CAMILA GOMES PASTOR EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UMA VIVÊNCIA DE ENSINO/APRENDIZAGEM NO PROJETO EPA! (EDUCAÇÃO, PERIFERIA E ARTE), RIO CLARO-SP. Orientadora: Profª Drª Célia Regina Rossi Co-orientadora: Educadora Ambiental Msc Ana Maria de Meira Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Campus de Rio Claro, para obtenção do grau de bacharel e licenciatura em Ciências Biológicas. Rio Claro 2009 ...à todos que se consideram crianças... AGRADECIMENTOS “Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes.” Sobre importâncias, de Manoel de Barros em Memórias Inventadas ...será esse um agradecimento do trabalho apenas, ou será um agradecimento de todo o viver que foi a graduação? Desenharei com palavras uma mistura de sentimentos sobre importâncias desse encantamento que Manoel de Barros se refere, e assim agradeço.... ...às crianças do Projeto EPA!, que me ensinaram a viver cada dia com mais intensidade e gosto pela vida. Difícil expressar tamanho amor que tenho por vocês! ...à Ana e a Pri!!! Trabalhar com vocês foi sensacional, morro de rir, tenho vontade de chorar, fico preocupada, tenho paciência, fico brava, quando lembro das coisas que passamos, aprendemos, erramos, conversamos....porque foi exatamente essa intensidade! E assim construímos nossa relação, muito além do trabalho, para a vida toda. ...à Célia, por acreditar em mim, tanto como estagiária/educadora do Projeto EPA!, como de orientada nesse “trabalhoso de conclusão de curso”. Entre entendimentos e desentendimentos, nos entendemos muito bem, à nossa maneira! Muito obrigada Cé, e me desculpe as rebeldias, mas é que eu sou jovem!!! ...à Ana Meira, que com suavidade, amor, delicadeza e muita sabedoria me ensinou parte do que hoje vivo e compartilho com a Educação Ambiental. ...ao Índio, Ana, Pri, Betão, Kadu, Rude, Rica, Fernanda, Carol, Juliana, a “Família EPA!”. Aprendemos e ensinamos em todos os momentos de convivência, a base de muito diálogo. Lindo trabalho que fizemos! ...às pessoas que leram o trabalho e me ajudaram nessa arte coletiva de construção de sentido: Vivi, mamãe, Fábio “Xaixa”, Luíza, Milena, Pri, Simone. ...ao CRAS (Jardim Bonsucesso/Jardim Novo Wenzel) e à Ana da ONG Arte Vida por fornecer dados sobre os bairros. ...à Prefeitura de Rio Claro pelo apoio e fornecimento de materiais sobre os bairros Jd. Bonsucesso e Jd. Novo Wenzel. ...à Obra Social da Igreja Luterana, que permitiu o Projeto EPA! utilizar o espaço para a realização das atividades. E à Gisele e sua família, que cuidaram com todo carinho do espaço e de todos nós. ...ao pessoal do NEA (Núcleo de Educação Ambiental) e do Zoológico de Piracicaba pela oportunidade que me deram de estagiar e aprender com vocês. ...ao Coletivo Educador Pira Sykauá. ...à galera de Rio Claro, pelos aprendizados fora da sala de aula. ...à Só Se For Agora pelo apoio nesse momento tão trabalhoso. Lulu, você me encorajou com sua preocupação e me iluminou muito nas conversas e leituras. Gente Fina, filhote, um cachorro espírito livre, que me libertava de vez em quando e me levava pra passear pelas manhãs. Me ensina a cada dia a ter mais gosto pela vida. Gatas, Luz e Jabu, pelos carinhos diários e insistentes. ...aos amigos Milena, Fabão e Lulu, que fico até sem palavras pra expressar. O sentimento que tenho é algo indescritível, de tudo o que compartilhamos e construímos como amizade verdadeira. Transborda em mim um querer muito bem à vocês. ...ao André (Grilo), por tudo o que nos permitimos viver. Amo. ...à todos da minha família pelo apoio e compreensão da minha escolha de vir morar no interior. ...e por fim, às pessoas que mais amo nessa vida, e que absolutamente eu não seria nada sem vocês, e sem a força que me dão diariamente: Pai, Mãe e Cris, muito obrigado! Agradeço a todos que direta ou indiretamente fizeram parte da construção desse trabalho! E que novos caminhos se abram... Camila Gomes Pastor Convido-os a mergulhar nesse mágico mundo das pequenas fagulhinhas de fogueiras que podem ser essas (e outras) crianças.... Fagulhinhas que ficam aquecendo na fogueira, dos galhos que já foram árvores mães, e que no seu devido momento se erguem e começam o movimento! Dançando e brincando ao som do vento e com toda a sua ingenuidade e esperteza Atingem os céus... Eis que nesse momento elas param, olham para ti e, como se agradecessem, retornam à dança e à brincadeira, e continuam vivendo!!! Vivam crianças, sejam crianças, eternas crianças!!! Camila Gomes Pastor Resumo O Projeto EPA! (Educação, Periferia e Arte) é desenvolvido nos bairros de periferia da cidade de Rio Claro, Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel, no interior de São Paulo. A idéia do Projeto surgiu com a possibilidade de acrescentar elementos novos à educação básica das crianças moradoras dos bairros no período contrário ao período escolar, e tem como objetivo proporcionar vivências para os participantes através de uma educação não formal, ou seja, através da arte, oficinas, reflexões e dança (Break), dando-lhes elementos para construírem outras relações com o meio ambiente e consigo mesmos. No segundo semestre de 2007, o BAIRRO foi escolhido como tema para ser trabalhado com as crianças. Foram realizadas diversas atividades de (re)conhecimento do bairro, de fotografias, desenhos, construção de maquetes, leituras e construção de poesias, com o intuito de estimular os diferentes olhares e formas de expressão das crianças com relação aos sentimentos que possuem do espaço (meio) onde vivem, e com relação às propostas que poderiam apresentar para melhoria do bairro. O objetivo geral deste trabalho de conclusão de curso é avaliar e discutir as atividades relacionadas ao tema BAIRRO, na perspectiva do Ensino/Aprendizagem em Educação Ambiental, realizadas no segundo semestre de 2007 no Projeto EPA! Foram utilizados como base para a reflexão e descrição desse trabalho os materiais produzidos pelas crianças durante esse período, os relatórios das atividades enviados para o Laboratório São Lucas, relatos da autora e de referenciais teóricos como Paulo Freire, Bakthin, Marcos Sorrentino, Isabel C. M. Carvalho, entre outros. As discussões foram conduzidas a partir de leituras e reflexões levantadas pela autora ao analisar todo o material. Palavras chave: Criança, Educação Ambiental, Periferia SUMÁRIO INTRODUÇÃO “O Espetáculo vai começar”.................................................................................9 OBJETIVOS Objetivos gerais..................................................................................................................11 Objetivos específicos..........................................................................................................11 METODOLOGIA...........................................................................................................................12 1. Contextualização da área de estudo............................................................................................14 1.1 Um pouquinho de Rio Claro.........................................................................................14 1.2 Os bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel................................................15 1.3 O Projeto EPA!.............................................................................................................19 1.3.1 A educação não formal..................................................................................20 1.3.2 Arte Educação................................................................................................21 1.3.3 Eixos Temáticos.............................................................................................22 2. Contextualização da Educação Ambiental.................................................................................24 2.1 Os impactos das diferentes concepções de meio ambiente na Educação Ambiental............................................................................................................................24 2.2 As relações sociais e a Educação Ambiental................................................................25 2.3 História da Educação Ambiental..................................................................................28 2.4 Diferentes correntes de pensamento e ação da Educação Ambiental...........................30 3. O Projeto EPA! em 2007............................................................................................................31 3.1 O primeiro semestre de 2007........................................................................................31 3.2 O segundo semestre de 2007........................................................................................31 3.2.1 Oficina de Break e rima.................................................................................32 3.2.2 A Educação Ambiental no Projeto EPA!.......................................................37 3.2.3 Os bastidores do Projeto EPA!.......................................................................39 3.2.4 Construindo um tema central para o 2º semestre...........................................42 3.2.5 A casa, o bairro, o Projeto EPA!, ou a escola?..............................................43 4. Reconhecendo os bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel.......................................44 4.1 Construção da Carta coletiva ao Prefeito de Rio Claro, SP..........................................45 4.2 A escolha das áreas e a construção dos projetos individuais........................................46 4.3 Novos olhares...............................................................................................................52 4.4 Olhar com o olhar das crianças.....................................................................................56 4.5 Direcionamento das soluções........................................................................................62 4.6 Construção das maquetes em três encontros.................................................................64 4.7 Festa de final de ano do EPA! e exposição do trabalho na biblioteca da UNESP de Rio Claro....................................................................................................................................65 4.8 Contribuição dos educadores........................................................................................66 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................................73 REFERÊNCIAS.............................................................................................................................76 ANEXO A – Versões originais das cartas ao Prefeito, escritas pelas crianças do período da manhã do Projeto EPA!, no segundo semestre de 2007.................................................................81 ANEXO B – Exemplos da atividade de direcionamento das soluções realizadas pelas crianças do EPA!...............................................................................................................................................84 9 O Espetáculo vai começar! Brincar e falar sério.... Isso mesmo! Falar de crianças, arte, educação, educação ambiental, cidadania, responsabilidade social. Refletir o quanto é possível fazer da vida uma arte! Que venha brilhar aos olhos de cada leitor a vivência das crianças do Projeto Educação Periferia e Arte - EPA! junto com educadores, que realizaram um trabalho de reconhecimento dos bairros em que vivem, Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel, localizados na cidade de Rio Claro- SP. Um reconhecimento pelo olhar das próprias crianças, representado por meio de trabalhos artísticos, como poesias, danças, fotografias, desenhos, pinturas, maquetes, apresentados e refletidos ao longo desse estudo. Para contextualizar as atividades com as crianças, o trabalho apresenta alguns dados importantes sobre a cidade de Rio Claro e os bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel. Conta um pouco da história do Projeto EPA!, os temas que permeiam as atividades e alguns dos princípios pedagógicos desenvolvidos. Também descreve, reflete e discute sobre as atividades e algumas cenas de bastidores do EPA! no segundo semestre de 2007. A intervenção educativa é apresentada e refletida tendo como foco a Educação Ambiental (EA), considerada como um tema transversal, que perpassa todas as áreas do conhecimento educacional, formal e informal, e estudada como possível ferramenta teórica e prática de ensino/aprendizagem. Será que os princípios pedagógicos propostos pela concepção de Educação Ambiental no EPA! auxiliam na (re)construção de valores e cidadania das crianças? Pode, dessa maneira, a EA estimular a construção e prática de ações sócio-ambientais das crianças? E será a EA um caminho que pode levar à construção do sentimento de pertencimento1 das crianças aos bairros onde vivem? 