WELLINGTON AMARANTE OLIVEIRA MUITO ALÉM DO CONHECIMENTO: a TV educativa na França e no Brasil, a La Cinquième e o Canal Futura (1994-2002) Assis 2017 WELLINGTON AMARANTE OLIVEIRA MUITO ALÉM DO CONHECIMENTO: a TV educativa na França e no Brasil, a La Cinquième e o Canal Futura (1994-2002) Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Doutor em História (Área de conhecimento: História e Sociedade) Orientador: Áureo Busetto Bolsista: Wellington Amarante Oliveira Processo FAPESP: 2013/17906-2 Assis 2017 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp O48m Oliveira, Wellington Amarante Muito além do conhecimento: a TV educativa na França e no Brasil, a La Cinquième e o Canal Futura (1994-2002) / Wellington Amarante Oliveira. Assis, 2017. 281 f.: il. Tese de Doutorado – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Dr. Áureo Busetto 1. Televisão - História. 2. Brasil - História - 1994-2002. 3. França - História - 1994-2002. I. Título. CDD 791.45015 Dedico esta tese as minhas avós Jandira e Neuma, a minha mãe Raineide e a minha companheira Camila, mulheres que têm me ensinado a ser um homem melhor. AGRADECIMENTOS Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pela bolsa concedida (Processo FAPESP 2013/17906-2), que possibilitou que todas as atividades relativas à pesquisa fossem desenvolvidas plenamente. Agradeço ao meu orientador, professor Áureo Busetto, pela parceria ao longo destes anos, pela liberdade e o incentivo à autonomia intelectual e pela generosidade de compartilhar o seu conhecimento sobre a história. Agradeço aos professores Carlos Alberto Sampaio Barbosa e Rafael Rosa Hagemeyer, que participaram do Exame de Qualificação com leituras atentas, indicações precisas e incentivos para a conclusão deste trabalho. Agradeço também aos professores Edvaldo Correa Sotana, Cássia Rita Louro Palha e Osmani Ferreira da Costa que contribuíram com indicações de pesquisa nos mais diversos eventos acadêmicos, e à professora Vizette Priscila Seidel pela revisão gramatical. Agradeço imensamente à professora Évelyne Cohen pela disposição de ter sido responsável pelo meu Estágio no Exterior, assumindo todas as obrigações burocráticas que a função exigia e, sobretudo, por suas orientações precisas sobre a televisão francesa. Agradeço a Pascal Toublanc pelo profissionalismo e pela paciência para explicar o funcionamento da Inathèque e por esclarecer todas as minhas dúvidas durante o período de pesquisa no INA Centre-Est, em Lyon. Agradeço a Paul Desfontaines e Aurélien Peyrel pela recepção na sede da France Télévisions e pelo cuidado na separação dos documentos consultados junto ao Service Archives France Télévisions. Agradeço à Lúcia Araújo e Mônica Pinto por franquearem o acesso aos documentos impressos e audiovisuais do Canal Futura e a Gilsa Ribeiro e toda a sua equipe do setor de arquivos de imagens da emissora. Sou imensamente grato aos funcionários da UNESP/Assis, responsáveis pelo funcionamento geral do campus e por tornar esse lugar tão especial. Agradeço especialmente ao Auro, Cleomar, Ana Paula, Sérgio e demais funcionários da biblioteca “Acácio José Santa Rosa” que, apesar das adversidades e dificuldades cotidianas, estão sempre dispostos a nos atender da melhor forma possível. À Clarice e Regina, secretárias do Departamento de História, sempre disponíveis e atenciosas. À Zélia, Lino, Marcos, Sueli e demais funcionários da Seção Técnica de Pós-Graduação pela disponibilidade, agilidade e paciência com as demandas muitas vezes urgentes. Ao Márcio e Eduardo, do escritório de pesquisa, sempre prontos a esclarecer e resolver os imprevistos relacionados à bolsa. Agradeço ao Danilo Alves Bezerra e à Lígia Cristina Carvalho a oportunidade de ter participado do Conselho Editorial fundador da revista discente Faces da História e, no ano de 2015, poder ter chefiado a revista, ao lado de Andréa Helena Puydinger De Fazio, David Aparecido Costruba e Patrícia Trindade Trizotti, parceiros competentes, sem medo de trabalho e tampouco dos desafios que a função impunha. Agradeço também ao Antonio, Mírian, João, Dirceu, Camila, Anelize, Gilvana, Mariana e Amanda e a todos os integrantes da equipe que não pouparam esforços para fazer da Faces da História uma realidade. Agradeço à Emilla Grizende Garcia, Fabiana Aline Alves, Paulo Gustavo da Encarnação, Rafael Paiva Alves e Vanessa Pironato Milani, companheiros do Grupo de Pesquisa História e Mídias Eletrônicas, por todas as discussões, trocas e intercâmbios; destaco as figuras de Carla Teixeira e Eduardo Amando de Barros Filho, pela amizade sincera e por sempre estarem dispostos a parcerias e novas empreitadas. Agradeço aos meus alunos da disciplina de História do Ensino de História pelo respeito e paciência que tiveram comigo. Agradeço minhas professoras de francês Brigitte, Carla e Norma pelo aprendizado e pela gentileza em me aceitarem em seus cursos como aluno especial. Agradeço aos amigos Ana Carolina, Ana Clara, Artur, Benedito, Carla, Danilo, Ellen, Fabíula, George, Luciano, Marco Sávio, Maria Cristina, Marina, Priscila, Roberto, Shaila e Viotto, cada um contribuindo com a sua amizade, preocupação e companhia nas angústias e nas alegrias. Agradeço a todos que acompanharam os últimos momentos desta tese no Instagram: as mensagens de incentivo foram importantes para conseguir aquele último fôlego para a conclusão do trabalho. Agradeço a toda minha família pelo incentivo. Especialmente os meus pais, Reinan e Raineide, por continuarem batalhando para formar os seus filhos. Às minhas irmãs Jéssica e Beatriz e meu irmão Renan, por serem tão parte de mim, mesmo quando estamos longe. Encerro agradecendo a Camila, pessoa que esteve mais intensamente presente em todos os momentos desta jornada. Obrigado pelos sorrisos nas horas alegres, os incentivos nas horas mais difíceis, as leituras, correções, consultorias. Um exemplo de pesquisadora, de professora, de mulher, de ser humano. Obrigado por ter feito de nossa casa um lar, onde, além de gatos, agora teremos teses. Há alguns meses, os poderes públicos me confiaram a tarefa apaixonante de criar este canal do saber, da formação e do emprego que é lançado hoje. É com entusiasmo que a equipe restrita que eu constituí aceitou se lançar, ao meu lado, nesta formidável aposta. Nosso tempo era contado e as armadilhas numerosas, mas graças ao formidável ímpeto que o anuncio desta criação desencadeou na comunidade educativa, nos produtores, no universo econômico, no mundo associativo, nós pudemos nesse mês de dezembro de 1994 celebrar com alegria, mas também com bastante modéstia, o nascimento da La Cinquième. Com essa criação a França dá um passo importante, pois televisões comparáveis, de vocação educativa, existem desde longa data na maioria dos países desenvolvidos. A televisão não pode mais ignorar a sua missão educativa, seu papel de veículo do conhecimento e do saber. Jean-Marie Cavada O Futura é um canal que tem o compromisso de gerar conhecimento, atitudes e competências que concretizem os valores maiores que desejamos para a sociedade brasileira. Pretendemos enfatizar quatro valores fundamentais para nosso país: a noção de comunidade, a ética, o espírito empreendedor e o pluralismo cultural. Se estes valores se traduzirem em conhecimento e competência, teremos avançado na relação entre televisão, educação e cidadania e criado mais uma opção no sistema brasileiro de televisões educativas, que queremos cada vez mais democrático e pluralista. Joaquim Falcão OLIVEIRA, Wellington Amarante. Muito além do conhecimento: a TV educativa na França e no Brasil, a La Cinquième e o Canal Futura (1994-2002). 2017. 281 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2017. RESUMO Esta tese tem por objetivo central analisar histórico-comparativamente o papel das emissoras educativas no campo televisivo francês e brasileiro entre os anos de 1994 e 2002, tendo como eixo-central as relações sociais que tornaram possível a criação da La Cinquième e do Canal Futura. A La Cinquième, canal educativo público, inaugurado em 1994, foi criada com o objetivo de colaborar para suprir as carências educativas francesas e ajudar a retirar o país da crise. O seu surgimento ocorreu em meio a uma reorganização do campo televisivo francês após desarranjos causados pela quebra do monopólio público na década de 1980. O Canal Futura, emissora privada, criada em 1997, possibilitou às Organizações Globo reforçar a imagem de suas empresas, sobremaneira da Rede Globo, dada a simbiose entre as duas emissoras, como eficaz prestadora de serviço social e comprometida com a difusão de conteúdos culturais e educativos para toda a sociedade brasileira. A existência do Canal Futura demonstrava a eficiência do modelo televisivo comercial em garantir produções educativas de qualidade, deslegitimando às experiências públicas em televisão educativa, especificamente a TVE, do Rio de Janeiro e a TV Cultura, de São Paulo. Nesse sentido, buscamos confrontar a hipótese de que a La Cinquième e o Canal Futura, ainda que de naturezas distintas (público e privado), e com atuação em campos televisivos diferentes, enfrentaram, ao longo de suas trajetórias iniciais, os mais variados desafios, muitas vezes com práticas semelhantes, o que confirma a inserção das emissoras no debate internacional, aberto em vários países, sobre as formas de potencializar os usos educativos da televisão na superação das desigualdades socioeconômicas, mas também na exploração do audiovisual educativo um novo nicho de mercado. A La Cinquième e o Canal Futura se utilizaram constantemente do termo conhecimento, estratégia reveladora da busca por uma imagem de inovação frente às representações de que a veiculação de conteúdos educativos na TV seria algo arcaico e tedioso. A difusão do conhecimento assumiria um ar mais leve, arrojado, moderno, ligado ao mundo da descoberta. Por fim, as tanto a La Cinquième quanto o Canal Futura aproximaram-se definitivamente dos elementos consagrados no campo televisivo, o que se expressou na utilização de artistas renomados, gêneros populares e outros formatos ligados ao entretenimento. PALAVRAS-CHAVE: História da Televisão; Brasil contemporâneo; França; Canal Futura; La Cinquième; Organizações Globo; Anos 1990. OLIVEIRA, Wellington Amarante. Far beyond the knowledge: educational TV in France and Brazil, La Cinquième and Canal Futura (1994-2002). 2017. 281 f. Thesis (Doctorate in History). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2017. ABSTRACT This thesis aims to analyze from an historical comparative perspective the role of educational broadcasters in the French and Brazilian television field between 1994 and 2002, having as central axis the social relations that made possible the creation of La Cinquième and Canal Futura. La Cinquième, public education channel, inaugurated in 1994, was created with the objective of supporting and providing resources in order to meet France’s educational needs and help to withdraw its crisis. The foundation of this public education channel arised whilst a reorganization the French television area after the disruption caused by the breaking of public monopoly in the 1980’s.The Canal Futura, private broadcaster, created in 1997, enabled Globo Organizations to reinforce the image of their companies, particularly of Rede Globo, given the symbiosis between the two stations, due to its commitment as an effective social services provider responsible for dissemination of cultural and educational content for brazilian society. The existence of the Canal Futura demonstrated the efficiency of commercial television model as way of guaranteeing educational quality productions, invalidating public experiences in educational television, specifically the TVE, in Rio de Janeiro and TV Cultura, in São Paulo. Therefore, this thesis proposal is to confront the possibility that La Cinquième and Futura, although from different natures (public and private) and acting in different television fields, have both faced, throughout their trajectory, the most various challenges, frequently with similar practices, which confirms the insertion of networks in the international debate, opened in several countries, on ways to enhance the educational uses of television in overcoming the socio-economic inequalities but also in exploring the educational audiovisual a new category of market. La Cinquième and Canal Futura have constantly used the term knowledge, a strategy that reveals the search for an image of innovation in face of representations that the airing of educational content on television would be archaic and tedious. The diffusion of knowledge would embrace a lighter, enterprising, modern air, linked to a world of discovery. Finally, both La Cinquième and Canal Futura got closer to what would become a definitive relation with the elements consacreted in the television field, which has expressed itself through the use of renowned artists, popular genres and other entertainment-related formats. KEYWORDS: History of television; Brasil contemporaneous; France; Canal Futura; La Cinquième; Globo Organizations; Decade of 1990. