório dos olhos no sentido oposto da movimentação do crânio, mantendo a visão adequada ao campo visual na mobilidade da cabeça. O Reflexo Optocinético estabiliza o olhar durante os deslocamentos do campo visual. Esse tipo de reflexo é aquele que percebemos quando a cena visual se move rapidamente e continuamente, como a paisagem vista de dentro de um carro, ou dos vagões de metrô passando diante de nós (QUEIROZ, 2005). O Reflexo Cérvico-ocular é aquele que estabiliza o olhar no deslocamento da cabeça em relação ao tronco (QUEIROZ, 2005). A manutenção do equilíbrio do corpo não é realizada exclusivamente pelo ouvido interno. O encéfalo também calcula as posições relativas do pescoço, das pernas e dos braços, transmitidas por células propriorreceptoras. No encéfalo, a visão combina-se com as informações vindas do ouvido interno e, após, cruza-se com as informações auditivas. Os estímulos produzidos neste processo são fornecidos ao sistema vestibular, que os catalisa e propicia as condições necessárias para o equilíbrio físico. Tais capacidades de manutenção do equilíbrio também acontecem graças à integração do aparelho vestibular com o Cerebelo, órgão que regula a movimentação e a postura do corpo e que também atua em certos tipos de aprendizado motor. É esse órgão que auxilia no controle da força e da direção dos movimentos de forma que, se uma pessoa possui alguma lesão no cerebelo, provavelmente, terá sua capacidade de coordenação limitada. O cerebelo está situado 26 na fossa posterior craniana, atrás do tronco cerebral, ou seja, logo abaixo e atrás do cérebro, na altura da nuca, e apresenta três divisões principais: o espinocerebelo, que produz os impulsos da medula espinhal e controla a sinergia dos movimentos, o pontocerebelo, que produz os impulsos cerebrais e controla o planejamento e a iniciação do movimento, e o vestibulocerebelo, que produz os estímulos derivados do aparelho vestibular e controla o equilíbrio e movimentos oculares (CONSTANZO, 1947). Figura 4 – Localização do cerebelo e divisões principais. Fonte: https://slideplayer.com.br/slide/326172/ . A integração do ouvido interno com o cerebelo se dá através do nervo vestibulococlear, que completa, finalmente, o aparelho vestibular: https://slideplayer.com.br/slide/326172/ 27 Figura 5 – Integração do ouvido interno ao cerebelo. Fonte: http://www.citogenetica.ufes.br/sites/nupea.saomateus.ufes.br/files/field/anexo/sistema_nervoso_-_parte_2.pdf . Jourdain (1998) diz que os animais que desempenham movimentos mais caprichosos são os que possuem grandes cerebelos. Os primatas, e principalmente nós, humanos, são os que tiveram uma evolução que mais beneficiou esse órgão, algo que permitiu sua expansão inúmeras vezes mais que o tamanho exigido para o tradicional papel de coordenador muscular. O autor aponta que o cerebelo é decisivo na execução de movimentos balísticos, isto é, aqueles movimentos que realizamos por reflexo imediato, sem pensar. O movimento balístico segue seu curso sem que possamos percebê-lo, para só depois processarmos o que aconteceu. É possível notar a capacidade balística dos movimentos quando avaliamos a ação dos olhos: os movimentos oculares ocorrem numa velocidade muito alta, mais rápido do que podemos pensar, de forma que quando algum som ou movimento acontece em nossa visão periférica, de imediato, os olhos se dirigem para a origem do estímulo. A qualidade balística é facilmente compreendida ao observarmos os movimentos executados por músicos em momentos de livre criação, no improviso, conforme aponta Jourdain (1998): [...] os movimentos balísticos são vitais para habilidade musical virtuosística, de tal forma que talvez seja o cerebelo que decide se um músico chegará, algum dia, a dar concertos. Pois o cerebelo é de importância máxima no tipo de interpretação em que as notas faltam do corpo e, pelo menos para a mente consciente do músico, tocar não exige esforço (JOURDAIN, 1998, p. 277). É inevitável notar que o desenvolvimento do ouvido, em sua dinâmica com o sistema vestibular integrado ao cerebelo, foi de vital importância para a evolução e sobrevivência dos animais das mais diversas espécies que carregam esse complexo sistema. Sentir o som, sem dúvida, carrega em si a íntima ligação com o localizar-se, equilibrar-se, observar e mover-se http://www.citogenetica.ufes.br/sites/nupea.saomateus.ufes.br/files/field/anexo/sistema_nervoso_-_parte_2.pdf 28 no espaço. Esse fato será particularmente interessante na discussão sobre a relação do corpo com a motricidade no autismo e da relação do corpo com o silêncio, que discorrerei nos capítulos V e VI. Ao compreendermos as relações da sensorialidade com o som, seja na percepção de sons ou na constituição do movimento e espacialidade do corpo, cabe-nos perguntar como isso evoluiu ao que chamamos de “música”. É fato que a evolução do animal humano se deu em íntima ligação com as características sonoras do ambiente, de modo que a sonoridade está implicada diretamente no desenvolvimento de estruturas fisiológicas do organismo – da fisiologia da audição à capacidade de movimentação e equilíbrio. Obviamente, há de se considerar as características psicológicas que se desdobram a partir disso. Em que medida a sensorialidade auditiva deixa de ser exclusivamente orgânica para também ser via de comunicação simbólica? Para além, podemos ainda nos perguntar como o uso dos sons pôde afetar as relações humanas naquilo que chamamos de música. De antemão, evidencio que não será papel desta tese indicar a “origem” da música, se é que isso pode ser indicado, mas discutir os processos que apontam como a música está em contingência à humanidade. Essa reflexão se estenderá sobre os efeitos da música nas culturas humanas e como isso afeta os arranjos do laço social. Música e laço social É um fato que todas as civilizações humanas encontrem na música um papel estruturante da comunidade. Os indícios apontam que, desde a pré-história, a música exerce importante influência no arranjo grupal. Conforme indica Candé (2001), as regras do grupo eram a base do exercício da variação musical. A escolha de determinados instrumentos para um ritual específico, os modos de ritmo e melodia, a dinâmica de execução da música, etc., foram se organizando conforme as regras do grupo se desenvolviam. Talvez seja por esse motivo que algumas culturas tenham desenvolvido e adotado a priorização de determinados instrumentos enquanto outros povos criaram e aperfeiçoaram outros diferentes. A música indígena é um exemplo evidente de como as regras sociais fazem parte da conjuntura da música. Segundo Schurmann (1989, p. 29), as práticas musicais indígenas brasileiras demonstram uma organização social admiravelmente complexa, que se baseia em tradições seculares. Essa complexidade da música indígena compõe forte influência na percepção cosmológica do sujeito, na sua subsistência na mata e em grupo. As canções indígenas atuam no sentido de nomear espaços simbólicos e territoriais, construindo a 29 cartografia da floresta para o sujeito. Ressalta a dimensão espiritual, além da dinâmica e o movimento dos habitantes da tribo (MONTARDO, 2006). É a música que garante a continuidade das tradições indígenas e a formação das experiências sociais (SCHURMANN, 1989, p. 86). Existem práticas sociais na música da maioria das culturas indígenas brasileiras que, geralmente, dizem sobre a nomeação de membros, faixas etárias, ritos de iniciação, status sociais, grupos familiares, etnias, gêneros sexuais e estados afetivos. Na música, também estão presentes narrativas, contemplação da natureza e dos mitos, ensinamentos e instruções, invocações, anunciações, entre outros. Bastos e Piedade (1999) apontam que o ritmo da musicalidade indígena brasileira se alterna de diversas formas, não havendo uma unidade de tempo constante, tampouco harmonia ou polifonia, tal como construído nas culturas ocidentais. O pulso da música indígena atua em flutuação e os tons se relacionam por texturas sonoras relacionadas às esferas sociais: nas manifestações coletivas, as alturas e intervalos são mais precisos; na esfera dos clãs, o timbre prevalece sobre a massa sonora; nos rituais dançados, as oposições grave-agudo sem intervalo de passagem são preponderantes. “Ocorre, portanto, uma progressão acústica que acompanha a complexificação dos níveis sociais” (BASTOS; PIEDADE, 1999). Comentando os estudos de Nettl, Schurmann diz que, na maioria das tribos ainda existentes, [...] o contador de estórias intercala canções na sua narrativa e os ouvintes passam a cantar junto com ele. Este hábito leva frequentemente a um tipo de manifestação musical qualificável como “canto responsorial”, por meio do qual se acaba por garantir a participação ativa de todos os membros da comunidade (SCHURMANN, 1989, p. 27). Outra manifestação grupal fortemente relacionada à mata e à ancestralidade por meio da música é a Capoeira. Diferentemente da cultura indígena brasileira, a capoeira surgiu como uma luta de proteção e sobrevivência dos pretos sequestrados da África e escravizados no território brasileiro. Ainda que sejam culturas diferentes, os indígenas brasileiros e os pretos afro-brasileiros possuem pontos em comum na estrutura social de suas músicas, principalmente sobre a hierarquia dos rituais e da religiosidade. A Capoeira Angola é uma das manifestações culturais que possui maior relação com a tradição e a ancestralidade, que são fortemente refletidas na música. Ela não pode ser definida apenas como uma luta, mas fundamentalmente como uma junção de elementos que marcam simbolismos de gestos, de preceitos, de regras, e do jogo de movimentos corporais, realizados entre os lutadores e a música tocada. Em sua história, inicialmente, a capoeira era a luta dos escravizados contra os capitães do mato no meio da floresta, ao passo que era disfarçada de “dança” na cidade para que os donos dos engenhos 30 não proibissem sua prática. Isso colaborou para que ela seja compreendida ora como luta, ora como dança. A “roda” de capoeira é formada por alguns instrumentos, sendo o berimbau, imprescindível. Além deste, a roda também é composta por pandeiro, agogô, reco-reco e atabaque, e a junção desses instrumentos constitui a “bateria” da capoeira. Formada a roda e com a música em execução, os lutadores se agacham em frente ao berimbau e, assim como todos da roda, escutam atentos a canção-história entoada pelo cantador. Só depois dos versos é que a luta começa (CARNEIRO, 1981, p. 212-213). O cantador começa a roda com uma ladainha, um tipo de cantiga que conta uma história sobre grandes personagens, sobre concepções de mundo, ou ainda passar orientações a algum participante específico, entre outras mensagens. Depois da ladainha, vem a chula, que é um verso cantado pelo mestre e respondido pelo grupo inteiro. Em seguida, cantam os corridos, que são temas mais acelerados em que o cantador faz versos curtos e são respondidos pelo conjunto como um refrão contínuo ou uma espécie de mantra musical2. É no “pé do berimbau” onde o jogo se