1 A expressão “sentimento de pertencimento” será utilizada neste trabalho como um conceito em construção e transformação. De acordo com Sá (2005, p.247,) “A degradação socioambiental se traduz na perda dos saberes práxicos que sustentavam as relações de mútuo pertencimento entre o humano e o seu meio. O pescador perde o conhecimento rico e profundo do mar e a sua perícia; o caçador perde a arte estratégica e sutil de ler os indícios e vestígios, o agricultor perde a ligação com o planeta, o cosmos, o ecossistema. Dessa forma, forjam-se pessoas dependentes de relações artificiais de vida (principalmente no meio urbano, mas não 10 O trabalho propõe ainda a relação entre a teoria e a prática, como um registro e interação do que tem sido proposto e efetivado localmente, no que diz respeito à Educação Ambiental no âmbito da educação não formal. Com a ação e reflexão juntas, na tentativa de construir uma Educação Ambiental participativa, crítica, responsável, e preocupada com a cidadania. apenas aí), comandadas por mecanismos centralizadores cujo modo de operação desconhecem. Diz-se, então que os humanos perderam a capacidade de pertencimento.” 11 Objetivo geral Apresentar e analisar o processo de intervenção educacional em Educação Ambiental com as atividades de reconhecimento dos bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel, realizadas com crianças de 7 a 12 anos, no segundo semestre de 2007 no Projeto Educação Periferia e Arte (EPA!) em Rio Claro, município do Estado de São Paulo. Objetivos específicos - Apresentar e analisar os métodos e técnicas utilizados na realização das atividades do Projeto EPA! com o tema bairro; - Descrever e refletir sobre os materiais produzidos pelas crianças e educadores ao longo das atividades do EPA! com o tema bairro; 12 Metodologia Esse trabalho é referente às atividades de reconhecimento dos bairros realizadas no segundo semestre de 2007, no Projeto EPA!, e foi utilizada uma metodologia qualitativa para a descrição e reflexão das vivências e atividades realizadas. De acordo com Bogdan e Biklen (1994), dentro da investigação qualitativa existem dois tipos de notas de campo: as descritivas e as reflexivas. As descritivas são as reconstruções de diálogos, a descrição do espaço físico, os relatos de acontecimentos particulares ou então a descrição de atividades. As reflexivas são as especulações, sentimentos, problemas, idéias e impressões, tanto das crianças quanto da autora. Vale lembrar que a divisão de notas de campo entre reflexivas e descritivas podem também ser entendidas como ações indissociáveis, pois tudo o que é considerado como descritivo passou por um processo de reflexão. A divisão visa apenas facilitar a descrição e reflexão, para atingir os objetivos propostos. Os caminhos percorridos na reflexão da intervenção educativa dialogaram com o referencial teórico de autores como Paulo Freire, Mikhail Bakthin, Marcos Sorrentino, Isabel C. M. Carvalho, Maria da Glória Gohn, Pedro Jacobi, entre outros. Foram utilizados como base para a reflexão e construção da intervenção educativa os materiais produzidos pelas crianças do período da manhã, os relatórios das atividades enviados aos coordenadores do EPA! pelos educadores e relatos da autora. Os trabalhos elaborados pelas crianças incluem poesias individuais e coletivas, registros fotográficos, carta coletiva, maquetes e desenhos de projetos para a melhoria dos espaços públicos do bairro. Na busca de conhecimento, os investigadores qualitativos não reduzem as muitas páginas contendo narrativas e outros dados a símbolos numéricos. Tentam analisar os dados em toda a sua riqueza, respeitando, tanto quanto o possível, a forma em que estes foram registrados. (BOGDAN & BIKLEN, 1994, p.48) Todas as formas de expressão registradas seja por meio da arte, poesia, cartas, trabalhos práticos, relatos e fotografias foram consideradas e analisadas pela autora, lembrando que “a parte reflexiva das notas de campo insiste que a investigação, como todo comportamento humano, é um processo subjetivo” (BOGDAN & BIKLEN, 1994, p.167). 13 Esta abordagem foi utilizada para levar em consideração não somente a quantidade de vezes que uma idéia se repete, mas também a importância desta idéia no contexto em que ela aparece. De acordo com Tanaka (2001), na investigação qualitativa não é preciso definir amostras, pois o importante mesmo é o significado das informações coletadas. As discussões foram conduzidas a partir de leituras e reflexões levantadas ao analisar todo o material. As atividades foram registradas passo a passo, juntamente com a apresentação dos resultados e a discussão, como forma de trocar experiências e estimular a prática de educadores, lembrando a importância de considerar e respeitar a realidade de cada localidade e contextos social, político, econômico e ambiental. A contribuição para a análise do processo de intervenção educacional em Educação Ambiental foi feita a partir da leitura de referenciais teóricos que trabalham os conceitos, idéias e valores da EA e que envolveram as atividades práticas, como um tema transversal que permeia o estudo. 14 1. Contextualização da área de estudo 1.1 Um pouquinho de Rio Claro... A cidade de Rio Claro localiza-se no interior de São Paulo (Figura 1), e possui uma área de 498 km² com 185.421 habitantes, segundo censo do IBGE (2007). Faz limite com os municípios de Santa Gertrudes, Piracicaba, Araras, Iracemápolis, Ipeúna, Itirapina, Corumbataí e Leme. Pertence à bacia hidrográfica do Rio Corumbataí e é considerado um município de porte médio (BRAGA, 2008; NICOLETTI, 2001). A B C Figura 1: Localização da cidade de Rio Claro. (A) Mapa do Estado de São Paulo indicando a localização da cidade de Rio Claro, com o mapa do Brasil no detalhe; (B) Foto aérea da cidade de Rio Claro; (C) Mapa de Rio Claro. Com relação aos componentes sociais e econômicos, o crescimento da população tem-se dado em um ritmo superior ao do Estado de São Paulo, com uma economia de base industrial 15 crescente e melhorias no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), mas é importante atentar que esses resultados não refletem as desigualdades sociais, econômicas, espaciais e ambientais existentes, pois analisam apenas as médias populacionais (BRAGA, 2008). De acordo com dados do IBGE (2008), o sistema educacional é formado por escolas estaduais, municipais e particulares, que oferecem a Pré-Escola (37%) o Ensino Fundamental (46% das escolas), e Ensino Médio (17%). A cidade de Rio Claro possui, desde junho de 1998, o Sistema Municipal de Saúde junto ao SUS (Sistema Único de Saúde), que pode ser controlado também pela população na participação em Conselhos de Saúde e Conselhos Gestores existentes em cada Unidade Básica de Saúde. O saneamento básico é realizado por estações de tratamento de água e esgoto, e a água é captada por bombeamento do Ribeirão Claro e do Rio Corumbataí (NICOLETTI, 2001). O planejamento, fiscalização da coleta, transporte e disposição final do lixo produzido na cidade é controlado pela Secretaria Municipal de Planejamento, Desenvolvimento e Meio Ambiente - SEPLADEMA. O lixo é depositado em um aterro sanitário, e a coleta seletiva já começou em alguns bairros. 1.2 Os bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel Os bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel estão localizados na periferia da cidade de Rio Claro (Figura 2), e foram implantados à margem do Rio Corumbataí. O loteamento do bairro Jardim Novo Wenzel (ou Novo Jardim Wenzel) foi aprovado em 1981. O bairro apresenta 428.721 m², que no projeto do loteador está previsto para a área: 48,82% de lotes; 28,97% de ruas; 10,11% para o lazer; 10,01% como área institucional e 2,06% de faixa de proteção ambiental. Nesse projeto o loteador é responsável por providenciar o abastecimento de água, o sistema de coleta de esgotos domésticos e o sistema de serviço de iluminação pública (Secretaria Municipal de Habitação, Núcleo Administrativo, Rio Claro – SP, 2009). Em 1983 foi aprovado o loteamento do Jardim Bonsucesso, com 355.273,21 m². Nesta área o loteador prevê: 43,92% em lotes; 24,80% de ruas; 12,83% para o lazer, 11,43% como área institucional e 7,02% de faixa de proteção ambiental. No projeto estão discriminadas como ações para o loteamento do bairro a limpeza da área, demarcação e nivelamento para abertura de ruas, 16 serviços de terraplanagem, demarcação de lotes e quadras, execução da rede de energia elétrica e execução da rede de abastecimento de água (Secretaria Municipal de Habitação, Núcleo Administrativo, Rio Claro – SP,2009). Figura 2: Localização dos bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel. (A) Área urbana da cidade de Rio Claro, com os bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel onde a seta começa. (B) Foto aérea dos bairros. (C) Mapa dos bairros. Em uma visita ao Núcleo Administrativo da Secretaria Municipal de Habitação foi possível confirmar que, em ambos os bairros, as ações previstas para o loteamento não foram concluídas até hoje. No Jardim Novo Wenzel foi aberto um inquérito por irregularidades do loteador, acusado de vender lotes antes do registro do loteamento, e também por apresentar um contrato de compra e venda de lotes diferente do contrato apresentado em cartório. No Jardim Bonsucesso o município pegou como sinal do loteador 183 lotes, dos 552 existentes, para garantir que as obras de infraestrutura do bairro fossem concluídas. B C A 17 Tamanha precariedade reflete no contexto social, político, econômico, educacional e ambiental dos bairros. O Centro de Referência da Assistência Social (CRAS Bom Sucesso/ Novo Wenzel)2 atende à população dos bairros desde março de 2007, e foram totalizadas 1000 famílias, em situação de vulnerabilidade social, ou seja, com [...] o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais que provêem do Estado, do mercado e da sociedade. Esse resultado se traduz em debilidades ou desvantagens para o desempenho e mobilidade social dos atores. (ABRAMOVAY, 2002, p. 29). Segundo o CRAS, a população residente é constituída por famílias vindas do Norte de Minas Gerais, Ceará, Paraíba, Bahia e Grande São Paulo. Os bairros possuem considerável população flutuante. A infra-estrutura proveniente dos órgãos públicos é composta por duas escolas municipais de pré-escola a 4ª série do Ensino Fundamental e Ensino de Jovens e Adultos (EJA), um Posto de Saúde, e um projeto de assistência à infância (PAI), que atende crianças e adolescentes em parceria com a Secretaria de Ação Social (Figura 3). Não há muito investimento na infraestrutura urbana dos bairros. Os esgotos não estão bem canalizados, não existe arborização urbana, as áreas de lazer não atendem a demanda da população, as ruas do Jardim