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Charge sobre a televisão educativa..........................................................97 Figura 2 – Logotipos da La Cinquième e do Canal Futura.......................................109 Figura 3 – Primeira campanha publicitária da La Cinquième (1994).......................113 Figura 4 – Segunda campanha publicitária da La Cinquième (1995)......................114 Figura 5 – Terceira campanha publicitária da La Cinquième (1995).......................115 Figura 6 – Propaganda Teca na TV no jornal O Globo............................................117 Figura 7 – Propaganda Fala Galera no jornal O Globo............................................118 Figura 8 – Propaganda Brava Gente Brasileira........................................................118 Figura 9 – Anúncio nas revistas Época e Galileu.....................................................120 Figura 10 – Anúncio do programa Umas Palavras...................................................120 Figura 11 – Anúncio “de cabeça para baixo”...........................................................122 Figura 12 – Propaganda cinco anos do Canal Futura..............................................122 Figura 13 – Charge sobre o Canal Futura................................................................128 Figura 14 – Anúncios de abertura e encerramento da campanha Valor..................156 Figura 15 – Anúncio Votorantim na campanha Valor...............................................157 Figura 16 – Organograma do Canal Futura (1999)..................................................163 Figura 17 – Gráfico dos valores gastos com despesas de pessoal.........................164 Figura 18 – Cenas do programa Victor veiculado pela La Cinquième.....................202 Figura 19 – Silvia Buarque de Holanda apresentando o programa Via TV.............205 Figura 20 – Glossário e sugestões de leitura no programa Via TV..........................206 Figura 21 – Cenas do programa Cogito da La Cinquième.......................................208 Figura 22 – Cenas do programa Galilée da La Cinquième......................................209 Figura 23 – Cenas de L’œufs de Colomb veiculado pela La Cinquième.................210 Figura 24 – Episódio de Net Plus Ultra....................................................................211 Figura 25 – Le journal de la santé………………………………………..…………......215 Figura 26 – Episódio de Qui vive..............................................................................216 Figura 27 – Cenas do programa Nota 10.................................................................218 Figura 28 – Cenas do programa Arrêt sur images da La Cinquième.......................219 Figura 29 – Episódio de L’esprit du sport.................................................................220 Figura 30 – Cenas do programa La planète ronde..................................................221 Figura 31 – Episódio de Droit d’auteurs...................................................................221 Figura 32 – Episódio da primeira temporada de Le sens de l’histoire.....................223 Figura 33 – Cenas de episódio da quinta temporada de Le sens de l’histoire.........224 Figura 34 – Cenas do programa Cine Profissões do Canal Futura.........................225 Figura 35 – Cenas do programa Business humanum est........................................227 Figura 36 – Cenas do programa Brava Gente Brasileira do Canal Futura..............228 Figura 37 – Cenas do programa Boa Notícia do Canal Futura................................230 Figura 38 – Propaganda do programa Boa Notícia.................................................230 Figura 39 – Episódio de Gaïa...................................................................................233 Figura 40 – Episódio de Pi = 3,14............................................................................233 Figura 41 – Episódio de Mag 5.................................................................................234 Figura 42 – Cenas Des religions et des hommes……………………………………..236 Figura 43 – Cena do programa C’est pas normal! da La Cinquième.......................236 Figura 44 – Cenas do programa Profissão Empresário do Canal Futura................238 Figura 45 – Cenas do programa Mãos à Obra.........................................................240 Figura 46 – Silence, ça pousse................................................................................242 Figura 47 – Episódio de Fête des bébés..................................................................243 Figura 48 – Cenas do programa De frente Pra Vida do Canal Futura.....................243 Figura 49 – Trechos do programa L’œil et la main...................................................244 Figura 50 – Cenas do programa Livros Animados do Canal Futura........................247 Figura 51 – Episódio de Ça Bouge...........................................................................251 Figura 52 – Cenas de Les lumières du music-hall...................................................251 Figura 53 – Episódio de Journal de la création………………………………………..252 Figura 54 – Cenas do Dia Temático Toque Brasil....................................................261 LISTA DE TABELAS Quadro 1 – As 12 candidaturas para exploração do serviço de televisão (1992)......95 Quadro 2 – Publicação dos anúncios dos parceiros na campanha Valor................156 Quadro 3 – Membros do Conselho Consultivo do Canal Futura..............................166 Quadro 4 – Grade de programação inicial da La Cinquième e do Canal Futura.....168 Quadro 5 – Episódios do programa Cogito lançados em VHS................................210 Quadro 6 – Dias Temáticos do Canal Futura (1997-2000)......................................256 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS A2 – Antenne 2 ABEPEC - Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas e Culturais ABERT – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV ABL – Academia Brasieira de Letras ACERP - Associação de Comunicação Educativa Roquete-Pinto AITED – Association Internationale des Télévisions d’Éducation et de Découverte ARTE - Association Relative à la Télevision Européenne BBC – British Broadcasting Corporation CBT – Código Brasileiro de Telecomunicações CNCL – Commission Nationale de la Communication et des Libertés CNDP – Centre National de Documentation Pédagogique CNI – Confederação Nacional da Indústria CNT – Central Nacional de Televisão CNT – Confederação Nacional dos Transportes CPB – Corporation for Public Broadcasting CSA – Conseil Superieur de l’Audiovisuel EMBRATEL – Empresa Brasileira de Telecomunicações FIESP – Federação das Indústrias de São Paulo FIRJAN – Federação das Indústrias do Rio de Janeiro FPA – Fundação Padre Anchieta FR3 – France Régions 3 FRM – Fundação Roberto Marinho MITE – Mission d’information sur la télévision ONU – Organização das Nações Unidas ORTF – Office de Radiodiffusion-Télévision Française PBS – Public Broadcasting Service RDF – Radiodiffusion Française RTF – Radiodiffusion-Télévision Française SBT – Sistema Brasileiro de Televisão SEPT – Société d’Édition de Programmes de Télévision TEIb – Televisión Educativa y Cultural Iberoamericana TF1 – Télévision Française 1 TVO – TVOntário TVU – TV Universitária de Pernambuco UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................15 1 CAMPO TELEVISIVO E EXPERIÊNCIAS EM TV EDUCATIVA 1.1 Antecedentes constitutivos...................................................................................42 1.2 A TV na França e no Brasil na década de 1990...................................................63 1.3 Na gênese dos projetos: o Eurêka e o Vídeo-Escola...........................................94 2 DOIS PROJETOS DE “CANAL DO CONHECIMENTO” 2.1 Em busca de uma identidade visual...................................................................104 2.2 O conhecimento como porta de saída da crise..................................................124 2.3 Educação popular versus elitismo cultural.........................................................133 2.4 O audiovisual como oportunidade de negócios.................................................139 3 AS TRAJETÓRIAS DAS EMISSORAS DO CONHECIMENTO 3.1 Inauguração e primeiros passos........................................................................160 3.2 Embates cotidianos do campo televisivo............................................................179 3.3 Limites de uma aposta educativa.......................................................................191 4 O AUDIOVISUAL EDUCATIVO FRANCÊS E BRASILEIRO 4.1 Educação e conhecimento.................................................................................200 4.2 Informação e conhecimento...............................................................................214 4.3 Entretenimento e conhecimento.........................................................................244 4.4 Programação especial: interprogramas e dias temáticos...................................253 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................265 FONTES...................................................................................................................269 REFERÊNCIAS........................................................................................................273 15 INTRODUÇÃO Esta tese de doutoramento pauta-se pelo objetivo central de conhecer e analisar, de maneira histórico-comparativa, o papel de emissoras educativas nos campos televisivos francês e brasileiro durante a década de 1990 e o início dos anos 2000, tendo como eixo-central as relações sociais que tornaram possível a criação da La Cinquième e do Canal Futura. A La Cinquième, primeira emissora pública educativa francesa, inaugurada em 1994, desempenhou um destacado papel na reconquista dos espaços perdidos pelas emissoras públicas após a quebra do monopólio estatal e o consequente processo de reorganização do campo televisivo, ocorrido ao longo da década anterior. Pensada por setores do governo como uma ferramenta de combate à crise social que atingiu a França na última década do século XX, a La Cinquième trouxe consigo a possibilidade de um equilíbrio maior entre as emissoras públicas e privadas na paisagem audiovisual francesa. O Canal Futura, de cunho educativo e natureza privada, surgiu em 1997 e possibilitou um reforço à imagem das empresas comunicacionais de Roberto Marinho, sobremaneira a da Rede Globo de Televisão, como comprometidas com o avanço educacional e a difusão do conhecimento no Brasil. O Canal Futura organizou-se como veículo de prestação de serviço