UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS–GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PARA A CIÊNCIA FERNANDA APARECIDA MEGLHIORATTI O CONCEITO DE ORGANISMO: UMA INTRODUÇÃO À EPISTEMOLOGIA DO CONHECIMENTO BIOLÓGICO NA FORMAÇÃO DE GRADUANDOS DE BIOLOGIA Bauru 2009 1 FERNANDA APARECIDA MEGLHIORATTI O CONCEITO DE ORGANISMO: Uma introdução à epistemologia do conhecimento biológico na formação de graduandos de biologia Tese apresentada à Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Bauru, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação para a Ciência sob a orientação da Profa. Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira e co- orientação do Prof. Dr. Charbel Niño El-Hani. Bauru 2009 Meglhioratti, Fernanda Aparecida. O conceito de organismo: uma introdução à epistemologia do conhecimento biológico na formação de graduandos de biologia / Fernanda Aparecida Meglhioratti, 2009. 254 f. : il. Orientador: Ana Maria de Andrade Caldeira Tese (Doutorado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2009 1. Organismo. 2. Vida. 3. Epistemologia da Biologia. 4. Formação de Pesquisadores. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. 2 FERNANDA APARECIDA MEGLHIORATTI O CONCEITO DE ORGANISMO: Uma introdução à epistemologia do conhecimento biológico na formação de graduandos de biologia Tese apresentada à Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Bauru, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação para a Ciência, sob a orientação da Profa. Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira e co-orientação do Prof. Dr. Charbel Niño El-Hani. Banca examinadora: Presidente: Profa. Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira Instituição: Universidade Estadual Paulista Titular: Profa. Dra. Luzia Marta Bellini Instituição: Universidade Estadual de Maringá Titular: Prof. Dr. Maurício de Carvalho Ramos Instituição: Universidade de São Paulo Titular: Prof. Dr. Fernando Bastos Instituição: Universidade Estadual Paulista Titular: Prof. Dr. Marcelo Carbone Carneiro Instituição: Universidade Estadual Paulista Bauru, 27de março de 2009. 3 Aos meus pais pelo carinho, amor e compreensão com que preenchem a minha existência. 4 AGRADECIMENTOS Várias pessoas contribuíram para a construção desse trabalho. Quero destacar aqui minha profunda gratidão a todas elas. À Profa. Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira pela orientação cuidadosa e pela constante dedicação durante todo o processo de construção desse trabalho. Obrigada por me encorajar a desenvolver um trabalho na área de Epistemologia da Biologia e pelas discussões realizadas que influenciaram significativamente minha forma de pensar o conhecimento biológico. Ao Prof. Dr. Charbel Niño El-Hani pela co-orientação minuciosa, pela indicação de inúmeras referências e pelas discussões realizadas através de e-mails e bate-papos. Estes diálogos serviram para esclarecer muitas idéias e contribuíram para minha formação intelectual. Ao Prof. Dr. Fernando Bastos e ao Prof. Dr. Maurício de Carvalho Ramos pelas análises cuidadosas e sugestões valiosas realizadas durante o exame de qualificação. Essas contribuições permitiram superar lacunas e construir um trabalho de melhor qualidade. Aos docentes do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da UNESP de Bauru pela contribuição intelectual fornecida nas disciplinas e nas discussões informais. Agradeço em especial ao Prof. Dr. Jehud Bortolozzi pela orientação inicial e ao Prof. Dr. João José Caluzi pelas discussões na área de auto-organização e complexidade realizada no “Grupo de Pesquisas em Epistemologia da Biologia”. Aos alunos de graduação do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas participantes do “Grupo de Pesquisas em Epistemologia da Biologia” pela colaboração na construção dessa tese, pelo esforço e dedicação para a realização de projetos de pesquisas na área de “Epistemologia da Biologia e o Ensino de Ciências” e pelas reflexões instigantes realizadas. Às amigas de pós-graduação Mariana A. Bologna Soares de Andrade, Lourdes Aparecida Della Justina e Fernanda da Rocha Brando pelas discussões em relação aos aspectos teóricos e metodológicos do “Grupo de Pesquisas em Epistemologia da Biologia”. Agradeço também a Mariana pela presença constante nas discussões “on-line” e pela leitura realizada de partes do texto da tese. Agradeço à Lourdes também pela acolhida na cidade de Cascavel-PR, e pelo esforço para me integrar de forma rápida ao Grupo de Pesquisa em Ensino de Ciências e Biologia (GECIBIO) e à vida acadêmica da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. 5 Aos amigos da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Cascavel, pelo apoio e incentivo para a realização desse trabalho. Em especial a amiga Débora Schneider e aos professores do Grupo de Pesquisa em Ensino de Ciências e Biologia (GECIBIO). Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, em especial, ao trabalho eficiente de Ana Grijo Crivellari e Andressa Ferraz de Castro Talon. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio proporcionado às atividades realizadas no “Grupo de Pesquisas em Epistemologia da Biologia”. A Jairo Fernando Klein pelo companheirismo e incentivo no momento de finalização desse trabalho. Aos meus pais Diva e Rossicler e meus irmãos Kátia, Sandra e Thiago por me darem suporte emocional e incentivarem meu desenvolvimento intelectual e profissional e aos meus sobrinhos por encherem minha vida de alegria. Agradeço a todos meus amigos e familiares pelo apoio que me foi dedicado. 6 MEGLHIORATTI, Fernanda Aparecida. O conceito de organismo: uma introdução à epistemologia do conhecimento biológico na formação de graduandos de biologia. 2009. 254f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência) – UNESP, Faculdade de Ciências, Bauru, 2009. RESUMO Na descrição hierárquica do conhecimento biológico, o ser vivo é considerado como ponto central nas relações engendradas pelos seguintes níveis: ambiente externo (ecológico/ evolutivo), organismo e ambiente interno (genético/ molecular). O organismo compreendido como nível focal da discussão biológica pode ressaltar a autonomia da Biologia em relação às outras áreas do conhecimento científico. No contexto do ensino, assume-se que as discussões epistemológicas do conhecimento biológico podem promover uma compreensão mais integrada dos fenômenos biológicos. Assim, organizou-se um grupo de pesquisa com graduandos de um curso de Ciências Biológicas para discutir conceitos centrais do conhecimento biológico, entre eles, o conceito de organismo. Esta pesquisa teve como objetivos: 1) Elaborar uma caracterização do conceito de organismo, partindo de uma abordagem hierárquica, integrando as discussões advindas da Filosofia da Biologia contemporânea referentes aos conceitos de auto-organização, autonomia agencial, propriedades emergentes e níveis hierárquicos; 2) Analisar como o conceito de organismo se impõe frente às explicações de vida presentes na literatura contemporânea da Filosofia da Biologia; 3) Utilizar a discussão teórica relativa ao conceito de organismo como fundamentação de um grupo de “Pesquisas em Epistemologia da Biologia”, verificando as contribuições desse aporte teórico para a formação de alunos de Licenciatura em Ciências Biológicas na área de Epistemologia da Biologia e Ensino de Ciências; 4) Analisar as discussões e produções escritas ocorridas no desenvolvimento do grupo de “Pesquisas em Epistemologia da Biologia” que abordaram o conceito de organismo, com a finalidade de 7 verificar se uma abordagem hierárquica tendo o organismo como nível focal contribui para uma visão integrada do conhecimento biológico pelos graduandos de Biologia. Com base nos referenciais teóricos advindos da Filosofia da Biologia, o conceito de organismo foi explicitado como unidade autônoma, histórica e evolutivamente construída, possuindo propriedades que emergem no nível orgânico. Esse conceito de organismo foi relacionado às explicações de vida presentes na literatura, verificando que este ocupa um papel integrador em relação aos diferentes níveis hierárquicos em duas das explicações de vida analisadas: vida como interpretação de signos e vida como população de autômatos evolutivamente e coletivamente construídos. Na parte empírica da pesquisa os dados apontam para uma visão mais sistêmica do conceito de organismo e uma visão mais integrada do conhecimento biológico pelos graduandos de biologia, bem como, para a importância do grupo na formação de pesquisadores desses alunos. Palavras-chave: Organismo; Vida; Epistemologia da Biologia; Formação de Pesquisadores. 8 ABSTRACT In the hierarchical of biological knowledge, the living being could be considered as central point in the relations produced by three levels: external environment (ecological/evolution), organism and environment intern (genetic/molecular). The comprehension of the organism as a focal level in the biological debate can underline the autonomy of Biology among the other areas of the scientific knowledge. In the education context it is assumed that the epistemological discussions of the biological knowledge can promote an integrated understanding of the biological phenomena. Thus, a research group consisting of Biological Sciences undergraduates was organized to debate central concepts of the biological knowledge in which the discussions of the organism concept are included. This research aimed to: 1) develop a characterization of the concept of organism from a hierarchical approach by integrating the resulting discussions from contemporary philosophy of biology that are related to the concepts of self-organization, autonomy agents, emergent properties and hierarchical levels; 2) to analyze how the concept of organism is placed in front of the explications of life in the contemporary literature of philosophy of biology; 3) to use the theoretical discussion on the concept of organism as fundamentation for a group of "Studies in Epistemology of Biology," noting the help of this theoretical contribution to the Biological Sciences students training in the Biology and Epistemology in Science Teaching; 4) to analyze discussions and written productions that occurred in the development of the ‘Research in Epistemology of Biology’s group which addressed the concept the organism in order to verify if a hierarchical approach in which the organism is the focal level contributes to an integrated view of biological knowledge for biology students. On the basis of the theoretical referential of the Philosophy of Biology the organism concept were understood as autonomous agents, historical and evolved, possessing properties that emerge in the organic level. This concept of organism was related to the explanations of life found in literature, 9 having verified that the organism occupies a integrator role among different hierarchical levels in two of the analyzed life’s explanations: life as interpretation of signs and life as population of autonomous agents, historical and evolved constructed. In the empirical part of the research, the data indicates a more systemic vision of the organism concept and an integrated vision of the biological knowledge in the biology students as well as the importance of the group in the formation of the pupils as researchers. Key words: Organism, Life, Epistemological of Biology and Researchers Formation. 