Novo Wenzel foram asfaltadas no final de 2007 e as ruas do Bonsucesso são de terra (Figura 4). De acordo com o CRAS, nos dois bairros predomina o trabalho informal, como doméstica, diarista, pedreiro, assistente de pedreiro. Algumas pequenas e médias empresas e o estabelecimento de áreas industriais têm empregado um número significativo de moradores dessa região. A renda per capita das famílias atendidas é inferior à R$ 120,00, renda essa insuficiente para atender às necessidades básicas como a educação, moradia, saúde, alimentação e segurança. Os problemas das famílias e pessoas residentes nos dois bairros mais recorrentes levantados pelo CRAS são o alcoolismo, uso e tráfico de drogas, inicio da vida sexual precoce, violência doméstica, solidão em idosos, falta de perspectiva de vida nos adolescentes e adultos, união 2 Centro de Referência da Assistência Social dos bairros Bonsucesso e Novo Wenzel 18 instável que gera enfraquecimento familiar e social, mulheres arrimo de família, problemas familiares, envolvimento na criminalidade, fragilidade de vínculos de afetividade. Figura 3: Estruturas existentes nos bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel, Rio Claro, SP. (A) Posto de Saúde. (B) Mercado principal. (C) Escola Municipal Celeste Calil. (D) Escola Municipal Luiz Martins Rodrigues Filho. (E) Projeto de Assistência à Infância (PAI). (F) Vista da Obra Social da Igreja Luterana (em amarelo). A F D C B E 19 Figura 4: Fotos dos bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel. 1.3 O Projeto EPA! O Projeto Educação Periferia e Arte (EPA)! foi idealizado pelos participantes do Grupo de Pesquisa e Extensão sobre Sexualidades (GSEXs)3 da UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” campus de Rio Claro, SP. Vinculado ao GSEXs, o EPA! tem o intuito de promover o acesso e a participação das crianças moradoras dos bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel, por meio das 3 Organizado e coordenado pela Professora Doutora do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da UNESP- campus de Rio Claro: Célia Regina Rossi; e iniciado com os alunos de licenciatura em Pedagogia: Silvio Ricardo M. Machado e Ana Gouvea Bocchini e do curso de licenciatura e bacharel em Biologia: Daniel Locoselli e Vivian Battaini. 20 temáticas de sexualidade, meio ambiente e linguagem, desenvolvendo um trabalho no âmbito da educação não formal e da arte, no período contrário ao período escolar. Justifica-se a ação nesses bairros pela situação de vulnerabilidade social que as crianças se encontram, como considerado anteriormente. O EPA! iniciou em novembro de 2006, com uma parceria entre a UNESP – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” campus Rio Claro – e o Laboratório São Lucas de análises clínicas de Rio Claro4. O Laboratório São Lucas desde o início participou com ajuda em xérox, material escolar para a realização das atividades, lanche para as crianças, além de ajuda de custo aos estagiários e oficineiros. As atividades eram desenvolvidas, a princípio, em uma sala do posto de saúde no bairro Jardim Novo Wenzel. Já no início de 2007, foi realizada uma parceria com a Igreja Luterana, que cedeu o espaço da Obra Social da Igreja Luterana, localizada no Jardim Novo Wenzel, onde desde então acontecem as atividades. 1.3.1 A educação não formal O Projeto EPA! orienta-se por processos de ensino-aprendizagem que transpõem os muros da escola. Segue os princípios da educação não formal definidos por Gohn (2006), que é uma educação que se aprende com o compartilhamento de experiências, com uma intencionalidade na ação, na participação social, no aprendizado e no ato de compartilhar e trocar saberes. Tem o objetivo de auxiliar na construção de relações sociais baseadas em princípios de igualdade e justiça social, para uma formação política e sócio-ambiental. Gohn (2006) diz que a educação não formal contribui para a formação dos indivíduos para se tornarem cidadãos do mundo, com a finalidade de abrir janelas do conhecimento sobre o mundo que nos circunda e sobre os indivíduos e suas relações sociais. Gohn (2008) também se refere à educação não formal como um processo que possui quatro dimensões: a primeira é o aprendizado relacionado à formação política dos indivíduos enquanto cidadãos participativos no que diz respeito ao coletivo; a segunda envolve o desenvolvimento de habilidades e potencialidades que permitem o preparo do individuo ao mercado de trabalho; a terceira diz respeito ao ensino/aprendizagem de práticas relacionadas à 4 Ao final do trabalho essa história é melhor relatada pelas educadoras Ana Gouvêa Bocchini e Priscila Silveira de Oliveira. 21 convivência em coletivo e a quarta é o trabalho de forma diferenciada de conteúdos do ensino formal. No contexto do ensino não formal, por meio de vivências com oficinas artísticas, os participantes do Projeto EPA! são convidados a (re)construírem as relações com o meio ambiente e consigo mesmos. 1.3.2 Arte-Educação As oficinas artísticas foram escolhidas por permitirem estimular e resgatar a espontaneidade, criatividade e originalidade das crianças, em um contexto de trabalho mais livre. A arte e a educação não formal apresentam-se como uma nova forma de comunicação e compreensão de mundo, onde o educador e o educando podem explorar diferentes formas de linguagem e pontos de vista e dialogar com temas de forma interligada. De acordo com Faria e Garcia (2003, p. 52) “A arte cumpre sua função educativa por sua própria forma de expressão”. Estimular as pessoas a viverem na, com e por meio da arte é uma forma de resgatar o encanto pela vida, de tornar o dia a dia mais prazeroso, criativo e assim abrir espaço para os sonhos e as utopias. Muito do que a sociedade, como constituída nos dias de hoje, tem estimulado nas pessoas é o contrário da criatividade, do sonho e da utopia propostas pela arte. Incentiva-se o consumo, e a valorização de bens materiais e poder aquisitivo, e não o ser, pensar, sentir, agir, refletir. A arte, com todo o seu potencial de criação e assim sustentada no Projeto EPA!, é utilizada como um caminho que pode quebrar a influência exercida atualmente nas culturas globalizadas. A homogeneização das culturas, dos valores, das atitudes, das gerações, dos saberes e de formas de expressão dificultam o contato e a interação do individuo com o meio em que está inserido e consigo mesmo. E assim afasta a participação das pessoas, de forma crítica e coletiva, nas questões individuais, sociais, políticas e ambientais. Por isso diz-se que “a arte é inseparável da realidade social, econômica, política e cultural dos diversos países.” (FARIA; GARCIA, 2003, p.57). E assim, o papel da arte no Projeto EPA! vai além do descobrir talentos, gerar renda ou de servir por uma boa causa. Espera-se que as pessoas entendam que é possível se (re)descobrir, viver a vida sob novos olhares, agir de outras maneiras, pensar e refletir sob as situações. E como 22 evidenciado por Siddhartha no prefácio do livro de Faria e Garcia (2003, p. 25) “a vida só vale a pena ser vivida se encontrarmos nela o encantamento.” 1.3.3 Eixos Temáticos O Projeto EPA! possui três eixos temáticos que permeiam e perpassam por todas as atividades: Linguagem, Sexualidade e Educação Ambiental. Falar de linguagem nos permite estimular a reflexão dos indivíduos através da troca de saberes, de discussões, de problematizações, intervenções, ressignificação da linguagem, seja ela escrita, falada ou dramatizada, a respeito do mundo em que estão inseridos. Segundo Bakhtin (1992), “O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. De fato, há tantas significações possíveis quantos contextos possíveis”. Dentro do projeto as diferentes linguagens são trabalhadas levando-se em consideração o contexto de vida em que as crianças estão inseridas e procurando sempre apresentar novos olhares sobre o mundo (BAKHTIN, 1992). O tema sexualidade foi escolhido por ser atualmente visto como um problema de saúde pública, sendo a educação sexual, segundo Altmann (2001), um importante instrumento para trocar informações a respeito de cuidados com: o próprio corpo e com o corpo do outro, gravidez, doenças sexualmente transmissíveis (DST), drogas, questões de gênero, assim como refletir sobre temas como preconceito, violência e exclusão social. Ainda segundo o mesmo autor, é preciso desenvolver ações críticas, reflexivas e educativas que possam promover a qualidade de vida às crianças e aos adolescentes. Dessa forma, o espaço educativo mostra-se importante ao trocar informações sobre o tema, principalmente em um bairro de periferia, que não possui infra-estrutura mínima que atenda às necessidades básicas no que tange à qualidade de vida. Por fim, a Educação Ambiental, que nos permite construir e praticar ações sócio- ambientais além de refletir, discutir, problematizar e reavaliar nosso modo de vida atual e seus problemas, podendo assim apresentar soluções coletivas, maneiras de atuar na comunidade e possibilidades de mudanças. A Educação Ambiental é uma práxis educativa e social, que tem por finalidade a construção de valores, conceitos, habilidades e atitudes que possibilitem o entendimento da realidade de vida e a atuação lúcida e responsável de atores sociais, individuais e coletivos no ambiente. (LOUREIRO, 2002, p. 69) 23 O próximo capítulo, com um enfoque mais aprofundado da EA, estudada aqui como ferramenta teórica e prática de ensino/aprendizagem, apresenta as diferentes concepções de meio ambiente que influenciaram a EA, uma história resumida da EA, principalmente no Brasil, as relações sociais e a EA, com suas diferentes correntes de pensamento. 24 2. Contextualização da Educação Ambiental 2.1 Os impactos das diferentes concepções de meio ambiente na Educação Ambiental Antes de falar em Educação Ambiental (EA) é importante relembrar na história as diferentes concepções de meio ambiente que foram surgindo, e que influenciaram a construção e conseqüente transformação do que hoje se entende como Educação Ambiental. Apesar do termo ser recente, as idéias que permeiam a sua práxis são realizadas desde que o homem começou a se relacionar com o meio ambiente e já há algum tempo são compartilhadas e construídas, mesmo que não com os conceitos e idéias aprofundadas como acontece atualmente. Na medida em que as sociedades foram crescendo e ganhando forma, os recursos provenientes do meio ambiente passaram a ser explorados e transformados pelo e para o homem, que adotou uma postura antropocêntrica, fazendo uso da natureza por meio da sua apropriação, para ser manipulada e consumida. Nessa perspectiva, a compreensão do meio ambiente sustentava-se por uma visão mecanicista, que metaforicamente iguala a natureza ao funcionamento de uma máquina. Esse paradigma foi defendido por René Descartes no século XVII, e permanece até os dias de hoje. Com idéias embasadas principalmente na matemática, Descartes defendeu a teoria do conhecimento científico como absoluto, verdadeiro, no qual todas as coisas podem ser explicadas por meio das relações matemáticas. A visão cartesiana faz uma divisão entre a matéria e a mente, pensamentos e problemas, que podem ser decompostos em suas partes e dispostos em uma ordem lógica (CAPRA, 2005). Para Descartes, o universo material era uma máquina. Não havia propósito, vida ou espiritualidade na matéria. A natureza funcionava de acordo com leis 25 mecânicas, e tudo no mundo material podia ser explicado em função da organização e do movimento de suas partes. Esse quadro mecânico da natureza tornou-se o paradigma dominante da ciência no período que se seguiu a Descartes (CAPRA, 2005, p.56). As relações do ser humano com o meio ao seu redor espelhavam-se na visão cartesiana de mundo, que mesmo tendo sido definida como ciência absoluta não foi capaz de prever e evitar problemas ambientais