1 TERESA AUGUSTA MARQUES PORTO MULHERES NA LITERATURA JAPONESA SETSUWA BUDISTA Análise de narrativas das Antologias Nihon Ryouiki, Livro dos Milagres do Japão, séc. IX e Konjakumonogatarishuu, Antologia de Hoje e Antigamente, séc. XII ASSIS 2019 2 TERESA AUGUSTA MARQUES PORTO MULHERES NA LITERATURA JAPONESA SETSUWA BUDISTA Análise de narrativas das Antologias Nihon Ryouiki, Livro dos Milagres do Japão, séc. IX e Konjakumonogatarishuu, Antologia de Hoje e Antigamente, séc. XII Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para obtenção do título de Doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientador: Prof. Dr. Francisco C. Alves Marques. ASSIS 2019 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Vânia Aparecida Marques Favato - CRB 8/3301 P853m Por o, Teresa Augusta Marquest / . , . Mulheres na literatura japonesa setsuwa budista: análise de narrativas das antologias Nihon Ryouiki, Livro dos mila- gres do Japão, séc. IX e Konjaku Monogatarishuu, Antologia de hoje e antigamente, séc. XII. Teresa Augusta Marques Porto Assis 2019 .100 f - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Tese de Doutorado Orientador: Dr. Francisco Claudio Alves Marques 1. Literatura japonesa. 2. Mulheres - Japão. 3. Japão - História. 4. Budismo - Japão. I. Título. CDD 895.63 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Assis MULHERES NA LITERATURA JAPONESA SETSUWA BUDISTA: Análise de narrativas das Anto logias Nihon Ryoik i , L ivro dos Mi lagres do Japão, séc IX e Konjakumonogatarishu, Antologia de Narrativas de Hoje e Antigamente, séc.XII   TÍTULO DA TESE: CERTIFICADO DE APROVAÇÃO AUTORA: TERESA AUGUSTA MARQUES PORTO ORIENTADOR: FRANCISCO CLAUDIO ALVES MARQUES Aprovada como parte das exigências para obtenção do Título de Doutora em LETRAS, área: Literatura e Vida Social pela Comissão Examinadora: Prof. Dr. FRANCISCO CLAUDIO ALVES MARQUES Departamento de Letras Modernas / UNESP/Assis Profa. Dra. KATIA APARECIDA DA SILVA OLIVEIRA Instituto de Ciências Humanas e Letras / UNIFAL/Alfenas Profa. Dra. MONICA SETUYO OKAMOTO Departamento de Letras Estrangeiras Modernas / UFPR/Curitiba Profa. Dra. ELIANE APARECIDA GALVÃO RIBEIRO FERREIRA Departamento de Linguística / UNESP/Assis Prof. Dr. ANDRÉ FIGUEIREDO RODRIGUES Departamento de História / UNESP/Assis Assis, 12 de agosto de 2019 Faculdade de Ciências e Letras - Câmpus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100, 19806900, Assis - São Paulo www.assis.unesp.br/posgraduacao/letras/ 5 PORTO, Teresa Augusta Marques. MULHERES NA LITERATURA JAPONESA SETSUWA BUDISTA. Análise de narrativas das Antologias Nihon Ryouiki, Livro dos Milagres do Japão, séc. IX e Konjakumonogatarishuu, Antologia de Hoje e Antigamente, séc. XII. 2019. 99 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2019. RESUMO Este trabalho tem por objetivo analisar personagens e protagonistas femininas presentes nas antologias literárias japonesas setsuwa budistas Nihonkoku genpou zen’aku ryouiki, ou “Histórias Miraculosas de Retribuição Cármica do Bem e do Mal no Japão”, compilada pelo monge Kyoukai no século IX; e na Konjaku Monogatarishuu, “Coletânea de Narrativas de Hoje e Antigamente”, de autoria desconhecida. Para tal, utilizou-se como metodologia a análise literária, em especial o enfoque das narrativas voltadas para o heroico-miraculoso. O estudo também permite considerar o papel da mulher na sociedade desse período histórico Heian (794-1185). Tem como hipótese a multiplicidade de faces do feminino, porém restrita em relação à representatividade masculina em termos de protagonismo. O interesse deste presente trabalho é apresentar reflexões sobre o tratamento ao papel da mulher nessas narrativas, a partir de sua correlação com a visão do budismo original no tocante à questão soteriológica, ou doutrina da salvação. Palavras-chave: Literatura japonesa setsuwa. Literatura japonesa setsuwa budista. Período histórico Heian (794-1185). Protagonismo feminino. 6 PORTO, Teresa Augusta Marques. WOMEN IN THE BUDDHIST SETSUWA JAPANESE LITERATURE. Analysis of narratives of Nihon Ryouiki, The Book of Miracles of Japan, IX century and Konjakumonogatarishuu, Narratives of Today and Past, XII century. 2019. 99 f. Thesis (Doctor Degree) – São Paulo State University (UNESP), Science and Letters College, Assis, 2019. ABSTRACT This paper aims to analyze female characters and protagonists present in the buddhist setsuwa Japanese literary anthologies Nihonkoku genpou zen'aku ryouiki, or “Miraculous Stories of the Karmic Retribution of Good and Evil in Japan,” compiled by the monk Kyoukai in the ninth century; and in the Konjaku Monogatarishuu, “Collection of Narrative of Today and the Past”, of unknown authorship. The literary analysis was used as methodology, especially the approach focused on the miraculous- heroic. The study also allows to consider the role of women in the society of this historical period Heian (794-1185). It has as hypothesis the multiplicity of female faces, but restricted in relation to male representativeness in terms of protagonism. The purpose of this paper is to present reflections on the treatment of the role of women in these narratives, from their correlation with the view of original buddhism, regarding the soteriological point, or the doctrine of salvation. Keywords: Japanese literature setsuwa. Japanese buddhist setsuwa literature. Heian Historical Period (794-1185). Female protagonism. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 06 2 A REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BUDISMO ORIGINAL 10 2.1 O Sutra do Lótus. A Princesa-dragão 10 2.2 A representação feminina no Japão. Primórdios. Crônica de viagem chinesa séc. III. Kojiki, Registro das coisas antigas, séc. VIII. Taketori Monogatari, A Narrativa do Cortador de Bambu, c. séc. VI 13 3 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA LITERATURA JAPONESA SETSUWA BUDISTA 21 3.1 Nihonkoku genpou zen’aku ryouiki, Histórias Miraculosas de Retribuição do Bem e do Mal no Japão, ou Nihon Ryouiki, Livro dos Milagres do Japão, séc. IX. Konjaku Monogatarishuu, “Narrativas de Hoje e de Antigamente; finais do séc. XII 21 3.2 Narrativas Setsuwa laicas e budistas. Alguns cotejos. A sociedade de Heian (794-1185) 21 3.3 Análise de três narrativas: Uma mulher disfarçada de raposa; uma mulher que sobe viva aos Céus; uma mulher que desce ao reino dos mortos 21 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 86 REFERÊNCIAS 89 ANEXO 1 - O RECORTE FOTOGRÁFICO DAS REPRESENTAÇÕES DE KANNON NO SUTRA DO LÓTUS 93 ANEXO 2 - A MULHER QUE SOBE VIVA PARA O CÉU 94 ANEXO 3 - A MULHER QUE DESCEU AO REINO DOS MORTOS E VOLTOU VIVA 95 ANEXO 4 - UMA RAPOSA TRAVESTIDA DE MULHER 97 6 1 INTRODUÇÃO A identificação com as lendas, contos, folclore, como os estudiosos da narrativa setsuwa a conceituam na década de 1920 no Japão, quando se empreende estudo acadêmico sobre este tipo de narrativa, levou-me, no mestrado na Universidade de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro, de 2003 a 2007, ao tratamento de três narrativas japonesas do Konjaku Monogatarishuu, ou “Coletânea de Narrativas de Hoje e Antigamente”, compilação de autoria desconhecida do final do século XII e também do período histórico Heian (794-1185). Nesse estudo anterior, foi possível identificar a previsão do Buda Sidarta, o buda histórico, Shakyamuni Butsu no Japão, no séc. VI a C, de algumas das trinta e três, ou infinitas, formas de transformações, mensageiros ou máscaras, como preferimos conceituar, da divindade budista da Compaixão, Avalokiteshvara na Índia, na China Kuan Yin ou Guan Yîn, no Japão Kannon Bosatsu, após a descoberta desse gênero de narrativa, na disciplina no curso de pós-graduação “Konjaku Monogatarishu, um estudo do gênero setsuwa”, ministrado pela Profa. Dra. Luiza Nana Yoshida, a partir do qual passamos a aprofundar nossa pesquisa. Konjaku Monogatarishuu é obra já apresentada ao universo acadêmico brasileiro pela pesquisa da Profa. Luiza Nana Yoshida por sua pesquisa de doutorado, com análise de narrativas laicas e atualmente em conjunto a Profa. Dra. Neide Hissae Nagae e pesquisadores no Centro de Estudos Japoneses da USP, também contemplando o universo budista. O trabalho do monge Kyoukai, com o Nihon Ryouiki, ou “ O Livro dos Milagres do Japão”, do século IX, é ainda de certo modo inédito, pois que apresentado na tradução do japonês para o inglês por Nakamura Kyoko Motomochi, da Universidade de Harvard. Com a discussão frequente do papel do carma na existência dos seres humanos, achamos interessante trazer a discussão do impedimento ou permissão da mulher ao patamar máximo da iluminação espiritual, ou nirvana, a partir do próprio título completo dessa que é uma das antologias consideradas, Nihon Ryouiki ou Nihonkoku genpou zen’aku ryouiki, “Histórias Miraculosas de Retribuição Cármica do Bem e do Mal no Japão”, o que pode permitir iluminar os conceitos de merecimento, milagre e maravilha. No mestrado tive a oportunidade de traduzir e analisar três narrativas que destaquei como significativas quanto à presença do salvacionismo da divindade budista da compaixão, ou misericórdia, Kannon, em torno de cuja devoção espalharam-se incontáveis relatos miraculosos. Nessas narrativas destacam-se três tipos 7 de demônios que serão vencidos: o oni, espécie, legião de ogros; o espírito-raposa, disfarçado de mulher e o próprio ser humano, em sua face mesquinha, capaz de infringir aos demais danos e sofrimento, por vingança, ambição ou desequilíbrio psíquico e espiritual. Dando prosseguimento à pesquisa no doutorado na Universidade Estadual Paulista, UNESP, Campus de Assis, onde também leciono, desde finais de 2010, Iniciação ao Curso de Japonês, Literatura Japonesa, Imigração Japonesa e Mestres da Literatura Japonesa, tive como orientadores o Prof. Dr. Antônio Roberto Esteves, da Área de Espanhol, e o Prof. Dr. Franscisco Claudio Alves Marques, da Área de Italiano, o primeiro dedicado ao estudo do romance histórico e o segundo às narrativas medievais italianas e ao cordel nordestino. Move-nos, também, a procura das vozes autorais e narrativas, bem como seus focos e gêneros no tratamento da figura da mulher na literatura budista em seus primórdios e na literatura japonesa antiga e medieval, e em alguns exemplos através dos séculos, seguindo-se a trilha da literatura heroico-miraculosa. Trata-se de uma questão primordial ao se tratar da situação da mulher na narrativa setsuwa budista, sem dúvida influenciada pela ótica de merecimento no budismo original. Em nossos estudos nestes últimos anos, pudemos contrastar algumas particularidades que marcam, em termos de diferença, o protagonismo dos personagens femininos das narrativas setsuwa budistas com o das laicas. Neste sentido, o presente trabalho propõe-se a contribuir com a discussão do fato miraculoso em narrativas setsuwa que começam a ser traduzidas pelo Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo e que já foram tema de nossa dissertação de mestrado, que