inicia. Existem vários toques de berimbau que constroem o um arranjo de organização social e o estilo de jogo, como por exemplo: ● Angola: um toque cadenciado, rasteiro e lento, usado para um jogo próximo ao chão, com movimentos lentos e maliciosos, preparando armadilhas e predominando rasteiras e cabeçadas. Ao som desse toque, o capoeirista mostrará força e equilíbrio. ● São Bento Grande: nesse toque, a luta segue em movimentos rápidos com reflexo e velocidade; seria a capoeiragem da mata propriamente dita. ● Iúna: usado apenas para o jogo dos mestres e contramestres. Nesse toque, ninguém mais joga, canta, nem bate palmas, só assiste. ● Lamento: é o toque fúnebre da capoeira. Usado apenas em funerais de mestres. ● Cavalaria: toque de alerta máximo ao capoeirista. É usado para avisar que há perigo no jogo, que há risco de violência e discórdia na roda. No período de escravidão, era o toque usado para avisar a chegada do feitor no engenho. Quando a capoeira foi proibida no período da República, os capoeiristas usavam a Cavalaria para avisar que a polícia estava chegando. ● Benguela: é o mais lento toque de capoeira, geralmente usado para acalmar os ânimos dos jogadores quando a luta está à flor da pele. 2 Além desses tipos de canto, há também a quadra, que é uma estrofe curta de quatro versos simples, cujo conteúdo pode falar de lendas, de figuras da capoeira, ser a criação de brincadeiras do cantador, ou ainda alguma advertência. 31 ● Samba de Roda: é o toque que puxa a roda de samba que geralmente ocorre depois da roda de capoeira. Esse é o momento de descanso e de descontração da roda. Assim como muitas outras manifestações musicais da cultura de um povo, a capoeira é uma ferramenta de recuperação da memória social do Brasil. Diz sobre a historicidade, classe social, costumes e resistência dos povos pretos desde o período colonial. É visível como a estrutura da música reflete diretamente no arranjo do grupo social, em suas diferentes esferas. Esse modo de arranjo em função da música já existia nas civilizações mais antigas do mundo, como a sumeriana e a egípcia, por exemplo. O músico e a música3 tinham nessas civilizações um status elevado, com funções sacerdotais. Essa referência se dava pela sua fundamental importância na participação dos cultos e rituais. Músicos e músicas eram enterrados em tumbas reais, tamanho era o reconhecimento que tinham nessas culturas. Entre os assírios, também havia tal valorização dos músicos. A função social da música obtinha símbolo de poder e de respeito: “Honra-se aos músicos mais que aos sábios, imediatamente depois dos reis e dos deuses; e nas matanças que se seguem às conquistas, os assírios perdoam sempre aos músicos (...)” (CANDÉ, 1981, p.57). Na antiga China, a música era relacionada com a ordem do mundo, de acordo com a construção da tradição e dos ensinamentos passados entre gerações. “Os instrumentos que produziam música sob a condução humana eram considerados como um elo com o divino e o eterno” (MENUHIN; DAVIS, 1981, p. 15). Por isso, era sempre um dever dos chineses resguardar seus instrumentos musicais, uma vez que preservá-los era sinal da importância que se dava ao culto do ancestral. “Possuir um instrumento verdadeiramente antigo era como possuir um pedaço da alma de um antepassado, tocando com outros dedos onde os dele haviam tocado” (p. 15). Além da relação de consideração à tradição, a música chinesa também possuía uma dimensão ética. Wiora (1961) cita Tchocian-Tsé quando este se pergunta o que é uma alma nobre: “É aquela que se conforma aos princípios da humanidade, realizando boas ações, que segue as regras da justiça, respeita os bons hábitos na sua conduta, exprime pela música o sentido de harmonia, e consequentemente, é bom e compadecido” (p. 105). As civilizações chinesas também nos mostram como a música possui grande capacidade de representação 3 A música nesse contexto se refere ao gênero feminino de quem toca um instrumento ou canta. Na língua portuguesa, música é definida como um campo da arte e também como o feminino de músico. Já a palavra musicista, que se refere à pessoa estudiosa e pesquisadora da arte musical, é substantivo de dois gêneros, servindo tanto para o gênero feminino quanto para o masculino. 32 simbólica. As notas musicais teriam correspondentes nos elementos da natureza, nas estações do ano, nas classes sociais, entre outros. Essa simbologia, sobretudo na música da antiga China, está intimamente ligada à ética musical, e, conforme Freire (2010), “(...) talvez com mais intensidade que na antiga Grécia” (p. 71). Ainda assim, à Grécia é atribuído o legado da música, que teve maior capacidade de dispersão pelo globo, sendo a maior influência da música ocidental, parte da oriental e a base da música moderna. Os gregos também tinham a música como uma trama de complexa intimidade com a vida social, política e metafísica. A música conecta os mitos gregos como parte de uma cosmologia que está tanto na dimensão divina quanto humana, sendo-lhe atribuída as mais diversas funções, muitas vezes de vital importância para o equilíbrio da sociedade. No mito de Dionísio, deus grego da exuberância, do teatro, da insânia e da desordem, a música é compreendida como parte de um som interno, que, segundo Schafer (2001, p. 21) “(...) rompe do peito do homem” (TAVARES, 2014, p. 87-88). Sua música simboliza tudo o que é inesperado, caótico, que escapa da razão humana e que reflete a imprevisibilidade das ações dos deuses. Apollo, deus grego da música, das artes, da