decorrentes dessa visão. De um lado, as discussões e os estudos sobre as concepções ou visões de mundo, e do outro os problemas decorrentes de ações exploratórias do homem nas diversas partes do mundo. As idéias cartesianas começam então a serem questionadas. O meio ambiente passa a ser compreendido de maneira mais holística, onde os sistemas são considerados integrados e o todo não pode ser reduzido a unidades menores. O conhecimento científico inicia sua transformação para uma nova visão da realidade, que é constituída por interações e interdependências entre as partes que a constituem. Semelhantes às teias e redes, que são sistemas interligados (CAPRA, 2002). A inquietação com o desconhecimento das interações e interdependências no meio ambiente fez emergir os estudos sobre os sistemas ecológicos. Os Ecossistemas sustentam-se num equilíbrio dinâmico baseados em ciclos e flutuações, que são processos não-lineares. Os empreendimentos lineares, como o crescimento econômico e tecnológico indefinido [...] interferirão necessariamente no equilíbrio natural e, mais cedo ou mais tarde, causarão graves danos. (CAPRA, 2005, pág 38) 2.2 As relações sociais e a Educação Ambiental Viver em sociedade implica em conviver com outros seres e compartilhar um mesmo espaço. De forma simplificada, as relações sociais começam nesse ponto. Na medida em que mais sujeitos se envolvem nessa convivência e nesse compartilhar, as relações sociais ficam tão mais complexas. E, ao lembrar que as relações são dinâmicas e mutáveis, e que não apresentam um protocolo de ações e soluções, entende-se a necessidade de se organizar em coletivo, para construir, transformar, mudar as atitudes, os valores, participar, refletir, amar e viver em paz! Diz-se organizar em coletivo por acreditar que cada pessoa é diferente da outra, e que foi ensinada e ensina valores, culturas, crenças, conhecimentos próprios e únicos. Tudo o que é feito 26 por grupos com duas pessoas, ou mais, pode ser combinado. O princípio de considerar a diversidade dos indivíduos no grupo é com o intuito de respeitar a todos, viabilizando espaços de participação nas discussões e decisões que dizem respeito ao coletivo. A EA vincula a ação educativa com a ação social, para formar cidadãos do mundo. Visa construir valores, habilidades, conceitos e ações que possibilitem a participação individual e coletiva nas esferas públicas. Parto do principio de que a Educação Ambiental é uma proposta que altera profundamente a educação como a conhecemos, não sendo necessariamente uma prática pedagógica voltada para a transmissão de conhecimentos sobre ecologia. Trata-se de uma educação que visa não só a utilização racional dos recursos naturais (para ficar só nesse exemplo), mas basicamente a participação dos cidadãos nas dimensões e decisões sobre a questão ambiental. (REIGOTA, 1995, p.9) No Brasil, a maneira como os indivíduos se relacionam com o meio em que estão inseridos ainda carrega a influência, exercida pela nossa sociedade, das idéias de superioridade do homem sobre a natureza e de recursos ilimitados. A relação é marcada pelo crescimento econômico e pelo desenvolvimento das civilizações, e incentiva-se o progresso, a velocidade de informação e de ação, o uso de tecnologias cada vez mais eficientes em detrimento da natureza e o acúmulo de bens. O alto poder aquisitivo torna-se, então, uma necessidade para a inserção do indivíduo nos valores sociais “oferecidos”. Essas idéias, que são fortalecidas pelos meios de comunicação, como as propagandas com estímulos ao consumo, e os programas exibidos pelas emissoras de rádio e televisão, definem padrões de beleza, modos de agir, regras morais e sociais, e alienam a população com relação às reais conseqüências dessa falta de cuidado com o meio ambiente, consigo mesmo e com o próximo. É mais uma ferramenta social que fortalece valores e atitudes individuais, e pouco trabalha a questão coletiva. Os conhecimentos básicos sobre cidadania, responsabilidade social, ética e educação política e social, assuntos que fazem parte direta e indiretamente da vida das pessoas, foram aos poucos suprimidos. A valorização do ter, e não do ser, desviou a atenção das representações governamentais para o progresso: das cidades, com infra-estruturas cada vez melhores e mais modernas; do poder bélico, com as armas de destruição em massa; do agronegócio, com melhores 27 tecnologias e suplementos; da ciência, com pesquisas voltadas para a melhor acomodação e bem estar do homem no meio ambiente, entre muitos outros. O sistema público, como organização social e coletiva de interesse público, vivencia a experiência de não conseguir oferecer o básico, como saúde, educação, transporte e moradia aos cidadãos. Muitas são as conseqüências dessa doença social que estamos passando. Falhou a atenção dos representantes da sociedade para o ser individual e coletivo. Pouco foi feito no sentido de estimular o reconhecimento individual, do outro e da sociedade como coletivo, buscar o equilíbrio entre as partes envolvidas, garantir as mesmas condições e qualidade de vida, ensinar a cidadania. O que aconteceu foi o crescimento da desigualdade social. As riquezas foram se concentrando nas mãos de poucos, enquanto muitos passaram a viver na miséria. As relações em rede, estabelecendo causas e conseqüências, podem ajudar a compreender as ligações existentes entre os pontos que foram citados até agora: a construção e vigência de paradigmas de ontem e de hoje, a representação dos meios de comunicação e da mídia, a falta da educação para a cidadania, a valorização exacerbada do progresso, e a pouca representatividade dos governos. Todos esses processos acontecendo e ao mesmo tempo influenciando a vida das pessoas fizeram aflorar uma sociedade com cidadãos apáticos, acríticos, apolíticos, anestesiados. O mundo está doente, de acordo com Mafalda (Figura 5), que com a ingenuidade de uma criança, extravasa sua incompreensão com a falta de cuidado com o mundo! Figura 5: Mafalda, personagem em quadrinhos5. 5 LAVADO, J (QUINO). Mafalda. São Paulo: Martins Fontes, 1990. v.3. p. 8-9. 28 2.3 História da Educação Ambiental De acordo com Capra (2005), na década de 70 houve uma grande mudança de conceitos e idéias na ciência, provenientes de estudos no campo da física, o que trouxe uma nova visão de mundo. E paralelo a isso, surgiram problemas ambientais, sociais e territoriais, que marcaram os anos 60 e 70, e “[...] geraram uma série de movimentos sociais que parecem caminhar todos na mesma direção, enfatizando diferentes aspectos da nova visão da realidade.” (CAPRA, 2005, p.14). Nos Estados Unidos e Europa, final da década de 60, e no Brasil, décadas de 70 e 80, os chamados movimentos ecológicos ganharam maior visibilidade, sendo praticados por grupos, associações e organizações da sociedade civil. Insatisfeitos com os riscos e impactos ambientais provocados pelos valores estimulados por um modo de vida capitalista, começaram a trazer questionamentos sobre as relações dos grupos sociais com o meio ambiente e da visão de mundo mecanicista. Nesse momento a preocupação central da Educação Ambiental era alertar todas as pessoas sobre a má distribuição e acesso desigual aos recursos naturais, e também desses recursos serem limitados (CARVALHO, 2004). A Educação Ambiental começa então a ser considerada objeto de discussão internacional de políticas públicas. Em 1972, aconteceu a I Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo, Suécia, que abriu espaço para pensar a EA como estratégia para a busca pela qualidade de vida, e estimulou conferências e seminários nacionais e internacionais e a construção de políticas e programas em EA como ações governamentais (CARVALHO, 2004; GRÜN, 1996). Em 1977, em Tbilisi na Geórgia (Ex-URSS), realizou-se a I Conferência de Educação Ambiental, apresentando os primeiros trabalhos desenvolvidos nos países do mundo inteiro (CASCINO, 1999). Com a influência das mobilizações internacionais, a Educação Ambiental no Brasil começa a crescer e inicia sua trajetória ganhando visibilidade na sociedade e aos poucos vem sendo reconhecida nas políticas públicas. É interessante citar e também explicar algumas passagens que auxiliaram na construção e transformação da identidade atual da EA no Brasil, que será melhor discutida mais adiante. 29 Em 1984 foi criado o Programa Nacional de Educação Ambiental (Pronea) e em 1988 a EA, mesmo que indiretamente, é inserida na Constituição - capítulo de Meio Ambiente - como um direito de todos e dever do Estado. Em 1992 aconteceu a Conferência da ONU sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente, no Rio de Janeiro, conhecida como RIO-92 ou ECO-92. Com a Conferência de 1992, o planeta passou a ser mais olhado, e de maneira diferente. Através de seus ilustres cidadãos – os homens e seus instrumentos de poder -, o planeta foi revisto, rediscutido, analisado. Já não cabia apenas desvendar os limites do crescimento, mas, sim, pensar conjuntamente homens, mulheres e a natureza, porque fazem parte dos mesmos sistemas, existem pelas mesmas razões; porque há uma interdependência inquestionável. Agora já se sabia, sem dúvida alguma, que há um futuro em comum. Foi, portanto, nesse espaço privilegiado, que se expandiu a noção de desenvolvimento sustentável (CASCINO, 1999, p. 42, grifo do autor). Durante a realização da ECO-92, as organizações não governamentais e os movimentos sociais realizaram um fórum global, o Fórum Internacional das ONGs e elaboraram o “Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global”, que é muito importante até hoje, pelo fato de trazer princípios definidos no encontro em Tbilisi (1977) e também por ser considerado um marco político para o Projeto Pedagógico da Educação Ambiental (CASCINO, 1999; CARVALHO, 2004). Como lembrado por Czapski (2008), o ano de 1997 é considerado como “o ano da Educação Ambiental no Brasil”, com muitos projetos e ações, dentre eles a inclusão do tema “meio ambiente” como tema transversal nos Parâmetros Curriculares, elaborado pela Secretaria de Ensino Fundamental do MEC; em 1999 é aprovada a Política Nacional de Educação Ambiental - Lei 9.795 - e em 2002 essa Política é regulamentada – decreto 4.281; em 2003 foi criado o Órgão Gestor da Política Nacional de Educação Ambiental, composto pelos Ministérios do Meio Ambiente e da Educação (MMA e MEC, respectivamente), responsáveis por “[...] definir diretrizes da EA em âmbito nacional, supervisionar planos, programas e projetos; e participar da negociação de financiamentos nessa área.”(CZAPSKI, 2008, p. 225) A história da EA vem sendo construída, transformada e escrita por muitas mãos, nas diversas partes do mundo e do Brasil, com trabalhos científicos, educação popular, educação formal e não formal, tentando atingir todas as faixas etárias e classe social. 30 Assim, a EA vem sendo valorizada como uma ação educativa que deveria estar presente, de forma transversal e interdisciplinar, articulando o conjunto de saberes, formação de atitudes e sensibilidades ambientais. (CARVALHO, 2004, pág. 24) 2.4 Diferentes correntes de pensamento e ação da Educação Ambiental Lucie Sauvé descreveu quinze correntes diferentes de Educação Ambiental, em um estudo minucioso sobre a “cartografia das correntes de EA” que existem no mundo. Esse estudo foi feito em 2004 (CZAPSKI, 2008), e evidencia o quanto a Educação Ambiental cresceu e aos poucos é reconhecida. As correntes de EA apontam os diferentes olhares para os problemas e questões ambientais, que refletem interesses sociais de grupos distintos. Estes estão diretamente relacionados à valores, conceitos, atitudes e percepções de um grupo nas diversas propostas e ações elaboradas para solucionar os problemas socioambientais. A classificação em correntes pode facilitar os estudos na área, e não excluem a possibilidade de diálogo entre as mesmas. A EA compreendida e praticada pelas diferentes correntes apresentam basicamente interesses em comum, maiores que os interesses de cada corrente individualmente. A EA é aqui trabalhada sem classificação em nenhuma corrente, tentando trazer a concepção de Educação Ambiental construída de acordo com o contexto de trabalho, o Projeto EPA!, vivenciada entre educadores e educandos, com interesses em comum. Apresenta-se como uma mistura das correntes de pensamento e ações existentes, e de acordo com Carvalho (2004, p.153). Ao constituir-se como prática educativa, a EA posiciona-se na confluência do campo ambiental e as tradições educativas, as quais vão influir na formação de diferentes orientações pedagógicas no âmbito da EA ou, dito de outro modo, produzir diferentes educações ambientais. 