envolveu a tradução de três narrativas budistas do Konjaku Monogatarishuu. O budismo, nascido na Índia, no século VI antes da era comum, chega ao Japão no século VI, via Coreia e China. Kannon, a Mãe Compassiva, advinda da divindade indiana Avalokiteshvara, desempenhará importante papel cultural e religioso, por volta do século XII será firmada como figura feminina. A devoção a Kannon pode ser verificada na narrativa budista 17, do Tomo XVI do Konjaku Monogatarishuu, compilação de finais do século XII, de autoria desconhecida, que será de novo analisada neste estudo. As duas outras narrativas, pertencentes ao Nihon Ryouiki, compilação do século IX, girarão em torno do merecimento da reta conduta e da cópia e recitação de sutras, recomendadas pelo budismo. Ambas significam ganho de méritos espirituais que 8 lançam luzes sobre os prodígios compilados e reinterpretados pelo monge Kyoukai, ou Keikai (NAKAMURA, 1997), cujo teor reconhecidamente revolucionário também discutiremos nesta pesquisa. Enquanto compilador, com sua releitura doutrinária da memória budista original sobre o papel da mulher em texto das primeiras traduções (Índia para a Ásia, sécs.III a. C. a III) do Sutra, ou Sermão, do Lótus, “permite-lhe” a possibilidade de iluminação espiritual, em uma releitura de narrativas originais. Tal postura aparece em especial na narrativa “Sobre uma mulher que agia de modo extraordinário, comia ervas sagradas e subiu viva para o Céu” . Este Céu poderia ser o Nirvana, estado de bem-aventurança suprema; ou talvez uma Terra Pura, território benfazejo e preparatório para o Nirvana., a que homens e mulheres teriam acesso após a morte física, e mesmo sendo imperfeitos, mas por serem confiantes em votos compassivos de budas. Temos então que o destaque se dá pelo fato de a protagonista fazer viva esta travessia, guiada por anjos e, como a seguir se verá, por não ter escapatória em termos de inserção social. O Tao e o budismo trazem exemplos de mestres ou personagens ilustres que foram agraciados com o privilégio de passarem para o mundo estritamente espiritual sem terem sido colhidos pela morte física, como o sábio chinês taoista Lao Tsé, que teria sido visto encaminhando-se para o paraíso Shambhala montado em um búfalo; e, também, o mestre indiano Zen Boddhidharma, que teria sido visto, também rumo a Shambhala, depois de ter sido assassinado, segurando apenas uma sandália e deixando a outra na sepultura como um recado incontestável. Na bíblia judaico‐cristã conhece‐se o exemplo de Maria, Mãe de Jesus, o do profeta Isaías e de Enoque, avô de Noé, arrebatados para o mundo espiritual sem passarem pela morte física. A protagonista do Nihon Ryouiki que alça aos Céus viva testemunha que o maravilhoso será tratado como sinonímia de ganho miraculoso e caminho heroico, fruto de esforço pessoal e de compartilhamento de qualidades (sobre naturais de espíritos realizados (PAUL, 2000). É nossa proposta refletir sobre o tratamento à mulher no universo das narrativas japonesas setsuwa miraculosas budistas, em contexto social e histórico-doutrinário do budismo original que, para alguns intérpretes, vedaria o acesso da mulher à realização espiritual, como poderia ser depreendido do Sutra do Lótus, último sermão do Buda histórico Sidarta Gautama, na Índia do século VI antes da era comum; para outros, como teóricos da escola Nichiren, considerada o Lótus vivo, Shakyamuni não teria fechado tal porta às mulheres. Um ponto importante de cotejo nos pareceu a visita ao 9 episódio da princesa-dragão, menina de oito anos, filha do célebre Rei Naga, devoto budista, menina essa que se ilumina mesmo sendo mulher, ou, em outro ângulo, sendo mulher realizada, mostraria essa “façanha” para uma plateia masculina de monges, narrada no Capítulo XII do Sutra do Lótus; e, também, como contraste, realizar cotejos temáticos e críticos entre narrativas budistas e laicas, compiladas nas antologias citadas. Foram escolhidas para estudo focal desta tese as narrativas: 17 do Tomo XVI da Seção Budista do Konjaku Monogatarishuu, “Como Kaya-no Yoshifuji, de Bichuu, tornou-se marido de uma raposa e foi salvo por Kannon”, traduzida do japonês por mim para o português durante meu mestrado com a supervisão da Dra. Madalena Cordaro; a Narrativa 19, do Tomo II do Nihon Ryouiki: “Sobre a visita ao palácio do Rei Yama por uma mulher devota do Shingyou, e o Evento extraordinário que se seguiu” e a Narrativa 13, também do Nihon Ryouiki, mesmo tomo, “Sobre a mulher que agia de modo extraordinário, comia ervas e voou viva para o Céu”. As narrativas trazem exemplos de visões sobre a mulher que nos remetem ao seu papel social e também ao tratamento de sua condição na doutrina budista da época. 10 2 A REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BUDISMO ORIGINAL. 2.1 O Sutra do Lótus. A Princesa-dragão A princesa-dragão é personagem do Sutra do Lótus, último sermão ou pronunciamento do Buda histórico Sidarta Gautama, Índia do séc. VI a C, e conhecido através de compilações e traduções realizadas principalmente no período do século séc.III na China e na Coreia. Será retratada por olhos masculinos, pelo que indicam as fontes literárias; e, levando-se em conta que a mulher não era considerada capaz de atingir o mais alto grau de consciência espiritual, na segunda parte do capítulo XII, “Devadatta”, esta princesa menina, devota exemplar, é citada como exemplo de célere realização espiritual, que procura demonstrar de modo sobrenatural com a performance de transformação no gênero masculino. Na primeira parte desse capítulo, o Buda explana sua relação antiquíssima com o Sutra do Lótus, escritura incomparável, por períodos muito longos de anos, que ele próprio teria transmitido a Devadatta em uma das inúmeras existências anteriores, quando Devadatta teria sido um governante que buscava a sabedoria. Na segunda parte do capítulo, cantando os méritos e os poderes adquiridos por aqueles que ouvem e praticam a Doutrina Excelente, ou Dharma (sânscr.), Manjushri (sânscr..), bodhisattva (sânscr..), ou iluminado, que representa o aspecto búdico da sabedoria, emerge do oceano e relata ao Bodhisattva Sabedoria Acumulada que “o trabalho de ensinar e converter leva-nos ao oceano, como você pode ver” e “Quando eu estava no oceano eu constantemente expus sozinho o Sutra do Lótus da Lei Admirável”. (WATSON, 1993, P182-189). Frente a isso, o Bodhisattva da Sabedoria Acumulada, depois referido na literatura budista como Buda Ahshobhya, questionaria Manjushri: “Este sutra é muito profundo, sutil e admirável, um tesouro entre os sutras, uma raridade no mundo. Haveria talvez seres vivos que, com sinceridade e diligente prática deste sutra, tenham sido capazes de rapidamente atingir o estado de buda?” (WATSON, 1993, p.186-187) Manjushri responde: 11 “Há a filha do Rei Dragão Sagara, que acabou de fazer oito anos. Sua sabedoria tem raízes principescas, e ela tem compreensão das atividades- raiz e deveres dos seres vivos. Ela pregou os dharani,1 foi capaz de aceitar e abraçar todo o acervo de segredos profundos pregados pelos budas, entrou profundamente na meditação, penetrou inteiramente as doutrinas, e, no espaço de um instante, concebeu o desejo por sabedoria e atingiu o nível de não regresso.2 Sua eloquência não conhece obstáculos e ela pensa em todos os seres vivos com compaixão, como se fossem seus próprios filhos. Ela é inteiramente dotada de bênçãos e quando isto é concebido pela mente e exposto pela boca, ela é sutil, bela, compreensiva e grande. Terna, compassiva benevolente, persistente, ela é gentil e refinada em desejo, capaz de atingir a sabedoria”. (WATSON, 1993, p.187). A referência a tais esplêndidas características provoca dúvida ou incredulidade no interlocutor, que argumenta que o próprio Buda Sidarta ou Shakyamuni necessitara de incontáveis existências, por incontáveis períodos de tempo, em práticas indescritíveis para atingir a iluminação e uma menina de oito anos a alcançaria tão rápido? E mesmo sendo mulher? Poderia ser acrescentado. A princesa-dragão presta reverência ao Buda e oferece-lhe a joia ou gema preciosa, recitando versos de prece. Outro discípulo, Shariputra, questiona-a, argumentando que o corpo feminino, imperfeito, não seria um vaso adequado para receber a Lei; a mulher teria que superar cinco grandes obstáculos no caminho da iluminação: a incapacidade de tornar-se um Rei Brahma Celestial; de tornar-se um Rei Shakra; de tornar-se um Rei Demônio; de tornar-se um Sábio Rei que faz girar a Roda da Lei e, por fim, de tornar-se um Buda.3 Após uma reverência respeitosa, a princesa-dragão ofereceu uma joia ou gema preciosa ao Buda e ela foi aceita. Então, desafiou Shariputra a empregar os próprios dons sobrenaturais para observá-la atingindo o Budado. E frente a uma assembleia perplexa de monges, a princesa-dragão, mostrando todas as marcas características exigidas, realizou a 1 Dharani são formulas sumárias de sutras, propriciadoras de retenção de ensinamentos. In: KEOWN, Damien. Oxford Dictionary of Buddhism. Nova Iorque: Oxford University Press, 2003, p. 74. Também aparecem nas narrativas como recitações ou intercessões por libertação espiritual.  2 Nível de não regresso seria a plena iluminação espiritual, ou Nirvana, que alguns recusam, no compromisso de permanecerem na órbita terrestre em missão de ajuda aos seres em sofrimento.  3 Observe-se a influência do hinduísmo, em cujo berço e panteão nasce o budismo, na referência aos Reis Celestiais.  