10 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Relações lineares e circulares entre os elementos de um sistema...........................42 Figura 2 - Interações entre níveis hierárquicos de complexidade............................................58 Figura 3 - Relação hierárquica entre níveis ao longo do tempo..............................................59 Figura 4 - Definindo irredutibilidade por meio da não-dedutibilidade dos comportamentos das partes do sistema pelo conhecimento do comportamento dessas partes em sistemas mais simples.............................................................................................65 Figura 5 - Particularidades do conceito de emergência e auto-organização............................66 Figura 6 - Esquema da visão geral relacionada ao conceito de ser vivo (explicandum).......118 Figura 7 - Algumas relações entre níveis que podem ser abordadas numa descrição hierárquica dos seres vivos................................................................................121 11 SUMÁRIO RESUMO...................................................................................................................................6 ABSTRACT ..............................................................................................................................8 INTRODUÇÃO ......................................................................................................................13 OBJETIVOS ...........................................................................................................................24 OBJETIVO GERAL.............................................................................................................................................. 24 OBJETIVOS ESPECÍFICOS .................................................................................................................................. 24 1. CAPÍTULO – EPISTEMOLOGIA DA BIOLOGIA: O CONCEITO DE ORGANISMO EM DEBATE................................................................................................25 1.1. A CONSTRUÇÃO DA BIOLOGIA COMO CIÊNCIA AUTÔNOMA ................................................................ 25 1.2. O CONCEITO DE ORGANISMO NO CONHECIMENTO BIOLÓGICO .......................................................... 34 1.3. CONCEITOS FUNDAMENTAIS PARA A COMPREENSÃO DO ORGANISMO .................................................... 38 1.3.1. A explicação científica como uma rede sistemática de conceitos...................................................... 38 1.3.2. A abordagem sistêmica e o fechamento organizacional...................................................................... 40 1.3.3. Auto-organização nos sistemas vivos. ................................................................................................. 44 1.3.4. Os seres vivos como agentes autônomos: da autonomia mínima a autonomia multicelular ........... 46 1.3.5. Sistemas complexos auto-organizados evolutivos: a autonomia coletivamente organizada ............ 54 1.3.6. A hierarquia escalar e o organismo como ponto focal de discussão do conhecimento biológico ...... 57 1.3.7. O emergentismo e a natureza das propriedades emergentes ............................................................. 60 1.4. EXPLICANDO O CONCEITO DE ORGANISMO .............................................................................................. 67 2. CAPÍTULO - O PAPEL DO ORGANISMO FRENTE ÀS EXPLICAÇÕES DE VIDA ..................................................................................................................................................70 2.1. O CONCEITO DE VIDA EM DEBATE............................................................................................................. 72 2.1.1. Autopoiese: vida como rede de interações moleculares..................................................................... 80 2.1.2. A vida como seleção de replicadores .................................................................................................. 81 2.1.2.1.Vida como adaptação flexível........................................................................................................................86 2.1.3. A vida como interpretação de signos.................................................................................................. 88 2.1.4. A vida como populações de autômatos coletivamente e evolutivamente organizados ...................... 90 2.2. CATEGORIAS ENFATIZADAS NAS DEFINIÇÕES DE VIDA E O PAPEL DO ORGANISMO....................................... 94 3. CAPÍTULO – O ENSINO DE BIOLOGIA E A APRENDIZAGEM SISTÊMICA DE CONCEITOS ..........................................................................................................................96 3.1. A CONSTRUÇÃO DE PROPOSTAS PARA A SUPERAÇÃO DA FRAGMENTAÇÃO DO ENSINO DE BIOLOGIA .... 96 3.2. OS CONCEITOS DE SER VIVO E VIDA NO ENSINO DE BIOLOGIA ................................................................. 99 3.2.1. As pesquisas sobre formação de conceitos em alunos: novas perspectivas ...................................... 99 3.2.2. O conceito de ser vivo e vida no Ensino de Ciências e Biologia ..................................................... 104 3.3. DO EXPLICANDUM AO EXPLICATUM: A FORMAÇÃO DE REDES CONCEITUAIS CENTRADAS NO ORGANISMO EM UMA PROPOSTA HIERÁRQUICA DO CONHECIMENTO BIOLÓGICO ............................................................ 117 3.3.1. Abordagem pré-científica: organismo como conjunto de propriedades ......................................... 117 3.3.2. Abordagem científica: rede conceitual no qual se insere o conceito de organismo ....................... 118 3.4 O ORGANISMO COMO ELEMENTO INTEGRADOR DO ENSINO DE BIOLOGIA ............................................ 118 4. CAPÍTULO – METODOLOGIA DE PESQUISA E A FORMAÇÃO DO “GRUPO DE PESQUISAS EM EPISTEMOLOGIA DA BIOLOGIA” ..........................................122 4.1. FORMAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO “GRUPO DE PESQUISAS EM EPISTEMOLOGIA DA BIOLOGIA” .......... 122 4.2. FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA E COLETA DE DADOS ..................................................................... 128 4.2.1. Coleta de dados ................................................................................................................................. 129 4.2.1.1. Entrevistas em grupo ..................................................................................................................................131 4.2.1.2. Observação participante.............................................................................................................................132 4.2.1.3. Questionários...............................................................................................................................................132 4.2.1.4. Materiais elaborados pelos alunos .............................................................................................................133 4.2.1.5. Seminários ...................................................................................................................................................133 4.2.1.6. Entrevistas individuais ...............................................................................................................................134 4.2.2. A análise dos dados coletados .......................................................................................................... 134 12 5. CAPÍTULO - O DESENVOLVIMENTO DO “GRUPO DE PESQUISAS EM EPISTEMOLOGIA DA BIOLOGIA”: DISCUTINDO CONCEITOS DE ORGANISMO E VIDA COM GRADUANDOS DE BIOLOGIA..............................................................136 5.1. CONTATO INICIAL.................................................................................................................................... 137 5.1.1. Perfil inicial dos alunos quanto às áreas de interesse ..................................................................... 137 5.1.2. Questionário inicial .......................................................................................................................... 139 5.1.2.1. A concepção de seres vivos .........................................................................................................................140 5.1.2.2. A interação entre níveis na concepção de seres vivos ...............................................................................145 5.1.2.2.1. Ambiente interno agindo sobre o organismo .....................................................................................145 5.1.2.2.2. Organismo agindo sobre ambiente interno........................................................................................147 5.1.2.2.3. Ambiente externo agindo sobre o organismo ....................................................................................148 5.1.2.2.4. Organismo agindo sobre o ambiente externo ....................................................................................149 5.1.2.3. Perfil no questionário inicial em relação ao conceito de ser vivo de cada aluno ....................................150 5.2. DESENVOLVIMENTO DO GRUPO .............................................................................................................. 153 5.2.1. Problematizando o conceito de ser vivo através de uma discussão em grupo ................................ 154 5.2.2. Discutindo explicações de vida presentes na Biologia Teórica ....................................................... 160 5.2.3. Discutindo as relações entre níveis: ambiente externo, organismo, ambiente interno. ................. 170 5.2.4. A relação entre as discussões epistemológicas e a formação de pesquisadores no “Grupo de Pesquisas em Epistemologia da Biologia”................................................................................................. 178 5.3. FINALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES DO GRUPO NO ANO DE 2007.................................................................. 184 5.3.1. Projetos e Trabalho de Conclusão de Curso.................................................................................... 185 5.3.2. Entrevistas individuais...................................................................................................................... 188 5.3.2.1. Entrevista com o aluno A-1 ........................................................................................................................189 5.3.2.2. Entrevista com o aluno A-2 ........................................................................................................................191 5.3.2.3. Entrevista com a aluna A-3 ........................................................................................................................195 5.3.2.4. Entrevista com a aluna A-5 ........................................................................................................................197 5.3.2.5. Entrevista com a aluna A-7 ........................................................................................................................200 5.3.2.6. Entrevista com a aluna A-8 ........................................................................................................................203 5.3.2.7. Entrevista com a aluna A-10 ......................................................................................................................205 5.3.2.8. Entrevista com a aluna A-11 ......................................................................................................................208 5.3.3. Análise geral das entrevistas ............................................................................................................ 211 6. ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO CONCEITUAL DOS GRADUANDOS E DA DINÂMICA DO GRUPO NOS DIFERENTES MOMENTOS DA PESQUISA............215 6.1. PANORAMA DO DESENVOLVIMENTO DO GRUPO ..................................................................................... 217 6.1.1. A formação de pesquisadores na área de Epistemologia da Biologia e Ensino de Ciências ......... 217 6.1.2. A evolução conceitual do grupo em relação aos conceitos de organismo e vida............................ 218 6.2. DESENVOLVIMENTO CONCEITUAL DOS ALUNOS NO “GRUPO DE PESQUISAS EM EPISTEMOLOGIA DA BIOLOGIA” ...................................................................................................................................................... 