31 3. O Projeto EPA! em 2007 3.1 O primeiro semestre de 2007 Os encontros aconteciam apenas no período da tarde, três vezes por semana, com três educadores/estagiários e um oficineiro (oficina de dança - Break6). Foram oferecidas vagas para, no máximo, 30 crianças de 8 a 12 anos. As atividades realizadas durante os encontros permitiam o contato das crianças com a arte e os temas trabalhados variavam ao longo das aulas. 3.2 O segundo semestre de 2007 Em Agosto de 2007, o projeto foi reestruturado e começou a ser oferecido também no período da manhã. Eram 30 vagas disponíveis em cada período, para crianças de 7 a 12 anos, durante três dias da semana, sendo um dia com os educadores/estagiários e os outros dois dias com as oficinas de dança - Break e rima. Dessas 30 vagas disponíveis, participaram com freqüência das atividades no segundo semestre de 2007, em média, 17 crianças. Esse número é aproximado, e foi calculado pela freqüência de participação das crianças dividido pela quantidade de encontros do semestre. A estrutura de ensino/aprendizagem foi pensada no sentido da arte-educação, que auxilia o despertar nas crianças da curiosidade pela vida e de encontrar nela encantamentos. Esse despertar pode também ser possível com a utilização de elementos da realidade dos educandos no desenvolvimento do processo de ensino/aprendizagem. Freire (1980, p.41) explica, no contexto da alfabetização de adultos, da seguinte maneira: 6 Um dos elementos que compõem a cultura Hip Hop. 32 Verdadeiramente, só uma paciência muito grande é capaz de suportar, depois das dificuldades de uma jornada de trabalho, as lições que citam a “asa”; “Pedro viu a asa”; “A asa é do pássaro”; ou as que falam de “Eva e as uvas” a homens que, com freqüência, sabem pouquíssimo sobre Eva e jamais comeram uvas. Para isso, a equipe do EPA! buscou trazer uma oficina escolhida pelas crianças, na tentativa de proporcionar um ensino/aprendizagem que desperte interesse e prazer de aprender e ensinar, aos educandos e educadores. 3.2.1 Oficinas de Break e rima As crianças escolheram a oficina de Break (Figura 6). A idéia de oferecer a oficina de rima surgiu da oportunidade de trabalhar linguagem, leitura, escrita e produção de textos com as crianças, por meio do rap, um estilo musical que reúne música, poesia e visão crítica, com a periferia como principal cenário. Ambos são manifestações que integram um movimento cultural maior, o movimento hip hop. De caráter social, político e cultural, o hip hop nasceu dos “intelectuais de rua”, nos EUA na década de 1970 e no Brasil, nos anos 90. Nos espaços de rua da metrópole paulistana, as classes populares, principalmente da juventude negra (como forma de resistência), evidenciam as dificuldades de viver na periferia e de conviver com a discriminação étnica e social. Por meio de discursos consistentes e elaborados, difundiram o rap, um novo estilo musical, que se tornou a figura central do movimento (ANDRADE, 1999). Constituem a cultura hip hop: o rap e o DJ, que representam a música; o grafite, que representa a pintura; o break que representa a dança; e a educação. Todos esses elementos fundidos dão vida à uma arte que se apresenta de forma integrada, e passível de divisão apenas no plano das idéias. As oficinas, além de ensinar os passos básicos da dança ou um estilo musical novo, ensinam também os princípios de igualdade, justiça social e cidadania do hip hop. Essa relação foi observada também na maneira como os grupos de jovens que dançam se organizam dentro do movimento, as chamadas crews ou posses. De acordo com Silva (1999, p. 27) As posses constituíram-se como espaço próprio pelo qual os jovens passaram não apenas a produzir arte, mas a apoiar-se mutuamente. Diante da desagregação de instituições tradicionais, como a família, e a falência dos programas sociais 33 de apoio, as posses consolidaram-se no contexto do movimento hip hop como uma espécie de “família forjada” pela qual os jovens passaram a discutir os seus próprios problemas e a promover alternativas no plano da arte. Figura 6: Fotografias das aulas de Break no Projeto EPA! em Rio Claro-SP. O movimento hip hop, e conseqüentemente o Break e a rima, com elementos que já fazem parte da vida das crianças e adolescentes das periferias pela sua origem e difusão, e também por seu caráter artístico, político e social, torna-se um caminho próspero na busca por elementos de ensino/aprendizagem que estejam próximos à realidade das crianças, e que permitam com que aprendam com mais prazer e facilidade a refletir, criar e participar como cidadão. O hip hop, que emerge nesse nosso fim de século tão desencantado, é um movimento que afirma a identidade do jovem de periferia, propõe a ação, o auto- aperfeiçoamento, a expressão e o autodidatismo. (PIMENTEL, 1999, p.106). 34 As crianças se identificaram com o Break, e se mostraram muito empenhadas em aprender os passos da dança. Gostavam dos momentos de apresentação das coreografias, de ensinar os colegas, de treinar os passos na escola e em casa. Sutilmente eles trabalhavam as relações sociais e coletivas e a integração com os colegas, além de levarem os aprendizados do EPA! para os outros espaços de convivência, como a casa e a escola. A oficina de rima (Figuras 7, 8, e 9) foi uma proposta inovadora no EPA! Trabalhar a compreensão e construção de rimas, tendo como base letras das músicas de rap, que é algo que eles se identificam, aproximou as crianças ao hábito da leitura, escrita e construção de textos e poesias, além de se sentirem capazes de expressar seus sentimentos, experiências e reflexões por meio da linguagem que a escrita possibilita. Algumas crianças levavam nas aulas construções de textos que haviam feito em outro momentos que não dentro da oficina, demonstrando a relação positiva existente entre a educação e o contexto de vida dos educandos. Figura 7: Poesia realizada pelas crianças fora do horário do Projeto EPA! 35 Figura 8: Poesia realizada pelas crianças fora do horário do Projeto EPA! 36 Figura 9: Poesia realizada pelas crianças na oficina de rima 37 3.2.2 A Educação Ambiental no Projeto EPA! “Qualquer que seja o início dessa conversa, será também o meio, o fim, as entrelinhas.” A Educação Ambiental é um processo de ação/reflexão que não se apresenta apenas no início, no meio, no fim ou nas entrelinhas da vida. Está ao mesmo tempo em todos os espaços. É um experimentar mudar, transformar, melhorar, viver, sentir, errar, visitar, aprender, educar, respeitar... Essas características conferem à EA seu caráter transversal, que permeia todos os assuntos. Tudo o que está fora do sujeito pode ser considerado como meio ambiente externo, com o qual a pessoa se relaciona. De maneira humilde, a concepção de EA no Projeto EPA! e neste estudo é a de um convite aos indivíduos a se conhecer, perceber e habitar o meio em que vivem. A proposta é que essa seja uma reflexão crítica, onde as pessoas, tendo contato com a percepção holística de mundo, em que os sistemas estão interligados e os indivíduos são atores sociais que participam e interferem no meio, tornam-se conscientes de sua presença no mundo, como Freire (1996, p.19) diz [...] seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo. O sentimento de pertencimento em todos os âmbitos da vida se faz então necessário quando a vontade é a transformação, seja de valores, de atitudes, de olhares de mundo. A coerência existente entre o que se fala e o que é colocado em prática, aliado a um sentir-se pertencente, aproxima os indivíduos às situações da vida e desperta a vontade de acreditar e incorporar ações com sinceridade, igualdade, respeito, confiança, esperança, amor, paz, consigo mesmo, entre os sujeitos envolvidos e com o meio ambiente. Essa relação aos poucos se expande e transborda para as relações sociais e coletivas. [...] é importante trabalhar nosso interior [...] precisamos despertar em cada indivíduo o sentido de ‘pertencimento’, participação e responsabilidade na busca 38 de respostas locais e globais que a temática do desenvolvimento sustentável nos propõe. (SORRENTINO, 2002, p.17) E por isso tem papel fundamental na EA como um todo, e dentro do Projeto EPA!, a relação existente entre a teoria e a prática, a práxis, definida por Freire (1987, p.21) como a “[...] reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo”. O aprendizado está relacionado à ampliação, modificação ou confirmação dos saberes na medida em que o conhecimento é colocado em prática e é refletido de forma crítica e constante. A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo (FREIRE, 2004, p.22). A EA é também um convite ao (re)conhecimento do meio ambiente em que o sujeito está inserido e nele vive. E por viver, tem responsabilidades, se levar em consideração a idéia de compartilhar o espaço e construir uma sociedade igualitária pelas mãos de todos os cidadãos. É o ato de se envolver e desenvolver, de forma equilibrada com o meio ambiente. Em outras palavras, com o conhecimento compartilhado entre todos os participantes de forma igual, com espaços de participação social efetivos, respeito às diferenças culturais, com ética, liberdade de expressão, cuidado consigo, com o outro e com o meio ambiente, a cidadania dos indivíduos pode ser aos poucos reconstruída, interiorizada e praticada. A (re)construção da cidadania é o resultado de ações dos atores sociais que, conscientes da sua responsabilidade como indivíduo e como coletivo nas questões que desrespeito ao contexto local e global, participam ativamente na busca por melhores condições de vida à todos. Buscar melhores condições de vida é a procura constante por educação, saúde (física e mental), igualdade social, conhecimento, paz, alegria, emancipação. Loureiro (2007) debate a emancipação como um processo fundamentado na junção da liberdade com a autonomia, que unidas, ajudam a superar os limites identificados pelos sujeitos ao longo da vida. Segundo o autor, a liberdade pode ser compreendida como um resultado da práxis, individual e coletiva, capaz de ampliar as possibilidades das relações do indivíduo em coletivo, com ele mesmo e com o meio ambiente, participando e decidindo. A autonomia é apresentada como condições de escolha livre de tutela ou coerção, onde os sujeitos não dependam de outros para fazer suas escolhas e para agir. 39 A liberdade está nas relações que mantemos conosco e com o outro, pois pressupõe a certeza de que somos seres que nos formamos coletivamente, na existência em uma cultura. É por isso que o conceito de democracia, intimamente vinculado ao ideário da emancipação, remete à capacidade de definirmos as regras de convivência social e não ausência de regras, “o cada um faz o que quer”. Temos responsabilidades para com os demais, nos constituímos na relação “eu-outro” (nós) e compartilhamos o mesmo planeta. (LOUREIRO, 2007, pág 160) A EA no Projeto EPA! trabalha com uma estrutura democrática, também vinculada ao ideário de emancipação, e compartilha as decisões com todos os participantes, com processos que podem ser de maioria, ou consenso dependendo da situação. Dessa maneira o espaço de participação e atuação das crianças nas atividades do dia a dia aumenta, e busca assim, construir o sentimento de pertencimento deles com relação ao que estão vivenciando. Existe também a preocupação de colocar em prática dentro e fora do EPA!, todos esses conceitos considerados até agora, como democracia, pertencimento, práxis, ética, cidadania. As possibilidades de praticar essas propostas de Educação Ambiental que acontecem no Projeto EPA! são infinitas. A troca de conhecimento sobre estruturas de organização governamental, instrumentos de democratização, como as políticas públicas, a participação em associações de bairros, o cuidado com o meio que os circunda, a observação dos processos ecológicos, e sociais, o conhecimento histórico, filosófico e sociológico, são alguns exemplos possíveis de serem trabalhados. E por fim, valoriza-se a constante reflexão sobre a ação, lembrando que o aprendizado ocorre para todos, sejam educandos ou educadores. 