12 performance de transformação em corpo masculino, sentando-se em uma flor de lótus e atingindo a perfeita iluminação. Ao mesmo tempo, no mundo fenomênico, todos puderam presenciar a princesa-dragão pregando a Lei e milhares de seres vivos puderam ouvir e atingir o estado de não-regresso. Diz o Sutra do Lótus “O Bodhisattva da Sabedoria Acumulada, Shariputra e todos os membros da assembleia silenciosamente acreditaram e aceitaram estas coisas” (WATSON, 1993, p.189). Façamos parênteses para comentar a posição do Buda quanto à prática de atos mágicos ou prodigiosos: seria desaconselhável para um devoto iluminado a prática mágica, que facilmente poderia provocar vaidade e arrogância. A suprema maravilha seria o dom e a prática da instrução, ou parábola. A iluminação espiritual, segundo o budismo, estende-se como possibilidade e promessa a todos os seres; e, assim, os virtuosos, ao mesmo tempo em que lutam para alcançar a iluminação, constituem-se em modelos de conduta para todos os seres; e seus superpoderes, através dos quais poderiam atuar no mundo para ajudá-lo a desembaraçar-se de ciladas, devem ser encarados com naturalidade e humildade, longe dos holofotes da vaidade e do exibicionismo de demonstração de prodígios. E quais seriam os direitos da mulher? No Capítulo XIII do mesmo Sutra, o Buda profetizará que sua ex-esposa, Yasodhara, que se tornara monja, haveria de iluminar-se no futuro, porém gradualmente. Na Índia, berço do hinduísmo no qual nasce o budismo, a sociedade é rigidamente hierarquizada em um sistema de castas, que representa não só o poderio econômico e político, mas o entendido merecimento cármico dos indivíduos, panorama que pode ser alterado por merecimento espiritual ao longo de existências e que também acarretaria ascensão às castas mais elevadas. No Japão, além da atitude revolucionária do monge Kyoukai revendo certas passagens de narrativas da tradição oral e “permitindo” o merecimento da mulher, há também o papel marcadamente feminino que a divindade da compaixão, Kannon, assume no decorrer dos séculos de introdução do budismo no país, firmando-se incontestável como a mãe iluminada misericordiosa no século XII. Segundo Nakamura, tradutora e comentadora do Nihon Ryouiki, a mulher, na tradição japonesa antiga, tem particular importância como símbolo de poder cósmico, papel exemplificado em sua função procriativa. O budismo teria então adicionado o significado ético do amor maternal ao simbolismo da mulher; e contos do amor desmesurado, incondicional da mãe seriam adaptações budistas do tema do 13 casamento divino, recorrente em mitos japoneses, em que a mulher divina encontra-se disfarçada. Com a chegada do budismo, o simbolismo da mulher sofre transformações graduais, a mulher passa a ser símbolo da compaixão sem limites do Buda e o amor maternal é idealizado, chegando ao extremo de uma mãe tentar segurar pelos cabelos o filho desleal que quase a decaptara, implorando por perdão e tentando deter sua descida aos infernos cármicos (NAKAMURA, 1997, p.74,76). Dada a vertiginosa profusão de milagres associados a seres iluminados, especialmente Kannon, veiculada pela oralidade, ocorre uma releitura inevitável desse quase tabu do budismo original quanto aos feitos mágicos. E revolucionário, e por que não paradoxal, será Kannon assumir feição e presença marcadamente feminina, demonstrando ser a mulher bodhisattva, ser iluminado. 2.2 A representação feminina no Japão. Primórdios. Crônica de viagem chinesa séc. III. Kojiki, Registro das coisas antigas, séc. VIII. Taketori Monogatari, A Narrativa do Cortador de Bambu, c. séc. VI Considerando-se a crença autóctone do Japão, o xintoísmo, ou shintou, “caminho do espírito”, a deusa Amaterasu Oomikami, “Grande Deusa do Sol Brilhante”, é associada à luz criativa e está no cerne da explicação cosmogônica, como se vê no Kojiki “Relatos de Fatos do Passado”, obra de encomenda imperial de 720, e no Nihon Shoki, ou Nihongi(720) ,“Crônicas do Japão”, no período Nara (710-794). Amaterasu Oomikami, é ancestral do lendário imperador Jinmu, neto de seu neto Ninigi-no Mikoto, provável instaurador da realeza japonesa por volta de VII a C. O Kojiki, estabelece em Amaterasu Oomikami, as raízes genealógicas, divinas portanto, da família imperial japonesa. Fonte da Criação, ela é mãe e matriz de luz, dos clãs e da família imperial. Tendo esses primórdios esplendorosos e brilhantes, a mulher, porém, é também “perseguida” na literatura antiga e medieval japonesa, com influências tanto do imaginário xintoísta como do budismo, que é introduzido no Japão a partir do período Asuka (538-710). A mulher pode ser associada a seres demoníacos como ogros, ou demônios; ser sedutora e temível em pele de espíritos-raposa; fabricante de projeções astrais como o ikiryou, (“literalmente “aparição de pessoa viva”), assassina quando raivosamente ciumenta. E isso em vozes narrativas preponderantemente masculinas. Mas tem-se, 14 também, associações memoráveis, como a mulher como informante mnemônica principal da obra japonesa histórico-literária Kojiki, ou Registro das Coisas Antigas, Hieda-no Are, mulher de memória impressionante, da categoria dos kataribe, recitadores (e memorizadores) orais da corte. O gênero da autoria fora por um tempo cercado de dúvidas, tendo sido enfim aceito que de fato Hieda-no Are tinha sido uma mulher e, ao lado de outro compilador, Oo-no Asomi Yasumaro, traça os principais pontos da cosmogonia japonesa e da linhagem imperial. Antes do Kojiki, viajantes chineses do século III em crônicas de viagem falam de Himiko, ou Pimiko, jovem governante xamã do reino de Yamato, região que englobava Nara e arredores. Também recordemos que houve seis regentes mulheres, do século VI ao VIII. Kannon, “Que enxerga os clamores do mundo”, divindade budista da compaixão advinda da original indiana Avalokitevara, ou Avalokita, firma-se no Japão como presença e figura feminina no século XII, lastreada por incontáveis eventos prodigiosos ou milagres. A narrativa japonesa conhecida como Taketori Monogatari, ou "Narrativa do Cortador de Bambu", considerada a narrativa primeira, mãe das narrativas, da literatura monogatari, composta por volta de 960, tem como centro Kaguya Hime, a Princesa da Lua, minúscula menina encontrada ainda bebê em um gomo de bambu como prêmio de virtude a um casal idoso sem filhos. Kaguya cresce de forma vertiginosa, encanta os contemporâneos, excede os limites normais do tempo e, em certa altura, declara a todos não pertencer ao espaço da Terra. É resgatada por uma comitiva de sua pátria original, a Lua, revelando-se um ser de outras esferas. Parte após ter testado a bravura e a sinceridade de alguns pretendentes à sua etérea mão e deixado para os pais um milagroso elixir da imortalidade. Conta-se que o imperador apaixonado, inconformado, teria queimado cartas e pertences da jovem, produzindo com seu lamento a constante névoa que cobre o Monte Fuji até hoje. Kaguya, disfarçada, operava na Terra tarefa de esclarecimento espiritual, assim como alguns mitos chineses associam biografias femininas à divindade da compaixão budista, Guan Yîn, que se materializariam com o mesmo propósito, qual seja, divulgar e estimular o conhecimento dos sutras budistas. A fumaça ou névoa que circunda até hoje o célebre Monge Fuji está  associada no imaginário japonês ao ato desesperado do imperador, que teria queimado cartas e pertences da princesa depois que ela deixara a Terra ou, em outra versão, do ato dos pais 15 dela que, inconsoláveis com sua partida, teriam queimado o elixir da imortalidade, que de nada lhes serviria sem a presença da filha. Assim como Kaguya Hime no Japão, biografias na China foram associadas a Guan Yîn, divindade budista da Compaixão, “Aquele/aquela que enxerga os clamores do mundo”, que, através de suas máscaras ou disfarces temporais, agiria em tarefa de esclarecimento espiritual ou salvamento, principalmente em desafios de memorização e recitação de escrituras budistas. Bagyalakshmi conta que a jovem campesina Lingzhao, filha de um respeitado praticante do Zen, seria na verdade a própria Guan Yîn que teria testado vários candidatos submetendo-os a árduas provas de memorização de sutras até a seleção de um candidato formidável, Malang. Antes da cerimônia de casamento, a noiva adoece e morre e todos compreendem quem ela era de fato, aturdidos pelo aparecimento de ossos de ouro no funeral e pela confirmação de um efêmero e volátil velho mensageiro, que desaparece como que por encanto aos olhos de todos os presentes (BAGYALAKSHMI, s/d). Na narrativa setsuwa japonesa budista, um dos focos principais desta tese, a protagonista tem muitos méritos advindos da cópia e recitação de sutras, o que lhe permite visitar o reino dos mortos, ter sua vida poupada para continuar essa prática ou cumprir um episódio interrompido no passado por um roubo de suas devotadas cópias. No budismo, metodologicamente, podem distinguir-se duas posturas básicas na prática das virtudes para se alcançar a iluminação espiritual: ou através de esforços próprios, jiriki (jap.), “poder ou esforços próprios”, ou pelo tariki (jap.), “outro poder”, ou seja, a entrega pela fé no Voto do Buda Amida, Amida Butsu , como é conhecido no Japão. O budismo Mahayana, síntese doutrinária elaborada após a morte de Shakyamuni, do qual partem os ensinamentos sobre o Dharma,4 ou Lei, Doutrina Excelente, e a partir de influências do budismo Hînayana, o budismo original, e também do hinduismo, em que a figura de Krsna, como instrutor espiritual, equivale à do bodhisattva e em que Vishnu, na sua nona encarnação, teria originado Shakyamuni. Do budismo original partem duas correntes doutrinárias que orientarão diferentes interpretações e exegeses: o Mahayana (sânsc.), “Grande Veículo” ou “Grande Ensinamento”, que se encaminha, ao redor do séc.I a.C. ao séc. I, pelo norte asiático para lugares hoje conhecidos como Tibete, China, Vietnã, Coreia e Japão; e o 4 Do sânscrito, “conter”, práticas através das quais, num continuum, o praticante budista pode libertar-se gradativamente de estados de emoções perturbadoras. GYATSO, Tenzin. Bondade, Amor e Compaixão. Trad. Claudia Gerpe Duarte. São Paulo, Pensamento, 1989, p. 34.  16 Theravada (páli),“Escola dos Anciãos ou Monges”; ou Hînayana (sânsc.), “O Pequeno Veículo” ou “ Pequeno Ensinamento”, para Sri-Lanka (ex-Ceilão), Mianmar (ex- Birmânia), Tailândia e outros países do sudeste asiático (PEREIRA, s/d) No cerne do Mahayana, o ideal do bodhisattva floresce como virtude suprema. Embora o budismo original aceitasse a possibilidade de existência de outros bodhisattva, apenas dois eram nomeados e reconhecidos nos primeiros textos doutrinários: Shakyamuni e Maitreya, “O Amoroso”, o futuro buda, Miroku em japonês, estreitamente ligado ao conceito de Mappou (jap.), ou decadência da doutrina budista, de que seria o avatar anunciador. O conceito de Mappou, como veremos a seguir, está na gênese das narrativas setsuwa no período histórico Heian (794-1185), narrativas estas de que nos ocupamos na presente tese, a fim de. refletir principalmente sobre as vozes narrativas e autorais e os significados das personagens femininas. Mappou, do japonês, literalmente “sem lei, método”, englobaria três períodos na história japonesa do Dharma, ou doutrina excelente budista. Cerca de quinhentos anos propícios ao correto entendimento das transmissões do Buda, que sofreriam um mínimo de distorções, segundo Keown. No segundo período, de também quinhentos anos, a substância dos ensinamentos já teria sido perdida e apenas restaria a casca e poucos teriam podido realizar-se. No terceiro período, já não existiria nem sombra do Dharma, e a esta desesperança respondem as novas doutrinas das escolas da Terra Pura e de Nichiren, baseada esta no Sutra do Lótus. Ambas as escolas relatam ter descoberto novos ensinamentos do Buda que iluminariam o túnel de desespero do terceiro período ( KEOWN, 2003, p. 173). Novas noções são introduzidas no imaginário japonês com o budismo, como as de redenção espiritual e de merecimento de um paraíso celestial como obra e prêmio da fé. Constroem-se simbolicamente características heroicas dos budas e bodhisattva, do sânscr. “os essência de sabedoria”, “seres iluminados”, em termos de estatuária e princípios doutrinários. Advindas do panteão hinduísta, as divindades budistas terão várias mãos, cabeças, olhos que se voltam para todos os lados para atenderem aos clamores do mundo. E, como vimos, a despeito da advertência do Buda quanto ao perigo das práticas