profecia, da verdade, da poesia e da cura, era a divindade-símbolo de inspiração profética e artística. Apollo tinha como companhia as Musas, divindades que inspiravam os cidadãos gregos nas artes e nas ciências. O templo de adoração das Musas era o Museion, termo que dá origem à palavra “museu” como local de cultivo e preservação das artes e ciências. O próprio nome “Música” deriva da palavra grega “Musa”. Eram ao total nove musas, filhas de Mnemósine, deusa da memória, e de Zeus, deus supremo da mitologia grega. Dentre as Musas, Euterpe era a que inspirava a música e, ligada à poesia lírica, foi a divindade que inventou a flauta e entorpecia os ouvidos dos deuses e dos humanos com suas belas melodias. Alguns detalhes da mitologia grega sobre a música são particularmente interessantes. Entre eles, o fato de o deus da música ser, concomitantemente, deus da verdade e da cura, juntamente com as Musas, que inspiravam os cidadãos gregos nas artes e nas ciências. De algum modo, esse mito contempla, além da riqueza do legado artístico grego, parte do desenvolvimento da música no campo da medicina grega, que, entre outros métodos, utilizava a arte musical como meio de cura, prevenção de doenças e educação. “Platão recomendava-a para a saúde da mente e do corpo, a cura de angústias e fobias, o desenvolvimento do caráter e da sensibilidade, aconselhando-a, em sua obra A política, como recurso de educação e desenvolvimento do caráter do jovem” (SEKEFF, 2005, p. 94). A música também adentrou no campo da matemática grega: “Pitágoras descobriu uma certa ordem numérica inerente ao som. 33 E a analogia entre duas séries: o som e o número, um princípio universal extensivo a outras ordens, como a dos astros celestes” (WISNIK, 1999, p. 20). Além de sua íntima relação com a cura, a música também foi base para os primeiros experimentos ditos científicos. Pitágoras, em seus estudos, investigou [...] a relação entre o comprimento de uma corda vibrante e o tom musical produzido por ela. Caracterizando a primeira lei descoberta empiricamente, o experimento de Pitágoras é ainda a primeira experiência registrada na história da ciência, no sentido de isolar algum dispositivo para observar fenômenos de forma artificial (WISNIK, 1999, p.5). Pelo que podemos ver, o primeiro fundamento científico com base em experimentos empíricos de que temos registro foi através da música. Pitágoras deu base para alguns fundamentos científicos da mecânica e da acústica, de acordo com sua relação com a matemática. Através de uma corda esticada a ponto de vibrar e produzir som, Pitágoras descobriu que em determinados pontos em que se pressiona a corda, sons com frequências diferentes se “encaixam” por serem matematicamente e espacialmente proporcionais. A relação entre o som da corda solta e os sons dessas posições específicas da corda pressionada gera notas consonantes, correlativas entre si. Essas notas correlativas foram nomeadas por Pitágoras de Tônica, Oitava, Quinta, e Quarta, e teriam a seguinte proporção matemática: ● Corda tocada solta: Tônica – razão de 1:1; ● Corda tocada pressionada na metade de seu comprimento: Oitava – razão 1:2; ● Corda tocada pressionada em certo ponto à frente de sua metade: Quinta – razão 2:3; ● Corda tocada pressionada em certo ponto ao final de seu comprimento: Quarta – razão 3:4. Foi a partir dessa descoberta que se formou a primeira e mais elementar escala musical que serviu de base para toda a música grega. A escala formada pelos quatro sons descobertos por Pitágoras é, até hoje, de grande influência na música ocidental. A música do oriente segue por outro caminho que o da música ocidental. No hinduísmo, religião essencialmente musical do subcontinente indiano, a música está diretamente associada ao cosmos como essência e equilíbrio do universo. O deus que representa a força Criadora ativa do universo é também o deus da música e das canções. Seu nome é Brahma, primeiro deus da tríade mitológica indiana. Os outros dois deuses são Vishnu e Shiva, que representam, respectivamente, as forças de Conservação e de Destruição no universo. A música nessa 34 mitologia é a representação direta do poder de criação do cosmos. Brahma é esposo de Sarasvati, deusa hindu da sabedoria, do conhecimento, e das artes, protetora de estudantes, professores, artesãos, pintores, escritores, músicos e artistas em geral. Por ser uma religião fortemente musical, o hinduísmo tem na voz e na respiração uma função importante nos rituais de mantra. “(...) o próprio nome de deus, Brahma, significa originariamente força mágica, palavra sagrada, hino, e onde todas as ocorrências míticas e eventos divinos são declaradamente citações cantadas (...)” (WISNIK, 1989, p.34). A proferição da sílaba sagrada, o OUM, tem no hinduísmo “o poder de ressoar a gênese do mundo” (p.34). A música, do ponto de vista hindu, é relacionada como uma ponte entre os aspectos físicos e metafísicos da realidade. Por isso, a música era considerada, na antiga Índia, como o “veículo ou instrumento da educação popular”, transmitido em “(...) forma de ilustrações e parábolas, os princípios de filosofia, ética e religião, cuja exposição dialética estaria ao alcance apenas de uma minoria cultural” (DANIÉLOU, 2008b, p. 91). Daniélou (2008a; 2008b) considera que nenhuma linguagem é capaz de transmitir toda a verdade, e nesse caso, haveria sempre algo a ser transmitido, seja por motivos quantitativos – da carência de elementos e/ou vocabulário de transmissão –, seja por motivos qualitativos – a