3.2.3 Os Bastidores do Projeto EPA! Os bastidores normalmente estão relacionados ao que está por trás espetáculo, aos elementos que não aparecem no palco, mas que estão acontecendo. E são considerados essenciais à qualidade da apresentação! Nesse caso, alguns pontos que fizeram parte do cotidiano do Projeto EPA! durante o segundo semestre de 2007 são descritos e refletidos como peças fundamentais para o desenvolvimento das atividades e a reflexão e discussão do trabalho de reconhecimento dos bairros. 40 • Equipe Vale destacar a equipe que participou do Projeto EPA! ao longo do segundo semestre de 2007: Prof. Dra. Célia Regina Rossi como orientadora, Ana Gouvêa Bocchini como coordenadora do projeto, Camila Gomes Pastor e Priscila Silveira de Oliveira como educadoras e estagiárias, Roberto Rossini Braga (Betão), Carlos Eduardo Bressan (Kadu), Ricardo (Rica) e Marcelo Miranda da Cruz com a oficina de Rima, e José Luis Miranda da Cruz (Índio) e, eventualmente Rudney Miranda da Cruz (Rude), com a oficina de dança Break. É importante lembrar que tudo o que será discutido e refletido é resultado de um esforço e dedicação de todos, e por isso com muita honra esse trabalho dedica um espaço à eles. Estão aqui apresentados relatos de algumas pessoas dessa equipe, como forma de enriquecer o estudo. • As regras de convivência, a divisão dos grupos de lanche, uso dos materiais, limpeza do espaço. Estar com crianças muitas vezes significa o desapego à ordem, às regras, ao tempo. Todas essas palavras dão idéia à algo subjetivo7, e que as crianças ainda não estão habituadas. Por isso, a educação pode acontecer no sentido de permitir a participação dos educandos nos espaços educacionais, para assim trocar experiências, explicar e entender a necessidade de organização, responsabilidade e combinados. Dentro do Projeto EPA! existiu um encontro dedicado à construção de regras de convivência com as crianças. Elas foram convidadas a dizer o que pensavam sobre, e como gostariam que fosse o projeto. Essa atividade está relacionada também com o aprendizado de viver em coletivo. Quer dizer que a construção de regras de convivência nada mais é do que combinar o que pode ou não ser feito, como pode ser feito, por que, onde, quando. Para exemplificar, todos os participantes deram opiniões sobre os horários de ir ao banheiro, de tomar lanche, o que fazer com as situações de descumprimento das regras coletivas. 7 “Subjetividade é aqui entendida como o espaço de encontro do indivíduo com o mundo social, resultando tanto em marcas singulares na formação do indivíduo quanto na construção de crenças e valores compartilhados na dimensão cultural que vão constituir a experiência histórica e coletiva dos grupos e populações.” (CARVALHO, 2004, p.66) 41 Assim, organiza-se o espaço de vivência do grupo, além de auxiliar na construção do sentimento de pertencimento ao EPA! pelas crianças, que começam a se sentir responsáveis pelo o que criaram juntos e daquilo que ficou combinado. Os pontos conversados para a construção das regras de convivência foram a divisão dos grupos de lanche, limpeza do espaço e uso dos materiais. - Grupos de lanche Todos os dias de atividades as crianças ganhavam um lanche. É interessante pensar sobre essa questão quando se fala de um projeto que envolve crianças da periferia, que não possuem o mínimo de condição familiar para suprir suas necessidades básicas, nesse caso as necessidades alimentares. Como bem já sabemos, a alimentação é um ponto essencial quando se trata de estar em ótimas condições de aprendizagem. Alguém consegue pensar, ser e estar de barriga vazia? Mas ao mesmo tempo essa prática pode ser confundida com o que hoje conhecemos como assistencialismo, que definitivamente não confere aos princípios do Projeto EPA! Confunde principalmente as próprias crianças que, em condições como as descritas, algumas não estão preocupadas se o projeto é de dança, religião, leitura ou música. O lanche passa também a ser um chamariz. O difícil é lidar depois com as crianças que não estão nem ligando para as atividades. Essas tornam-se grandes conquistas na medida em que os educadores se esforçam para trabalhar com conteúdos, métodos e técnicas que soam interessantes. Para organizar o momento de tomar lanche, as crianças foram divididas em quatro grupos. Cada grupo ficou responsável por uma semana de cada mês, até o final do semestre. As atividades incluíam fazer o suco, distribuir os lanches e canecas com suco, lavar as canecas de todos os participantes e limpar o balcão. - Limpeza do espaço e uso dos materiais Basicamente ficou decidido que todos os participantes do EPA! seriam responsáveis pela manutenção e limpeza do espaço da Obra Social da Igreja Luterana e pelo uso consciente dos materiais, guardando onde pegou e tentando não desperdiçar. São exemplos importantes de identificação, construção do sentimento de pertencimento e responsabilidade frente aquilo que estão vivenciando. 42 • Idade para participar No início de 2007 o Projeto EPA! era destinado à crianças de 8 a 12 anos, e no segundo semestre incluiu também as crianças com 7 anos. Nesses bairros era comum acontecer das crianças faltarem muito às atividades por terem de cuidar de seus irmãos mais novos. Aquela inquietação de saber que é uma criança cuidando de outra e, talvez pior, é saber que a mãe só faz isso por extrema necessidade. Para tentar diminuir a ausência, a idade mínima para participar do EPA! foi alterada. Apesar de esse aumento não parecer ser muito representativo, três irmãos conseguiram participar, pois o mais novo tinha sete anos! • A importância dos momentos de descontração.... Brincar e falar sério. Os momentos de descontração, relaxamento, brincadeiras livres são muito importantes. É quando as crianças se desprendem um pouco das obrigações das atividades, e podem correr, pular, conversar com o colega, brincar e ser um pouco mais criança. É a mesma idéia de direitos/deveres na sociedade, só que direitos/deveres dentro do Projeto EPA! Esses espaços eram combinados todos os dias entre os participantes e os educadores, de acordo com as atividades. Normalmente eram os educadores que levavam propostas de brincadeiras e jogos, mas algumas vezes as crianças conduziram esses espaços. 3.2.4 Construindo um tema central para o 2º semestre de 2007 As reuniões entre coordenador, educadores e oficineiros aconteciam uma vez por semana, com espaços abertos de diálogos, construção de atividades, trocas de experiências, ações, dificuldades, dúvidas, promovendo processos construtivos e participativos na elaboração e vivência das atividades, de maneira integrada e contínua. A elaboração conjunta das atividades para o segundo semestre de 2007 proporcionou a possibilidade de fundamentar as ações em um tema pensado de forma participativa. Esse método permitiu aprofundar os assuntos e assim trocar conhecimentos e valores sobre o tema escolhido, estimulando a participação, a criatividade e a resignificação de conhecimentos das crianças, além de proporcionar uma consciência crítica à respeito dos assuntos escolhidos. Visou germinar nas crianças um sentimento de pertencimento daquilo que vivem e fazer com que eles se aproximem e sintam-se responsáveis e atuantes perante as situações que experimentam ao longo do trabalho. 43 Nas reuniões entre a equipe de trabalho do EPA! surgiu a idéia de estudar o contexto social e ambiental em que as crianças estão inseridas. Foram realizadas atividades sobre os diferentes espaços e o meio ambiente, considerando as diversas formas de ambiente, como o espaço do projeto, o corpo só e em contato com outro(s) corpo(s), o bairro, a casa, as relações sociais, as relações familiares, a natureza. Ficaram então definidos entre os educadores quatro temas para serem trabalhados: a casa, a escola, o bairro e o projeto, e desses, as crianças escolheram um para ser aprofundado nos encontros. 3.2.5 A casa, o bairro, o Projeto EPA! ou a escola? No primeiro mês de atividades, as duas semanas iniciais foram conduzidas na tentativa de fazer com que as crianças se sentissem mais à vontade entre elas e os educadores, com dinâmicas de apresentação e de integração, além de brincadeiras e a construção conjunta de regras de convivência dentro do projeto. As outras duas semanas foram com atividades de reconhecimento dos espaços sugeridos (a casa, a escola, o bairro e o projeto) e idealizações dos mesmos. Divididas em quatro grupos, as crianças foram convidadas à criar representações de como gostariam que fosse cada espaço e ficaram livres para fazer colagens e desenhos, e pensarem um pouco mais sobre os temas sugeridos. Na semana seguinte os cartazes foram retomados e avaliados por todos do grupo. Demos início à atividade. Cada grupo do lanche recebeu uma das cartolinas da semana passada para então fazer uma avaliação do que eles achavam que era viável ou não fazer no bairro, na escola, no projeto e na casa deles. Foi bem interessante, pois eles no começo não estavam entendendo muito bem o que tinham condições ou não de fazer. Fomos explicando, e saíram coisas como horta, como a proposta de arrumar o campinho, construir um parquinho, entre outras coisas (Educadora Camila Gomes Pastor, relato de aulas, 18/09/2007). O tema BAIRRO foi então escolhido pelas crianças como foco de estudo até o final do semestre de atividades. 44 4. Reconhecendo os bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel “A realidade social é o próprio dinamismo da vida individual e coletiva com toda a riqueza de significados dela transbordante. Essa mesma realidade é mais rica que qualquer teoria, qualquer pensamento e qualquer discurso que possamos elaborar sobre ela.” (MINAYO, 2003, p.15) Lembrando que o projeto propõe o ensino-aprendizagem como algo construído entre educadores e educandos, nessa linha, diversas são as opções de trabalhar o ensino não formal, que por meio da interdisciplinaridade, pode trazer questões que envolvem diferentes visões, sem necessariamente se prender aos conteúdos pré-estabelecidos, divididos e classificados. A divisão e a classificação estão dentro de uma das maneiras que o “homem cientista” encontrou para facilitar a compreensão das diferentes formas de linguagem e assim conseguir estudar de maneira mais específica os assuntos que se interconectam. E, pensando nessa conexão entre as diferentes ciências, o grupo de educadores decidiu trabalhar com um pouco de tudo e assim dialogar com assuntos mais cotidianos e mais próximos da realidade das crianças. Foi nesse momento que surgiu a idéia de fazer um trabalho de reconhecimento do bairro. Reconhecimento, pois compreende a possibilidade das crianças olharem o meio ambiente em que estão inseridas, com novos olhares, novos prismas. Alves (1992) fala sobre o conhecimento que tem odor agradável e sabor palatável, como algo que identifica e dá prazer. O trabalho de reconhecimento do bairro é também o reconhecimento de novos “cheiros” e novos “sabores” que podem estimular os sentidos das crianças e a curiosidade sobre o meio em que vivem. 