mágicas, espalham-se por todo o Japão narrativas de maravilhas, ou milagres, preferencialmente relacionados com prodígios atribuídos aos bodhisattva Kannon e Jizou, divindades associadas respectivamente à compaixão e ao mundo subterrâneo das sombras e da morte, proteção de crianças abortadas ou natimortas e de viajantes. Tais relatos passam a integrar coletâneas de setsuwa, como as antologia 17 Nihonkoku genpô zen’aku ryouiki, ou “Histórias Miraculosas de Retribuição Cármica do Bem e do Mal no Japão”, compilada pelo monge Kyoukai no século IX. Este tipo de narrativa, conhecido por “setsuwa”, relato curto e que evoca o contar “de um fôlego só”, dialoga com a história e a memória da oralidade e dos templos e fornece subsídios para historiadores e folcloristas para a abordagem e reconstrução de percurso do budismo (NAKAMURA, 1997). A obra Nihon Shoki, ou Nihongi (720) aponta o ano de 552 para a introdução do budismo no Japão, via Coreia, com influências importantes da China, entre os séculos VI e XVI. Desde o princípio será classificado como Mahayana (sânsc.), ou budismo do “Grande Veículo”, tendo vários aspectos do budismo original (séc. VI a. C) e integrando-se com elementos da fé nativa xintô, ou xintoísmo, literalmente “caminho do espírito”, espírito ou divindade presente em cada elemento da Natureza. Miner informa que um terço da nobreza japonesa era de tronco coreano “e a cultura – a nova religião, escultura, música, arquitetura, ao lado de crenças mágicas – vieram da Coreia, mesmo que as origens tenham sido chinesas”. (MINER, 1988, p192). Yamanoue Okura (660 - c.733), poeta coreano de terceira geração, por exemplo, está presente no Man’yoshu, “Miríades em folhas”, célebre coletânea de poemas do final de Nara, que influencia de modo profundo a cultura japonesa desde sua publicação, incluindo mais de 4.500 poemas advindos de todas as classes sociais, de períodos anteriores e da época da compilação. Muitos dizem respeito ao período Asuka (538- 710), marcado pela arte e pelo pensamento budista; outros falam de episódios que também são encontrados em fontes históricas, como a expedição à Coreia durante o reinado da imperatriz Saimei (594-661).(WAKISAKA, 1992,p.34). Chegam do sudoeste coreano, da China e da Índia, em períodos vários, imagens e sutras budistas que se constituem em influências co-formadoras da cultura japonesa. No decorrer do século VI, após lutas em torno de preferências religiosas com os Mononobe xintoístas, o clã Soga, aberto à fé budista, através de seu líder, Soga-no Umako (551-626), constrói o primeiro templo japonês, o Asukadera, ou Hokoji, em 588, num gesto de afirmação de um modelo de política fortalecedor dos uji, clãs, sobre o papel do imperador. Seu sobrinho-neto, o príncipe Shoutoku Taishi (574-622), grande estudioso do budismo, estreitará a proximidade com fontes coreanas e chinesas levando à implantação do budismo como religião oficial. São construídos templos notáveis e um centro de estudos budistas. A aliança com o xintoísmo autóctone dará a feição peculiar “nativizada” do budismo japonês ( TAMARU, 1996, p.18) . 18 A cidade de Nara, então chamada Heijou-kyou, construída segundo o modelo arquitetônico-administrativo chinês, nos moldes da capital, é estabelecida como capital em 710. Grandes templos, como Yakushiji e Toudaiji, são ali construídos. Quanto ao papel do compilador monge Kyoukai, ou Keikai, Yoshida observa que: “Keikai, o autor do Nihon Ryouiki, pertencia ao grupo dos monges autônomos, cuja ordenação havia sido realizada sem o aval oficial do governo. Keikai esforçava-se por uma abertura maior do ensinamento budista, pois embora o budismo tenha sido introduzido oficialmente no Japão no século VI permaneceu como uma religião estatal, voltada exclusivamente para as classes privilegiadas, durante longos séculos. Segundo Imanari, Keikai, acreditando na teoria do Mappou (a ideia de decadência do budismo) que adviria 1500 anos após a morte de Buda, teria compilado o Nihon Ryouiki com o intuito de instruir os caminhos da salvação. Encontrando-se, entretanto, já na época Heian, quando as atividades dos monges autônomos ainda estavam proibidas e ,acreditando-se, então, na ideia de decadência após 2000 anos da morte de Buda, a linha iniciada por Keikai em Nihon Ryouiki não teve seguidores relevantes, o que explica a inexistência de obras do gênero, durante um século e meio” (YOSHIDA, 1994, p. 27) No final do século X muitas vicissitudes, como tufões, terremotos, incêndios, epidemias assolam Heiankyou e a teoria do Mappou ganha forma. O escritor Ryuunosuke Akutagawa, na década de 1920, tenta “descobrir” reflexivamente o homem de Heian (794-1185), retomando e ampliando narrativas setsuwa em contos nos quais o panorama de catástrofes traça o homem desesperado, em encruzilhadas morais quanto aos critérios para a sobrevivência espinhosa. Segundo Yoshida, citando o estudioso do budismo e monge Prof. Ricardo Mario Gonçalves: “É a partir do século X, quando começam a ocorrer no estado japonês as primeiras transformações que culminarão no advento da ordem feudal que a ideia de Mappou passa a calar fundo nas consciências. Multiplicam-se as 19 considerações a respeito da decadência, não apenas na literatura religiosa, mas também em obras profanas. O Mappou passa a ser não mais um mero elemento de uma teoria trazida do estrangeiro, discutida e citada por alguns monges letrados mais por questão de erudição do que por qualquer preocupação concreta, mas sim como uma realidade terrível e desesperadora, como o único esquema capaz de explicar uma série de contradições e problemas insolúveis, como a única chave para a compreensão de uma avalanche de crises e catástrofes sucessivas.” (GONÇALVES, p.117, APUD YOSHIDA, 1994, p. 28) Surgem nesta época várias narrativas setsuwa que integram Oojouden, relatos ou testemunhos da consciência de alguns monges sobre o momento de transição para o renascimento em alguma Terra Pura, ou Paraíso budista. Yoshida considera que as origens da narrativa setsuwa situam-se na intenção de instrução e na divulgação pelos monges dos caminhos para a salvação oferecidos pelo budismo, lembrando-se que crescem os relatos de milagres e prodígios, o que favorece a compilação e a organização crescente de coletâneas do gênero: “(...) quanto mais remota a época, maior a produção de coletâneas de narrativas setsuwa de cunho budista, verificando-se com o decorrer do tempo, uma diluição e uma ampliação maior do tema, possibilitando o surgimento de coletâneas de narrativas seculares, que vão perdendo o caráter instrutivo e tornando-se mais divertidas, lúdicas, ou sensacionalistas” (YOSHIDA, 1994, p28). Já no universo das narrativas laicas, observa‐se o papel dinâmico e variado da mulher (do povo) no período Heian (séc.VIII-XII): “Ela não só ama e sofre, mas ama e é amada, sofre e faz sofrer, aventura- se, rouba, engana, compõe poemas, trabalha, rompendo com a idealizada imagem aristocrática das damas finas, sempre guiadas pela rígida etiqueta da Corte de Heian.[...] ; a mulher tem inteligência notável; autoridade e liderança, iniciativa sexual, papel de manipulação do homem “como a um boneco, fazendo-o deitar-se com ela, alimentando-o, 20 vestindo-o e ordenando a realização de assaltos.” (YOSHIDA, 1994, p.218; 157). Opera-se uma inversão de papéis e do sistema poligâmico de Heian (que também era matrilocal): o homem agora é o “homem que espera”, ridicularizado em episódio de quebra de esquema aristocrático de um caso amoroso”. Yoshida salienta haver “um pacto com o leitor/ouvinte nesse tipo de narrativa trazida da oralidade, transmitida de geração a geração, apresentada como história real, autenticada por referências a lugares, personagens históricos “propensas a enfatizar aspectos negativos, decadentes, marginais, humanos, que resultam, então, numa dessacralização do divino, do refinado, do belo.”. (YOSHIDA, 1994, p.215,216) 21 3 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA LITERATURA JAPONESA SETSUWA BUDISTA 3.1 Nihonkoku genpou zen’aku ryouiki, Histórias Miraculosas de Retribuição do Bem e do Mal no Japão, ou Nihon Ryouiki, Livro dos Milagres do Japão, séc. IX. Konjaku Monogatarishuu, “Narrativas de Hoje e de Antigamente; finais do séc. XII 3.2 Narrativas Setsuwa laicas e budistas. Alguns cotejos. A sociedade de Heian (794-1185) 3.3 Análise de três narrativas: Uma mulher disfarçada de raposa; uma mulher que sobe viva aos Céus; uma mulher que desce ao reino dos mortos Yoshida, em sua tese de doutorado, considera que: “As narrativas setsuwa (predominantemente as narrativas que se baseiam em assuntos seculares) de Konjaku Monogatarishū vêm romper com a estética literária predominante da literatura de até então, tradicionalmente voltada para a produção poética dos waka (poemas japoneses) e para o refinado lirismo das narrativas clássicas da Época Heian (794-1185), essencialmente lapidadas pelo ideal estético do miyabi ou ga (“Elegância”, “refinamento”) e o sentimento do monono aware, “patos”, “melancolia”, que refletiam o apurado gosto da classe aristocrática que as produzia. As narrativas setsuwa seculares de Konjaku Monogatarishū remetem-nos a um mundo totalmente diverso, caracterizado pelo despojamento, pela multiplicidade e pelo ilimitado. Suas narrativas, diferentemente das narrativas clássicas da Época Heian, abolem o eufemismo e o recato, não impõem barreira alguma, sejam com relação ao tema, ao espaço ou à personagem, apresentando os fatos com lucidez e com objetividade inexoráveis” (YOSHIDA, 1994, p. 2) E sobre a ampliação do tratamento a diversas classes e tipos de pessoas, Yoshida considera: 22 “Rompendo com a tendência literária vigente, autocentrada na aristocracia, as narrativas de Konjaku Monogatarishuu inauguram um mundo literário sem limites, onde a família imperial, a nobreza, o clero, a classe guerreira emergente ou o povo, o homem, a mulher, a criança, o idoso, o animal ou o ente sobrenatural revezam-se na criação de um mundo mais amplo, que vem romper com o excessivo hermetismo da literatura tradicional da Época Heian, e onde se vislumbra a descoberta de novos valores, fora dos padrões e gosto exclusivos da elite aristocrática da metrópole” (YOSHIDA, 1994, p. 2). Narrativas da Seção budista do Konjaku Monogatarishuu, obra das coleções Sezokusetsuwashuu ou “Coletâneas de Narrativas Setsuwa Seculares”, do século XII, e o Nihon Ryouiki – ou Nihonkoku genpou zen’aku ryouiki, “Histórias Miraculosas de Retribuição Cármica do Bem e do Mal no Japão”, a mais antiga coletânea japonesa de histórias miraculosas ligadas ao budismo, realizada pelo monge Kyoukai no século IX – podem ser considerados exemplos de gestos de organização e cultivo da memória budista. Estão plenos de exemplos didáticos que exortam à prática das virtudes,5 em relatos de fatos fantásticos e milagrosos que exaltam prodígios relacionados com Kannon e outros bodhisattva, especialmente Jizou, também celebrizado no Jizou Bosatsu Reigenki, ou “Registro de Narrativas de Milagres do Bodhisattva Jizou”, do tipo Reigenki, ou Registro de Milagres, dentre os Bukkyou Setsuwa Shuu, Coletâneas de Narrativas setsuwa budistas do período Heian. Alguns milagres de Kannon também estão incluidos no Kohon Setsuwashuu, “Coletânea de Narrativas Antigas”, do final do período (NAKAMURA, 1997, p.V, nota 1). Morris, em seu estudo sobre o mundo de Heian e de Genji, reflete que “Em Heian, as mulheres escritoras relatavam a vida na corte. Os camponeses, homens e mulheres, sequer sonhavam com a China, que tanto influenciava o Japão desde o período Nara (MORRIS, 1994, p.9). Em algumas histórias da tradição oral compiladas no Nihonkoku genpou zen’aku ryouiki, pelo monge Kyoukai no século IX, abreviadamente Nihon Ryouiki, ou, também, “Estranhos registros fantasmagóricos do Japão”, ocorre, pela intervenção do compilador, uma alteração proposital de passagens de escrituras para apresentar a sua 5 As seis perfeições, virtudes ou disciplinas, paramita (sânsc.), ropparamitsu (jap.) são: caridade, moralidade, paciência, diligência, concentração e julgamento correto.  