social e comprometeu-se com a produção e a difusão de conteúdos educativos, elaborados com base em considerável qualidade técnica que serviria como prova à eficiência da iniciativa privada na condução de emissora educativa face ao cenário de problemas recorrentes enfrentados pelas emissoras públicas de igual missão. Esta tese buscou confrontar a hipótese de que a La Cinquième e o Canal Futura, ainda que de naturezas distintas (pública e privada), e com atuação em campos televisivos em países diferentes, enfrentaram, ao longo de suas trajetórias, os mais variados desafios, valendo-se muitas vezes de práticas semelhantes, bem como inseridas no mesmo debate internacional acerca das potencialidades da televisão em colaborar para a superação das desigualdades socioeconômicas do século XX e no adentrar do século XXI. As duas emissoras buscaram colaborar para que a educação deixasse de ser algo exclusivo aos frequentadores dos bancos escolares, apostando na concepção de educação continuada. Logo, pautadas por 16 programação que transcendesse a missão meramente instrucional anteriormente pensada e investida na produção televisiva educacional. O percurso da televisão na historiografia francesa e brasileira possui rotas distintas, mas que se entrecruzam em determinados momentos da trajetória. Na França, o olhar da historiografia para a televisão como objeto e fonte de pesquisa surgiu ainda no final da década de 1970 pelas mãos de Jean-Noël Jeanneney, professor da Fondation Nationale des Sciences Politiques, que criou uma disciplina dedicada ao tema. Em 1980, nascia o Comité de l’Histoire de la Télévision (CHTV), uma iniciativa de pioneiros e profissionais da televisão, tais como Jean d’Arcy, Wladimir Porché, Pierre Sabbagh, François Chatel e Henri de France, em conjunto com historiadores como René Rémond, Alain Decaux e Jean-Noël Jeanneney. O CHTV tinha por objetivo preservar a memória da televisão nacional. Na primeira assembleia geral da organização, Jeanneney anunciou os cinco eixos de interesse: 1) o progresso técnico; 2) o estudo do meio profissional; 3) o processo decisório; 4) O conteúdo dos programas; 5) a influência da televisão. A partir desses eixos, o CHTV foi responsável pela realização de eventos, a organização de fontes a realização de entrevistas.1 A partir desses elementos podemos afirmar que Jean-Noël Jeanneney e René Rémond foram responsáveis por inserir a discussão sobre as mídias, de forma geral, e da televisão, de maneira específica, no raio de ação dos historiadores, em um movimento que ficou conhecido como “nova história política”, com parte de seus questionamentos e resultados publicados, em 1988, no livro Pour une histoire politique, organizado por Rémond. A partir do início dos anos 1990, ampliou-se o número de pesquisadores envolvidos com a temática. E foi justamente nesse momento que surgiram os primeiros trabalhos de Jérôme Bourdon. Discípulo de Jeanneney, Jérôme Bourdon buscou aprofundar as reflexões sobre a dimensão política da televisão, escrevendo obras que mapearam momentos decisivos da TV francesa. O autor mostrou-se sempre preocupado com as implicações teórico-metodológicas para a pesquisa histórica com a TV. Em seu trabalho inicial, pesquisou a televisão sob o governo do 1 JEANNENEY, Jean-Noël. « Inventaire d’un chantier » ; MARTIN, Éven. « Cent kilomètres de portées ». Les 30 ans du comité d’histoire. Cahiers du CHTV, Automne 2010. p. 19-21. Disponível em: http://www.europartenaires.net/wp-content/uploads/2015/05/Cahier.pdf Acesso: 17 de novembro de 2016. http://www.europartenaires.net/wp-content/uploads/2015/05/Cahier.pdf 17 general Charles de Gaulle e, em um de seus últimos trabalhos, faz uma pesquisa comparativa sobre a televisão europeia (BOURDON, 1990; 1993; 1994; 2008; 2011). Apesar da multiplicidade de trabalhos desenvolvidos, havia uma grande dificuldade para o acesso às fontes, conseguidas muitas vezes a partir de convênios temporários com o Institut National de l’Audivisuel (INA). Foi somente com a aprovação da Lei de Dépôt Légal, em 1992, que obrigava as empresas de audiovisual a preservarem e remeterem ao INA as suas produções e, sobretudo, com a abertura da Inathèque, em 1995, que o acesso às fontes se ampliou e se consolidou (COHEN, 2016, p.107-108).2 A publicação do dicionário L’échos du siècle, organizado por Jean-Noël Jeanneney, constituiu outro marco importante na historiografia francesa sobre a televisão. Publicada no final dos anos 1990, a obra reuniu cerca de trinta pesquisadores, todos da área de história, que conseguiram mapear o desenvolvimento do rádio e da televisão na França ao longo do século XX. O trabalho pode ser considerado como a grande síntese das pesquisas incentivadas, coordenadas e desenvolvidas por Jean-Noël Jeanneney e seu grupo, pois não somente contemplou os eixos destacados pelo autor na assembleia inaugural do CHTV no início dos anos 1980, como trouxe novas questões para o debate.3 Encerrava-se, assim, um ciclo que podemos denominar como a primeira fase da historiografia sobre a televisão na França. No campo da história política da televisão devemos citar, ainda, os trabalhos de Isabelle Veyrat-Masson que, assim como Bourdon, teve sua tese orientada por Jeanneney. E, juntamente com Monique Sauvage, escreveu, mais recentemente, o livro Histoire de la télévision française, no qual as autoras traçam um panorama geral sobre o meio desde 1935 a 2012, com vistas a buscar a “especificidade e a vitalidade da televisão” (SAUVAGE e VEYRAT-MASSON, 2012, p.11). 2 COHEN, Évelyne. “Entrevista com Évelyne Cohen” [jan./jun. 2016] Assis-SP: Faces da História (ISSN 2358-3878). Vol. 3, nº1, 2016, pp.106-111. Entrevista concedida a Eduardo Amando de Barros Filho e Wellington Amarante Oliveira. Trad. Camila Soares López. Disponível em: http://seer.assis.unesp.br/index.php/faces/article/view/350/245 3 O dicionário organiza-se a partir de 16 grandes capítulos que se subdividem em verbetes, nos quais os pesquisadores participantes se revezam na escrita. Os capítulos estão organizados na seguinte sequência: I. Etapas; II. Balizas; III. Emissoras de rádio; IV. Emissoras de televisão; V. Tecnologias; VI. Funcionamento; VII. As profissões; VIII. Figuras emblemáticas; IX. Novas formas de vida cívica; X. Os grandes atores na arena; XI. Questões culturais; XII. Questões sociais; XIII. Reflexos; XIV. Públicos; XV. Fora da França; XVI. Vestígios. http://seer.assis.unesp.br/index.php/faces/article/view/350/245 18 Paralelamente, outras áreas da história começaram também a se interessar pela televisão. E a abertura dos arquivos, como mencionada acima, colaborou para que o meio pudesse ser pensado para além de suas questões políticas internas. Temos, assim, em meados dos anos 1990, o início de uma nova produção ligada à área da nova história cultural que buscou, a partir das fontes televisivas, refletir sobre os aspectos ligados ao imaginário, a cultura política e outros elementos de destaque da contemporaneidade. Dentre os pesquisadores dessa segunda fase, destacam-se Évelyne Cohen, Marie-Françoise Lévy e Miryan Tsikounas, entre outros. Uma característica da historiografia francesa sobre a televisão é a sua abertura para as outras áreas, reconhecendo uma produção importante no campo da comunicação, que pode ser representada pelos trabalhos de François Jost, a exemplo do livro Compreender a televisão. Três décadas e meia se passaram após as primeiras pesquisas históricas sobre a TV na França e, apesar do campo historiográfico brasileiro ser sempre muito receptivo às tendências francesas, essa parece não ter conquistado muitos adeptos. De um modo geral, os historiadores brasileiros têm relegado à televisão um papel secundário, criticando-a a partir de visões impressionistas, pouco alicerçadas em pesquisas. Os estudos que se atêm à televisão como fonte e objeto o são ainda em quantidade aquém daquilo que poderia ser produzido, considerando a importância do meio na sociedade contemporânea, sobremaneira na brasileira. Um dos exemplos mais sintomáticos da carência da historiografia brasileira para tratar do assunto televisão foi a coleção A história da vida privada no Brasil, dirigida por Fernando Novais; em seu quarto volume, organizado por Lilia Moritz Schwarcz, há um capítulo referente à televisão, mas que não foi produzido por historiadores, mas pela antropóloga, especialista no tema, Ester Hamburguer. Nicolau Sevcenko, que integrou a equipe de organização da coleção, reconheceu, em entrevista posterior, a importância da televisão no mundo contemporâneo: “como falar do século XX, caso do último volume, sem falar da televisão?”. E justificou a escolha editorial: “não se tem ainda uma historiografia da televisão, é preciso contar com alguém que trabalhe com referenciais sociológicos” (SEVCENKO apud MORAES, 2002, p.360). Na área de Comunicação, o quadro pouco se altera. Ao fazer um panorama das pesquisas sobre História da Comunicação, Ribeiro e Herschmann assinalam 19 que “a comunicação no Brasil sofre do que poderíamos chamar de presentismo”. Segundo os autores, “a análise histórica da Comunicação, ou dos meios de comunicação, ainda é relegada a um segundo plano. Comparativamente a outras abordagens desenvolvidas na área, há poucos trabalhos acadêmicos relevantes sobre História” (RIBEIRO & HERSCHMANN, 2008, p.14). A partir desse quadro, podemos destacar autores como Sérgio Mattos, Inimá Simões, Laurindo Leal Filho e Eugênio Bucci, todos ligados à área da Comunicação, que se tornaram as primeiras referências para o estudo da TV. Sérgio Mattos (1990; 2010), privilegiando um ponto de vista econômico e político do desenvolvimento do meio no Brasil, identificou uma coerência entre as alterações político-econômicas do país a partir de 1950 e o desenvolvimento da televisão. O jornalista e psicólogo Inimá Simões (2004) buscou analisar o processo de gênese e consolidação da TV brasileira, ressaltando aspectos ligados à programação e à difusão de conteúdos televisivos. Laurindo Lalo Leal Filho (1988; 1997) pesquisou, inicialmente, a TV Cultura e, a partir daí, especializou-se em discutir a distinção entre os modelos televisivos público e comercial; para o autor, o sistema britânico estaria entre aqueles que melhor conseguiriam realizar os objetivos da comunicação social em um país democrático. O livro TV aos 50, do jornalista Eugênio Bucci (2000), é composto por uma gama de textos de renomados autores que discutem temas como: TV pública; a recepção da TV; as interações entre o meio, a política e o capital; a legislação voltada para a TV; as possibilidades e necessidades do ensino sobre a TV na escola. Durante a efeméride de 60 anos da televisão no Brasil, ocorreu a publicação da História da televisão brasileira, livro organizado por Ana Paula Goulart Ribeiro, Igor Sacramento e Marco Roxo. A obra reúne textos de diversos autores, que refletem, década a década, sobre a trajetória do meio. Em alguns capítulos desse livro, há o nítido esforço de se historicizar a TV; em outros, porém, fica patente a falta da pesquisa empírica. Podemos citar, ainda, Mônica de Almeida Kornis (2002; 2008) e João Freire Filho que trabalham na interface com a História e a Comunicação. A pesquisadora do CPDOC-FGV se dedica à temática da televisão desde seu trabalho de doutorado, que concerne às minisséries da Rede Globo. Publicou, também, o livro Cinema, Televisão e História, no qual realizou uma discussão introdutória sobre os elementos que cercam o processo que a autora denominou como “escrita da história pelo 20 cinema e pela televisão”. Os seus demais trabalhos visam a compreender a constituição de uma memória histórica oriunda das produções televisivas, sobretudo das narrativas melodramáticas. Já Freire Filho (2008) traz uma boa contribuição, notadamente, em seus trabalhos ocupados com reflexões de ordem teórico- metodológicas sobre a TV, com destaque para o texto “Por uma nova agenda de