impossibilidade de expressão de uma ideia no seu todo (CINTRA, 2014, p. 90) –, daí a potência da música e sua capacidade de nunca cessar aos ouvidos humanos. Em The origin of sacred music (2003), Daniélou relata as relações entre a música com as mais diversas culturas e povos de modo muito sucinto, que me parece ser necessário transcrever na íntegra para manter a fidelidade de seu pensamento: Como afirmado por todos os filósofos da antiguidade, sejam Hindus, Gregos, Egípcios ou Chineses, é no som não articulado – e nas formas musicais em particular – que nós encontraremos a chave mais óbvia para os símbolos e para os meios de comunicação com o sobrenatural, uma vez que o som é a mais abstrata de nossas percepções e o som musical é a forma mais abstrata de expressão sonora. É na música que nós podemos perceber as razões numéricas diretamente, que nós sentimos como ideias, movimentos ou valores expressivos. Nas estruturas musicais, nós podemos encontrar assim a chave para as relações que unem as abstrações qualitativas e quantitativas expressas por razões numéricas de um lado, e pelas estruturas da matéria, vida, pensamento e sensação de outro. De fato, relações e harmonias parecem ser a única realidade básica de toda matéria e de toda aparência. Seja nos átomos ou nos sistemas estelares, na formação de cristais ou no desenvolvimento de seres vivos, tudo pode ser remetido para as relações de força que podem ser expressas por dados numéricos proporcionais. Os mecanismos de nossas percepções ou de nossas reações emocionais utilizadas para perceber e reagir ao mundo exterior, necessariamente seguem leis paralelas. É em tais bases que os filósofos Hindus concluíram que matéria e pensamento são idênticos, o mundo sendo um sonho divino percebido como uma realidade, e a matéria sendo meramente aparência. As estruturas sonoras, nas quais a vibração física reúne sentimento emocional e pensamento são, assim, tanto a mais poderosa ferramenta para o mundo sobrenatural além da percepção manifestar-se, 35 quanto ao mesmo tempo os meios através dos quais a humanidade pode tornar-se consciente do mundo sobrenatural e ser integrada nele (DANIÉLOU, 2003, p. 16-17). Daniélou faz, nesse trecho, uma reflexão da possibilidade de interação das estruturas sonoras com efeitos qualitativos e quantitativos da realidade física. Essa reflexão parece se tornar mais interessante a partir do estudo publicado na revista Physical Review Letters por Esposito, Krichevsky e Nicolis, da universidade de Columbia. No artigo “The gravitational mass carried by sound waves” (2019), os físicos fornecem evidências matemáticas de que o som pode carregar pequenas quantidades de massa, o que pode ser uma quebra de paradigma na compreensão de ondas sonoras. Até então, se considerava a capacidade das ondas sonoras de transportar energia, mas não de massa e, com essa nova concepção, as ondas sonoras poderiam mover e deslocar estados físicos da matéria. À parte dessa discussão que será retomada no capítulo III, é possível notar que a música cumpre, ao longo de toda a trajetória humana, uma complexa relação com os mais diversos paradigmas que acompanham as culturas em seus determinados momentos históricos. A música compõe, ao longo da história, as mais diversas formas de se perceber e se localizar no mundo. Ela influencia nas percepções da realidade, na comunicação com o sobrenatural, nas ideias e valores expressivos, na moral e na ética, no simbolismo numérico e na base do pensamento científico. Sua capacidade de mover o ser humano e produzir realidades é dada à sua característica de unir abstrações qualitativas e quantitativas a ponto de ser tanto expressão quanto produção da cultura. Para Schurmann (1989), houve uma passagem da relação do humano com o som que demarca um caráter eminentemente simbólico para a arte, diferentemente do caráter de expressão “naturalista”. Essa transição é assinalada como uma nova conquista frente ao estado selvagem do ser humano e demarca a música enquanto prática animista que se referenciava a conjurações na tentativa de seduzir os espíritos que pudessem ajudar a comunidade, diferentemente do selvagem que usava o som para afastar animais perigosos, por exemplo. Há aí uma passagem simbólica do som emitido para ameaçar ou imitar a natureza para uma musicalidade em um nível mais complexo, mais voltada a uma rede de significações (FREIRE, 2010, p. 43). Esse processo transitório da música nas civilizações ao longo da história pode ser percebido na obra de Mário de Andrade, Pequena História da Música (1987). O autor discute a singularidade da musicalidade das civilizações modernas com relação à musicalidade dos povos primitivos. Quando discorre sobre os índios Aparai, revela a característica desse povo de https://journals.aps.org/prl/abstract/10.1103/PhysRevLett.122.084501 36 não conseguir fazer música fora de um ritual. Para eles, a música não era possível de ser criada fora de um contexto específico, sem demarcar um contexto social. A própria percepção dos membros da aldeia era permeada pela tessitura musical dos rituais. A qualidade de um chefe da aldeia, por exemplo, [...] era medida também pela performance musical, dos cantos e danças que passaram a se tornar escassos. [...] Tudo é medido e criteriosamente observado por todos os participantes, como se a festa funcionasse como uma espécie de regulador social. É um momento em que os conhecimentos, tanto daqueles que organizam como do público que participa, são postos à prova: os que sabem terão seu