23 visão e a da contemporaneidade acerca da mulher: capaz de, como o homem, obter iluminação espiritual (NAKAMURA, 1997, p.71). Tome-se como exemplo a Narrativa 42 do Vol.II do Nihon Ryouiki, que também se encontra no Konjaku Monogatarishuu, ou “Histórias de Hoje e Antigamente”; no qual é a Narrativa 10 do Vol. XVI: “Sobre uma mulher cuja devoção à imagem de Kannon dos Mil Braços trouxe uma grande sorte em resposta ao seu desejo de partilha de dons”. Na compilação há a substituição de passagem de escritura “Embora a mulher seja inatamente inferior e pior (que o homem), ela pode renascer em reino espiritual em consequência do amor maternal” (Idem, idem, p.71) pelo texto “Devido ao amor maternal, a mãe renasceu no paraíso (de Brahama)”. Na Narrativa “Sobre uma mulher que realizava tarefas de modo extraordinário, comia ervas sagradas e subiu viva para o Céu” (NAKAMURA, 1997,pp.124,125; narrativa 13 do Vol. I do Nihon Ryouiki) há exaltação de virtudes simples e decisivas que não se atribuem necessariamente ao corpo doutrinário budista, mas que marcariam a têmpera e a inteireza do ser esclarecido espiritualmente, dentre outras coisas, como a falta de saída para um papel social em Heian, devido à situação de concubinato finalizado. Note-se que é um homem, um monge, quem por assim dizer “resgata” a condição feminina na compilação desse tipo de narrativa, religioso e instrucional, estendendo seu escopo e contribuindo para uma modificação conceitual, de exaltação de virtudes universais, não necessariamente budistas. A mulher, como praticante de virtudes, teria adquirido normal e naturalmente poderes mágicos, ou sobrenaturais, como se espera que aconteça naturalmente como coroamento da prática dos degraus da iluminação. Levitar, atravessar paredes, fazer cair uma chuva de pétalas de flores, bilocar-se seriam exemplos de poderes dos iluminados reconhecidos por diversas religiões; e, no contexto do budista, dos bodhisattva , os “essência da sabedoria” em sânscrito, seres iluminados, quase budas, e, para alguns teóricos, já budas, ligados compassivamente ao planeta por votos de devoção à felicidade de todos os seres, até que todos se libertem e nenhum esgar de sofrimento seja sequer murmurado. A determinação de oferecer resgate e ajuda caracterizará o heroi budista, que aparecerá como previsão em sermões budistas e como protagonistas e personagens de narrativas religiosas. Já se sabe que o termo herói contextualiza-se, a rigor,como criação e conceituação típica do pensamento grego (BRANDÃO, 1987, P.15,28) sendo também possível assim distinguir o protagonista de feitos fundadores e também os de atos elogiosos na mitologia oriental, através da persistência na prática das virtudes através 24 das encarnações (PAUL, 200, p.167). Essa protagonista da narrativa tal trazida por Kyoukai seria um exemplo da realização espiritual não necessariamente ligada a um sistema religioso, mas antes à potencialidade de a essência, sattva, transformar-se em sabedoria, boddhi. Nakamura ressalta que a postura do compilador – e de seus contemporâneos – era a de manter a igualdade de homens e mulheres diante do dharma, e o episódio da monja deformada, sem órgãos sexuais, anã, dotada de inteligência inata, e de nascimento miraculoso incomum é emblemático. A personagem é encontrada em uma assembleia de monges em momento doutrinal em que tal convivência não era aconselhada nem permitida. Vendo-a, o conferencista dissera acusadoramente: “Quem é esta monja inescrupulosamente sentada entre monges?” Em resposta ela assim se coloca: “Buda promulgou o direito da correta transmissão a todos os seres sencientes. Por que você restringe-me em particular?” Então ela formulou uma questão citando um verso da escritura, e o conferencista não foi capaz de interpretá-la. Assombrados, todos os homens sábios questionaram e examinaram-na; e ela nunca falhou”. No Nihon Ryouiki, esta monja é a única mulher que ganha o título de bodhisattva ou, no japonês, bosatsu. Segundo Nakamura, esta narrativa pode ser considerada um marco entre o budismo Mahayana e o Tântrico, em que a mulher tem um papel central como símbolo cósmico. Segundo Nakamura, o monge Kyoukai ter-se-ia inspirado no episódio da prodigiosa princesa dragão para abordar a questão do merecimento espiritual das mulheres (NAKAMURA, p.70-73). Nakamura ressalta que na obra Nihon Ryouiki, “homens e mulheres são potencialmente bodhisattava, seres espiritualmente realizados. O compilador Kyoukai não aceita a visão da natureza inferior da mulher, insistindo, antes, na igualdade de todos perante o dharma, ou ensinamento supremo”. (NAKAMURA, 1997, p.76). De fato o budismo coloca a igualdade entre todos os seres. Escrituras pali, como Therigatha, trazem exemplos de monjas notáveis; mas há restrições em outros textos, que colocam em dúvida a simpatia do Buda quanto à presença de mulheres na comunidade budista, que atrasariam em quinhentos anos a Idade de Ouro, ou restabelecimento da verdade corrompida pela não-observância dos preceitos morais. (NAKAMURA, 1997, p.70). Coincidentemente, quinhentos anos constituem uma das fases da derrocada doutrinária prevista pelo Mappou. Nakamura aponta existirem escrituras que descrevem a Terra Pura como um lugar sem mulheres (Taishou XIV,n.564) e, a fim de vencerem a ausência de atributos 25 naturais exigidos para a obtenção da iluminação, seria possível a troca de gênero pela meditação constante, entrega ao voto compassivo do Buda Amida ou recitação de dharani, recitações mais longas que os mantras geralmente associadas a pedidos de libertação. As escrituras falam em bilhões de mulheres que teriam conseguido a mudança de gênero, não tendo ficado claro se em outra existência ou na mesma, pela diligência das práticas, após a façanha da princesa dragão. Assim como na literatura setsuwa laica a mulher é associada a características de perdição espiritual e social, também na budista, em que o intuito instrutivo é claro, podem-se detectar raízes antigas das representações da raposa no imaginário cultural japonês, encontrando-se exemplos de aproximações e casamentos entre pessoas de reinos de existência diferentes, por exemplo entre homens e raposas disfarçadas, e, embora não se encontrem sempre relatados motivos desencadeadores de tais encontros, como retribuições cármicas, geralmente eles terminam com a revelação da origem fantástica da esposa raposa. Por outro lado, há também influência das representações chinesas de raposas temidas e reverenciadas como sábias taoistas e o mito japonês xintoísta de Inari, mensageira da divindade da agricultura, em especial do arroz, da fertilidade. No filme “Yume”, “Sonhos”, de Akira Kurosawa (Japão, 1991), a mulher como mãe é a transmissora familiar antiga e consagrada da força do mito da raposa perigosa, misteriosa e assustadora, que pode inclusive colocar a possibilidade de suicídio a quem ousar desrespeitar uma interdição cultural, como assistir ao casamento de raposas no bosque e não ser perdoado.6 Na literatura kaidan, do sobrenatural, que inspira medo, temos o exemplo em “Ugetsumonogatari”, obra do século XVIII de Ueda Akinari, transcriado para o cinema por Kenji Mizoguchi em 1953, o personagem da moça fantasma que, por vezes, sugere a raposa. O filme trabalha “flashes” remotos dos contos da obra literária homônima. Também no filme “Rashoumon” (Kurosawa, 1950), entrelaçamento dos contos “Rashoumon” e “Yabuno-naka”, “Dentro do bosque”, de Akutagawa Ryunosuke (1892-1927), com raiz em duas narrativas setsuwa homônimas encontradas no Konjaku Monogatarishuu, a mulher tentadora, de tão intensa exuberância, também parece beirar o parentesco com a raposa. Essa ampliação da temática renova através de Akutagawa a associação mulher-raposa. Akutagawa amplia o foco narrativo do setsuwa, a fim de dialogar melhor com seus personagens distantes no 6 Da doutoranda O mito da raposa sedutora na literatura e na cinematografia japonesa. I Colóquio dos Grupos de Pesquisa em literaturas estrangeiras. Comparatismo e relações interartes: mitos literários e adaptações cinematográficas..Faculdade de Ciências e Letras. UNESP/Campus de Assis. 26 tempo e contexto histórico-social. Ambas as narrativas parecem estar relacionadas com os cataclismas que contribuem para a decadência da sociedade elegante e culta de Heian e trazem, as narrativas originais, mulheres abatidas e vencidas pelas vicissitudes de um meio ambiente inóspito e cru, principalmente a mulher anciã, que pilha o cadáver da bela jovem morta a fim de vendê-los para os fabricantes de perucas, na narrativa “O homem que vê cadáveres no Portal Raseimon”, presente no Konjaku Monogatarishuu. Cohen recorda que nessa mesma época falece o intelectual Sugawara-no Michizane (845-903), perseguido pelos Fujiwara, e as calamidades que assolam a capital passam a ser interpretadas como manifestações raivosas de seu espirito inconformado com injustiças que teria sofrido. (COHEN, 1993, p.110,111). No estudo das raízes antigas das representações da raposa no imaginário cultural japonês, encontram-se exemplos de aproximações ternas entre pessoas de reinos de existência diferentes, como por exemplo homens e raposas disfarçadas que se casam, e, embora não se encontrem sempre relatados motivos desencadeadores de tais encontros, geralmente eles terminam com a revelação de que a esposa é na verdade uma raposa. Este é o universo setsuwa, de narrativas curtas, que, para Yoshida se oporia, mostrando descosturas, ao universo do monogatari, este último tradutor de um olhar idealizador e apologético da sociedade refinada e erudita de Heian (YOSHIDA, 1994). Neste universo, podemos encontrar o Príncipe Brilhante, Hikaru Genji, da célebre obra Genji Monogatari, ou A Narrativa de Genji, do século XI, que, em seu encontro com a mulher que revoluciona seus parâmetros de corte amorosa, Yûgao, a dama da noite, encantado e apaixonado brinca que não se importaria se descobrisse que ela, cuja biografia lhe escapava, e que, portanto, sequer era nomeada a não ser por um apelido inspirado em uma flor furtiva, não passava de uma raposa! No cinema há um episódio envolvendo o mistério e o medo da raposa em “Sonhos”, “Yume”, de 1990, de Akira Kurosawa; um menino é advertido (e assim convidado, já que a curiosidade busca desvendar o proibido!) pela mãe quanto ao tabu de se olhar o casamento das raposas no bosque. E na transcriação para o cinema (Mizoguchi, Japão, 1953) da obra literária kaidan (do sobrenatural), Ugetsumonogatari, de Ueda Akinari, do século XVIII, Contos da Chuva e da Lua, traduzido pelo Centro de Estudos Japoneses da USP, ou “Contos da Lua Vaga”, personagens de moças fantasmas por vezes sugerem que possam ser raposas. O mesmo pode-se apontar para um momento especial do filme “Rashômon” (Kurosawa, 1950), em que a mulher tentadora, de tão intensa exuberância, também beiraria o malicioso parentesco. 