investigação da História da TV no Brasil”, no qual o autor faz um balanço da historiografia nacional e internacional sobre o tema e sistematiza alguns eixos de pesquisa. Vale ressaltar o fato de ambos os autores, na primeira década de século XXI, vislumbrarem a televisão como um objeto relevante para a pesquisa e, ainda que não tenham como fim a constituição de uma história social da televisão no Brasil, colaboram, com os resultados de seus estudos, para a multiplicação das reflexões sobre o meio. Mas, como dissemos de início, apesar dos caminhos distintos, a produção historiográfica sobre a televisão na França e no Brasil se cruza em alguns pontos. E o primeiro ponto de cruzamento das duas historiografias ocorreu com a publicação, em 1996, da edição brasileira do livro organizado por René Rémond, Por uma história política. O capítulo “A mídia” foi o cartão de visitas de Jean-Noël Jeanneney para o público nacional e possibilitou que seus escritos fossem utilizados como a base para os primeiros estudos históricos sobre a televisão no Brasil. Mas antes mesmo da televisão ser tomada como objeto e fonte de pesquisa na França, um historiador brasileiro já alertava a comunidade acadêmica para a importância de seus registros. Durante o VIII Simpósio Nacional da Anpuh, em 1975, realizado em Aracaju, o professor da USP José Sebastião Witter, apresentou comunicação intitulada O “tape” de televisão como fonte documental, na qual discutiu as experiências educativas, com programa programas de história, que vinham sendo desenvolvidas pela TV Cultura em parceria com professores da Universidade de São Paulo (WITTER, 1975, p.1027-1029). Após um hiato de mais de duas décadas da preocupação inicial do professor Witter, novos trabalhos históricos sobre a televisão foram colocados no papel. Destaque para as reflexões de Marcos Napolitano (1997; 1999; 2008; 2010). No itinerário dos seus estudos, o autor aprofundou suas reflexões de como trabalhar com a TV em ambientes de ensino-aprendizagem, apresentou os meios audiovisuais como objetos possíveis para a pesquisa histográfica e por fim, pensou as relações dos programas musicais com o próprio movimento da MPB durante o regime militar 21 Há uma produção acadêmica recente na área de História que visa à construção de uma história social da televisão brasileira. Esta produção está alicerçada no esforço de Áureo Busetto em contribuir para a inclusão da TV no rol de objetos e fontes da historiografia brasileira. O início de suas pesquisas sobre o meio foi marcado com trabalhos voltados para pensar a TV na sala de aula (BUSETTO, 2005; 2006; 2007a); escreveu, ainda, sobre uma feira de divulgação da TV realizada durante o Estado Novo (BUSETTO, 2007b); rapidamente, sua reflexão se verticalizou sobre as implicações teórico-metodológicas do uso da TV como fonte e objeto de pesquisa histórica, em seu último trabalho indicando uma perspectiva comparada (BUSETTO, 2008, 2010, 2011, 2014); e consequentemente, pensar um produto específico da televisão brasileira em sua historicidade, a TV Excelsior (BUSETTO, 2009). Cabe ressaltar que, na maioria desses estudos, destaca-se a preocupação do autor com a reflexão sobre as relações sociais entre a TV e o domínio do político. Esta inquietação produtiva de Busetto resultou em um amplo espaço de reflexão acadêmica, do qual já nasceram seis novas pesquisas (BERNO, 2010; LIMA, 2010; BARROS FILHO, 2011; OLIVEIRA, 2011; COSTA, 2012; GARCIA, 2016) que buscaram, na interface com a temática política, pensar a religião, a cultura, a educação, no campo televisivo e até mesmo um gênero como a telenovela e, dessa forma, vêm contribuindo para a construção de uma história social da televisão brasileira.4 Em suma, nota-se que, tanto na França como no Brasil, a historiografia passou a observar a televisão como um elemento importante para a compreensão do processo histórico contemporâneo. Porém, o que causou um descompasso entre as pesquisas parece ter sido justamente as diferenças de acesso às fontes. Enquanto na França a promulgação da Lei do Dépôt Légal possibilitou o acesso às fontes audiovisuais, no Brasil, a inexistência de lei similar, associada ao modelo comercial, torna o acesso a esses arquivos, quando existentes, muito mais delicado, quando não inviável. 4 Vale destacar também outras três teses de doutoramento que colaboraram na inserção e consolidação da televisão como objeto e fonte para a historiografia brasileira. Duas vinculadas à Universidade Federal Fluminense: Cultura, política e televisão: entre a massa e o popular (1964- 1979), de Sônia Wanderley (defendida em 2005); e A Rede Globo e o seu Repórter: imagens políticas de Teodorico a Cardoso, de Cássia Louro Palha (defendida em 2008). E ligada à Universidade de São Paulo: Ciência e tecnologia em debate: uma análise das entrevistas do programa Roda Viva, da TV Cultura (1986-2006), de Livia Maria Botin (defendida em 2016). 22 Por outro lado, nota-se que mesmo a produção bibliográfica francesa sobre a televisão carece de dificuldades para chegar ao Brasil. À exceção dos textos de Jeanneney, os outros autores ocupados com a escrita da história da televisão francesa não têm suas obras traduzidas para o português. Tal situação coloca uma questão sobre essa produção. Seria ela demasiadamente nacional, ao tratar exclusivamente de sua televisão que a tornaria desinteressante para outros públicos? Ou o próprio mercado brasileiro não teria capacidade de absorção dessas obras e, por isso, o desconhecimento desses autores? Esse desconhecimento muitas vezes nos leva a afirmações generalizantes de que a história pouco produziu sobre a televisão. Tal afirmação, ainda que sirva para a historiografia brasileira, não diz respeito à realidade atual da historiografia francesa, que já inseriu plenamente a televisão entre suas fontes e objetos de pesquisa. Um exemplo desse status pode ser atestado no Dictionnaire de l’historien, organizado por Claude Gavard e Jean-François Sirinelli, publicado em 2015, e que possui um verbete para a televisão. Se, de um modo geral, a produção historiográfica francesa sobre a televisão apresenta uma maior pujança em relação à sua congênere brasileira, quando observamos a produção sobre as duas emissoras que são objetos desta pesquisa, essa diferença fica um pouco menor. E se levarmos em consideração os trabalhos de outros campos de conhecimento para além da história, há quase uma inversão, já que o Canal Futura tem sido objeto de inúmeras pesquisas acadêmicas em todo o Brasil. As informações sobre a La Cinquième aparecem, de forma geral, nos trabalhos dedicados à história da televisão, associadas às transformações ocorridas no campo televisivo na década de 1990 (VEYRAT-MASSON, 2001; SAUVAGE & VEYRAT-MASSON, 2012; HOOG, 2010; BOURDON, 2011). Assim, os autores sempre dedicam algumas linhas à emissora. E uma das primeiras sistematizações históricas sobre a La Cinquième ocorreu na publicação do dicionário L’échos du siècle, que traz um verbete de autoria de Isabelle Veyrat-Masson. Há, ainda, o livro institucional En savoir plus sur la Cinquième, escrito por Guy Zilberstein, publicado logo após o lançamento da emissora, o trabalho apresenta os princípios norteadores do canal. Há também pesquisas pontuais em outras áreas – como por exemplo, uma pesquisa sobre a programação infantil da La Cinquième. 23 Como dissemos, o Canal Futura tornou-se, nos últimos anos, tema para algumas dezenas de pesquisas acadêmicas. Em levantamento disponibilizado em seu site, a emissora identificou até o ano de 2013, 46 pesquisas o que demonstra que a sua experiência tem atraído a atenção de pesquisadores de diversas áreas. Entre os títulos, podemos citar o livro A complexidade da teleducação no Canal Futura, de Joadir Antônio Foresti (2001), no qual o autor busca analisar dois programas específicos: o game-show Tá Ligado (1999) e o jornalístico Sala de Notícias (1997). E a dissertação de mestrado na área de Comunicação de Ana Paula Brandão (2000) “Os discursos do conhecimento: a experiência do Canal Futura”. Há ainda que se dizer que muitas pesquisas consideradas nesse levantamento estudaram programas anteriores à criação do Canal Futura, mas produzidos pela FRM. Este é o caso do único trabalho da área de História que esteve ocupado com os programas Telecurso entre os anos de 1978-1998 (MOREIRA, 2008).5 O Canal Futura também é tratado rapidamente, mas de forma precisa pela professora Cosette Castro, em texto intitulado “Globo e educação: um casamento que deu certo”. A autora lança as linhas gerais de atuação das Organizações Globo no âmbito da educação. Reconhece que “fora as emissoras educativas e universitárias, a Rede Globo é uma das raras empresas comerciais que apresentam programas educativos, como os telecursos em horários classificados como pouco lucrativos”. Mas sem deixar de indicar que o campo da educação foi importante para o grupo empresarial na “prospecção e lançamento futuro de novos produtos e serviços rentáveis nas Organizações Globo”, entre os quais inclui a Globo Vídeo e o Canal Futura, ambos derivados do “laboratório de montagem” que foi a “experiência do Telecurso” no final dos anos 1970 (CASTRO, 2005, p.243-256). A par dessa bibliografia, há, também, três publicações institucionais. A primeira é o livro Comunicação e Transformação Social: a trajetória do Canal Futura, organizado por Débora Garcia e Ana Paula Brandão, funcionárias da emissora, e que apresenta um balanço dos dez anos de atividade do canal. Ao todo são 17 5 Das 46 pesquisas levantadas pelo Canal Futura, apensas quatro são teses de doutoramento, os outros 42 trabalhos são dissertações. As pesquisas estão divididas pelos seguintes campos de conhecimento: 17 em Educação, 14 em Comunicação, três em Ciências, dois em Design e um trabalho nas áreas de Desenvolvimento Sustentável, Multimeios, Psicologia, Sociologia, História, Geografia e Memória Social. A leitura desses estudos revelou uma ampla diversidade nas temáticas e nos objetos. A maioria dos recortes centra-se em um único programa, muitos deles fora do escopo deste trabalho. 24 capítulos, escritos por diversos autores, contemplando as discussões sobre a experiência do Futura, sua programação, a mobilização comunitária e os resultados alcançados pelo projeto. Apesar do número expressivo de artigos, o livro não revela os aspectos históricos da constituição do canal. Na seção dedicada à programação, os autores não estabelecem relação entre os programas analisados e o restante da grade. Outros capítulos pecam por não trazer quase nenhuma informação sobre o programa que se dispõem a analisar. A segunda publicação é o livro Fundação Roberto Marinho 30 anos, organizado por Silvia Finguerut e Hugo Sukman (2008); apesar de obra dedicada à FRM, possui quase 80 páginas sobre o Futura, com destaque para a apresentação de breve sinopse de todos os programas veiculados pela emissora. Porém, o espaço dedicado à história do canal versa mais sobre os sentimentos que cercaram as primeiras ações do que sobre dados históricos do período de criação. O terceiro e último livro, celebra os 15 anos do Canal Futura, com título homônimo ao primeiro, também é fruto da reunião de vários autores que analisam a experiência da emissora. Em seu prefácio, Eugênio Bucci afirma que “o estilo plural do Futura faz dele uma singularidade na paisagem da televisão brasileira”. Ainda segundo o autor: “No Futura, a sociedade concebe e opera políticas públicas e, ainda que em franjas pequenas, civiliza o Estado. A dimensão pública da televisão alcançou, dentro desse canal, um significado que não conhecíamos até aqui (GARCIA; LIBONATI; EITLER, 2012, p.27-p.30). As afirmações de Eugênio Bucci legitimam o discurso da emissora sobre sua particularidade no campo televisivo e mais especificamente no cumprimento do papel até então exercido pelas emissoras públicas. A partir deste esboço bibliográfico, pode-se afirmar que, ainda que existam pesquisas acadêmicas que tomaram o Canal Futura como objeto, nenhuma delas buscou compreender a trajetória inicial da emissora, nem individualmente, tampouco de forma comparativa. Portanto, ao analisar historicamente as experiências da La Cinquième e do Canal Futura, há uma gama de aspectos próprios de cada uma das emissoras e de suas relações com a sociedade que ainda não foram explorados e pensados a partir de uma análise que considere as práticas do campo televisivo e que contribua para a compreensão dos debates sobre o espaço dos conteúdos educativos na televisão e sobre a dimensão histórica da televisão e da comunicação social contemporânea. 