status acrescido enquanto os outros tratarão de se esforçar para aprender (MORGADO; BARBOSA, 2003, s. p.). É como se a música, nos processos humanos, tivesse se deslocado de um campo mais objetivo, vinculado ao trabalho e à sobrevivência, para se transformar em um campo simbólico mais complexo, como uma prática organizadora das estruturas sociais ou para dar vazão à fruição estética. Candé (1981) diz que, em algum momento na música egípcia, a “(...) música doce e refinada, com função mais doméstica que religiosa” (p.59) teria surgido, permitindo-nos supor uma função do prazer estético, de apreciação, diferente daquela voltada para uma função de trabalho na sociedade. Esse deleite da música doméstica egípcia talvez possa ser interpretado como o surgimento do prazer estético que assenta a música no campo da arte (FREIRE, 2010, p. 69). Segundo Tardivo (2012), a arte na humanidade promoveu uma nova maneira de perceber a realidade. Trouxe a experiência de uma construção que é simultaneamente relativa e expressiva. A Antiguidade privilegiava o aspecto manual e fabril da obra de arte; o Renascimento valorizava o conhecimento e a precisão; e o Romantismo estimava os sentimentos envolvidos na criação artística. Nessa progressão histórica, a arte transitou nas sociedades como um “fazer”, um “conhecer” e, por fim, um “exprimir” (TARDIVO, 2012, p. 155) que é relativo - tanto para quem cria quanto para quem recepta a arte. A experiência estética da música, de modo diverso da música enquanto uma função social, se resguarda no campo da fruição de afetos do indivíduo. Designa a transformação do que foi vivido em uma compreensão por meio dos sentidos, ainda que isso não seja racional. A concepção estética da música lida com a qualidade fenomênica da experiência do artista e do receptor. Para Priolli (1989), a música é “(...) a arte dos sons, combinados de acordo com as variações da altura, proporcionados segundo a sua duração e ordenados sob a lei da estética” (p. 6). Para o autor, a musicalidade que não se resume mais como apenas um efeito de trabalho nas civilizações, designa a experiência subjetiva do artista e do receptor no ato da produção dos 37 sons. É a percepção das características dos sons, das intensidades e dos ritmos no espaço da imaginação, implicando as emoções e os afetos, tanto para quem aprecia, quanto para quem performa. É a linguagem corporal/sonora própria de um sujeito que faz interlocução com a linguagem corporal/sonora própria de um sujeito que a ouve, e que, precisamente, implica na linguagem que organiza o laço social. É aquilo que conseguimos compreender e apreender – para além da formalização da linguagem – da experiência com o fenômeno sonoro (SANTOS, 2017, p. 88). Esse traçado histórico da música em seu processo de transição entre as civilizações parece formar uma linha cronológica (FREDERICO, 1999, p.12), sugerindo que a humanidade tenha passado por três fases da música. Segundo Frederico: 1. No início, a música era usada como arma defensiva ou ofensiva diante das hostilidades da natureza. Também servia para lutar contra maus espíritos. Esse modo de experienciar a música se deu pela falta de conhecimento das leis da natureza, e, no geral, essa musicalidade era repetitiva tanto na melodia quanto no ritmo. 2. O avanço da linguagem e dos mitos permitiu a civilização substituir os maus espíritos por divindades. A música, aos poucos, passava a ter complementaridade com a língua dos deuses, sendo ferramenta de comunicação, e não apenas uma “arma”. A musicalidade passava a ser regulador social e delimitador de status entre as hierarquias das civilizações. 3. A arte passava a se transformar em puro deleite, deixando de ser meramente uma arma territorial, uma ferramenta de trabalho ou forma de comunicação com os deuses. A música ganhava autonomia para poder se expressar como função estética, e não mais reduzida como uma tecnologia social de organização. Diferentemente de Frederico, que traçou uma perspectiva cronológica da história da música, Wisnik (1989) se orienta pelos arquétipos musicais na humanidade. Mais precisamente, ele considera, ao invés da linearidade temporal, os sistemas musicais nos processos humanos: o campo modal, campo tonal e o campo serial. O campo modal abrange a música pré-moderna dos povos antigos: africanos, indianos, chineses, árabes, indonésios, indígenas das Américas, entre outras culturas. É o campo que 38 abrange a centelha da unidade rítmica e os milenares modos de arranjos melódicos. O universo do campo modal é aquele que se apresenta nas sociedades primárias, onde a musicalidade é marcadamente pulsante ao som de ritmos que conduzem rituais. A percussão acentua timbres e facilita a catarse por meio de repetições. Instrumentos tais como guizos, tambores, pandeiros e chocalhos seriam os condutores dessa música ritualística (p.36). O campo tonal caracteriza o desenvolvimento da polifonia4 medieval e o atonalismo5. O campo tonal abarca períodos da história em que civilizações passaram a sobrepor a melodia sobre as marcações rítmicas, como é o caso da música clássica, barroca e o canto gregoriano. Nessas manifestações musicais, o ritmo é velado em segundo plano, servindo de sustentação para o contorno melódico, que protagoniza a música. O campo serial, por fim, se debruça sobre a música radicalmente revista do século XX e seus desdobramentos, até chegar à música eletrônica, feita com amplificadores, instrumentos e aparelhos elétricos. Abarca o paradigma que vai daqueles que propunham a