45 4.1 Construção da carta coletiva ao Prefeito da cidade de Rio Claro, SP. Como primeira atividade foi proposta a construção coletiva de uma carta ao Prefeito da cidade de Rio Claro – SP, para fazer um levantamento e expor a visão das crianças frente às carências do bairro. A carta começou a ser escrita por todos, mas depois as crianças foram divididas em alguns grupos, para tentar deixar mais à vontade aqueles que não estavam participando no grupo grande. E as cartas foram sistematizadas em uma única carta pelos educadores, que segue: “Rio Claro, 25 de setembro de 2007. Sr. Prefeito, Precisamos muito da sua ajuda. Nós somos moradores dos bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel, alunos do projeto EPA! (Educação, Periferia e Arte!) e temos entre 7 e 12 anos. Queremos mudar nossos bairros, precisamos muito de um Posto de Saúde melhor, com mais médicos, remédios e com melhores atendimentos. Por que o nosso bairro não tem um Posto de Saúde melhor? Também achamos importante se terminassem de asfaltar, queremos melhorar a situação das ruas. Por que nosso bairro não tem asfalto? Prefeito, queremos que você ajude a melhorar as escolas Luiz Martins e Celeste Calil. Aqui no bairro precisa de uma creche para nossas mães trabalharem melhor. Queremos melhorar a situação das crianças e pessoas que ainda vão vir pela frente. Seria muito bom se tivéssemos uma sorveteria, clube de natação, praças, área de lazer, quadras de futebol e voleibol. Também queremos um parque para os nossos filhos, mais diversões, mais brinquedos. Precisamos muito de um banco, caixas de dinheiro aqui perto! Por favor entenda nossos pedidos. Se você fizer, te agradecemos. Fique com Deus. Te convidamos para conhecer o nosso bairro. Alunos da turma da manhã, Projeto EPA!” As versões originais das cartas podem ser vistas no ANEXO A. Foi um momento significativo, por pensar que as crianças estavam sendo críticas e ao mesmo tempo exercitando o seu direito de pensar e dizer o que sentem, exercendo politicamente o direito a reivindicações coletivas. Essa carta evidencia os problemas dos bairros, com a definição de questões prioritárias, e sugere melhorias na perspectiva das crianças ao sonharem com as soluções. 46 Observando a carta, percebe-se que faltava às crianças conhecimento sobre como definir os planos de ação, ou seja, como colocar em prática uma transformação que almejam. As dificuldades em definir os planos de ação surgiram em forma de dúvidas, e estão relacionadas à maneira como compreendem a estrutura da sociedade em que vivem, como a sociedade se organiza e os mecanismos de atuação. Na carta, quando as crianças falaram “queremos mudar nossos bairros”, ficou um sentimento de que querem transformar as coisas, mas não sabem como. A falta de explicações para a desigualdade que eles vivenciam todos os dias também pareceu evidente nas perguntas que elaboraram “Por que o nosso bairro não tem um Posto de Saúde melhor?” ou “Por que o nosso bairro não tem asfalto?”. Foi então que uma busca por informações sobre os bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel começou. Os educadores fizeram uma visita ao Arquivo Público Municipal, e conseguiram um mapa (Figura 10) contendo as áreas de posse da Prefeitura demarcadas, as conhecidas áreas institucionais, e com esse material foi dada continuidade às atividades no encontro seguinte. Além de estimular nas crianças outros olhares sobre os bairros, essa atividade ofereceu a oportunidade delas vivenciarem momentos de consenso e construção de texto coletivo, com crianças e educadores com visões e opiniões diferentes. 4.2 A escolha das áreas e a construção dos projetos individuais Sentados em volta do mapa, todos - crianças e educadores - procuraram se localizar. A idéia era mostrar o local onde as crianças moram e onde acontece o projeto por outro ângulo. E também explicar a diferença entre os termos público e privado. Porque essa diferenciação? Conversando por meio de exemplos de vida deles, foi construído, de modo simplificado, o raciocínio de que privado é o que pertence à uma pessoa ou empresa, e público é pertencente ao governo. Dessa maneira, tudo o que é público é de responsabilidade do poder local vigente e, no caso de Rio Claro, é a Prefeitura Municipal. Com essa atividade foi possível conversar com as crianças o que pode então ser considerado como responsabilidade pública. E ficou uma pergunta no ar: será que as áreas institucionais dos bairros estão sendo bem aproveitadas e oferecem o mínimo de qualidade de vida à seus moradores? 47 As crianças junto com os educadores escolheram três áreas institucionais do mapa dos bairros (Figura 10) para serem visitadas no encontro seguinte, na busca de elementos que servissem de exemplo prático para refletir sobre a situação social e ambiental dessas áreas públicas nos bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel, e assim conseguir pensar em mudanças, mesmo que apenas como um exercício de idealização. Figura 10: Áreas institucionais (listradas) escolhidas pelas crianças e educadores do Projeto EPA! para visitar, registrar por meio de fotografias e construir uma maquete como proposta de melhoria do espaço. Área 1 em vermelho; área 2 em laranja e área 3 em roxo. Fonte: Secretaria de Planejamento, Desenvolvimento e Meio Ambiente – Rio Claro, SP. Departamento de sistematização e análise da informação municipal. É importante ressaltar que as crianças já sabiam dizer, utilizando o mapa como referência, que as três áreas eram abandonadas, e por isso foram escolhidas. Com essa oportunidade de deixar as crianças escolherem as áreas de acordo com o conhecimento construído pela vivência 48 deles nos bairros, houve uma possível valorização do saber dos educandos, que podem ter se sentido importantes e significativos na construção das atividades em relação à seriedade e vontade com que estavam e que continuaram a participar das atividades. Ao final desse encontro, as crianças ficaram livres para desenhar, individualmente, projetos com sugestão de melhoria dos bairros para uma das três áreas escolhidas. A atividade sugeriu a reflexão individual das crianças no que diz respeito às opiniões pessoais frente aos problemas e quais as possíveis soluções. Seguem alguns trabalhos que exemplificam a atividade: (11) 49 (12) 50 (13) (14) 51 (15) Figuras 11, 12, 13, 14 e 15: Desenhos de projetos com sugestão de melhorias para áreas institucionais dos Bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel, realizado pelas crianças moradoras, participantes do Projeto EPA! Olhando todos os trabalhos, algumas propostas chamaram bastante atenção devido à freqüência com que aparecem, como por exemplo, a presença de áreas de lazer/parquinhos, de áreas mais arborizadas, praças, campos e quadras de esporte. Referências como creches, propostas de aumentar o Posto de Saúde, e de ter um circo, apareceram poucas vezes, algumas apenas uma vez, lembrando que são tão importantes e sugestivos quanto os que apareceram mais vezes. Nos desenhos individuais as crianças representaram praticamente as mesmas idéias que surgiram em coletivo, com a carta. E esses resultados repetidos sugerem algumas questões. Será que o fato de ter trabalhado a reflexão coletiva antes da reflexão individual influenciou as respostas individuais das crianças? E pode ser a repetição de idéias no individual o reforço de uma inquietação coletiva? 52 A representação da linguagem por meio da arte – desenhos – permitiu as crianças detalharem as sugestões de melhoria para o que consideram um problema ou que sentem falta nos bairros, podendo ser entendido como um complemento da atividade da carta coletiva. É possível dizer que o trabalho coletivo influenciou sim as opiniões e sugestões das crianças nos desenhos com projetos individuais para as áreas. Isso não quer dizer que elas estão deixando de ser sinceras e estão apenas imitando os colegas ou o grupo. Fica claro que, na construção dos desenhos detalhados, fizeram uma reflexão individual de como gostariam que fossem os espaços, mesmo que a escolha desses espaços tenha sido, de alguma maneira, direcionada. E assim, os resultados realmente se mostraram como um reforço de uma inquietação coletiva, apesar de simples, e que também já faz parte da realidade de observação do dia a dia das crianças. A inversão das atividades – fazer o desenho individualmente no primeiro encontro e depois escrever a carta ao Prefeito em coletivo no segundo encontro – pode estimular resultados diferentes por trabalhar a opinião individual antes que ela seja influenciada pela opinião coletiva. 4.3 Novos olhares... Nos dois primeiros encontros as atividades foram conduzidas com o intuito de saber das crianças como elas gostariam que fossem os bairros em que moram, em coletivo e individualmente, ao estimular as sugestões de melhoria nos bairros por meio da idealização. O terceiro encontro teve como proposta a visita das áreas institucionais escolhidas no encontro anterior, na tentativa de estimular as crianças a experimentarem outros olhares. As crianças foram divididas em três grupos, e saíram com os educadores para fazer a visita. Cada grupo ficou responsável por uma área. Observaram os espaços, puderam imaginar os mesmos limites das áreas institucionais demarcados no mapa, e pensaram em algumas perspectivas para tirarem fotos no encontro seguinte, capazes de expressar melhor as situações sociais, econômicas e ambientais desses espaços. A área 1, localizada no Jardim Novo Wenzel, fica próxima ao trilho do trem, com o espaço de um lote para uma casa pequena e rodeado por casas de famílias. As áreas 2 e 3, ambas localizadas no Jardim Bonsucesso e bem próximas aos cursos d’água, possuem tamanhos maiores que o da área 1 e não possuem muitas casas ao redor (Figura 10). 53 As três áreas estavam sendo utilizadas como campos de futebol, reconhecidas pela presença das traves de futebol. Na visita, as crianças e os educadores puderam conversar sobre alguns assuntos dos bairros, como a questão do lixo, com alguns focos de depósito irregular, as áreas que as crianças utilizavam para o lazer, a qualidade da água dos rios, a presença de espaços ociosos, a questão do asfalto e da estrada de terra, as condições dos campinhos existentes nos bairros. Também conversaram sobre os sentimentos, lembranças e aprendizados da experiência de morarem nesses bairros. Foi um momento de recordação e troca, em que as crianças contaram de suas brincadeiras e passeios freqüentes nos rios, nas casas e terrenos abandonados pelos bairros. Ficou evidente o quanto eles gostam daquele lado rural de poder viver mais livre e em contato com a natureza, com as estradas de terra, com as crianças na rua empinando pipa, com animais, como cabras e galinhas, e hortas. Ao mesmo tempo as situações notadas ao passear pelos bairros e conversar com as crianças, mostraram que elas experimentam a precariedade de morar em bairros com vulnerabilidade social. Contaram histórias sobre violência, dentro e fora de casa, drogas, falta de infra-estrutura básica. A vontade de mudar os problemas se mostrou algo presente nas observações delas, assim como foi na carta ao Prefeito e nos desenhos individuais. Estimular as crianças a observarem uma situação próxima da visão delas e que aparenta ser simples de compreender pareceu aflorar um sentimento mais esperançoso e de mudanças. Após a visita, sugeriu-se a representação do passeio por meio de desenhos, com elementos que as crianças mais gostaram, de forma livre (Figuras 16, 17, 18, 19 e 20). Registraram, na grande maioria, a área visitada ao fundo e os grupos de crianças e educadores como personagens. A companhia dos colegas e educadores foi algo bem significativo para eles. Em conversa ao final da visita, os três grupos se reuniram, e os educadores e as crianças conversaram sobre o bairro, os problemas que cada grupo observou, coisas interessantes que viram e as possibilidades de mudança dos espaços. 