25 Uma das tarefas primordiais da História, enquanto disciplina acadêmica, é a de buscar a compreensão e tornar inteligíveis as relações sociais estabelecidas, tanto de forma direta quanto indireta, entre os mais diversos agentes históricos no decorrer de um determinado tempo e circunscritas a um espaço específico. Para executar tal empreitada, historiadoras e historiadores dispõem de um amplo leque das mais variadas ferramentas teórico-metodológicas. Cada uma delas colabora para iluminar um ponto particular do passado estudado. Com base nesta premissa, buscaremos apresentar os principais elementos relativos aos aspectos teórico- metodológicos desta tese. Inicialmente, apresentaremos as principais referências para travar uma análise histórico-comparativa dos objetos. Na sequência, discutiremos de que modo buscamos utilizar alguns elementos da sociologia da prática de Pierre Bourdieu para compreender a dinâmica das emissoras educativas na televisão francesa e brasileira. E, por fim, problematizamos algumas noções ligadas à forma de utilização e análise das fontes audiovisuais. Consagrada em diversas pesquisas históricas, a História Comparada permite a sobreposição de duas ou mais realidades, visando a uma compreensão mútua. As diversas críticas à História Comparada, ao longo das últimas décadas, incentivaram a renovação e o refinamento do pensamento e da escrita comparatista. Buscaremos compartilhar algumas reflexões que visam a ampliar a discussão sobre o comparatismo histórico articulado a uma história social dos meios de comunicação no mundo contemporâneo, considerando, para tanto, as especificidades da televisão como fonte e objeto de pesquisa para a história. Segundo José D’Assunção Barros, a História Comparada consiste em uma forma específica de se interrogar a história partindo de um “duplo ou múltiplo campo de observação” e, a partir das análises, extrair respostas originais (BARROS, 2007, p.2). Como dissemos, o método comparativo não é novo no âmbito da disciplina de História. Em seus escritos, Marc Bloch, no começo do século XX, já havia atentado para a particularidade da abordagem. Para Bloch, cabe ao historiador "escolher, em um ou vários meios sociais diferentes, dois ou vários fenômenos que parecem, à primeira vista, apresentar certas analogias entre si, descrever as curvas da sua evolução, encontrar as semelhanças e as diferenças e, na medida do possível, explicar umas e outras”. Nestes termos, para Bloch, existem duas condições necessárias para que haja a comparação: “uma certa semelhança entre os fatos observados – o que é evidente – e uma certa dissemelhança entre os meios onde 26 tiveram lugar" (BLOCH, 1998, p.120-121). Na mesma linha, José D’Assunção Barros define a História Comparada como a “possibilidade de se examinar sistematicamente como um mesmo problema atravessa duas ou mais realidades histórico-sociais distintas, duas estruturas situadas no espaço e no tempo, dois repertórios de representações, duas práticas sociais” (BARROS, 2007, p. 24). Jürgen Kocka assinala que “a história comparada dependerá cada vez mais da chamada ‘literatura secundária’, tendo o historiador que lidar com “um arrefecimento da pretensão de controlar em profundidade todas as fontes e informações diretas”. Ou seja, “o historiador precisará cada vez mais confiar nos trabalhos já desenvolvidos pelos demais historiadores” (KOCKA apud BARROS, 2014 p.160). Ao problematizar os usos da História Comparada na América Latina, Maria Ligia Coelho Prado indica alguns caminhos possíveis para superar as críticas ao método comparativo e as potencialidades do historiador utilizá-lo em suas pesquisas. A autora faz um balanço minucioso dos principais autores que abordaram a questão e pontua as críticas, mas ressalta também as potencialidades. A autora acredita que as conexões entre os tipos de história comparada são muito mais próximas do que excludentes. E defende: “O historiador não está à procura de generalizações e não constrói suas análises a partir de modelos elaborados a priori”. Dessa forma, ainda segundo a autora: “A história comparada deve, portanto, fugir das justaposições e das classificações. Na minha perspectiva, também não deve estar comprometida com a busca de generalizações” (PRADO, 2005, p.22-23). Pensar os meios de comunicação social de modo comparativo contribui para o conhecimento mais detalhado de determinados mecanismos de difícil percepção a partir de um único ponto de vista. Como vimos, existem inúmeras formas de se pensar histórico-comparativamente as mídias. O pesquisador pode optar por uma perspectiva de longa duração e investigar determinado problema em meios de comunicação e tempos distintos, por exemplo, analisar os debates e ações sobre o uso educativo do rádio, da televisão e da internet. Em um segundo caso, pode atravessar diversas mídias, mas dentro de uma mesma temporalidade ou, ainda, concentrar os esforços em um único meio de comunicação em um espaço de tempo determinado, mas comparando as experiências em espaços territoriais diferentes. O historiador francês Jérôme Bourdon avalia positivamente as possibilidades e potencialidades de uma história transnacional da mídia, considerando, sobretudo, 27 que a grande maioria dos trabalhos históricos sobre os meios de comunicação (imprensa, televisão e cinema) ainda estão circunscritos sob um recorte nacional (BOURDON, 2008, p.164). Em seu livro Du service public à la télé-réalite: une histoire culturelle des télévision européennes 1950-2010, o autor atravessa sessenta anos de história da televisão europeia a partir de uma problemática precisa, construindo um quadro comparativo. Para o autor, essa história comparada e integrada possibilita ao pesquisador a reflexão sobre os quadros nacionais e sobre as inúmeras razões de suas convergências: escolhas políticas e regulamentares, fatores ligados especificamente à televisão e dinâmicas culturais transnacionais (BOURDON, 2011, p.20). Bourdon também participou do projeto coordenado pelos professores Jonathan Bignell e Andrea Fickers que buscou construir, a partir de estudos nacionais, uma história comparada de televisão europeia (BIGNELL & FICKERS, 2008). No caso específico desta tese, a perspectiva comparatista é elemento central e atravessa toda a estrutura do trabalho. Partimos de um “duplo campo de observação” (Brasil e França) no qual a “semelhança” dos objetos encontra-se na experiência da constituição de emissoras de cunho educativo (Futura e La Cinquième) em um determinado período, marcado, notadamente, pela desregulamentação do setor; e a “dessemelhança” na natureza de cada uma delas (privada e pública). Este olhar é utilizado no intuito de pensar desde as características mais amplas e gerais na constituição dos modelos televisivos até as análises específicas sobre as duas emissoras, tanto no plano institucional e político, quando no da programação e do audiovisual. Pautando-nos no objetivo de historicização das relações sociais dos agentes envolvidos com os campos televisivos francês e brasileiro, faz-se necessária a discussão dos seguintes conceitos-chave: campo e habitus. Tais conceitos devem ser tomados de forma conjunta, para que, de tal modo, a partir de sua compreensão geral, possamos pensar as especificidades e as características internas do campo televisivo. Para Bourdieu, “a sociologia apresenta-se como uma topologia social” pela qual seria possível e necessário “representar o mundo social em forma de um espaço”. Este espaço seria “construído na base de princípios de diferenciação ou de distribuição constituídos pelo conjunto das propriedades” que atuam nesse universo social e seriam capazes de “conferir, ao detentor delas [das propriedades] força ou 28 poder neste universo”. Assim, “os agentes e grupos de agentes” seriam definidos “pelas suas posições relativas neste espaço”, que pode ser definido com um “campo de forças”, ou seja, “um conjunto de relações de força objetivas impostas a todos os que entrem nesse campo e irredutíveis às intenções dos agentes individuais ou mesmo às interações diretas entre os agentes” (BOURDIEU, 2011, p.136). O campo seria, então, um espaço de posições estruturadas, onde as propriedades dependem da posição de cada um desses agentes. Para Bourdieu, a importância “de uma teoria geral da economia dos campos” se dá pelo fato dela permitir “descrever e definir a forma específica de que se revestem, em cada campo, os mecanismos e conceitos mais gerais”, evitando reducionismos. Segundo Bourdieu, “compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta [...] é explicar, tornar necessário subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado os atos dos produtores e as obras por eles produzidas” (BOURDIEU, 2011, p. 68). Nesses termos, o conceito de campo televisivo nos permite observar quais foram os agentes envolvidos direta e indiretamente com os processos na França e no Brasil e levantar hipóteses acerca das motivações que cada um desses agentes detinha para se engajar em seus projetos, além de possibilitar o entendimento relacional, seja pela situação de concorrência entre os agentes de um próprio campo, seja entre campos distintos. Todavia, como dissemos anteriormente, é impossível pensar o campo sem considerar o habitus. Para Bourdieu, o habitus constitui-se de sistemas “de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes”. Em outras palavras, são “princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas a seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins”, ou seja, práticas “coletivamente orquestradas”, mas que não se configuram como a “ação organizadora de um maestro”. Como um “produto da história, o habitus produz práticas, individuais e coletivas, portanto da história”, garantindo “a presença ativa das experiências passadas que depositadas, em cada organismo sob a forma de esquemas de percepção, de pensamento e de ação” tendem “a garantir a conformidade das práticas e sua constância ao longo do tempo” (BOURDIEU, 2009, p.87-90). 29 Dessa forma, o habitus torna-se uma ferramenta analítica importante para nossa análise, pois possibilita compreender determinadas práticas executadas pelos agentes do campo televisivo e, de tal forma, explicar como certas ações ocorreram em detrimento de outras. A opção em questão permitirá, ainda, que a investigação centre o seu foco de análise no conjunto de relações que tornaram socialmente possível a existência da La Cinquième e do Canal Futura. Consideramos, para tanto, os agentes e suas práticas (habitus) e as instituições envolvidas nesse processo de forma relacional e comparativa (campo), bem como as particularidades do meio televisivo, sendo possível pensar, ainda, como determinados agentes investiram em projetos educativos e de que modo tais projetos apresentaram e defenderam concepções de sociedade. Inicialmente, devemos ter claro que Pierre Bourdieu não utilizou a noção de campo relacionada à televisão, ainda que tenha escrito um livro intitulado Sobre a Televisão. Nesse livro, a preocupação central do autor é com um outro campo, o jornalístico. Para François Jost (2007, p.30), “o fato de Bourdieu haver se referido à televisão, quando de fato ele crítica apenas o funcionamento da informação, é sintoma de uma redução muito comum da mídia televisão a uma parte desses programas”. Desse modo, se quisermos pensar a televisão de forma integral como um fenômeno social, político, econômico, cultural, tecnológico e estético não podemos encaixotá-la exclusivamente no campo jornalístico. Ao discutir as especificações e limitações do campo jornalístico, o próprio Bourdieu dá algumas pistas da hierarquização entre TV e jornalismo. Segundo o autor, “através da pressão do índice de audiência, o peso da economia se exerce sobre a televisão, e, através do peso da televisão sobre o jornalismo, ele se exerce sobre os outros jornais assegurando a proeminência da primeira”. E acenando para uma autonomia do campo televisivo, Bourdieu afirma que “pouco a pouco”, os jornalistas “deixam que problemas de televisão “se impusessem a eles (BOURDIEU, 1997, p.81). A partir disso, devemos ter claro que o campo jornalístico é integrante do campo televisivo, mas o campo televisivo não se encerra nem se limita pelo campo jornalístico, o que produz a necessidade de pensar o campo televisivo com um campo autônomo em relação ao jornalismo; em outras palavras, tomá-lo como uma categoria histórica específica que colabore na tarefa de análise histórica da televisão. 