219 7. CONCLUSÃO...................................................................................................................224 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................229 APÊNDICES .........................................................................................................................244 APÊNDICE I - A DEFINIÇÃO DE VIDA EM DEBATE: ALGUMAS POSSIBILIDADES ............................................ 244 APÊNDICE II - É POSSÍVEL DEFINIR VIDA? .................................................................................................... 245 APÊNDICE III - QUESTÃO SÍNTESE SOBRE DEFINIÇÕES DE VIDA .................................................................. 249 APÊNDICE IV - QUESTIONÁRIO SOBRE NÍVEIS HIERÁRQUICOS .................................................................... 250 APÊNDICE V - RETOMANDO QUESTÕES DO QUESTIONÁRIO INICIAL ............................................................ 251 APÊNDICE VI – POSSIBILIDADES DE PESQUISA ............................................................................................. 252 APÊNDICE VII – QUESTIONÁRIO SOBRE O CONCEITO DE CIÊNCIA............................................................... 253 APÊNDICE VIII - ROTEIRO DAS ENTREVISTAS INDIVIDUAIS ......................................................................... 254 13 INTRODUÇÃO A Biologia atual tem sido caracterizada por uma crescente ênfase nos aspectos moleculares. Entretanto, apesar da Biologia Molecular ser fundamental para o entendimento dos mecanismos biológicos, ela não é suficiente para a compreensão da organização de um ser vivo. Apesar de parecer óbvio para o senso comum que a Biologia tem como um de seus principais objetos de estudo o organismo1, pesquisas históricas têm indicado que, de forma geral, este perdeu seu papel central nas discussões conceituais desde de 1920, devido a crescente ênfase nos aspectos moleculares (FELTZ, 1995; WEBSTER e GOODWIN, 1999; EL-HANI e EMMECHE, 2000; RUIZ-MIRAZO et al, 2000; GUTMANN e NEUMANN- HELD, 2000; EL-HANI, 2002a). Uma caracterização sucinta da biologia molecular ressalta um esforço de traduzir a maior parte dos fenômenos orgânicos em base molecular, juntamente com um apoio da noção de informação genética para compreender processos evolutivos e de desenvolvimento (ETXEBERRIA e UMEREZ, 2006). Nessa perspectiva, o sucesso da biologia molecular nas últimas décadas cria a impressão de que todos os fenômenos biológicos podem ser compreendidos através de explicações moleculares, deixando de ser a Biologia uma ciência do organismo. Segundo Ruiz-Mirazo et al (2000), as pesquisas biológicas atuais estão focalizadas em níveis mais restritos que o organismo, tais como a biologia molecular e a teoria evolutiva genecêntrica, ou em níveis mais globais, como em algumas partes da biologia evolucionária e da ecologia. Os autores destacam que o organismo tem desempenhado um papel marginal nas pesquisas atuais e defendem a importância de inserir o conceito de organismo no centro da discussão biológica. Mesmo a teoria sintética da evolução, é marcada pela tendência em ver o organismo como um objeto meramente passivo, sem qualquer influência ativa sobre o seu ambiente (EL-HANI, 2002a; LEWONTIN, 2000; LEWONTIN, 2002). Na síntese evolucionista a importância dos organismos está relacionada ao fato de que eles variam. A seleção natural é uma “força” externa ao organismo e a mutação é uma “força” interna que promove variação. O organismo se torna um ponto de encontro passivo de forças alheias a ele próprio. 1 Nessa tese o conceito de organismo refere-se a uma abordagem estritamente biológica e, portanto é considerado como sinônimo de ser vivo. 14 O entendimento de que o organismo é fruto de forças internas é enfatizado, segundo Lewontin (2002), nos estudos sobre Biologia do Desenvolvimento. Lewontin (2002) destaca que um dos problemas da Biologia é compreender as diferenças entre os organismos multicelulares, pois estes começam sua vida a partir de uma célula que não apresenta nenhuma propriedade como altura, magreza, etc. No entanto, a partir de divisões e diferenciações, forma-se um organismo complexo que sofre modificações ao longo de toda sua vida. O termo técnico para as mudanças durante a vida de um indivíduo é desenvolvimento. Esse termo, no entanto, acaba denotando a concepção de que o organismo apenas desdobra características que já estavam presentes ou registradas em seu interior. Para o autor: O uso desse termo reflete um comprometimento profundo com a idéia de que os organismos, tanto em suas histórias individuais de vida como em sua história coletiva, são determinados por forças internas, por um programa interno, do qual os seres vivos reais são apenas manifestações exteriores (LEWONTIN, 2002, p.14). Para Lewontin (2000), no século XX, a ideologia da ciência moderna apoiada na visão reducionista de mundo resultou em uma imagem particular de organismos e suas atividades de vida. Os seres vivos são vistos como sendo organismos determinados por fatores internos, ou seja, os genes. [...] O mundo fora de nós coloca certos problemas, que não criamos, mas que apenas experimentamos como objetos. Os problemas são: encontrar um cônjuge, encontrar alimento, vencer as competições com os rivais, adquirir uma grande parte dos recursos do mundo, e se tivermos os tipos certos de genes, seremos capazes de resolver os problemas e deixar mais descendentes. Portanto, com essa visão, é realmente nossos genes que estão se propagando através de nós mesmos (LEWONTIN, 2000, p.17). Para o autor, a Biologia do Desenvolvimento, enfatizando padrões, na maioria das vezes, despreza as diferenças individuais ao contrário do que ocorre na Teoria Sintética da Evolução que se ampara nas variações dos indivíduos em uma população. Essa divergência, segundo o autor, faz com que as disciplinas de Evolução e Biologia do Desenvolvimento, em geral, fiquem isoladas uma da outra, acabando por fragmentar o conhecimento biológico. Entretanto, essas duas perspectivas (padrão e variação) devem ser vistas como 15 complementares, pois, ao mesmo tempo em que existem padrões e regularidades no desenvolvimento de indivíduos pertencentes à mesma espécie, as características na linhagem evolutiva daquele organismo e sua relação com o ambiente são diversificadas. As variações individuais dentro da Biologia do Desenvolvimento são vistas, no geral, como fruto de um programa genético interno, causando a impressão de que o conhecimento de todo material genético de um organismo leva ao entendimento de todas suas características. No entanto, Se tivéssemos a seqüência completa do DNA de um organismo e dispuséssemos de uma capacidade computacional ilimitada, ainda assim não poderíamos computar um organismo, porque um organismo não computa a si próprio através dos seus genes (LEWONTIN, 2002, p.23). Para compreender o desenvolvimento de um organismo devem-se considerar outros fatores que não estão restritos aos genes. Para Lewontin (2002), A ontogenia de um organismo é conseqüência de uma interação singular entre seus genes, a seqüência temporal dos ambientes externos aos quais está sujeito durante a vida e eventos aleatórios de interações moleculares que ocorrem dentro das células individuais (LEWONTIN, 2002, p.24). A interação entre organismo e ambiente pode produzir uma norma de reação, pois cada genótipo (conjunto das interações gênicas) vai interagir com o ambiente de uma forma peculiar. Portanto, um genótipo não especifica um produto único do desenvolvimento; em vez disso, especifica uma norma de reação, um padrão de diferentes resultados de desenvolvimento em ambiente variados (LEWONTIN, 2002, p.29). Existem algumas situações em que as características apresentadas pelos organismos não são conseqüência nem da variação genética nem do ambiente externo. Parte das características de um ser vivo é conseqüência de um número muito pequeno de unidades químicas (operando em um espaço delimitado), que variam de forma considerável de célula a 16 célula (LEWONTIN, 2002). A variação da quantidade de estruturas dentro das células pode surgir de fatores aleatórios, como a distribuição destas durante a divisão celular. A variação que ocorre devido a fatores aleatórios é chamada de ruído do desenvolvimento. Outra consideração feita por Lewontin (2002) é sobre a própria definição de ambiente. Para o autor existe uma confusão entre a assertiva correta da existência de um mundo físico externo a um organismo (que continuaria a existir mesmo na ausência de vida) e a afirmação incorreta de que existe ambiente sem organismo. Segundo sua definição, o ambiente de um organismo é formado pelas condições externas, que para ele são relevantes. Portanto, não existe ambiente sem organismo, nem organismo sem ambiente. Os organismos, além de determinar os fatores relevantes de seu ambiente, também constroem ativamente um mundo a sua volta, alterando constantemente o próprio ambiente. Além das considerações expostas no parágrafo anterior, existem outros fatores a serem observados na organização de um ser vivo e em sua evolução biológica: as restrições. Segundo El-Hani (2002a) uma alternativa ao neodarwinismo inspirada pelo pensamento organicista é a abordagem estruturalista de Goodwin e Webster. Essa abordagem critica o neodarwinismo por sua ênfase excessiva nas explicações funcional-adaptativas das características dos organismos. Webster e Goodwin (1999) criticam a substituição dos organismos por genes, que assumiram todas as propriedades básicas que caracterizavam os organismos. A biologia estruturalista conduz a uma ênfase no papel das restrições no processo evolutivo. A idéia de restrições implica que certas formas de seres vivos nunca foram geradas e expostas à seleção natural. A própria natureza histórica do processo evolutivo resulta em restrições. A seleção atua sobre formas que são variações de formas preexistentes. Outra classe de restrições diz respeito às leis físicas que delimitam as possibilidades de construção dos seres vivos. A própria delimitação da célula em um espaço parcialmente fechado e o seu tamanho impõem restrições aos tipos de organizações químicas e ao metabolismo celular. De acordo com Lehninger (1990), as reações químicas que ocorrem nas células devem ser estudadas levando em consideração as restrições impostas pelo tamanho das células e seus compartimentos internos. Webster e Goodwin (1999, p. 495, tradução nossa) destacam a importância de se pensar o organismo a partir de suas próprias características: 17 Uma das maiores conseqüências de uma conceituação de organismos como estruturas ou totalidades auto-organizadas é [...] a reafirmação do organismo como o próprio objeto da pesquisa biológica: um objeto real, existindo em seu próprio modo e explicado em seus próprios termos. Percebe-se na discussão de Godwin e Webster a importância de se levar na devida conta o organismo como um elemento central do conhecimento biológico. A redução extrema dos fenômenos biológicos apenas às descrições e análises da constituição química e física das células faz com que a Biologia perca seu status de campo de conhecimento específico. Os fenômenos biológicos não podem ser explicados somente a partir da física e química (essas áreas são fundamentais, porém, não suficientes); como o ser vivo tem uma organização peculiar, a complexidade do ser vivo deve ser estudada a partir de um ponto de vista biológico, levando em consideração a existência de propriedades que emergem no organismo devido a certos tipos de padrões organizativos. Concordando com a visão de um organismo complexo e com a centralidade desse conceito à construção do conhecimento biológico, propõe-se na fundamentação teórica uma explicação do conceito de organismo por meio de uma organização hierárquica do conhecimento biológico. Dessa forma, o estudo do conceito de organismo é realizado através da inserção das discussões advindas da Filosofia da Biologia