27 No Japão, o monge budista Kyoukai tem uma importância revolucionária em termos de exegese, pois procederá a uma reinterpretação de determinadas passagens de escrituras e adicionará detalhes propositais às narrativas da tradição oral, a fim de retratar protagonistas femininas que alcançam paraísos búdicos em sua condição de mulheres, como a mulher da narrativa 13 do Nihon Ryouiki, “Sobre a mulher que executou trabalho de um modo extraordinário, comeu ervas e voou para o Céu viva”. Pura em essência e, mesmo muito pobre materialmente, esta mulher ensinava seus sete filhos a comerem sorrindo, com alegria e gratidão, as simples ervas que colhia e cozinhava. “Esta disciplina de mente e corpo fez seu espírito assemelhar-se a uma convidada do Céu” (NAKAMURA, 1997,p.125). Kyoukai relerá também um episódio do Nehangyou, ou “O Discurso sobre a Grande Morte”,que narra os momentos finais da existência terrestre do Buda, revolucionando os limites do merecimento de uma mãe devotada, que tem seu filho salvo e chega, ela mesma, como bodhisattva realizada, ao paraíso de Brahma. (NAKAMURA, 1997,p.70,73). O sonho habita a memória oral japonesa e a literatura budista doutrinária como uma ferramenta espiritual considerada miraculosa ou maravilhosa, concedida aos que a merecem como dom de iluminação espiritual e recebida por merecedores também. Será uma voz feminina nos sonhos que guiará o monge Kyoukai, ou Keikai, do século IX, ou seja, a da divindade da compaixão Kannon, “Aquela que enxerga os clamores do mundo” 7, encaminhando-o à vida monástica e à compilação do Nihon Ryouiki”, considerada a mais antiga coletânea japonesa de compilação de histórias prodigiosas, algumas relacionadas com Kannon e principalmente com outro iluminado, ou bodhisattva, sânscrito, “essência de sabedoria”, Jizou. Exemplos didáticos exortam à prática de virtudes, também celebrizado no Jizou Bosatsu Reigenki, ou “Registro de Narrativas de Milagres do Bodhisattva Jizou”, do tipo Reigenki, “Registro de Milagres”, dentre os Bukkyou Setsuwashuu, “Coletâneas de Narrativas setsuwa budistas” do período histórico Heian (séculos VIII-XII). Alguns milagres de Kannon também estão incluidos no Kohon Setsuwashuu, “Coletânea de Narrativas Antigas”, do final do período. Interessante notar que é também essa voz feminina, de aspecto divino já firmada no Japão como mulher, mãe sagrada, no século XII, que também aconselhará e guiará 7 Note-se que, em sua origem indiana andrógina, a divindade Avalokiteshvara pode ter seu nome traduzido por “Aquele/Aquela que enxerga os clamores do mundo” ou “Aquele ou Aquela...”.  28 em sonhos o grande reformador doutrinal monge Shinran (1173-1262), da Escola da Terra Pura. Shinran ordenará monjas e terá muitas mulheres (parece que sequencialmente) e cerca de cinquenta filhos, contestando o princípio, até então dogma, do celibato monacal. Será exilado e perdoado, não se abalando quanto ao perdão oficial. Shinran também teria sonhado com o príncipe Shoutoku Taishi, do século VI, cuja grande admiração por Kannon teria deixado marcas tão fortes na memória oral que, séculos depois, Shinran sonharia que o príncipe lhe revelaria ter sido uma manifestação de Kannon. E a própria manifestação de Kannon no sonho, o príncipe/Kannon, andrógino teria trazido respostas às angústias de Shinran e levado-o ao encontro de seu mestre doutrinário, Hounen. Acima dos poderes mágicos, que o Buda desaconselhava e desaprovava, e proíbe no Sutra do Lótus, estaria a maravilha suprema ou dom da instrução. Porém, a tradição oral registrou, exaltou e propagou feitos extraordinários no decorrer dos séculos posteriores, atribuídos a seres iluminados. No Japão, como já se viu, a oralidade consagrou principalmente Kannon, bodhisattva, bosatsu em japonês, a mãe ou mulher misericordiosa; também Jizou, protetor das crianças natimortas ou abortadas, dos viajantes e com trânsito nos mundos infernais; e ainda Fudou Myouou, o “Senhor ou Rei Inabalável”, em alguns casos auxiliar de Kannonem rituais de libertação espiritual. O bodhisattva é retratado como heroi ou heroína na literatura budista do “Grande Veículo”, ou Mahayana, reinterpretação filosófico-doutrinária das primeiras escrituras budistas em países como Tibete, China, Coréia, Japão, baseadas na prática da compaixão e na importância da sabedoria. Esse ideal heroico, nos séculos posteriores à compilação dos sutras budistas e sua veiculação pelo Oriente, a partir do século III, vai lastrear e legitimar os poderes mágicos, obtidos por merecimento e pelo estado meditativo e contém a noção da transferência de mérito ao devoto, anulando ou amenizando a lei do carma. São esses prodígios, ou meios habilidosos do bodhisattva a projeção de réplicas de si mesmo, a capacidade da invisibilidade, de passar por objetos sólidos, de atravessar o chão, andar sobre a água, voar, tocar com as mãos o Sol e a Lua, visitar o céu de Brahmâ. E, também, no Capítulo XXV do Sutra do Lótus, o Buda fala de “trinta e três”, ou infinitas máscaras, que a divindade da compaixão pode assumir para atuar nos mundos com esses meios habilidosos para salvar os seres. E quantas destas máscaras, ou aspectos, seriam femininas? Das trinta e três máscaras, apenas sete. As mulheres seriam “mulheres de” e “serva” e “leiga budista”, traduzindo uma sociedade indiana e hindu em que a mulher é definida a partir dos laços 29 que estabelecer com os homens. Sabe-se que essas máscaras serão recriadas nos territórios e imaginários culturais de cada povo em um ciclo milagroso (NAKAMURA,1997) ou heroico (PAUL, 2000,p.168), heroico-milagroso. As trinta e três, ou infinitas, transformações da divindade Kannon previstas no Sutra do Lótus estão iconograficamente representadas na obra Kannon Sanjuusan Ogenshinzou, detalhe em madeira no Templo Hasedera, na cidade de Nara, província de Nara, Japã0, que trazemos no anexo 1. A questão soteriológica8, ou de salvação da alma, que já abordamos na dissertação de mestrado, remete à do descaminho espiritual e à possibilibilidade de remissão por votos compassivos proferidos por budas e bodhisattva de salvarem todos os seres senscientes para só então adentrarem o portal do Nirvana, ou bem-aventurança completa, o que, como também já interpretamos, pode significar que todos os seres poderiam e seriam salvos em algum de seus renascimentos. Ao mesmo tempo, ao lado desta entrega pela fé a votos compassivos, há também o entendimento de que a salvação pode ser obtida por esforço pessoal; e correlacionando as noções anteriores, o carma, poderosa lei de causa e efeito, remete ao conceito de merecimento ou retribuição, com numerosos exemplos em narrativas do Nihon Ryouiki. Para algumas escolas budistas, a condição ou estado de buda seria o ideal – atingível – supremo; todos seriam, potencialmente, “buda-por-ser”. Para outras, poucos na verdade poderiam tornar-se buddha (sânsc.), “O que se iluminou”, o que não impediria que todos, homens e mulheres, lutassem pelo estado de santidade para tornarem-se arhat (sânsc.), ou “honrados”. A firme resolução mental de tornar-se bodhisattva – na presença de um buda – é um passo para a realização do nirvana, ou estado de bem-aventurança plena, propiciando novos insights. Para Paul, o despertar desse pensamento de iluminação transformaria o ser humano comum em um bodhisattva. (PAUL, 2000, p.168) Ao mesmo tempo em que lutam para alcançar a iluminação, os bodhisattva são, nesse contexto exegético, modelos de conduta para os que também desejam iluminar-se, uma vez que todo ser é considerado um bodhisattva em potencial. Ao tornarem-se bodhisattva, os seres entrariam para a família búdica, adquirindo superpoderes, que os habilitariam a continuar no curso da iluminação espiritual através da concessão 8 O termo, caracteristicamente usado em questões de exegese do cristianismo, é também utilizado por Paul no contexto do budismo. PAUL, Diana Y. Op. Cit., pp.166-172, especialmente. As seis maiores faltas ou ações não-meritórias para o budismo são: a ambição, a raiva, a ilusão (inconsciência), a arrogância, a dúvida e as visões equivocadas.  30 compassiva de ajuda fantástica e milagrosa aos seres aflitos. Muitos destes superpoderes estão retratados na literatura setsuwa budista, em ambas as antologias, com exemplos de transferência ou partilha aos personagens devotos, noção que expressa a amenização ou mesmo anulação da lei de causa e efeito, ou carma, gou (jap.). O despertar do bodhisattva seria atestado por evidências “exteriores”, anunciado por um desejo crescente de tornar-se buda para ajudar todos os seres; pelo encontro com alguém habilitado a ensinar-lhe o Dharma, a Lei do budismo; pela recitação dos Dez Votos do bodhisattva, pela visualização e obtenção da aparência de um buda e, chegando-se ao encontro com ele, pelo estabelecimento de um diálogo. Finalmente a ocorrência de milagres, ou maravilhas, tais como chuva de flores, audição de cânticos celestiais e tremores de terra, viria selar o despertar da senda. No decorrer do século VIII, propagam-se histórias de milagres relacionados com Kannon e popularizam-se locais de adoração. Os ensinamentos do Sutra do Lótus, comentado pelo príncipe Shoutoku Taishi, influenciam a interpretação japonesa do budismo de Shakyamuni, enfatizando-se o poder da dharani inclusive sobre o carma, embora feitos meritórios sejam também apontados e louvados como importantes, e estimulados pela prática do Nobre Caminho, ou Caminho Óctuplo (NAKAMURA, 1997, p.88). Ensinamentos do Sutra do Lótus e do budismo devocional da Terra Pura, que tem como centro a entrega ao Voto misericordioso do Buda Amida, convergem para a essência comum da devoção: Kannon aparece, assim, como a contraparte de Amida.. O budismo esotérico, que dá origem à riqueza iconográfica de iluminados, será estimulado com a obra de Genshin (942-1017),Oojouyoushuu, “Coletânea de Relatos de Oojou”, ou experiências de entrada no Paraíso da Terra Pura, de forte influência chinesa, que exorta à fé no Voto e nos ensinamentos do Sutra da Terra Pura. A obra integra a série Oojouden, ou “Biografias de amidistas que alcançaram