54 (16) (17) 55 (18) (19) 56 (20) Figuras 16, 17, 18, 19 e 20: Desenhos que representaram o passeio das crianças e educadores do Projeto EPA! pelos bairros Jardim Bonsucesso e Jardim Novo Wenzel, Rio Claro-SP. 4.4 Olhar com o olhar das crianças.... A atividade realizada nesse encontro foi uma saída para registrar, por meio de fotografias com câmeras digitais, as áreas que cada grupo trabalhou e os elementos que consideraram importantes de fotografar nos bairros. Inicialmente as crianças tiraram fotos umas das outras dentro do espaço de trabalho do EPA!, para que pudessem aprender como utilizar a máquina, e como enquadrar a imagem que queriam registrar (Figura 21). Especialmente no que diz respeito ao registro fotográfico, fica aqui uma reflexão sobre a necessidade de buscar resultados concretos e que estejam explícitos no texto. No caso desse trabalho de reconhecimento dos bairros, as fotografias falam por si. Seria desnecessário e até mesmo, repetitivo, relatar o que já foi considerado na contextualização das áreas ao longo do trabalho e dos outros registros feitos pelas crianças até então. É mais do que buscar respostas para o que as crianças quiseram falar. Que seja esse o momento do estudo de contemplar a realidade por uma linguagem diferente, mais do que um registro escrito. Entenda como um momento de “olhar pelo olhar das 57 crianças”. Imagens que refletem sentimentos e que, como contemplação, tornem-se uma busca de todos os leitores pelos elementos que dão vida à identidade e ao sentimento de pertencimento das crianças, permitindo que o momento de reflexão tenha algum sentido no agir. Figura 21: Exercício para aprender a utilizar a câmera digital com os três grupos. Grupo 1 (A); grupo 2 (B) e grupo 3 (C). Os grupos, cada um com uma câmera digital, saíram para fotografar as áreas escolhidas. No caminho, as crianças, revezando a câmera, registraram os elementos que consideravam representativos para o reconhecimento dos bairros, que podem ser vistos nas fotos que elas tiraram. Iniciamos a atividade explicando para eles como usar a máquina fotográfica. O meu grupo foi para a área do Novo Wenzel, passamos pelo ‘Gogó da Ema’. Logo que saímos tinha um rio que eles se interessaram bastante em tirar foto. Falaram que estava poluído, que se não estivesse poluído que eles poderiam nadar lá; comentaram a respeito do lixo que as indústrias derrubam nos rios. (Educadora Camila Gomes Pastor, relato de aulas, 16/10/2007). 58 A caminho da área 1 Figura 22: Registro fotográfico do bairro a caminho da área 1. (A) Vista do Bairro Jardim Novo Wenzel. (B) Beira do rio. (C) e (D) Córrego próximo ao trilho do trem. (E) O galo, na frente de uma casa. 59 Área 1 Figura 23: Registro da área 1 em diversas perspectivas. 60 A caminho da área 2 Figura 24: Registro a caminho da área 2. (A) Horta em uma residência; (B) Rio que passa dentro da área; (C) Margens na beira do rio; (D) A caminho da área 2; (E) Depósito de reciclável no bairro. A E C D B 61 Área 2 Figura 25: Registro da área 2 em diversas perspectivas. 62 Área 3 Figura 26: (A) Registro de algumas perspectivas da área 3; (B) Um rio à caminho da área 3. 4.5 Direcionamento das soluções Até esse momento, as crianças junto com os educadores haviam pensado sobre os problemas dos bairros e possíveis sugestões de melhoria. Também sobre a responsabilidade da Prefeitura Municipal com relação à construção, regulação e manutenção dos espaços públicos. Estavam, no fundo, falando e estudando um dos fundamentos da democracia, que é a consciência de que todas as pessoas têm direitos, inclusive a participação nas tomadas de decisões, e também deveres, ambos garantidos na Constituição Brasileira. A A A B 63 Por esse motivo, é interessante ter cuidado com a proposição de atividades que estimulem a crítica, mas não estimulam o apontamento concreto de soluções sem incluir também os próprios cidadãos como responsáveis e atuantes na sociedade (pertencentes). Os educadores, por meio de uma atividade na oficina de rima, incentivaram a reflexão direcionada de propostas das crianças sobre as possíveis soluções para os problemas que eles levantaram na carta, nos projetos desenhados para as áreas públicas, no passeio pelo bairro e que registraram por meio das fotografias. A diferença dessa atividade para as outras é sutil, porém muito importante de considerar. Enquanto as outras atividades estavam focadas no levantamento de problemas, que trazem junto algumas sugestões de melhoria, essa atividade teve como foco principal relacionar cada problema que já havia sido levantado com o direcionamento das soluções. Os resultados dessa atividade foram resumidos e transformados em tabela (tabela 1), para facilitar a compreensão dos apontamentos das crianças com relação aos direitos que possuem. Alguns exemplos da atividade estão disponíveis no ANEXO B. Tabela 1: Resumo dos resultados obtidos da atividade de levantamento de problemas e soluções dos bairros Jardim Bom Sucesso e Jardim Novo Wenzel, pelas crianças moradoras, realizada no segundo semestre de 2007, no Projeto EPA! (Educação, Periferia e Arte!) em Rio Claro – SP. Tema Problemas Soluções Asfalto Muita poeira e terra, sem asfalto. Asfaltar Posto de Saúde Posto de Saúde ruim, com poucas salas e poucos médicos. Mais um posto de saúde, contratar mais médicos, mais remédios Escola Muitos moleques malcriados. Mais classes e professores; Fazer uma escola de 5ª a 8ª série. Segurança - Mais polícia nos bairros Amor Todos brigam. As pessoas têm que se amar Violência Mulher atirando na outra, matar a própria família, brigar. As pessoas têm que se amar, amar a família, e acabar com a violência. Mercado Falta mais um mercado. Ter mais mercados Transporte Não tem trem para levar passageiros. Trens de passageiros Construções A maioria das construções não são terminadas. Terminar as construções O quadro com os resultados resumidos mostrou que as crianças, apesar de não ter uma educação muito voltada para a construção da cidadania, sabem o que não gostam e o que não querem. Mas desconhecem os caminhos que conduzem à efetivação das mudanças que idealizam. As respostas das crianças, aparentemente óbvias, são muito coerentes e significativas, apesar das 64 soluções propostas não serem, em nenhum momento, vinculadas à responsabilidades, nem do poder local, e muito menos da população. Apenas relacionar os problemas com as soluções não parece surtir muito efeito no que diz respeito à construção da consciência da responsabilidade que cada criança do Projeto EPA!, e também todas as pessoas, têm sobre o espaço que vivem, em qualquer escala que esteja sendo trabalhada. Escalas maiores, como o mundo, o meio ambiente, o Brasil. Escalas menores, como si próprio, a casa, a rua, a escola. Fica aqui uma sugestão de complementar a atividade ao propor que os participantes tentem relacionar com o levantamento dos problemas e soluções, as responsabilidades da população e do poder local. Será que as crianças saberiam dizer o que elas consideram como responsabilidades delas e o que consideram como responsabilidade do poder local? Dessa maneira pode ser possível compreender um pouco mais à fundo onde encontra-se o desconhecimento das questões que envolvem a participação da população na prática. 4.6 Construção das maquetes em três encontros Esses encontros foram para construir uma maquete por grupo ou área de estudo, com uma decisão coletiva às mudanças que gostariam de sugerir para cada uma das três áreas. Com isopor, tinta guache, palitos de churrasco e sorvete, papel crepom, cola, fita crepe, canetinhas coloridas, cartolinas de diversas cores, revistas, eles representaram as áreas que visitaram e fotografaram da maneira como gostariam que ficasse. O trabalho foi feito ao longo de três encontros, e eles deixaram bem claro que a grande carência do bairro na visão deles são as áreas de lazer! Os três grupos fizeram uma quadra de esportes cercada e com boa iluminação, junto com um parquinho, muitas árvores e bancos de praça. Um dos grupos representou o rio que corre perto da área deles como um rio limpo. A proposta deles foi de certa forma, registrada. No mínimo eles entenderam que possuem oportunidades de propor sugestões de melhorias mais concretas do espaço em que vivem (Figura 27). 65 Fig.27: Fotos da exposição das maquetes realizadas pelas crianças do Projeto EPA! na festa de final de ano. 4.7 Festa de Final de ano do EPA! e exposição do trabalho na biblioteca da UNESP de Rio Claro. As maquetes, junto com as fotos e a carta ao prefeito ficaram expostas na festa de final de ano, que foi aberta à comunidade. E, para fechar o trabalho, a equipe do Projeto EPA!8, no começo de 2008, realizou a mesma exposição na Biblioteca da UNESP-Rio Claro e levou as crianças para uma saída de campo, que incluía a visita à exposição, uma visita ao laboratório de Anatomia e um lanche no campinho. Nem todas as crianças que participaram das atividades de reconhecimento dos bairros foram à exposição, mas para os que tiveram a oportunidade de ver o trabalho deles na biblioteca da faculdade, foi mais uma experiência que pode ter estimulado o sentimento de pertencimento e de se sentirem responsáveis. 8 Fernanda Feitosa do Vale como coordenadora; Camila Gomes Pastor, Carolina como educadoras; Juliana com a oficina de Artes e o Índio com a oficina de Break (dança Hip Hop) 66 4.8 Contribuição dos educadores • Roberto Rossini Borges- educador/oficina de rima Aprendendo a amar O que diria o grande Mestre dos Mestres, o mais Humilde entre os Humildes, a me ver tentar? Longe de mim comparação almejar. Porém, já que é para tentar, por que não focar nos grandes sábios da história para me inspirar? E quem seriam esses, que tão longe parecem estar de meu olhar? Enquanto isso outros tão pequenos, porém tão grandiosos, apresentam sobre a vida ensinamentos numerosos. Ciência e filosofia são muletas nas quais me apoio. Prática ,teoria e tempo trazem respostas aos meus olhos. O grande filtro da incerteza seleciona o melhor. A magia da mãe natureza recicla o pior. Talvez até consiga representar tudo que levei. Mas mesmo que não consiga, o importante é que tentei. Paciência, otimismo, respeito, esperança, prudência, ousadia, persistência, tolerância, cordialidade, cooperação, autenticidade, compreensão, verdade, fé, paz e amor no coração. 67 • José Luis Miranda da Cruz (Índio) – educador/oficina de Break “No começo a maioria das crianças tinha dificuldade de se manter educado com os pais, professores. Além de dar aula, convivi bastante com as crianças e suas famílias, que mostravam, tanto no Projeto EPA!, quanto em casa a educação que o Break ajudava. Eles queriam e sentiam falta da presença dos pais, que viam nos professores a imagem dos pais. As crianças ficavam abraçando os professores e sentiam ciúmes umas das outras. Queriam que fosse o pai. Hoje elas entendem que a relação é de amizade. Você pode dar 2, 3 anos de aula que as crianças vêem que os professores querem o bem. O Break está lá, na hora que você precisa. Aquilo que fazemos que consideramos pequeno, para as crianças é muito grande. O Break, não só, mas o Hip Hop também, temos que cobrar o respeito, o valor de compartilhar o conhecimento. Acho que é isso que as crianças se identificam. No Projeto EPA! eu me tornava o espelho, para que as crianças pudessem se tornar alguém. A criança precisa estudar. O Hip Hop cobra isso!. Respeito, as crianças precisam de atenção.” 68 • Carlos Eduardo Bressan – educador/oficina de rima “S.E.P.A” Somando Educa