modificar o sistema clássico até aqueles que o abandonaram inteiramente. Nesse campo, encabeçado por Arnold Schoenberg, a ambição é abandonar inteiramente os centros tonais a ponto de todas as notas da escala cromática receberem peso igual. O resultado desse campo é a música pós- moderna em que há a substituição da harmonia tradicional para uma música sem orientação em um tom fixo. Dentre as diversas evoluções oriundas dessa concepção de música, há a invenção das músicas eletrônicas e os modos sintetizados de produzir sons (JOURDAIN, 1998, p. 137- 138). Esse último modo de pensar e produzir música, segundo Wisnik, propõe que o ouvinte perca os pontos de ancoragem nas hierarquias de intervalos de tom, de forma que a repetição seja desestabilizada e a estimulação da memória de curto prazo trabalhe em constante invenção (p. 139). Essa concepção parece estar bem próxima de Pareyson (2001), que, ao discorrer sobre a arte, diz que O fato é que a arte não é somente executar, produzir, realizar, e o simples “fazer” não basta para definir sua essência. A arte é também invenção. Ela não é execução de qualquer coisa já ideada, realização de um projeto, produção segundo regras dadas ou predispostas. Ela é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer. (...) Nela a realização não é somente um “facere”, mas propriamente um “perficere”, isto é, um acabar, um levar a cumprimento e inteireza, de modo que é uma invenção tão radical que dá lugar a uma obra absolutamente original e irrepetível (PAREYSON, 2001, p. 25–26). 4 Polifonia é o estilo musical que utiliza a combinação simultânea de vários sons e melodias, de maneira harmoniosa. 5 Atonalismo é um estilo musical em que não há uma nota central que guia as sequências e escalas da música. Não existe nesse estilo noções como “acorde maior” ou “acorde menor”, ou “escalas”. 39 A experiência estética da música está tanto no nível do sujeito que inventa a obra quanto no do receptor, pois “(…) para viver a sua própria vida, a obra de arte depende também da execução por parte do espectador” (FRAYZE-PEREIRA, 1994). A partir dessa perspectiva de música, os encadeamentos de sons, sua performance e os sentimentos provocados ao receptar tais estímulos são parte íntima da produção psíquica do sujeito. Essas qualidades só se realizam a partir de um movimento que vai da percepção para o simbólico e, mais especificamente, de uma experiência sensorial provocadora de afeto. A música passa a ser uma experiência que move o sujeito em direção a uma produção inventiva. A música, em sua qualidade estética, estaria no plano das formas sonoras que injetam e produzem sensações, que provocam e (co)movem o sujeito em manifestações de impressões. Essa última forma de experienciar a música será particularmente considerada no decorrer desta tese, ainda que transitarei pelos outros paradigmas musicais acima apontados. 40 CAPÍTULO II – Dos sinais ao código: música e linguagem Inventando sons Em certa ocasião, durante um curso de extensão que ministrava sobre musicalidade e psicose na Universidade Estadual Paulista (UNESP), os alunos e eu nos dedicamos a ocupar todo o tempo de uma aula sem utilizar palavras. Para iniciar a aula, todos que entravam pela porta da sala eram vendados, deixando apenas a audição e o tato como os principais sentidos referenciais. Quando somos desprovidos da fala e, principalmente da visão, percebemos o quanto somos dependentes dessas capacidades para exercer a linguagem. Essa dependência se dá a tal ponto de nos apoiarmos exclusivamente sobre estes dois sentidos durante boa parte de nossas atividades. Ainda que não fosse uma aula de muito tempo, as poucas horas que tivemos com essa experiência foi um tanto intensa. Nos primeiros momentos, tentei estabelecer um diálogo sem a utilização de palavras, por meio de grunhidos, batuques, gemidos, assovios, palmas, arrastar de cadeiras, abrir e fechar de janelas, e tantos outros sons possíveis. Utilizava o espaço da sala para emitir sons em diferentes posições para que sobressaísse em nossos ouvidos a espacialidade do ambiente sonoro que nos rodeava. Demorou um pouco para que os alunos quebrassem o choque inicial desse tipo de comunicação até começarem a se familiarizar com os sons. Aos poucos, foram interagindo e criando meios de comunicação alternativos à fala e à visão. O mais interessante foi o fato de que, em certo momento, houve uma compreensão coletiva do estabelecimento dos diálogos sonoros não-verbais e não-visuais. O que no começo era um emaranhado de sons aleatórios vindos de todas as direções, aos poucos passou a dar lugar a conversas organizadas – conversas sem palavras –, permitindo espaços de silêncio aos diálogos. Intuitivamente, passamos de um estágio de emissão frenética de sons para diálogos que respeitassem o tempo de cada um. Ouvíamos quem dialogava com seu par naquela sala, apreciando o discurso de cada um. Ao final dessa primeira parte da aula, estávamos nos comunicando com os sons de forma que duas, três, quatro, pessoas conversavam por vez, criando encadeamentos sonoros, intercalando ritmos e encaixando melodias, apenas com o uso do próprio corpo e dos objetos da sala. Em alguns momentos, como uma espécie de lapsos de pulsação, a conversa parecia inflamar: os ânimos da conversa subiam de repente, a ponto de toda a sala ser inundada por diversos sons ao mesmo tempo para, aos poucos, ir retornando a uma conversa mais serena e com volume mais baixo. Essa vivência foi interessante, pois nos 41 foi possível refletir que não