contemporânea. Para a caracterização do conceito de organismo são utilizadas discussões sobre os seguintes conceitos: níveis hierárquicos de organização, sistemas auto-organizáveis evolutivos, autonomia agencial e propriedades emergentes. Discute-se, a seguir, como estes conceitos se relacionam a explicação do organismo. O entendimento dos seres vivos pelos níveis hierárquicos de complexidade é comum na perspectiva biológica (RUIZ-MIRAZO et al, 2000). Isso ocorre devido ao fato do estudo biológico se estender desde uma perspectiva micro (ambiente celular e genético) até as dimensões macro (como populações e ecossistemas). Segundo El-Hani (2002b), a compreensão dos níveis hierárquicos de complexidade pode facilitar a unidade do conhecimento biológico e as estratégias de ensino-aprendizagem. No entanto, para o autor, apesar de a abordagem hierárquica ser utilizada no conhecimento biológico e no ensino de biologia, as conseqüências dessa utilização para a formação e prática científica dos biólogos não foram suficientemente exploradas. El-Hani (2002b) defende que o sistema triádico básico, apresentado por Salthe (1985) por meio de uma estrutura hierárquica escalar, propicia uma unidade 18 epistemológica/metodológica adequada para a pesquisa biológica e para o ensino de biologia. Concordando com o apontamento de El-Hani (2002b), a estrutura hierárquica utilizada nessa tese é o sistema triádico básico proposto por Salthe (1985; 2001), no qual se reconhecem três níveis de organização: o nível superior (que restringe e estabelece condições de contorno para o nível focal), o nível focal (no qual se encontra o fenômeno de interesse) e o nível inferior (que gera as interações da qual emerge o fenômeno de interesse).2 Para representar essa estrutura hierárquica utilizamos a seguinte notação: [nível superior [nível focal [nível inferior]]]3. A representação hierárquica de Salthe (1985) foi utilizada como base para o estabelecimento de três níveis de organização do conhecimento biológico proposto nesta tese, considerando o organismo como nível focal, o ambiente externo como nível superior (entendendo como ambiente os fatores do meio externo que são relevantes para determinado organismo, no sentido proposto por Lewontin, 2002) e o ambiente interno como nível inferior (elementos moleculares e genéticos). Dessa forma, nesse trabalho, tanto na fundamentação teórica como na parte empírica da pesquisa, considera-se o organismo como ponto central da discussão, assumindo sua unidade e autonomia por meio das relações engendradas pelos seguintes níveis: [ambiente externo (ecológico/ evolutivo) [organismo [ambiente interno (genético/ molecular)]]]4. O organismo compreendido como nível focal da discussão biológica ressalta a autonomia da Biologia em relação às outras áreas do conhecimento científico, enfatizando a biologia como uma ciência do organismo. A relação entre níveis pode se modificar ao longo do tempo, portanto, a idéia de interação entre ambiente externo, organismo e ambiente interno pressupõe a ação modificadora constante de um nível em relação ao outro. Assim, o organismo não é só modificado pelo meio, como também age sobre este, o transformando. O organismo, nessa perspectiva, não pode mais ser visto como um ente passivo construído pelo encontro da determinação genética e a seleção natural. O organismo age e se determina em sua relação com o meio, tendo em sua organização as marcas dessa interação constante. 2 A definição dos níveis de uma hierarquia está relacionada aos problemas que se colocam em determinadas áreas de pesquisa ou de ensino. Conforme O’Neill (1988) é possível estabelecer diferentes hierarquias dirigidas a enfrentar determinados problemas de uma área. A representação hierárquica se constitui, a partir de uma abordagem pragmática, uma ferramenta epistemológica para organizar e representar o mundo de acordo com determinados objetivos (MEGLHIORATTI et al, 2009). Dessa forma, a proposta hierárquica discutida nessa tese destaca o organismo que é o objeto de interesse desse trabalho. 3 São utilizados colchetes como representação gráfica da hierarquia escalar, no qual um determinado nível focal incorpora um nível inferior e está imerso em um nível superior. 4 A escolha desses três níveis, além de estar apoiada na estrutura hierárquica de Salthe (1985; 2001), teve por base a discussão estabelecida por Lewontin (2002) no livro “A Tripla Hélice: gene, organismo e ambiente”, no qual destaca a centralidade do organismo e suas relações com aspectos genéticos e ecológicos. 19 Relacionada à estrutura hierárquica da organização biológica está a idéia de propriedades emergentes, ou seja, novas propriedades que aparecem no sistema como um todo e que não estavam presentes nas partes do mesmo sistema. Assim, em um sistema complexo como o ser vivo, novas propriedades surgem especificamente no nível do organismo, por exemplo, um determinado comportamento animal, não podendo este ser explicado apenas pela análise de sua constituição molecular. A necessidade de incorporar os aspectos evolutivos à idéia de organismo como um sistema autônomo leva à discussão das idéias sobre sistemas complexos auto-organizados evolutivos (KAUFFMAN, 1993; 1995; 1997; PEREIRA JR. et al, 2004) e de autonomia coletivamente organizada (MORENO, 2004). Essas idéias representam o organismo como um sistema que produz e mantém um padrão sistêmico de organização, além de fazer parte de uma história coletiva que apresenta processos evolutivos. Considerando os aspectos discutidos acima, na fundamentação teórica, foi realizado um esforço de explicitar o conceito de organismo por meio de uma revisão teórica e de uma síntese da literatura contemporânea da Filosofia da Biologia. Após a explicitação do conceito de organismo este foi contraposto às explicações de vida encontradas na literatura. A compreensão do conceito de vida (um conceito mais amplo que o de organismo e que engloba diferentes níveis de organização biológica), implica o entendimento complexo do ser vivo, tendo o organismo, seu tipo de organização e seu ambiente como focos de discussão. Uma concepção de vida que integrasse conceitos de diferentes níveis da complexidade biológica e que retomasse o organismo como elemento central e integrador desses níveis poderia tanto diminuir a fragmentação do conhecimento biológico5 quanto permitir a defesa da biologia como uma ciência autônoma. Quanto à abordagem do conhecimento biológico no contexto do ensino6, as pesquisas em Ensino de Biologia têm apontado também uma tendência em enfatizar os aspectos moleculares. Alguns estudos (KAWASAKI e EL-HANI, 2002a; KAWASAKI e EL- HANI, 2002b; COUTINHO, 2005; SILVA, 2006) indicam a existência de uma tendência ao reducionismo, enfatizando a unidade da vida em níveis moleculares e celulares, sem esforço similar para a compreensão dos seres vivos em níveis acima do celular. Nessa perspectiva, o 5 Entende-se como fragmentação do conhecimento biológico, a separação da Biologia em áreas cada vez mais especializadas, sem o estabelecimento de um diálogo integrador entre as mesmas. 6 Apesar do conhecimento biológico ser recontextualizado quando passa a fazer parte do conhecimento escolar, é importante ressaltar a necessidade da construção conceitual no Ensino de Biologia ser realizada de maneira significativa, sendo os conteúdos conceituais trabalhados de forma a estabelecer relações entre si. Assim, a utilização de conceitos que funcionam como elementos estruturantes, integrando grande número de conceitos, poderia facilitar o processo de ensino e aprendizagem da Biologia. 20 ensino de Biologia pode ser beneficiado pela inserção das discussões advindas da Filosofia da Biologia, tais como organização hierárquica, emergência de propriedades e sistemas complexos, estimulando a compreensão do ser vivo como ponto nodal do conhecimento biológico. A compreensão de diversos níveis de interações, na qual o organismo tem um papel primordial, pode auxiliar no entendimento da Biologia de forma unificada e subseqüentemente promover um Ensino de Biologia mais contextualizado. Assume-se, nessa tese, portanto que a Filosofia da Biologia pode contribuir para explicar o conceito de organismo de uma forma mais sistêmica e menos reducionista, sendo essa forma de compreender os fenômenos biológicos útil para uma maior integração de conceitos também no Ensino de Biologia. O entendimento da Biologia como um corpo teórico coerente e integrado deve ter início na formação de professores de Biologia, para que o futuro profissional compreenda os fundamentos básicos da ciência que leciona. Dessa forma, considerando a necessidade das discussões da Biologia Teórica serem inseridas no contexto da Educação Superior, elaborou- se um grupo de estudo e pesquisa com graduandos de um curso de Licenciatura em Ciências Biológicas de uma universidade estadual para discutir conceitos estruturantes do conhecimento biológico, entre eles, o conceito de organismo.7 O grupo intitulado “Grupo de Pesquisas em Epistemologia da Biologia”, teve início em março de 2007, incluindo inicialmente 13 alunos de graduação, três alunas de doutorado e uma professora orientadora. As atividades do grupo de pesquisa foram coordenadas pelas doutorandas e pela professora orientadora. Dos 13 alunos de graduação que iniciaram o trabalho no grupo, oito continuaram até o término das atividades planejadas para o ano de 2007. As discussões realizadas nesse grupo durante o ano de 2007 constituíram-se em dados da parte empírica da presente tese, no qual se analisa a inserção da discussão filosófica da biologia tendo como eixo o organismo, no contexto da Educação Superior. Ao longo do desenvolvimento do grupo, procurou-se: 1) estruturar discussões epistemológicas a partir de uma abordagem hierárquica, tendo o organismo como ponto focal do conhecimento biológico; 2) promover a formação de um pensamento sistêmico do conhecimento biológico entre graduandos de um curso de Licenciatura em Ciências Biológicas; 3) Fundamentar trabalhos de pesquisas na área de Epistemologia da Biologia e 7 É importante ressaltar que apesar do conceito de organismo ter implicações éticas, sociais e ideológicas e da importância de se estudar os aspectos externalistas da ciência, nessa tese, o conceito de organismo é abordado em uma perspectiva internalista da ciência, ou seja, discute-se como este conceito se estrutura numa rede conceitual coerente dentro do corpo teórico do pensamento biológico e não como a formulação desse conceito influencia os aspectos sociais ou é influenciada por estes. 