30 Os conceitos tomados da sociologia da prática de Bourdieu foram importantes para esta tese por possibilitarem que não perdêssemos de vista a condição relacional de existência da La Cinquième e do Canal Futura, além de incentivarem a busca pelo mapeamento e o conhecimento dos mecanismos internos dos campos televisivos nos quais cada uma das emissoras estava inserida. A partir disso, categorizamos alguns agentes específicos, o que possibilitou a compreensão do habitus e o entendimento das práticas do campo televisivo ocupadas com a educação. Primeiramente, é importante indicar que o campo televisivo se constitui de uma multiplicidade de agentes, que se articulam também em outros campos. É o caso da primeira categoria: os políticos. Dada uma das principais características dos serviços de radiodifusão ser a relação direta com ou Estado, devido à outorga para difusão de conteúdo no espaço eletromagnético, seja no modelo comercial, seja no público, os políticos tornam-se agentes relevantes, pois são os responsáveis pelo ordenamento jurídico, pela fiscalização, pelas pressões e concessões. Respondem também a uma lógica ligada ao próprio campo político, a qual não se pode perder de vista e a qual outros agentes estão vinculados, como os partidos políticos. Carregam também uma dupla relação com a televisão, pois fazem o seu uso buscando visibilidade, mas, também, sabem criticá-la quando seus interesses são ameaçados ou diretamente atacados. Ao lado dos políticos, temos a categoria de proprietários, que, além de donos da empresa televisiva, cumprem a função de concessionários, para operar serviços de TV. Os proprietários estão em articulação direta com o poder político e econômico e são responsáveis pela existência da emissora, sobretudo no que diz respeito à aquisição da concessão. Entre os agentes que expressam o lado do poder econômico, temos os anunciantes. No modelo comercial, foram fundamentais para o financiamento dos serviços de televisão desde sua criação, passando, inclusive, a ocupar cada vez mais espaço nos modelos onde outrora havia monopólio público. Em sua composição estão as indústrias, as empresas financeiras, o comércio, as grandes marcas, os empresários, mas também os publicitários, responsáveis por transformar a televisão num meio eficaz de atingir seu público-alvo, o consumidor. Hierarquicamente abaixo dos proprietários, mas com responsabilidades tão grandes quanto, estão os executivos. Homens e mulheres responsáveis pelo 31 desenvolvimento das linhas gerais e da filosofia de emissoras. Ocupam as posições de chefia, como a presidência, superintendências e gerências. Os executivos estão muito próximos dos proprietários, representando, muitas vezes, seus interesses e os interesses das emissoras, nas negociações de contratos com os anunciantes e com os políticos, além da relação com os outros agentes diretamente envolvidos com a produção televisiva, como os criadores, jornalistas e artistas. Na categoria criadores, estão aglutinados profissionais que atuam no processo de criação, entre eles diretores, produtores e roteiristas. Ou seja, profissionais ocupados em transformar as linhas gerais da programação da emissora em produtos televisivos. Inseridos nessa dinâmica de produção, os criadores têm um contato particular com artistas e jornalistas, desde a escolha do casting até as gravações em estúdio. Chegamos, assim, as categorias de maior visibilidade para o público: os artistas e os jornalistas. Tal visibilidade é proporcionada pelas características gerais da televisão, com um amplo espaço para o entretenimento, que acaba por supervalorizar a categoria dos artistas, mas também pela própria cobertura da imprensa sobre o meio, que enfatiza os aspectos pitorescos da sua vida privada. A categoria artistas tende a se reconhecer e se manifestar a partir de uma lógica de formação profissional específica nas artes dramáticas. Reúne atores e atrizes, em sua maioria com trânsito no rádio, no teatro, no cinema e no circo. Há, também, uma relação muito próxima com o campo da moda, o que possibilita a modelos, que mesmo sem formação em artes dramáticas, convertam seu capital e tornem-se artistas de televisão. Esta conversão de capital aplica-se a inúmeros profissionais, que, dado destaque e reconhecimento em seus campos específicos, são convidados para assumir na televisão o papel de especialistas em determinados assuntos, tais como medicina, direito, psicologia, economia, etc. Os jornalistas constituem uma categoria profissional altamente especializada e envolvida com a produção televisiva. Atuam não somente na produção do telejornalismo, mas, também, na apresentação dos mais variados gêneros e formatos. Assim como os políticos, os jornalistas também têm suas ações em articulação a um próprio campo, o jornalístico, o que, na prática, resulta em disputas próprias que se revelam, por exemplo, na distinção entre os jornalistas televisivos e os jornalistas da imprensa escrita, embora o trânsito entre as duas funções seja cada dia mais intenso. 32 Como um desdobramento da categoria jornalistas, chegamos aos críticos de televisão. Em sua maioria, são jornalistas de formação que não estão envolvidos diretamente com a produção, e sim com a avaliação daquilo que vai ao ar. No caso brasileiro, concentram-se na imprensa escrita. Há, também, aqueles que atuam em programas especializados na própria televisão, geralmente contratados para revelar os segredos das telenovelas e das celebridades. Na última ponta da produção televisiva estão os técnicos, profissionais de áudio, vídeo, edição, iluminação, cenografia, responsáveis pela efetiva realização das produções. Por estarem atrás das câmeras, não recebem, na maioria dos casos, o mesmo reconhecimento do público, da crítica e das próprias emissoras, o que se expressa tanto nas diferenças salariais quanto de prestígio social. A última categoria é a dos telespectadores, o fim e objetivo último do trabalho de todos os agentes acima. Público-alvo de toda e qualquer transmissão televisiva, em muitos momentos e para determinados agentes, o telespectador torna-se sinônimo de audiência, de consumidor. Os telespectadores constituem uma das categorias de maior dificuldade de apreensão para sua análise. Mas é possível buscar algumas de suas impressões e práticas, a partir de cartas enviadas para os jornais ou diretamente para os programas, em pesquisas de opinião e até mesmo na participação direta em algum programa televisivo. Cabe esclarecer que as categorias aqui propostas não esgotam o campo de relações entre os mais diversos agentes, apenas jogam luz para alguns dos principais responsáveis pela dinâmica do campo televisivo. Sabemos também que cada um desses agentes opera de forma particularizada a partir de um referencial maior, o da sua emissora. É a partir e por causa de cada uma das emissoras do campo televisivo, que esses agentes vão se relacionar. Foi com base nessas categorias, que buscamos conhecer às especificidades de cada um dos campos televisivos, na França e no Brasil, na última década do século XX. O trabalho com as fontes audiovisuais também exige alguns apontamentos de ordem teórico-metodológica. O primeiro grande desafio é o de utilizar as imagens para além da simples exemplificação. Apesar de tal premissa ter sido colocada há mais de quatro décadas por Marc Ferro, em seu célebre texto “O filme: uma contra- análise da sociedade?” (FERRO, 1992, p.32), tal prática ainda é comum entre os historiadores que tendem a tratar as imagens “como meras ilustrações, reproduzindo-as nos livros sem comentário”. Por isso, o historiador preocupado em 33 trabalhar a imagem como fonte e objeto deve superar essa prática e avançar no sentido de utilizar as imagens como uma forma de “oferecer novas respostas e suscitar novas questões” (BURKE, 2004, p.12). Numa perspectiva ligada ao campo da comunicação, Arlindo Machado alerta que “abordar a televisão como um acervo de trabalhos audiovisuais, não necessariamente homogêneo” não é uma tarefa fácil (MACHADO, 2000, p.17). A análise das fontes audiovisuais exige a compreensão das especificidades técnicas e de linguagem da televisão. O audiovisual televisivo deve ser analisado não como uma obra isolada, mas à luz da grade de programação das emissoras. No que concerne às especificidades de uma análise integrada da grade de programação televisiva, Jérôme Bourdon afirma que ela deve percorrer três níveis indissociáveis, denominados pelo autor como: texto, co-texto e contexto. O texto indicaria as características internas do produto, tais como montagem, a forma, o cenário. O co-texto, a relação de determinado programa com o restante da grade da emissora, o caráter repetitivo e intercambiável de grande parte dos programas, a concorrência entre as grades, o que faz com que os profissionais e os telespectadores combinem seus programas de acordo com seus interesses. E, por fim, o contexto, no qual o pesquisador deve centrar a sua atenção na recepção. Para o autor, há uma “benéfica inflação documental”, já que os programas televisivos estão cercados por textos escritos, por críticas, reações, comentários, cartas de leitores, entrevistas e lembranças de telespectadores, tornando possível ao historiador a “reconstituição do espaço social de recepção” (BOURDON, 2011, p.18- 19). Como bem nos adverte Bourdon, o conceito de gênero, que tem sua origem na poética e na teoria do cinema, revela-se crucial para o entendimento da teoria e da história da televisão. Segundo o historiador, cada gênero tem sua história específica, que também é a história de suas interações internacionais e de seu desenvolvimento. Desta forma, pensar a televisão a partir de seus gêneros televisivos é pensar a relação construída ao longo da história do meio, bem como a interação entre esses gêneros (BOURDON, 2011, p.20-21). Há ainda o clássico trabalho de Raymond Williams “Televisão: tecnologia e forma cultural”, escrito nos anos 1970, e que em 2016 ganhou sua primeira edição brasileira. Na obra, o autor se ocupa em pensar a televisão “como uma tecnologia cultural específica” e examina “seu desenvolvimento, suas instituições, suas formas 34 e seus efeitos nessa dimensão crítica”. A sua análise é centrada na noção de “fluxo”, ou seja a sequência planejada dos programas, para o autor o “fluxo” é a “característica que define a radiodifusão simultaneamente como tecnologia e uma forma cultural” (WILLIAMS, 2016, p.24-p.97). Tanto a La Cinquième quanto o Futura são emissoras declaradamente educativas. Portanto, proceder uma análise das duas grades de programação exige tomar esse objetivo educativo como premissa para toda a produção. Há diversas formas de pensar a grade de