a Terra Pura”, do Bukkyou Setsuwashuu, ou “Coletânea de narrativas setsuwa budistas” do período Heian (794-1185). Relatos de encaminhamentos existenciais e doutrinários decisivos e de intervenções de Kannon multiplicam-se e muitos estarão reunidos nas célebres compilações do período. Acredita-se que seres de todos os reinos de existência teriam ouvido a transmissão dos sermões do Buda, chegando a iluminar-se graças a esse milagroso privilégio de contemporaneidade e partilha de poderes sobrenaturais. O budismo reconhece seis reinos de existência no mundo de samsara (sânscr.), ou roda de renascimentos: demônios, fantasmas famintos, animais, asura ou titãs, semi-deuses, 31 humanos e deuses, ou deva. Uma vez que os seres iluminados fazem-se a promessa de não deixarem a esfera vibracional da Terra enquanto aqui existir um mínimo suspiro de sofrimento advindo de um dos seres de um desses reinos, reafirma-se a postura e a crença budista de que todos os seres são luz e de que essa luz será um dia enfim liberta e manifesta em todos. Assim, nas narrativas literárias setsuwa budistas, os personagens fatalmente cumprirão seu destino heroico e serão sempre alcançados pela luz e pela rede misericordiosa da divindade quando extraviados em mundos perigosos; nessa feita aproximam-se do caráter do heroi grego. Já nas narrativas laicas, o fantástico pode ser o território do terror ou do acaso, em que pode haver a supremacia do inimigo: os oni, demônios; ryauko, espíritos-raposa, e mesmo o ser humano, se atingido por paixões destruidoras. O setsuwa revolucionará a narrativa sobre Heian.Yoshida (1997) traz o exemplo em que se opera a subversão de papéis sociais, o caso do monge, da narrativa 7 do Tomo XX do Konjaku Monogatarishuu, “Sobre o fato de a Imperatriz Sonedomo ter sido violentada por um tengu”, que salva uma imperatriz de enfeitiçamento; deixa-se depois seduzir; transforma-se em oni e enreda inapelavelmente a imperatriz, transformando-se, ambos, em estranhos seres luxuriantes e atormentados. Para Yoshida (1994) há uma variedade muito rica de temas e personagens no universo das narrativas laicas, que vivem e expressam tensões de transições sociais marcantes, revolucionando relações hierárquicas; e habitantes de mundos fantásticos, seres sobrenaturais ou grotescos e a mulher como ser potencialmente perigoso, podendo revelar-se, por exemplo, em raposa, ladra ou ogra que tenta devorar os próprios filhos. Lembra Yoshida que esse episódio, retratado na narrativa 23 da coletânea Konjaku Monogatarishuu, “Sobre a mãe idosa dos caçadores que se transforma em ogro e tenta devorar os filhos” pode ser interpretada como representação da “ruptura” com a maternidade, em contexto narrativo de ausência completa da figura paterna em estrutura familiar extra-oficial de camada social não pertencente à aristocracia da metrópole (YOSHIDA, 1994, pp.112,113). Já no caso da personagem da narrativa, budista, de número 19 do Nihon Ryouiki, que era concubina e devido ao fato de ter ficado só, sem a proteção do homem, empobrecera a ponto de vestir-se de trapos e de alimentar-se a si mesma e aos filhos com ervas bravas dos campos, a maternidade é exaltada e ela tem um destino glorioso por ser simples e grata: tem contatos com anjos e presságios, sobe aos Céus enquanto dormia. 32 No contexto da narrativa Genji Monogatari, literatura Monogatari do século XI, há a referência a poderes femininos infernais e desarticuladores encontrados na própria aristocracia, na personagem Rokujou, “a dama da Sexta Avenida”, de reconhecida elegância e erudição, que, esmagada pelo ciúme, provoca o fenômeno do “ikiryou”, ou desdobramento espiritual/astral de pessoa viva, para assediar e atingir mortalmente a rival. Da mesma forma, na mesma obra, fala-se de mulheres aristocratas pelo menos aparentemente inofensivas, cultivadoras da escrita japonesa e da memória poética do Japão das eras anteriores, todas sintomaticamente sem nome, flores que podem florescer na paliçada das diversas avenidas da corte, para deleite dos, estes sim, nomeados governadores de província, nobres, servos como Koremitsu, companheiro de aventuras amorosas do Príncipe Hikaru Genji. Frise-se que as damas de companhia ou de leite são nomeadas! Certamente por terem alimentado homens de estirpe nobre ou servirem às mulheres que os servem. A voz autoral feminina em Genji Monogatari é a de Murasaki Shikibu, escritora e dama da corte do século XI, que discorre sobre esse grande espectro de mulheres, “nomeando-as”, como se comentou em geral poeticamente com nomes de flor – Yûgao, “Dama da noite”, Murasaki, “Flor roxa”, Asagao, “Morning Glory” ou “Flor da Manhã”. através da voz de seu narrador ou de sua narradora. Estudará as mulheres do ponto de vista de serem as “preferidas” do elegante príncipe Hikaru Genji, ou “Príncipe Brilhante”, interpretando sociologicamente os valores constitutivos dos papéis sexuais. De modo neutro também narrará a inocência de Yuugao, vítima do fenômeno do “ikiryou”, a jovem mulher com atributos também cantados, como o de também ter talento literário e, sendo de classe social desconhecida, ter despertado no príncipe um tipo de amor inédito e revolucionário em sua carreira de cortejador amoroso, ou de Dom Juan oriental, como o denomina Yoshida (1994). O “ikiryou”, pelo menos até onde chegou nossa pesquisa, não é referido como fenômeno também provocado pelo furor de sentimentos de um homem. Heian é uma época notável de esplendor cultural no Japão, quando a nação tenta adaptar influências chinesas do período precedente, Nara, ou Heijou kyou (710-794), e exercita sua própria expressão estética, literária, linguística. Yoshida lembra que: “no campo cultural, a contribuição feminina foi inegável e decisiva para o desenvolvimento de uma literatura distintamente nacional – em oposição à 33 literatura sob forte influência chinesa de até então – ocorrido após o surgimento do silabário kana, no século X.” (YOSHIDA, 1992, p.64). No Capítulo “As mulheres de Heian e suas relações com os homens”, da obra The World of the Shining Prince. Court Life em Ancient Japan, Morris aponta que muito da produção significativa é de autoria feminina e sua expressividade e também o posterior declínio estariam associados ao seu papel social, uma vez que, no contexto de uma sociedade poligâmica, excluída que era dos negócios públicos e políticos: “Tal esmagadora predominância cultural das mulheres é um raro, senão único, fenômeno na história cultural; e é duplamente surpreendente que possa ter ocorrido em uma parte do mundo onde mulheres têm sido tradicionalmente condenadas a uma posição de inferioridade irremediável” (MORRIS, 1994, p.199). Muitas das principais mulheres escritoras do período são referidas como parentes de alguém ou nomeadas pelo título de suas obras, o que indica que o estatuto de uma mulher deve-se à sua filiação ou laços conjugais e familiares: Nakazukasa, filha de Ise-no Go e Príncipe Atsuyasu; Yoshiko Joô, neta do Imperador Daigo; mãe de Michitsuna, autora de Diário de Gossamer; Sei Shônagon, autora de Makurano Sôshi, ou Livro de Cabeceira; 9Murasaki Shikibu, autora de Genjimonogatari, ou O Romance de Genji, Izumi Shikibu; a filha de Sugawara-no Takasue, autora de Sarashina Nikki, diário (de viagem) de Sarashina; Koshikibuno Naishi, filha de Izumi Shikibu, autora de Izumi Shikinu no Nikki, ou Diário de Izumi Shikibu; Akazome Emon, Ise-no Ôsuke; Uma-no Naishi; Sagami; Daini-no Sammi, filha de Murasaki Shikibu. Serviram na corte da imperatriz Akiko (...) :Murasaki Shikibu, Izumi Shikibu, Koshikibu-no Naishi, Ise- no Oosuke e Uma-no Naishi. Muitas mulheres existiram antes e depois deste período em questão, como Ono-no Komachi no final do século IX, e Sanuki Tenji, no final do XII. Na introdução pelo próprio autor, Ueda Akinari, no conto “O Caldeirão de Kibitsu”,da obra Ugetsumonogatari, ou Contos da Chuva e da Lua, século XVIII, representante da literatura kaidan“ ou “de terror, de fantasma, de medo”, as tendências 9 Tradução do Centro de Estudos Japoneses da USP.  34 negativas das mulheres são recordadas como um alerta à inabilidade dos homens frente aos sentimentos que jamais deveriam ser “acordados” nas mulheres e que giram, sempre, em torno do terrível ciúme e que podem ter efeitos devastadores. Uma mulher sobe viva aos Céus “Sobre uma mulher que realizava tarefas de modo extraordinário, comia ervas sagradas e subiu viva para o Céu”. Esta narrativa faz parte da obra Nihon Ryouiki, ou “Livro dos Milagres do Japão”, compilação do século IX, como vimos, e que será utilizada para análise; e também de Konjaku Monogatarishuu, ou “Coletânea de Narrativas de Hoje e Antigamente”, do final do período Heian (794-1192). A protagonista tem seu papel realçado de forma revolucionária pelo compilador, o monge budista Kyoukai; é resgatada como criatura merecedora do acesso aos reinos celestiais, num contexto doutrinário que admitia esse direito ou privilégio aos homens. Sabe-se que Shakyamuni, Sidarta Gautama, o buda histórico, indiano, do século VI antes da Era Comum, fora claro neste sentido e que o Buda Amitabha, em seu trigésimo-quarto voto compassivo, prometia residência temporária em seu Paraíso às mulheres que na próxima existência poderiam renascer como homens para assim obter a merecida realização espiritual plena. A ótica narrativa de Kyoukai apresentaria uma transformação do destino espiritual da protagonista feminina, em uma intenção de inovação doutrinária. A protagonista desponta como a possibilidade de um caminho simples e natural, exemplo de virtude e caminho heroico, considerando-se a conceituação para a prática do bodhisattva, ou os seres “essência de sabedoria” no sânscrito, iluminados budistas, embora não haja indicações no texto de que a personagem em questão fosse budista, e embora mulher, a quem o budismo original nega a possibilidade de iluminação espiritual e o atual ainda não considere. “Em uma Vila de Nuribe, distrito de Uda, província de Yamato10, viveu uma mulher extraordinária, que foi casada com Miyatsuko Maro de Nuribe.11 Inatamente pura e correta, ela deu à luz sete crianças, mas era 10 Atual Aldeia de Soni ou Mitsue, Uda gun, província de Nara, chamada Heijou-kyou. Nota de Nakamura.  11 Concubina, não a esposa legítima. Nota de Nakamura.  