21 Ensino de Ciências que foram desenvolvidos pelos graduandos de Licenciatura em Ciências Biológicas participantes do grupo. Percebeu-se ao longo do desenvolvimento do grupo no ano de 2007 a falta de materiais de apoio que sintetizassem as discussões sobre o conceito de organismo e de vida numa linguagem adequada para o trabalho com a formação inicial. Dessa forma, os capítulos 1 e 2 podem funcionar como um texto de apoio para trabalhar esses conceitos, uma vez, que procura fazer uma revisão das contribuições contemporâneas da Filosofia da Biologia relacionada ao conceito de organismo. No grupo de pesquisa todos os participantes eram sujeitos de pesquisa e pesquisadores. As doutorandas e a professora orientadora avaliavam a discussão conceitual ocorrida no grupo, enquanto os alunos de graduação elaboraram projetos de pesquisa na área de Epistemologia da Biologia e Ensino de Ciências. Alguns desses trabalhos se transformaram em Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) e foram concluídos em 2007. No entanto, uma parte dos projetos elaborados no grupo em 2007 foi aplicada e finalizada no ano de 2008. Um dos pontos importantes a ser ressaltado em relação à formação de pesquisadores é que a vivência dentro de um grupo de pesquisa pode contribuir para que os alunos de graduação tenham uma percepção crítica de como a ciência é construída, ou seja, facilita aos alunos a compreensão de que a formulação de um trabalho de pesquisa depende da relação com seus pares, de leituras e de um trabalho de reconstrução constante de idéias. Esse ponto de vista é amparado, por exemplo, pelo trabalho com formação continuada de professores de Vianna e Carvalho (2001), no qual argumentam que a vivência de episódios de pesquisas contribui para professores em formação continuada compreenderem a natureza do conhecimento científico e apresentarem uma nova visão da ciência no contexto de sala de aula. A ênfase no desenvolvimento de pesquisas científicas na área de Epistemologia da Biologia e Ensino de Ciências pelos graduandos é justificada pelo fato de que pensar sobre a natureza do conhecimento biológico pode facilitar a integração de conceitos e proporcionar uma formação intelectual mais significativa. Além disso, possibilita a inserção dos alunos de Licenciatura em Ciências Biológicas em uma área de pesquisa que não é comumente abordada durante a sua graduação, uma vez que, a atividade científica da área de Biologia é associada, em geral, pelos graduandos, apenas às atividades realizadas dentro de laboratórios e não à reflexão de conceitos em biologia e sua forma de ensino. O não reconhecimento de uma área de pesquisa voltada para o ensino foi verificado, por exemplo, na pesquisa realizada por Brando (2005), na qual foram investigadas as concepções de alunos de Licenciatura em 22 Ciências Biológicas sobre o referido curso. Nesta pesquisa foi possível perceber que o caráter de “pesquisador” só é atribuído aos alunos ou profissionais que desenvolvem pesquisa em laboratórios ou em ambiente natural. A necessidade de se incluir aspectos epistemológicos e históricos na aprendizagem sobre a ciência tem sido defendida por muitos autores da área de ensino de ciências (VIANNA e CARVALHO, 2001; GIL-PEREZ et al, 2001; EL-HANI et al, 2004; ABD-EL-KHALICK, 2005; MARTINS, 2005; SCHEID e FERRARI, 2007; BELLINI, 2007; MASSONI e MOREIRA, 2007; SAMPAIO e BATISTA, 2007; RYDER e LEACH, 2008, entre outros). Entre os trabalhos que enfatizam a Epistemologia da Ciência poucos estão relacionados diretamente à Epistemologia da Biologia (por exemplo, BELLINI, 2007; EL- HANI, 2004). Dessa forma, justifica-se a importância da construção de um grupo de pesquisa em Epistemologia da Biologia com a participação de alunos de um curso de Licenciatura em Ciências Biológicas. A formação intelectual dos graduandos participantes do grupo pode refletir tanto na formação de pesquisador, uma vez que os estudantes são inseridos em uma área de pesquisa associada à Biologia Teórica e ao Ensino de Ciências, quanto na formação desses futuros profissionais como professor, já que estimula a pensar como o conhecimento biológico está estruturado. Em síntese, o trabalho de pesquisa desenvolvido nesta tese buscou: 1) explicitar o conceito de organismo a partir de uma organização hierárquica do conhecimento biológico e à luz da literatura contemporânea da Filosofia da Biologia; 2) organizar um grupo de pesquisa tendo o conceito de organismo como elemento integrador nas discussões e orientações de um grupo de “Pesquisas em Epistemologia da Biologia”, com o objetivo de analisar se a inserção da discussão sobre a epistemologia da biologia auxilia na formação de um pensamento mais sistêmico e integrado nos graduandos em Licenciatura em Ciências Biológicas participantes do grupo. Assim, a tese está organizada nas seguintes partes: I) Epistemologia da Biologia: o conceito de organismo em debate; II) O papel do organismo frente às explicações de vida; III) O ensino de biologia e a aprendizagem sistêmica de conceitos; IV) Metodologia de pesquisa e a formação do “Grupo de Pesquisas em Epistemologia da Biologia”; V) O desenvolvimento do “Grupo de Pesquisas em Epistemologia da Biologia”: discutindo conceitos de organismo e vida com graduandos de biologia; VI) Análise do desenvolvimento conceitual dos graduandos e da dinâmica do grupo nos diferentes momentos da pesquisa; VII) Conclusão. No capítulo I é discutido como o organismo tem ocupado um papel marginal na biologia contemporânea devido em parte à ênfase nos aspectos moleculares. Discute-se o padrão de organização dos seres vivos, considerando as discussões da Filosofia da Biologia 23 sobre níveis hierárquicos de organização, auto-organização e emergência. Procura-se sistematizar o conceito de organismo fazendo relação entre essas discussões e o paradigma evolutivo. No capítulo II, discute-se a possibilidade de diversas explicações do conceito de vida e como o conceito de organismo se coloca frente a estas, em particular, é destacada a necessidade de uma explicação de vida que recoloque o organismo como um elemento central do conhecimento biológico. Em seguida, no capítulo III, evidenciam-se como as discussões epistemológicas podem contribuir para o Ensino de Biologia. No capítulo IV, apresenta-se a metodologia de organização do grupo de pesquisa, da coleta de dados e as categorias elaboradas. No capítulo V é descrito o desenvolvimento do grupo de pesquisa em Epistemologia da Biologia, que teve como base teórica à relação entre níveis hierárquicos, tendo o organismo como ponto focal de discussão. No capítulo VI é realizada uma análise geral da dinâmica do grupo em cada um dos momentos da pesquisa: contato inicial, desenvolvimento e finalização. No capítulo VII são apontados os principais resultados e conclusões que foram obtidos neste trabalho de pesquisa. 24 OBJETIVOS Objetivo geral Investigar se a utilização de uma abordagem hierárquica, tendo o organismo como nível focal de discussão em um grupo de “Pesquisas em Epistemologia da Biologia”, contribui para uma visão integrada do conhecimento biológico pelos graduandos de Biologia e para a formação de pesquisadores destes na área de Epistemologia da Biologia e Ensino de Ciências. Objetivos específicos • Caracterizar o conceito de organismo, por meio de uma abordagem hierárquica, integrando as discussões advindas da Filosofia da Biologia contemporânea referentes aos conceitos de auto-organização, autonomia agencial, propriedades emergentes e níveis hierárquicos. • Analisar como o conceito de organismo se posiciona diante das explicações de vida presentes na literatura contemporânea da Filosofia da Biologia. • Utilizar a discussão teórica relativa ao conceito de organismo como fundamentação de um grupo de “Pesquisas em Epistemologia da Biologia”, verificando as contribuições desse aporte teórico para a formação de alunos de Licenciatura em Ciências Biológicas na área de Epistemologia da Biologia e Ensino de Ciências. • Analisar as discussões e produções escritas ocorridas no desenvolvimento do grupo de “Pesquisas em Epistemologia da Biologia” em relação ao conceito de organismo com a finalidade de verificar se uma abordagem hierárquica tendo o organismo como nível focal contribui para uma visão integrada do conhecimento biológico pelos graduandos de Biologia. 25 1. CAPÍTULO – EPISTEMOLOGIA DA BIOLOGIA: O CONCEITO DE ORGANISMO EM DEBATE Nesse capítulo, busca-se a partir da literatura da Epistemologia da Biologia contemporânea: (1) compreender como o conceito de organismo se associa à reivindicação da autonomia do conhecimento biológico8; (2) elaborar uma caracterização do conceito de organismo. 1.1. A construção da biologia como ciência autônoma O século XIX é apontado como aquele em que surge uma ciência que tem como objeto de estudo os seres vivos, a Biologia (FREZZATTI JR., 2003; MAYR, 2005). Nessa época, ocorreu o desenvolvimento ou o aparecimento de várias disciplinas, tais como a citologia, a embriologia, a bioquímica, a fisiologia e o evolucionismo. Estas disciplinas fundamentam um novo campo de estudo, referente ao problema da vida. Para Foucault (2000), com o surgimento da Biologia, explicar vida passa a ser um problema científico. Entretanto, Coutinho (2005) destaca que apesar do conceito de vida só constituir-se em um problema de cunho científico a partir da virada do século XVIII para o XIX, por se tornar o objeto de uma área específica do conhecimento, antes disso vários filósofos, como por exemplo, Aristóteles, buscaram discutir o conceito de vida. No entanto, nas cosmologias antigas e medievais, as idéias de matéria, vida e espírito estavam por demais confundidas umas com as outras para que se pudesse distingui-las. No século XIX várias correntes debatiam-se para definir o fenômeno vital. Entre essas correntes podem se reconhecer, segundo Mayr (1998), duas interpretações para os fenômenos da vida: o mecanicismo e o vitalismo. O vitalismo argumentava que os organismos vivos distinguem-se das entidades inertes porque possuem uma força vital (ou élan vital) que não é nem física, nem química (WESTFALL, 2003). O mecanicismo via a natureza como um mecanismo cujo funcionamento se regia por leis precisas, sendo 8 A reivindicação de autonomia da Biologia se refere à construção de uma ciência com abordagens, métodos e objetos próprios. Assim, reivindica-se a autonomia da Biologia em relação a outras ciências, mas não a sua independência, pois ao mesmo tempo em que ela depende de outras ciências tem seus próprios fundamentos. 26 caracterizado por dois princípios básicos: a crença de que toda ciência deriva-se da Mecânica e a conclusão resultante de que as criaturas viventes poderiam ser tratadas como máquinas (HULL, 1974). Apesar de Mayr (1998) apontar dois movimentos gerais – mecanicismo e vitalismo – na explicação dos fenômenos vitais, a separação entre esses dois movimentos não é rígida, pois como indica Allen (2005), o próprio mecanicismo teve diferentes significados dependendo da natureza do debate em que esteve envolvido. Nesse contexto, não se encontravam no século XIX pesquisadores com condutas, por exemplo, do mecanicismo puro ou do vitalismo puro, mas de uma diversidade de idéias intercaladas entre esses dois extremos, existindo uma variedade de posturas relativas à compreensão de um organismo vivo (FREZZATTI JR., 2003). No século XX, o desenvolvimento do conhecimento biológico foi acompanhado pelo crescimento da lógica positivista na ciência que se contrapunha às idéias vitalistas (ROSEMBERG, 1985). Um exemplo do confronto entre vitalistas e positivistas ocorreu na embriologia. Na última metade do século XIX, segundo Rosemberg (1985), a embriologia se destacava na pesquisa experimental. Entre os mais importantes embriologistas estava Hans Driesh, que trabalhando com ouriço do mar demonstrou que a separação de um blastômero no estágio inicial do desenvolvimento poderia dar origem a um novo indivíduo (um processo de clonagem). Para explicar esse fenômeno utilizou a idéia de inteléquia, uma formação não material que norteava o desenvolvimento do embrião (vitalismo). Para os filósofos positivistas do início do século XX, a idéia de Driesh representava tudo o que queriam expurgar da ciência. Para os positivistas lógicos, o conhecimento científico deveria estar amparado na experiência e observação ou na dedução formal, aquilo que ultrapassasse esse limite era visto como não significativo para a ciência. De acordo com Mayr (2005), após 1930, a conduta vitalista foi erradicada do pensamento biológico pelo fracasso dos experimentos para demonstrar a existência de uma força vital e pelo surgimento da nova biologia que conseguia responder aos problemas tradicionalmente considerados pelo vitalismo (MAYR, 2005). Dado que o pensamento vitalista foi posto de lado pela grande maioria dos biólogos atuais, parece natural pensar que a Biologia assumiu uma perspectiva mecanicista9. Essa conduta pode ser verificada na citação retirada do Dicionário de Teoria do Conhecimento e Metafísica: 9 Mayr (1998) considera que a compreensão de um ser vivo esteve amparada na mudança drástica do mecanicismo e no entendimento de que existem características nos seres vivos que não tem paralelo com as encontradas nos objetos inanimados. 