programação de uma emissora. Porém, muitas dessas análises foram realizadas para pensar a programação de emissoras generalistas, ou seja, emissoras que não se enquadram em um recorte especificamente educativo, ainda que, na maioria delas, o papel educativo também seja contemplado. No caso de nossa análise, após o mergulho nas fontes das emissoras, decidimos por traçar algumas linhas mestras que serão nossas guias no caminho de compreensão dessa programação. Essas linhas serão traçadas basicamente a partir dos gêneros da televisão. O intuito é compreender dentro da grade de programação de cada uma das emissoras de que forma cada um dos gêneros contribuiu para o objetivo educativo. Em pesquisa quantitativa sobre a programação da televisão brasileira no ano de 1996, José Carlos Aronchi de Souza identificou 37 gêneros e 31 formatos divididos em cinco categorias. As categorias identificadas por Aronchi são: entretenimento, informação, educação, publicidade e outros. Esta classificação assemelha-se, em parte, à famosa tríade da programação televisiva que tem na educação, informação e entretenimento seus alicerces. Outra classificação dos gêneros televisivos pode ser observada a partir da obra de Jérôme Bourdon, que a utiliza para analisar a programação da televisão europeia. Bourdon identifica o que ele define como quatro grandes gêneros: ficção, informação, entretenimento e a télé- realité (BOURDON, 2011). Nota-se que há uma especificidade dentro dessa proposta, já que o autor considera a ficção com um gênero diferente do entretenimento. Devemos ressalvar que apesar de adotarmos a teoria dos gêneros televisivos na análise da programação, sabemos que os programas não possuem uma única natureza e que os gêneros não são puros. E na proposta da La Cinquième e do Futura torna-se ainda mais visível o hibridismo desses gêneros. As programações das emissoras poderiam ser pensadas a partir de cada uma dessas propostas e, em 35 cada uma delas, haveria ganhos e perdas na compreensão. Considerando que nossos objetos encontram-se na intersecção de uma programação brasileira e francesa, buscamos articular as perspectivas de Aronchi e Bourdon em nossas análises, a partir daquilo que as fontes nos indicaram. As fontes sobre a La Cinquième e o Canal Futura que compõe o corpus documental desta pesquisa foram coletados em momentos distintos. A pesquisa nos arquivos do Futura, por exemplo, foi dividida em duas etapas, a primeira realizada junho de 2014 e segunda em janeiro de 2016. O acesso aos documentos ocorreu mediante contato estabelecido diretamente com Lúcia Araújo e Mônica Pinto. A pesquisa realizada em junho de 2014, consistiu na coleta dos documentos textuais do período estabelecido pelo recorte da pesquisa (1997-2002) à ocasião todo esse material foi fotografado para sua sistematização posterior. Já em janeiro de 2016, retornamos à sede da emissora, mas, dessa vez, com o objetivo de visionar o material audiovisual. O acesso às fontes francesas ocorreu graças ao financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), por meio da Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior (BEPE), que possibilitou a minha vinculação ao Laboratoire de Recherche Historique Rhône-Alpes (LARHRA), em Lyon, sob a orientação da professora Évelyne Cohen, entre maio e setembro de 2015. O principal acervo de consulta dos arquivos da La Cinquième foi o Instituto Nacional do Audiovisual (INA). Consultamos os documentos audiovisuais do fundo Les chaînes hertziennes (1947 à nos jours), no qual além do material audiovisual, há o acesso ao Magazines de Programmes, boletim semanal sobre a programação e as sources écrites, acessíveis exclusivamente na unidade de Paris. O acesso a esses arquivos digitalizados é realizado pelos pesquisadores de forma presencial por meio da Inathèque. Há unidades da instituição espalhadas por todas as regiões da França. No nosso caso, utilizamos duas unidades: o INA Centre-Est, em Lyon; e o INA Ilê- de-France, localizado na Biblioteca Nacional da França, em Paris.6 A Inathèque possui uma ampla base de dados7 informatizada que permite ao pesquisador buscas 6 Em 1992, a França estendeu a lei do Depósito Legal que já existia para os livros aos documentos audiovisuais e o INA passou a ser responsável não somente por arquivar e organizar, mas também divulgar os acervos audiovisuais televisivos, o que possibilitou, a partir do ano de 1995, o acesso dos pesquisadores à grande parte do que foi veiculado pelas emissoras francesas ao longo da história (COHEN, 2016, p.108). 7 Ao fazer uma busca na base de dados da Inathèque, é possível clicar no nome de cada um dos programas e acessar uma ficha de descrição com diversos dados relativos a eles. Essas fichas, 36 precisas a partir de uma multiplicidade de combinações de palavras-chave (tema, data, programa, emissora). As fontes que compõem o corpus documental da tese podem ser divididas, de uma maneira geral, em três grandes grupos: documentos textuais das emissoras; notícias publicadas na imprensa; e documentos audiovisuais. Para fins de análise, os documentos textuais do Canal Futura foram subdivididos em três grupos: documentos internos; documentos de divulgação; e documentos de consultoria. O primeiro grupo diz respeito aos documentos produzidos pela Fundação Roberto Marinho e pelo Canal Futura com a função de uso interno no âmbito da atuação cotidiana da emissora. Os documentos internos do Canal Futura descrevem a dinâmica e o funcionamento do canal, em seus aspectos organizacionais e de programação e temporalmente abrangem desde o projeto inicial da emissora, passando pelos seus principais objetivos, pelos desdobramentos e as reformulações, até o seu aniversário de cinco anos, em 2002. Apresentam uma visão bastante pragmática do processo de produção, deixando transparecer as preocupações mais cotidianas e os problemas mais urgentes. São relatórios, pesquisas, etc. Os documentos de divulgação foram produzidos com a finalidade de apresentar o projeto para os agentes externos, tais como parceiros, imprensa e telespectadores. Estão entre eles a Revista Futura e o Informativo Futura. A Revista Futura, publicação oficial da emissora, conta com sete exemplares, do número 1 ao número 8, com a ausência do número 2. Os números são relativos ao período de novembro de 1997 e ao segundo semestre de 1999. Os exemplares possuem de 38 a 50 páginas, sendo o primeiro número o de maior extensão. Em relação ao conteúdo, a revista versa basicamente sobre os elementos constituintes da programação e das ações da emissora. O Informativo Futura, data do final de 1999, momento no qual não há mais a publicação da revista. E, por fim, temos os documentos de consultoria, que são documentos produzidos por agentes externos e empresas de consultoria a pedido do canal, mas descrevem os processos internos da emissora, com ênfase no aspecto organizacional. Concentrados entre 1999 e produzidas pelos técnicos do INA no momento de organização das fontes, são importantes, pois situam o pesquisador sobre o programa que ele deseja visionar. Há, ainda, a possibilidade de escolher a opção “documentos escritos” e verificar se existe algum outro documento que acompanha aquele audiovisual. É possível fazer buscas através do portal da Inathèque no endereço eletrônico: http://inatheque.ina.fr/ Acesso realizado em 28 de agosto de 2016. http://inatheque.ina.fr/ 37 2001, dizem respeito, em sua grande maioria, ao processo de reestruturação que o Canal Futura sofreu nesse período. No caso da La Cinquième entre os documentos textuais coletados estavam os exemplares do Les magazines des programmes. A publicação, similar a Revista Futura, trazia um panorama das atrações transmitidas pela emissora, além de outras informações ligadas aos agentes envolvidos diretamente com a produção, tais como dirigentes, diretores e apresentadores. Entre os documentos textuais da La Cinquième coletamos, ainda, inúmeros documentos avulsos e/ou individuais que versavam sobre a temática da TV educativa e da própria La Cinquième, como estudos encomendados pela La Cinquième ao INA, cartazes de propaganda e outras publicações institucionais. Ainda no âmbito das fontes textuais da La Cinquième. Antes do final do período de estágio, tivemos a oportunidade de consultar os arquivos da France Télévisions.8 Devido ao acesso restrito, a consulta se limitou a apenas dois dias. O arquivo da France Télévisions não possui ferramentas consolidadas de pesquisa para amplo acesso ao público, característica que dificultou a busca de documentos, pois não era possível saber com precisão e antecedência os documentos que eles possuem. A guarda desses documentos está sob a responsabilidade de empresas privadas e, no caso dos arquivos relativos à La Cinquième eram duas empresas responsáveis pela sua organização, e cada uma delas o fez a partir de padrões diferentes. Ainda assim encontramos documentos relativos às alterações na grade de programação do ano de 1997, uma série de memorandos trocados entre os funcionários que apresentavam a dimensão interna dessas alterações. Todavia, assinamos um termo de uso, que nos impede de citarmos diretamente nomes que aparecem nessas correspondências. Da mesma forma, os custos financeiros dos programas, orçamento, publicidade, estão protegidos por lei, por serem considerados segredos comerciais, e não podem ser apresentados em sua totalidade. Mesmo com essas restrições, os documentos consultados foram importantes, pois, no cruzamento com outras fontes, possibilitaram afirmações mais precisas, pois, ainda que não possamos citar diretamente o nome de uma pessoa ou 8 Os arquivos da La Cinquième fazem parte de um serviço de gestão dos arquivos institucionais da France Télévisions. Estão organizados partir de uma lógica empresarial, pouco preocupados com a dimensão patrimonial do acervo (COHEN & GOETSCHEL, 2015, p.167). 38 um valor preciso, podemos trabalhar na perspectiva do cargo e de totalizações que colaboram com as análises. Uma outra etapa importante foi a pesquisa de campo na Inathèque de Paris, onde foram consultados os seguintes fundos arquivísticos: Jacques Durand; Régine Chaniac; Jean Pierre Jezequel; CSA: versement 2009; CSA: versement 2004; e Canal Plus: Télévision. Encontramos uma diversidade muito grande de material, desde recortes de jornal das primeiras discussões sobre a criação de uma TV educativa ou sobre a trajetória de Jean Marie-Cavada, primeiro presidente da La Cinquième, até relatórios da emissora e documentos de outras instituições parceiras, como o INA. O outro grupo de fontes diz respeito às notícias da imprensa. No caso do Canal Futura tivemos acesso a dois volumes de um clipping. O clipping reúne 260 notícias, distribuídas por mais de 60 veículos de comunicação de todas as regiões do Brasil, cobrindo os meses de agosto a novembro de 1997. As notícias foram todas lidas e os seus principais trechos coligidos em uma tabela na qual dividimos as publicações mês a mês. Na sequência, passamos a dividir esses conteúdos em quadros temáticos. A análise desse material apresentou um desafio de mão dupla, pois, ao passo que há o clipping, enquanto documento produzido pelo setor de comunicação da emissora, existe o seu conteúdo, ou seja, as notícias publicadas pelos mais diversos periódicos. Dessa forma, a natureza do clipping nos obriga a alguns cuidados metodológicos: o primeiro deles é o de não tomarmos as notícias selecionadas no clipping como se fossem a totalidade do material publicado sobre o Canal Futura pela imprensa no período. Segundo, o clipping é uma seleção, e deve ser pensado como tal. Esse material foi coletado pela emissora com, pelo menos, dois objetivos: o de conhecer a dimensão do alcance do projeto e o de possuir um arquivo, como forma de preservar a memória do período de inauguração do Futura. Porém, tais características não invalidam o conteúdo do clipping; pelo contrário, a amplitude