havia um entendimento dos discursos, mas havia uma compreensão coletiva da interação dos diálogos que ali se passavam. Ao final dessa primeira parte, saímos para conversar sobre a experiência. Depois de um intervalo, retornamos à aula com a mesma dinâmica, mas dessa vez fora da sala de aula e com instrumentos musicais. De olhos vendados, em fila e de mãos dadas, fomos até o bosque da universidade. No espaço arborizado, eu já havia disposto vários instrumentos, espalhados em círculo: bongôs, ganzás, abês, caxixis, congas, atabaques, xequerês, flautas, entre outros. Eram instrumentos de manuseio simples, basicamente de percussão, uma vez que a maioria dos alunos participantes não eram músicos nem possuíam formação musical. No meio da roda de instrumentos, havia um pedestal com um microfone ligado numa caixa de som com efeito delay6. Depois de chegarmos ao local e todos se aconchegarem, cada um deles se apropriou de um instrumento e passamos um bom tempo nos familiarizando com a situação e com os instrumentos. Com os olhos ainda vendados, as referências principais eram o tato e os ouvidos. Assim, passamos um tempo sentindo as propriedades físicas, o formato, a textura e o timbre do instrumento que cada um tinha em mãos. Depois desse tempo de reconhecimento, comecei a batucar um ritmo no atabaque. Em dado momento da batucada, outra pessoa passou a interagir com o ritmo com seu instrumento. Nisso, um a um, os componentes da roda passaram a introduzir sua sonoridade e a acompanhar a música que ali estava sendo feita improvisadamente e às cegas. Cada um dos participantes foi, aos poucos, se inserindo naquela música coletiva, sem ninguém saber o que tocava e quem tocava. Quando todos estávamos tocando juntos uma música cega, quem se sentia à vontade, ia até o centro da roda tagarelar sons vocais no microfone com efeito, deixando, assim, a dinâmica musical daquele momento mais rica e psicodélica possível. Uns cantavam vocalizações, outros assobiavam, alguns riam ou gargalhavam, enquanto outros deslizavam a voz aleatoriamente. Foi uma experiência intrigante, que pode servir de exemplo nesta reflexão sobre um tipo de discurso sonoro que não se baseia na significação. Eu não seria tolo em dizer que aquela música improvisada saiu conforme se espera da música que estamos acostumados culturalmente, aquela com padrões rítmicos, melodias pré- estabelecidas, repetições modulares e resolução harmônica – basicamente o modo ocidental da música. Não, definitivamente não era isso o que acontecia. Mas alguém poderia questionar que ali acontecia música? E, mais além, alguém poderia questionar que ali havia comunicação por uma via de linguagem musical? 6 O efeito sonoro delay altera as ondas sonoras de forma a produzir uma repetição descendente do som, como um eco que se estende em profundidade até se extinguir. 42 Essa experiência parece ser um bom exemplo para refletirmos sobre o quanto a música está presente em nossos corpos, e que ela configura um tipo de linguagem muito particular. Se utiliza de sons, mas está em outro plano que o da fala; não está para a significação, mas afeta nossos estados afetivos. Em certa medida, esse caráter musical da comunicação sonora parece demarcar uma relação que transcende os discursos formais do laço social. Schafer (2001) também relata suas impressões sobre essa questão quando discorre sobre suas experiências em sala de aula: Schafer: (...) uma melodia é feita de quê? Aluno: uma série de Tons. Schafer: que tons? Aluno: poderia ser qualquer um. (...) Aluno: mas uma melodia não precisa ter alguma ordem para expressar uma certa emoção? Diante dessa pergunta, Schafer se vê diante da reflexão de que “(...) a sucessão particular de sons que o compositor escolhe – sua tessitura, dinâmica, instrumentação –, tudo isso dá um certo caráter à melodia e, por sua vez, obtém uma certa resposta emocional dos ouvintes” (SCHAFER, 2011, p. 19). Mas, haveria um modo específico de música para produzir emoções? O autor trata de pensar o que é a melodia e o ritmo no cotidiano. Diz que a melodia é simplesmente uma sequência organizada de som; ritmo, uma sequência organizada de apoios. A palavra-chave é “organizada”. [...] Mas Quero pedir a vocês para lembrarem sempre que também essa organização pode, algumas vezes, criar um efeito desorganizado, pois, mesmo quando desorganizados o som, ainda estamos organizando-os (SCHAFER, 2011, p. 20). “Eu me organizando posso desorganizar, (...) eu desorganizando posso me organizar”, dizia Chico Science em seu álbum Da Lama ao Caos (1994), e não era por mera coincidência. A música, por ser uma linguagem que organiza sons, não só no sentido racional, mas também no plano de encadeamentos, parece ir muito além do que um apego cognitivo de classificar e manejar a desorganização sonora. Ela também agrega o que está fora da significação. Um homem martelando um prego numa tábua, um carro cantando os pneus na rua, um estardalhar de uma lata de lixo ao se chocar com o caminhão, ou o som estridente de uma serra circular cortando uma barra de metal… haveria música nesses sons? Um bom exemplo para pensar essa questão é o trabalho de Tom Zé, músico, compositor, cantor e jardineiro baiano. Considerado um dos ícones mais influentes da música popular 43 brasileira, sua extensa obra tem forte influência no cenário musical do Brasil. Não é raro encontrarmos em seus diversos álbuns uma musicalidade que mistura os elementos de uma música tradicional com sonoridades bem distintas do que se espera das canções comuns. U