27 Na explicação dos fenômenos vitais justapõem-se historicamente duas concepções. Segundo uma (“mecanismo”, “reducionismo”, “materialismo”), os fenômenos da vida podem ser reduzidos a um conjunto de leis elementares, sobretudo físico- químicas. De acordo com a segunda (“vitalismo”), existem forças próprias da vida não explicáveis pela física. Nessa antiga controvérsia, a biologia moderna encontra- se inequivocamente do lado de um programa reducionista (RICKEN, 2005, p.294). Essa impressão, segundo El-Hani (2002a), é criada pela ausência de um terceiro termo na discussão, o organicismo, bem como sua posição filosófica o emergentismo. Segundo Etxeberria e Umerez (2006, p.2), o organicismo consistiu numa corrente de pensamento que procurou superar o confronto entre mecanicismo e vitalismo. Enfrentando tanto um quanto o outro, o organicismo concorda com o vitalismo na consideração que se deve ter em conta as propriedades do todo e a necessidade de diferentes níveis de organização na explicação dos seres vivos; também coaduna com o mecanicismo na aceitação que os seres vivos devem ser objeto de explicações materiais. Para compreender a posição filosófica do emergentismo, que sustenta o pensamento organicista, é importante primeiro entender o reducionismo e o significado do termo redução. Muitos filósofos da Biologia argumentam contra o reducionismo em Biologia, mas qual reducionismo eles combatem? O termo reducionismo pode ser entendido de várias formas. Mayr (1998) descreve três categorias para esse termo: a) reducionismo constitutivo, que afirma que a composição material do organismo é exatamente a mesma que se encontra no mundo inorgânico e que nenhum dos eventos e processos nos organismos vivos está em conflito com os fenômenos físico-químicos; b) reducionismo explicativo, assegurando que não se pode compreender um todo enquanto não se disseca seus componentes até o nível ínfimo de integração; e c) reducionismo teórico, postulando que as teorias e leis formuladas em um campo da ciência (geralmente em um campo mais complexo) podem revelar-se em casos especiais de teorias e leis formulados em algum outro ramo da ciência. Mayr concorda com o reducionismo constitutivo, mas diz que não é possível aceitar os outros tipos de reducionismo. Nessa perspectiva, os biólogos atuais, em termos gerais, podem ser considerados como reducionistas constitutivos, pois aceitam os organismos sendo constituídos apenas por elementos materiais como átomos e moléculas. Uma tentativa de reducionismo teórico e explicativo na Biologia enfatizou a possibilidade de redução da genética mendeliana à biologia molecular (ROSEMBERG, 1985; 28 FELTZ, 1995). Essa tentativa encontrou muitos obstáculos ao tentar conectar termos e significados da genética mendeliana com os da bioquímica e da biologia molecular. Por exemplo, o conceito de gene remete a uma função fenotípica que não tem paralelo com o sistema conceitual da bioquímica (FELTZ, 1995). Estes estudos mostram que mesmo entre campos de conhecimento próximos, as dificuldades para a redução explicativa e teórica são grandes. Quando a redução é tentada entre níveis de realidade mais distantes, as dificuldades aumentam, por exemplo, a redução de um comportamento social à Biologia, ou a redução das características de um ser vivo à Física. É necessário questionar até que ponto as tentativas reducionistas são legítimas. O reducionismo, em certa medida, é válido, pois objetiva aprofundar e unificar alguns conhecimentos sobre o mundo. Entretanto, a preocupação desmedida com a redução, perdendo a noção da totalidade, não é frutífera para a pesquisa biológica. O emergentismo é uma filosofia considerada implícita na Biologia por alguns autores (El-HANI, 2002a; EMMECHE, 2004; FELTZ, 1995), na qual se entende que novidades qualitativas surgem quando sistemas materiais alcançam certo nível de complexidade, apresentando um tipo genuinamente novo de estado de relação entre seus componentes. Podem-se destacar alguns princípios da filosofia emergentista: fisicalismo ontológico; novidade qualitativa; emergência; teoria de níveis; irredutibilidade dos emergentes; causação descendente (EL-HANI, 2002a). De acordo com Emmeche (2004), o aparecimento de propriedades emergentes não pode ser deduzido de um nível inferior. Quando a propriedade é realmente emergente um novo aspecto qualitativo surge no sistema. O organicismo pode ser considerado uma posição filosófica que entende que os organismos apresentam propriedades conectadas ao todo, que não tem correspondente com as propriedades apresentadas por suas partes (REHMANN-SUTTER, 2000, p.337), ou seja, que propriedades de um determinado nível de complexidade pode não decorrer diretamente de suas partes, mas da interação entre elas (GILBERT e SAKAR, 2000, p.2), implicando a ocorrência de propriedades emergentes qualitativamente novas. Para Emmeche (2004) é possível distinguir duas formas de organicismo: organicismo “mainstream” e organicismo qualitativo. O organicismo “mainstream” é uma visão dominante na Biologia que considera o organismo ontologicamente como uma entidade real e irredutível meramente à química, pois possui propriedades que emergem apenas no nível de complexidade do organismo. O organicismo qualitativo, além de aceitar a realidade ontológica de propriedades biológicas irredutíveis, também enfatiza o surgimento de propriedades qualitativas nos níveis mais 29 complexos da organização viva. Por exemplo, a sensibilidade à luz, para o organicismo qualitativo, não ocorre apenas da decodificação de sinais externos pelo processamento interno do organismo, algo novo é acrescentado nessa sensibilidade devido à própria experiência do organismo (um sistema biológico que tem experiência real própria). Portanto, essa abordagem considera a existência de qualidades complexas secundárias (que surgem a partir de um nível superior de organização) as propriedades de cor, tato, cheiro, entre outras. Para El-Hani (2002a), a concepção filosófica do organismo encontrada entre os biólogos é ao mesmo tempo reducionista e emergentista: reducionista em termos constitutivos, por entender os seres vivos como agregados especiais de moléculas historicamente organizadas por meio de evolução e seleção natural; e emergentista, por reconhecer a complexidade e a existência de propriedades emergentes nos organismos. Pode- se dizer que a redução tem um papel importante para explicar por que os fenômenos emergentes ocorrem exatamente nas condições em que ocorrem. O organicismo entende a complexidade dos sistemas biológicos como um sinal de autonomia (mas não de independência) da biologia em relação às ciências que lidam com níveis de organização que precederam os sistemas vivos (EL-HANI, 2002a, p.205; EMMECHE, 2004, p. 206). A posição organicista esteve associada ao movimento emergentista do início do século XX na Grã-Bretanha e a noção de ser vivo de Kant (EL- HANI, 2002a, p.205-206; EMMECHE, 2004, p.206). Apesar de o organicismo ser considerado um pressuposto tácito entre os biólogos, nas últimas décadas, o sucesso da biologia molecular alardeado pela mídia causa a impressão de que a Biologia atual confere importância apenas às pesquisas que enfatizam genes e moléculas. Além disso, nos últimos anos, muitas pesquisas biológicas deixaram de enfatizar o organismo como um objeto de estudo, como foi apontado por Ruiz-Mirazo et al (2000), as pesquisas ou se debruçam sobre níveis inferiores como os moleculares ou níveis muito superiores como os estudos ecológicos. Pode-se pensar que esse comportamento entre os biólogos seja reflexo da dificuldade encontrada ao tentar definir vida e entender a organização típica dos seres vivos. Portanto, apesar de estarem cientes de que os sistemas biológicos apresentam características particulares, nas pesquisas biológicas a atenção é concentrada, por exemplo, aos aspectos moleculares. No entanto, apesar do crescente sucesso da biologia molecular desde a descrição do modelo do DNA em 1953 e da ênfase das pesquisas experimentais na biologia, a corrente organicista se manteve presente ao longo do século XX no desenvolvimento da Biologia Teórica (ETXEBERRIA e UMEREZ, 2006). 30 Em certos momentos a presença da discussão organicista e a preocupação com o conceito do organismo se tornaram mais evidentes. Etxeberria e Umerez (2006, p. 6) destacam o período entre guerras como um momento crítico no desenvolvimento da Biologia Teórica, especialmente com a formação de um grupo de trabalho interdisciplinar, em 1932, que ficou conhecido como “Clube da Biologia Teórica”, cujos principais participantes eram J. H. Woodger, J. Needham, C. H. Waddington, D. M. Wrinch, J. D. Bernal. Woodger foi uma figura importante no grupo interdisciplinar de Biologia Teórica, pois em 1926 esteve em Viena onde teve contato com membros do Círculo de Viena, entre eles Bertalanffy. A partir disso Woodger escreveu um trabalho de Filosofia da Biologia, no qual investigou o conceito de organização, contribuindo para impulsionar a Biologia Teórica (ETXEBERRIA e UMEREZ, 2006). Outro pesquisador desse grupo, Conrad H. Waddington estudou o desenvolvimento do organismo como decorrente da interação entre elementos pré- formados (genes) e regiões presentes no citoplasma (WADDINGTON, 1999). Para estudar os processos de interação Waddington utiliza o termo epigenética. Nós reconhecemos que o ovo fertilizado contém alguns elementos pré-formados – os genes e certo número de regiões do citoplasma – e nós reconhecemos que durante o desenvolvimento estes interagem em processos epigenéticos para produzir características finais no adulto que não são individualmente representadas no ovo (WADDINGTON, 1999, p. 9, tradução nossa). De fato, a palavra “epigenética” é um nome apropriado para o estudo do papel causal total do desenvolvimento, enfatizando com isto dependência fundamental na genética e o interesse em causas e processos (WADDINGTON, 1999, p. 10, tradução nossa). Pode-se perceber nas citações acima o interesse no estudo do organismo em sua totalidade, buscando explicar as relações entre as partes no desenvolvimento embriológico. Os estudos desse grupo interdisciplinar, conhecido como “Clube da Biologia Teórica”, estiveram associados à noção de organismo, propriedades emergentes e níveis de hierarquia, constituindo-se numa abordagem organicista, que reivindica o problema da organização, ou seja, da relação das partes entre si como o trabalho fundamental da biologia (ETXEBERRIA e UMEREZ, 2006). A discussão organicista também se faz presente entre as décadas de 60 e 70. Nesse período ocorre uma crise na biologia molecular com uma forte contestação dos modelos preexistentes de regulação gênica. Além disso, também se discute a unicidade da seleção 31 natural como mecanismo evolutivo (ETXBERRIA e UMEREZ, 2006). Nesse contexto, ocorre uma nova preocupação em desenvolver uma Biologia Teórica que investigue a organização biológica através de tentativas de descrever organismos mínimos (por exemplo, a teoria da autopoiese). Nos dias atuais um movimento organicista que se preocupa com o conceito de organismo e com propriedades sistêmicas parece estar retornando ao centro da Biologia Teórica. Isso segundo Etxeberria e Moreno (2007) pode estar relacionado ao aparecimento de enfoques como o das ciências da complexidade com capacidade de oferecer avanços teóricos e resultados empíricos, juntamente ao desenvolvimento de novas ferramentas na abordagem desses problemas, por exemplo, a produção de modelos matemáticos da organização biológica e simulações computacionais. O organicismo tendo o organismo, sua organização e suas propriedades como pontos de interesse acaba por fortalecer o aspecto autônomo do conhecimento biológico. A questão da autonomia da Biologia é central na Filosofia da Biologia e está relacionada à discussão sobre o reducionismo entre domínios científicos distintos, ou seja, se a Biologia tem características próprias que a diferencia da Física e da Química, apresentando autonomia em relação às outras disciplinas. Segundo Rosemberg (1985), a resposta a essa pergunta foi marcada por duas atitudes opostas denominadas autonomista