do material, quer em números de veículos, quer em alcance geográfico, colaborou para pensarmos questões específicas que teriam difícil resposta a partir da visada de um único jornal. Como forma de completarmos o quadro relativo à imprensa, nos servimos ainda de pesquisas pontuais no acervo digital do jornal O Globo, disponível por meio de assinatura mensal, e no acervo do Jornal do Brasil, disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 39 O levantamento das matérias, reportagens e notas relativas ao funcionamento da La Cinquième ocorreu por meio da base de dados Europresse, indicada pela professora Évelyne Cohen e disponível aos usuários da Bibliothèque Diderot de Lyon. A base Europresse permite a busca de termos específicos e a combinação com determinados caracteres possibilitando uma maior precisão. A base ainda possui uma função que possibilita que as notícias encontradas sejam agrupadas em um dossiê específico que pode ser convertido em um arquivo de formato PDF. A pesquisa privilegiou os cinco principais jornais franceses: Le Monde, Le Figaro, Libération, L’Echos e L’Humanité. Ao todo foram 16 volumes coletados, com 50 notícias cada. Desse modo, tanto para o Canal Futura quanto para a La Cinquième as notícias da imprensa foram utilizadas como fonte de pesquisa para a compreensão do objeto em si que são as emissoras educativas. O que não quer dizer que tenhamos nos afastado dos cuidados metodológicos que o historiador deve ter ao trabalhar com imprensa escrita. Por fim, passamos a documentação audiovisual. A pesquisa documental no Canal Futura se encerrou em janeiro de 2016 com o visionamento do audiovisual de programas previamente selecionados. Durante uma semana, foi possível acessar os episódios diretamente no setor de arquivos da emissora. O material estava todo em fitas betacam e, por isso, não foi possível realizar qualquer tipo de reprodução do audiovisual, apenas algumas fotografias do monitor, resultando em alguns frames. No caso da La Cinquième o trabalho de visionamento foi realizado por meio de um computador dotado do software mediascope9, na unidade da Inathèque de Lyon. A seleção final de 24 programas nos rendeu 50 trechos, ultrapassando as 140 horas de programação. Tal número de programas visionados, aliado ao caráter repetitivo do próprio meio, com as inúmeras retransmissões e multidifusões, contribuíram para que conseguíssemos conhecer parte relevante daquilo que foi produzido pelas duas emissoras dentro do recorte proposto. 9 Tal programa de computador permite o visionamento dentro de uma interface intuitiva que possibilita ao pesquisador realizar anotações, retirar os frames dos trechos desejados, entre outras funcionalidades. Ao final do trabalho, o material produzido é armazenado em arquivos que são enviados ao pesquisador, por e-mail ou CD, não sendo franqueada a cópia ou reprodução direta do audiovisual. Ao solicitar um determinado programa ao técnico da Inathèque, toda a faixa de programação com duração de uma ou duas horas na qual o programa estava inserido também é disponibilizada. Essa peculiaridade do sistema de consulta nos possibilitou termos a dimensão do programa selecionado dentro do fluxo contínuo no qual ele foi originalmente exibido e visionar aquilo que fora transmitindo antes, durante e depois do programa, inclusive os intervalos comerciais. 40 Nesse sentido, fizemos um esforço para descrever todo o material visionado considerando seus aspectos formais e de conteúdo. Todas as informações foram organizadas em fichas de descrição. Esse material audiovisual, combinado com outras fontes, serviu como o elemento base para a análise comparativa das grades de programação do Futura e da La Cinquième realizadas mais especificamente no quarto capítulo. Tivemos, também, acesso a outros tipos de informações na base da Inathèque, como os dados gerais dos programas, em fichas redigidas pelos documentalistas do INA. A ficha possuía uma gama de informações, como, descrição e andamento dos programas, dados técnicos, entre outros. Informações valiosas quando somadas aos dados retirados do visionamento. Além disso, existem fichas individuais para cada um dos episódios dos programas. Por isso, selecionamos não somente as fichas gerais relativas dos 24 programas, como também as fichas de grande parte dos outros episódios. As descrições de visionamento, aliadas às fichas de programação gerais e de episódios, tiveram um papel fundamental no processo de consolidação das análises do audiovisual. Por fim, nos últimos momentos de análise, e com a impossibilidade de gravação dos audiovisuais nos arquivos oficiais, lançamos mão da plataforma de streaming Youtube e outras similares, tarefa que se tornou um pouco mais precisa, considerando que possuíamos dados seguros sobre a maioria dos programas, podendo, deste modo, cruzá-los com o dos programas já visionados como forma de atestar a veracidade do fragmento audiovisual encontrado. A tese estrutura-se em quatro capítulos. O primeiro intitulado “Campo televisivo e experiências em TV educativa”, apresenta as linhas gerais da constituição histórica dos campos televisivos francês e brasileiro e, a partir disso, faz um mapeamento de seus principais agentes e das experiências em emissoras educativas. Buscamos com esse capítulo apresentar os campos televisivos nos quais as duas emissoras se inseriram bem como os mecanismos de organização que possibilitaram a existência da La Cinquième e do Canal Futura. No segundo capítulo, “Dois projetos de canal do conhecimento”, o objetivo é discutir, de forma comparativa, as linhas gerais dos projetos da La Cinquième e do Canal Futura. Trataremos de uma caracterização geral das emissoras e a busca por uma identidade visual própria. Discutiremos de que modo as duas emissoras se inseririam no contexto de crise social que viviam os dois países. Problematizamos, 41 também, alguns elementos relativos à concepção de identidade como emissoras não-elitistas e a busca pelo reforço de uma programação de caráter popular. Discutimos a preocupação dos dirigentes das duas emissoras educativas com a dimensão econômica do audiovisual, ou seja, de que forma os projetos estavam também alinhados a uma perspectiva de produção e venda de produtos audiovisuais para mercados externos. No terceiro capítulo, “A trajetória das emissoras do conhecimento”, aprofundaremos a análise dos elementos históricos da La Cinquième e do Canal Futura. Iniciamos a discussão pelas cerimônias oficiais de inauguração das emissoras, para, na sequência, tratarmos dos embates cotidianos no campo televisivo. E, ao final, discutiremos as possibilidades e os limites de uma aposta educativa, buscando compreender de que modo a La Cinquième e o Futura conseguiram cumprir ou não os objetivos propostos. Por fim, no quarto capítulo, “O audiovisual educativo francês e brasileiro”, apresentaremos uma análise das grades de programação da La Cinquième e do Canal Futura. A análise histórico-comparativa permite compreender, por um lado, as linhas gerais sobre a forma como cada uma das emissoras tratou as suas questões específicas e, por outro lado, quais são as aproximações e os distanciamentos entre as experiências, revelando tanto aquilo que seria específico, único, singular, quanto o que é rotineiro, comum no campo televisivo dentro de um quadro internacional. Discutiremos tais elementos a partir das categoriais, gêneros, os formatos televisivos produzidos pelas duas emissoras. Dessa forma, subdividimos o capítulo, em tópicos específicos, cada dedicado a uma das categorias clássicas da tríade sagrada televisiva: educação, informação e entretenimento. Dentro de cada uma das categorias apresentaremos os programas mais significativos para as duas emissoras aglutinando-os por gênero e em alguns casos por tema. Reservamos para o último tópico o que denominamos de programação especial, com destaque para os interprogramas e os dias temáticos. 42 1 CAMPO TELEVISIVO E EXPERIÊNCIAS EM TV EDUCATIVA 1.1 Constituição histórica Em 26 de abril de 1935, ocorreu oficialmente a primeira transmissão televisiva em terras francesas. Durante uma hora, as pessoas puderam acompanhar, em algumas dezenas de aparelhos receptores, com resolução de 60 linhas10, a performance da comediante Béatrice Bretty. Esse início dos serviços de televisão foi possível graças ao empenho de Georges Mandel, então ministro do governo de Pierre-Étienne Flandin, que apostou nos inventos de René Barthélemy. Georges Mandel optou por esperar a possibilidade técnica para a ampliação da boa qualidade de imagem antes de expandir a programação. No dia 10 de novembro, após meses de trabalho, um transmissor de 2 Kw instalado na Torre Eiffel passou a levar o sinal aos aparelhos televisores espalhados pela capital parisiense e que já eram capazes de transmitir em 180 linhas (SAUVAGE; VEYRAT-MASSON, 2012, p.27). Aos poucos, uma programação regular começou a ser transmitida. No ano de 1936, por exemplo, os televisores funcionavam diariamente por cerca de 30 minutos do horário vespertino, entre as 16h00 e 16h30. Já no ano seguinte, a televisão francesa passou a exibir seus primeiros programas regulares no período noturno. Neste embrião de grade de programação, já eram levados ao ar: show de variedades; extratos de peças; documentários; e até mesmo um programa literário, o Vient de paraître, dedicado aos autores e suas novas obras, apresentado por Molly Boulanger (JOST, 2007, p.44). No início do ano de 1938, fixou-se um novo padrão para as transmissões. A potência do transmissor da Torre Eiffel foi elevada para 25 Kw com uma programação de uma hora durante cinco dias da semana e duas horas 10 Já em 1937 na Exposição Internacional de Artes e Técnicas fora apresentado o padrão de 455 linhas (SAUVAGE; VEYRAT-MASSON, 2012, p.29). O aumento progressivo das linhas era responsável direto por uma melhora na qualidade de imagem. A partir de 1956, a França adotou como único padrão as 819 linhas, modelo mais avançado dentro da Europa, onde a maioria dos países ainda utilizava o formato de 625 linhas (Cf. MÉADEL, 1999, p.243-244). A tecnologia de varredura da imagem se modificou rapidamente, mas seu princípio permanece o mesmo, pela definição de Herbert Zettl: “A imagem de vídeo é literalmente desenhada na tela de TV por um pincel eletrônico – o feixe de elétrons. Emitido pelo canhão de elétrons, o feixe de elétrons rastreia a superfície interna da tela de televisão linha por linha, da esquerda para a direita, no mesmo sentido em que lemos. A parte interna da tela de TV é pontuada com milhares de elementos de imagem sensíveis à luz ou pixels (pontos arredondados, pequenos retângulos ou formatos de diamante) que se acendem quando atingidos pelo feixe de luz. Se o feixe for potente os pontos brilharão com bastante intensidade. Se o feixe for mais fraco, os pontos brilharão apenas parcialmente. Se o feixe for extremamente fraco, os pontos não emitirão nenhum brilho” (ZETTL, 2011, p.59). 43 aos domingos. No final de 1938, o ministro anunciou uma nova rede de transmissores que, a partir do ano seguinte, ligaria outras quatro cidades francesas: Lyon, Lille, Toulouse e Marselha (SAUVAGE; VEYRAT-MASSON, 2012, p.29). Esse período inicial da televisão francesa ficou marcado pela possibilidade do nascimento de emissoras comerciais. Ainda em 1936, Georges Mandel anunciou seu plano para a criação de três estações privadas: a Télé-Poste-Parisien, projeto do jornal Le Petit Parisien; além dos projetos de televisão da Rádio Toulouse com a colaboração de Henri de France e da Rádio Lyon com o apoio de Marc Chauvierre. Porém, os planos não foram levados adiante por Roberto Jardillier, então ministro da Postes Télégraphes et Téléphones durante o governo do socialista León Blum, totalmente avesso a ideia de “uma televisão capitalista” (SAUVAGE; VEYRAT- MASSON, 2012, p.28). Em 1939, a entrada da França na Segunda Guerra Mundial marcou o fim dess