e provincialista. As duas posições reconhecem que a Biologia atual apresenta características distintivas da Física. No entanto, enquanto os autonomistas pensam que essas diferenças devem ser mantidas, os provincialistas esperam que elas sejam eliminadas. Os autonomistas reivindicam que os objetivos, métodos e teorias da Biologia são diferentes daqueles de outras ciências, portanto, a Biologia deveria permanecer isolada da Física, forjando seus próprios instrumentos. Os provincialistas esperam que a Biologia não apenas seja coerente com a física, mas também reduzível a esta (ROSEMBERG, 1985). Os argumentos dessas duas posições também são diferentes: os autonomistas estão amparados em argumentos epistemológicos, nascido da formulação e justificação do conhecimento biológico, enquanto os provincialistas se apóiam em argumentos metafísicos sobre os objetos da natureza. Entretanto, segundo Rosemberg (1985), a relação entre os tipos de argumentos era invertida no início da discussão entre autonomistas e provincialistas. Para o autor, a noção de Biologia como ciência autônoma, em geral, percorreu um caminho de oposição ao empiricismo, amparada em argumentos metafísicos, como, por exemplo, a existência de uma força vital. A noção de autonomia do conhecimento biológico foi estigmatizada como não científica devido à rejeição do vitalismo. Os provincialistas, em sua 32 origem, recorriam ao ataque epistemológico das concepções metafísicas. No entanto, com os obstáculos epistemológicos enfrentados pelos provincialistas na argumentação e justificação do conhecimento científico, a visão autonomista passou a ser vista como uma filosofia respeitável, e os tipos de argumentação foram invertidos. Percebe-se que as posições autonomistas e provincialistas refletem respectivamente o anti-reducionismo e o reducionismo nas ciências. Um defensor da Biologia como ciência autônoma que tenta solucionar esse impasse é Ernst Mayr. Esse autor defende a existência de um reducionismo constitutivo entre os biólogos, ou seja, que os seres vivos são constituídos por partículas materiais e que, portanto, não há contradição com a Física. Apesar de defender o ponto de vista materialista, Mayr não aceita o reducionismo do ponto de vista explicativo e teórico, reconhecendo características singulares no conhecimento biológico (MAYR, 2005)10. A aceitação da Biologia como uma ciência autônoma dependeu, segundo Mayr (2005, p.36), da ocorrência de três eventos: a refutação de certos princípios como o vitalismo e a teleologia cósmica; a demonstração de que certos princípios da Física não podem ser aplicados ao conhecimento biológico (apesar da Biologia não estar em contradição com as leis da física); e a percepção do caráter único de certos princípios da Biologia, que não são aplicados ao mundo inanimado. Para Mayr (2005), com a ocorrência da síntese evolucionista fica evidente para os biólogos a inexistência de uma teleologia cósmica, ou seja, a interpretação finalista da natureza ou da evolução. Entretanto, o autor reconhece que a palavra teleologia tem sido aplicada a cinco processos distintos: (1) processos teleomáticos, eventos dirigidos a um fim de forma automática por forças ou condições externas, ou seja, por leis naturais; (2) processos teleonômicos, processos que devem sua orientação por uma meta à influência de um programa evoluído, tal como o programa genético; (3) comportamentos com propósitos em organismos pensantes; (4) características adaptadas e (5) teleologia cósmica. A refutação da teleologia cósmica não implica a rejeição dos outros sentidos do termo teleológico como problemas válidos da discussão filosófica. De acordo com Mayr (2005), o reconhecimento da Biologia como uma ciência autônoma foi em parte conseqüência da descoberta de que alguns princípios válidos às ciências físicas, tais como essencialismo, determinismo, reducionismo e presença de leis naturais, não são aplicáveis à Biologia. Mayr (2005) reconhece a existência de características 10 No entanto, existem críticas a essa postura defendida por Mayr, por exemplo, para Rosemberg (1985) a aceitação de um reducionismo constitutivo implica a aceitação dos outros tipos de reducionismo. 33 que são próprias ao conhecimento biológico, entre elas: a complexidade dos sistemas vivos; a narrativa histórica dos processos biológicos; a aleatoriedade dos processos evolutivos; e a emergência de novas propriedades devido aos novos caminhos interativos entre as partes que compõem um sistema. A Biologia sendo uma ciência que se ocupa em estudar os seres vivos, não pode ser reduzida totalmente a Física e Química, já que existem propriedades sistêmicas que só aparecem no padrão organizacional de um ser vivo e não em suas partes, por exemplo, em uma determinada molécula. A conseqüência dessa afirmação é que mesmo que fossem descritas todas as moléculas e partes de um ser vivo, não se teria descrito um ser vivo, pois o ser vivo se caracteriza por um determinado padrão de organização que é sistêmico. A aceitação da Biologia como ciência autônoma depende, como visto em Mayr, da definição do termo redução e de processos considerados específicos para os seres vivos. Nesse sentido, defende-se o reducionismo constitutivo, mas considera-se que mesmo que um organismo vivo seja completamente explicado pela análise de seus constituintes, a Biologia ainda assim será uma ciência autônoma. Isso acontece pelo fato de a Biologia ter como seu objeto de estudo processos que ocorrem no nível do ser vivo. Neste nível reconhecem-se características próprias dos seres vivos, por exemplo, um padrão comportamental coletivamente e evolutivamente construído. O enfoque no organismo ajuda a caracterizar a biologia como uma ciência autônoma, delineando seus contornos em relação aos outros domínios científicos. Por exemplo, pode-se questionar como a Biologia se distingue da Química. Apesar da ênfase atual nos componentes moleculares insurgida com a Biologia Molecular (por exemplo, a preocupação com as seqüências de nucleotídeos e expressão gênica), a Biologia tem como centro de estudo (ou deveria ter) o organismo, ou seja, como o organismo é implicado por sua constituição molecular. Enquanto, na Química o cerne da preocupação diz respeito às moléculas, como elas se constituem e interagem. Os diferentes domínios científicos têm como objetos de pesquisa diferentes níveis de organização da realidade, apresentando conjuntos de termos, conceitos, metodologias e estratégias de investigações próprias. As tentativas do reducionismo teórico entre diferentes áreas da ciência confrontaram-se com o obstáculo de conectar termos e métodos de domínios distintos do conhecimento. As dificuldades foram inúmeras e mesmo a redução de domínios muito próximos, como a redução da genética mendeliana à genética molecular, não se concretizou. Se a redução completa do comportamento dos cromossomos ao ambiente molecular encontra obstáculos de difícil resolução, as afirmações de que comportamentos 34 humanos são determinados geneticamente parecem muito simplistas. Não se objetiva negar a influência da genética, mas entender cada organismo vivo como único, tanto em suas interações com o ambiente, quanto nas suas interações celulares e moleculares, podendo reagir de forma diferente à presença de determinado gene. 1.2. O conceito de organismo no conhecimento biológico O termo organismo deriva da palavra organon que significa ferramenta/instrumento. De acordo com Relmann-Sutter (2000), Aristóteles usa o termo organon não com o sentido de partes do corpo, mas como uma metáfora para explicar o papel funcional destas. Para entender melhor em que sentido essa metáfora é utilizada é necessário compreender que na Grécia havia duas palavras para ferramenta/instrumento, que muitas vezes eram utilizadas como sinônimos: organon e mechané. Organon seria um instrumento utilizado para fazer algo, por exemplo, um serrote que é utilizado para serrar um tronco, enquanto mechané seria um dispositivo ou plano que leva a realização de uma tarefa, por exemplo, uma máquina de serrar acionada através de um dispositivo. A raiz da palavra mechané é mechos, a qual tem significado de meio/recurso, enquanto a raiz da palavra organon é ergon, que tem significado de trabalho (RELMANN-SUTTER, 2000, p.345-346). Portanto, tem-se duas formas para a utilização da palavra instrumento/ferramenta: (1) organon - fazer algo por meio de uma ferramenta e (2) mechané - o uso de um dispositivo ou plano para produzir algo. Entendendo melhor a metáfora de Aristóteles, as partes do corpo são entendidas como ferramentas utilizadas pelo corpo para a realização de determinadas tarefas. Essa metáfora, na modernidade, funde-se com o objeto e as partes do corpo são chamadas de órgãos. A palavra organismo faz referência ao termo “organon” utilizado por Aristóteles e foi utilizada na obra de Georg Ernst Stahl (1660-1734) para contrastar com o termo mecanicismo, assumindo para esse autor uma nova conotação. Para Stahl o organismo tem uma disposição mecânica que está subordinada à sua natureza orgânica. Para estabelecer essa natureza orgânica, Stahl oferece um critério relacional na distinção entre um órgão e um mecanismo simples. Para uma parte de um mecanismo ser considerado um órgão, esta deve possuir uma correspondência com uma ordem encontrada fora do mecanismo do qual faz parte. Assim, o corpo é um órgão para a alma e sem a alma perde seu objetivo. 35 Conseqüentemente, o organismo se não for animado é considerado apenas um mecanismo que existe por si mesmo sem correspondência com uma ordem externa, ou seja, com a alma (RELMANN-SUTTER, 2000, p.344). O termo organismo, na contemporaneidade, acaba por se tornar uma terminologia padrão para representar os seres vivos. Especialmente dentro do domínio científico, as entidades ou seres vivos, como animais ou plantas, são designados com o termo organismo. A palavra organismo adquire seu sentido contemporâneo associado a outros termos como organização e auto-organização. Kant, em 1790, ofereceu uma das primeiras definições modernas de organismo (KELLER, 2005, p.1070). Para Kant (1914, p.156, tradução nossa), “[...] uma coisa existe como proposta natural, se é ambos, causa e efeito”. O organismo é um produto natural organizado, no qual todas as partes são ao mesmo tempo proposta (fim) e meio, ou seja, contribuem para a organização do todo. A organização é conseguida pela relação estabelecida entre as partes, sem um organizador externo, isto é, o organismo é auto- organizado. Em tal produto da natureza toda parte não existe apenas por meio de outras partes, mas é pensada como existindo para a finalidade das outras e do todo, é como um instrumento (orgânico). [...], mas também suas partes são todos os órgãos reciprocamente produzindo uns aos outros. [...] Apenas um produto de tal tipo pode ser chamado de finalidade natural, e isto porque é um ser organizado e auto- organizado (KANT, 1914, p.158, tradução nossa). Para Vijver et al (2003, p.105), há dois pontos importantes na visão de Kant: o organismo produz a si mesmo; existe uma causalidade interna e circular na organização das partes, onde uma parte existe por causa de outra e do todo. A causalidade circular a que Vijver se refere pode ser notada na seguinte citação: [...] a combinação causal de acordo com o conceito da Razão (de finalidade) pode ser pensada como uma série que leva para frente ou para trás. Nesta, a coisa que foi chamada de efeito pode com igual propriedade ser denominada a causa daquele que é o efeito (KANT, 1914, p.157, tradução nossa). 36 Nessa perspectiva, o organismo é então considerado um corpo capaz de se auto- regular, autodirigir e se autogerar, apresentando um tipo especial de arranjo que é a auto- organização (KELLER, 2005, p.1070). É essa forma particular de organização – a auto-organização - que vai diferenciar os seres vivos da matéria inanimada, pelo menos até meados de 1940. Entretanto, essa distinção começa a se desfazer durante a Segunda Guerra Mundial, quando se desenvolve uma ciência amparada em princípios de feedback e causalidade circular que procura implementar mecanismos e máquinas com tais princípios, essa ciência é chamada de cibernética (KELLER, 2005, p.1070). Na primeira fase da cibernética, apesar dos mecanismos estarem amparados em princípios de causalidade circular, o controle de máquinas e mecanismos era principalmente externo a estes. Em um segundo momento, em meados da década de 70, a cibernética enfocou no modo em que regras e propostas podem surgir dentro do próprio sistema. O processo de auto-organização levaria à autonomia, contribuindo para orientar a construção de máquinas que não são completamente programadas de início, mas que mediante de sua história material, progressivamente adquire por si próprias uma coesão integrativa (VIJVER et al, 2003). Apesar de ser fundamental para a Biologia teórica explicar o tipo de organização presente nos seres vivos, essa tarefa não foi fácil. A delimitação do conceito de ser vivo por meio de um processo de auto-organização começa a apresentar problemas quando: outros fenômenos são explicados por processos auto-organizativos e quando máquinas são construídas tomando como base esses processos. Para complementar o quadro, nas décadas de 70 e 80, o conceito de auto- organização recebeu contribuições da matemática e física, associando-se aos estudos de sistemas dinâmicos não-lineares, à teoria de sistemas evolucionários adaptativos e à termodinâmica longe do equilíbrio de estruturas dissipativas (VIJVER et al, 2003). A idéia de auto-organização passa também a descrever fenômenos físicos, por exemplo, a formação de tornados, e incorpora os estudos dos chamados sistemas complexos. Cabe aqui fazer uma distinção entre sistemas complexos e sistemas complicados. Segundo Vijver et al (2003), ambos os sistemas, complicados e complexos, tem um vasto número de elementos e de inter- relação entre eles. Em sistemas complicados, entretanto, as relações entre as partes e o todo são definidas e controladas pelo meio externo, enquanto, em sistemas complexos, essas relações são, ao menos, parcialmente definidas pelo meio interno. Como conseqüência a definição de meio externo e interno é importante para a definição de sistemas complexos. 37 Além disso, percebe-se que a complexidade é aqui intrinsecamente associada ao conceito de auto-organização. Apesar de o pensamento da complexidade ter várias abordagens, não tendo uma concepção unificada de sistemas complexos, vem surgindo dentro da Filosofia da Biologia um esforço para clarificar a natureza específica da complexidade em sistemas biológicos, como distintos da complexidade de sistemas físicos e químicos. Nesses estudos, a maior parte do debate da complexidade com relação aos sistemas biológicos está articulada ao redor da noção de sistemas vivos, sublinhando a idéia da importância contextual (ambiental) para o seu desenvolvimento, sem excluir a possibilidade de se descrever mecanismos gerais de desenvolvimento (VIJVER, et al, 2003). O interesse em sistemas complexos é marcado na Biologia pela atenção às condições estruturais, no qual os sistemas biológicos são estáveis e todos coesivos, mantendo sua integridade contra perturbações internas e externas. Esta manutenção é vista cada vez mais como o resultado de processos dinâmicos e interativos, que tem componentes energéticos e informacionais. Dentro do contexto das discussões sobre os sistemas complexos biológicos, algumas tentativas foram realizadas para tentar descrever a organização dos seres vivos. Assim, para delimitar o conceito de auto-organização dentro de uma perspectiva biológica, buscou-se descrever os seres vivos através da junção do conceito de auto-organização ao paradigma evolutivo das ciências biológicas. Uma das tentativas de unificar essas duas idéias foi realizada por Kauffman (1993; 1995; 1997), no qual as idéias de auto-organização e emergência ganharam espaço, questionando a visão ortodoxa de evolução e propondo uma complementaridade entre auto-organização e seleção natural. Outra tentativa de descrever os seres vivos, que não tem como referência a síntese evolutiva, é a teoria estruturalista de Webster e Goodwin (1999). Esta ambiciona descrever as leis e regras que governam o espaço das formas possíveis e explicar a geração das formas vivas, tomando o organismo como uma entidade real e como centro da biologia teórica. O termo organismo tem um longo caminho na História da Biologia, estando associado a outros conceitos, como o de auto-organização, estrutura, organização circular e emergência. Além da definição do conceito de organismo ser complicada, esse termo acabou por ser usado em outros contextos como uma forma de descrever as relações entre partes e todo (GUTMANN e NEUMANN-HELD, 2000). Por exemplo, teorias que utilizam a idéia de organismos em áreas como Filosofia, História, Sociologia, Economia, entre outras. 38 Pode-se pensar que o uso da palavra organismo sendo utilizado em outros domínios e estando em discussão sobre a possibilidade de defini-lo, perderia sua especificidade e não poderia ser utilizado apenas como representação para “ser vivo”. Entretanto, justamente por ser um termo que faz referência a um tipo de organização que é característico dos seres vivos (quando se considera a auto-organização somada ao contexto da evolução biológica, como será visto adiante), a palavra organismo não só é utilizada nessa tese como sinônimo de ser vivo como também se defende o conceito de organismo como estruturante do conhecimento biológico. A palavra organismo é utilizada preferencialmente no lugar de ser vivo pelo fato de ressaltar o caráter da organização biológica. A utilização da palavra organismo expressa a idéia de seres vivos em oposição a uma visão global de vida, enfatizando aspectos de autonomia e a capacidade do sistema de criar significado (RUIZ-MIRAZO et al, 2000, p.210). Ou seja, o termo organismo faz referência ao tipo de organização encontrada em seres vivos. Portanto, quando se utiliza o termo organismo fica subentendido que os seres vivos se diferenciam da matéria inanimada pela forma como seus componentes (ou seja, as partículas físico-químicas) estão organizados e não pelo tipo dos componentes. Pode-se alegar que a ciência atual tem dificuldade de demarcar os limites de definição desse tipo de organização. Entretanto, além de intuitivamente percebermos que seres vivos são intrinsecamente distintos de outras formas de entidades materiais, dentro da Biologia Teórica o debate sobre essa organização continua em destaque, trazendo contribuições importantes para essa demarcação. Dentro desse debate existem alguns conceitos que têm sido enfatizados na delimitação dos seres vivos, tais como auto- organização, autonomia agencial, sistema organizacionalmente fechado, entre outros. A seguir discute-se esses conceitos com maior profundidade. 1.3. Conceitos fundamentais para a compreensão do organismo 1.3.1. A explicação científica como uma rede sistemática de conceitos Nesse tópico serão discutidos os elementos que subsidiam uma explicação do conceito de organismo. Antes do início da discussão desses elementos, será realizado um 39 aparte para descrever o sentido adotado quando se refere à “explicação” e/ou elucidação de um determinado conceito. Utiliza-se a noção de “explicação” ou “elucidação” encontrada em Carnap (1950)11. Segundo Carnap (1950, p.3), a explicação ou elucidação consiste na transformação de um conceito inexato, pré-científico, o explicandum, em outro conceito mais exato e sistematizado, o explicatum. De acordo com o autor o explicandum pode pertencer a linguagem cotidiana ou a uma etapa prévia no desenvolvimento de um conceito científico. Enquanto o explicatum deve ser dado por regras explícitas sobre o seu emprego e ser inserido numa rede conceitual. Carnap entende que um conceito deve satisfazer os seguintes requisitos para ser um explicatum adequado para um explicandum: (1) semelhança com o explicandum, no entanto, como o explicandum é mais vago e vai ser substituído por uma explicação mais sistemática, o explicatum, a correspondência nunca será completa; (2) exatidão, as regras de emprego do conceito deve ser explicitada e a forma que ele se interliga com outros conceitos também; (3) fertilidade, um conceito é tanto mais fértil, quanto mais relação estabelece com outros conceitos, ou seja, forma-se uma rede de conceitos científicos que se sustentam e justificam; (4) simplicidade, considerada quando existem várias explicações igualmente férteis para o mesmo fenômeno, em geral procura-se eleger a explicação mais simples, mas que contemple os conceitos e relações importantes para a compreensão daquele fenômeno. Para Carnap (1950), os conceitos podem ser (1) classificatórios, separando coisas em duas ou mais classes mutuamente excludentes, (2) comparativos, estabelecendo uma comparação na forma de menos ou mais sem empregar valores numéricos, por exemplo, “mais quente” e (3) quantitativos, descrição de algo a partir de valores numéricos. Para Carnap a linguagem pré-científica utiliza-se prioritariamente de conceitos classificatórios e quando se avança para a formulação de conceitos científicos utiliza-se com maior freqüência conceitos comparativos e quantitativos. No entanto, entende-se que conceitos podem ser construídos de forma mais precisa sem seguir necessariamente esta via unidirecional, de conceitos classificatórios a quantitativos. Como aponta Nascimento et al (2009), em relação ao conceito de vida não é evidente que uma compreensão da vida como um gradiente seja 11 Apesar de Carnap estar associado ao positivismo lógico e desta tese não adotar a obra desse autor de uma forma mais geral, entende-se que a noção do que é a explicação de um conceito desenvolvida na “Logical Foundations of Probability” em 1950 seja útil para esse trabalho, uma vez que, reconhece a importância de um conceito ser explicitado por seu encaixe numa rede conceitual coerente, ou seja, enfatiza a necessidade de um conceito ter sua precisão relacionada a uma estrutura sistemática de conceitos. Dessa forma, coloca-se a ressalva de que é utilizada a noção de explicação de Carnap sem assumir um compromisso mais amplo com a obra desse autor. 40 necessariamente mais clara e precisa do que o entendimento da vida como um fenômeno discreto. Assim, colocando essa ressalva, será enfatizada a noção de explicandum e explicatum para evidenciar o sentido de “explicação” de um conceito científico. O exemplo do conceito de organismo pode ser utilizado para explicitar o sentido dos termos explicandum e explicatum. Em geral, não se tem dificuldades em separar no cotidiano os seres vivos de objetos inanimados e se fosse pedido às pessoas para justificarem porque certas coisas são seres vivos, provavelmente, elas elencariam uma série de propriedades, tais como respiração, movimento, reprodução, entre outras. Essa noção de organismo presente no cotidiano pode ser considerada o explicandum de um conceito, ou seja, uma noção vaga e não sistematizada. O conceito de organismo é exposto também, muitas vezes, no contexto científico como apenas uma lista de propriedades, sem estabelecer relações claras entre as propriedades descritas na lista e sem ser incorporado numa rede conceitual mais ampla, ou seja, numa fundamentação teórica. Nesse sentido, essas listas também consistiriam de um explicandum, ou seja, de uma etapa intermediária no desenvolvimento do conceito de organismo. Portanto, uma “explicação”, no sentido de Carnap (1950) do conceito de organismo dependeria não apenas de descrever uma lista de propriedades (que é uma etapa importante na formulação do problema e do explicandum, mas que deve ser ultrapassada), mas também de tornar interligadas as relações entre os elementos que fundamentam esse conceito. É essa forma de “explicação” que se busca a seguir, primeiramente, discutindo os conceitos e elementos que fundamentam a noção de organismo, com base na literatura contemporâ