35 muito pobre para alimentá-las, uma vez que não tinha de quem dependesse. Uma vez que as crianças não tinham roupas, ela tecia plantas para fazer roupas para elas. Todo dia a mulher se purificava em um banho e vestia-se de retalhos. Colhia ervas comestíveis nos campos e devotava-se a ficar em casa e limpá-la. Quando cozinhava as ervas, ela chamava as crianças, sentavam-se eretos e gratos, comiam a refeição sorridentes, conversando com alegria. Esta constante disciplina de mente e corpo fez seu espírito semelhante ao de um convidado do Céu.12 No quinto ano da Era Hakuchi do imperador que residia no Palácio de Nagara no Toyosaki em Naniwa, seres celestiais comunicaram-se com ela e ela comeu ervas especiais colhidas nos campos na Primavera e ascendeu aos Céus. Sem dúvida, sabemos que suas qualidades extraordinárias e sua dieta de ervas especiais foram bem reconhecidas, embora ela não tivesse estudado os ensinamentos budistas. O Shojin nyomonkyo13 oferece esta relevante passagem: “Você será capaz de adquirir cinco tipos de méritos levando uma vida laica e varrendo o jardim com uma mente correta (NAKAMURA, 1997, p. 124,125). Nesta narrativa 13 do Nihon Ryouiki tem-se dados da situação das concubinas ainda no período Asuka (538-710). A era Hakuchi 650-654, dá-se durante o reinado do imperador Kotoku (645-654), que muda a sede do governo de Yamato para Naniwa, atual Oosaka, com porto marítimo. Promove a Reforma Taika, com o regime ritsuryou, em que terras são subordinadas ao poder central e há obrigatoriedade de pagamento de impostos a todos. A personagem não tinha como sustentar os sete filhos pois não tinha de quem depender, diz o texto. Fora concubina. O texto não informa se ela ficara viúva ou se estava separada de seu consorte.Nesta situação de desamparo social e econômico desenvolve-se contudo, ou por isso mesmo, a enorme força que impulsiona a mulher a viver as virtudes, elogiadas pelo budismo, e a torna merecedora de ascender aos Céus sem passar pela morte física. 12 Literalmente um santo ou iluminado chinês taoista, hsien。 Nota de Nakamura. Nakamura utiliza o termo e conceito “santo” como sinonímia de “iluminado” ou bodhisattva.  13 Muku ubaimonkyo, Taisho XIV, 950c. Nota de Nakamura. Sutra do Buda da Medicina, Yakushi Nyorai.  36 O tema da ascensão ou subida, voo para os Céus evoca personagens de diversas culturas, como o Mestre Zen indiano Boddhidharma e, no contexto da Bíblia judaico- cristã, Enoque, avô de Noé, e Ezequiel, que sobem aos Céus por também serem merecedores de não passarem pela morte física, por conviverem intimamente com Deus. Maria, mãe de Jesus, também teria tido o privilégio deste “voo”. Como já visto, nos primórdios da memória narrativa Monogatari japonesa, encontra-se a história de Kaguya Hime, a princesa da Lua, na narrativa-mãe Taketori Monogatari, ou A narrativa do cortador de bambu. Após um aparecimento fantástico no gomo de um bambu a um idoso lenhador sem filhos, essa menina cresce de modo prodigioso, lança desafios aos pretendentes, sobe ou voa no final para a Lua num veículo mágico, deixando para os velhos pais o elixir da imortalidade. O tema do casal idoso merecedor também está no rol das narrativas do Velho Toudaiji, de Nara, mostrando o casal sem filhos que fora agraciado por Kannon com um filho que se torna o grande abade Rôben e também em exemplos de personagens da Bíblia judaico-cristâ, como Isabel e João, pais de São João Batista, primo de Jesus. O voo da protagonista também evoca uma capacidade do ser iluminado, descrita, entre outras, como manifestação natural, e não propriamente milagrosa, prevista doutrinariamente nos Dez Degraus do Caminho do Boddhisattva. Neville e Keown observam que as representações Onze Cabeças e Mil Braços e Olhos de Avalokiteshvara/Kannon acham- se associadas a esses Dez degraus, estágios ou bhumi do Caminho ou Senda do bodhisattva, situando Avalokiteshvara no décimo excelso degrau, como bodhisattva realizado que, para expandir o poder de sua atuação compassiva à excelência, deverá subir ao décimo-primeiro, tornando-se buda. Outras: fazer chover uma torrente de pétalas, levitar, bilocar-se, atravessar paredes, compartilhar dons espirituais, ler pensamento alheio, recordar vidas passadas. (NEVILLE, 1998,p.38 e KEOWN, 2003, p.34). Quanto à citação sobre varrer e acumular méritos, Nakamura comenta que há uma diferença ou alteração da citação trazida ao texto pelo compilador com a original doutrinária, em que se lê: “Buda ensinou a uma pura irmã leiga: ‘Varra a entrada do pagoda e você será recompensada com cinco tipos de méritos.” Os textos originais enfatizam o mérito de se varrer a entrada do pagoda, enquanto que as alterações de Kyoukai robustecem a ênfase no trabalho cotidiano, 37 substituindo “entrada do pagoda” por “jardim” e “levando uma vida laica”. (NAKAMURA,1997, p.124,125, nota no.13). Uma mulher desce ao Palácio de Yama, Rei da Morte Narrativa 19, Tomo II do Nihon Ryouiki: “Sobre a visita ao palácio do Rei Yama por uma mulher devota do Shingyou e o evento extraordinário que se seguiu” A protagonista desta narrativa do Nihon Ryouiki é apresentada como uma devota exemplar, que praticava o exercício espiritual de cópia de sutras e, por tal mérito, ao morrer e descer ao reino de Yama, onde seus feitos seriam ponderados para futuro encaminhamento espiritual, recebe a admiração do próprio Yama. Personagem da literatura védica, Yama teria sido o primeiro humano a governar na terra dos mortos. A entrada de seu palácio é um pavilhão dourado onde podem entrar os que tiveram bom carma. O Rei Yama informa aos que chegam o estágio de seu carma e como, consequentemente, será o rumo de sua alma, conforme nota de Nakamura (NAKAMURA, 1997, p.186,187). Quanto ao sutra Shingyou, Prajnaparamitahrdaya no original sânscrito, o Sutra do Coração da Perfeição da Sabedoria ou Mãe Sagrada de todos os Budas da Perfeição da Sabedoria, sobre o vazio dos fenômenos, Sunyata. “Tokari-no Ubai viera da Província de Kawachi. Como seu sobrenome era Tokari-no suguri, ela foi chamada Tokari no ubai.14 Dona de um coração inatamente puro, ela tinha fé nos Três Tesouros15 e costumava recitar o Shingyou 16como forma de disciplina religiosa. Seu canto era tão belo que ela era amada tanto por clérigos como por leigos. No reino do Imperador Shoumu, essa irmã leiga morreu enquanto dormia, uma morte súbita sem sofrimento, e foi ter com o Rei Yama.” Vendo-a, o rei levantou-se, convidou-a a sentar-se e estendeu-lhe uma almofada, dizendo: ‘Ouvi dizer que você é muito boa na recitação do Shingyou. 14 Suguri é um título conferido frequentemente aos imigrantes. Ubai do Sanscrito Upasika, é uma leiga que atingiu cinco estágios importantes da prática budista e esclarecimento espiritual, conforme nota de Nakamura.  15 Buddha; Dharma, ou doutrina excelente, o budismo; e Sangha, a comunidade.   16 Acesso à recitação IN: https://youtu.be/P8ajU3syci4. Ou https://youtu.be/XV1YFPZ6ugs; Sutra, ou sermão, muito importante no budismo e de papel central de recitação no Zen, a partir do século XII. Acesso 10 03 2019.  38 Fazia tempo que eu desejava ouvi-la e por isso convidei-a para esta breve visita. Você recitaria a escritura? Sou todo ouvidos.’ Ela o fez e o Rei, deliciado, levantou-se de sua cadeira e ajoelhou-se diante dela em reverência e disse ‘Que nobre! O rumor era verdade’. Tão grande foi a admiração de Yama pela harmonia e poder espiritual advindos da recitação do sutra pela mulher, que ele a dispensou para voltar ao mundo dos vivos e continuar sua jornada terrestre. Passados três dias, o rei lhe disse: ‘Agora é tempo de você voltar para casa’. A partir daí, desde que sai do Palácio de Yama, ela tem várias surpresas: Ao sair do palácio, ela encontrou três homens em vestes amarelas. Eles estavam encantados por vê-la e disseram: “Nós a encontramos apenas uma vez antes. Ansiávamos por revê-la desde então. Que boa sorte a trouxe aqui! Corra para casa e nós a veremos sem falta no quarteirão leste da capital Nara17 daqui a três dias”. Então ela os deixou, voltou para casa e acordou. A personagem, então, acorda do sono da morte e as duas dimensões, sono/sonho e vigília, entrelaçam-se simbolicamente na narrativa e não há descrição de medo ou surpresa; a protagonista continua sua jornada, comparecendo ao encontro com os três homens de vestes amarelas com quem ela se deparara logo que tinha acordado. Também na narrativa 32 do Konjaku, Vol. XVI, Seção Budista, traduzida e analisada em minha pesquisa de mestrado, o personagem, tendo dedicado um jejum ritualístico à Kannon do Rokkakudou para pedir a quebra da maldição de demônios, ou oni, que o tinham privado da visibilidade, tem um sonho com um monge (postado significativamente ao lado de uma imagem de Kannon), que lhe recomenda seguir a primeira pessoa que encontrasse ao acordar. Na presente narrativa do Nihon Ryouiki, Yama não deu orientação à mulher sobre o caminho a seguir ao deixar seu palácio, mas aparecem personagens, mensageiros seus ou de alguma outra divindade, que o fazem. O narrador continua: Na manhã do terceiro dia ela decidiu ir para o mercado leste da cidade devido à promessa, mas apesar de ter feito isso e esperado o dia todo, os 17 Havia um mercado em cada lado da capital. Nota de Nakamura.  39 três homens não vieram. Apenas um humilde homem assomou o portão leste para vender escrituras budistas. Ele as mostrava gritando: ‘Alguém para comprar escrituras?’ Passando pela mulher, ele saiu da cidade pelo portão oeste. Como ela desejava comprar escrituras, pediu que ele retornasse e, abrindo-as, descobriu que ali estavam dois volumes do Bonmo-kyo18 e um volume do Shingyou que ela copiara no passado. Elas haviam sido roubadas antes da cerimônia de dedicação e a mulher procurara por elas sem sucesso por muitos anos. Controlando-se e com grande alegria no coração, ela perguntou o preço ao homem, quem, ela sabia, tinha roubado as escrituras. ‘Quanto quer por elas?’ e ele respondeu ‘Quero 500 peças por cada rolo’. E ela pagou. Ocorreu-lhe que os três rolos eram os três homens que haviam prometido encontrá-la no mercado. Imediatamente ela pôs-se a ler aquelas escrituras e aprofundou sua fé na lei da causalidade. Ela recitou as escrituras com ainda mais devoção, nunca deixando de recitar, dia e noite. Quão miraculoso! Assim como o Nehan-gyou diz: “Se um homem pratica boas ações, seu nome será percebido entre os seres celestiais; se ele pratica atos vis, seu nome será lembrado no inferno.” A presença de Yama, do sânscrito, personagem do Rg Veda, da literatura védica, indiana, considerado deus da morte, juiz dos feitos humanos e senhor do mundo subterrâneo atesta a influência do panteão hindu no do budismo. Keown adverte que Yama não teria papel preponderante de juiz, uma vez que o que determinaria o encaminhamento da alma/do espírito seria o carma, ou lei de causa e efeito, ou causalidade, lei do retorno, resultado das ações praticadas nas existências anteriores e nesta. A ação de Yama poderia ser entendida não como a de um juiz absoluto, mas como a de um auxiliar em um estágio intermediário, em que exerceria papel de ajuda no entendimentos das ações cometidas e, nesse sentido, participaria de um encaminhamento cármico. O estudo, a cópia, a memorização, a recitação e a explicação exegéticas de sutras destacarão exemplos de virtude e de protagonização de feitos miraculosos em diversas narrativas da memória oral budista e seus autores são elogiados pelo Buda no Sutra do Diamante, como pessoas dotadas de sabedoria excepcional, por ele conhecidas e 18 Brahmajalasutra (sânscr.) é um sutra estabelece três listas de preceitos morais e discute sessenta e dois de erros exegéticos sobre a natureza da alma. KEOWN, Damien, p 40. Dada essa informação, vê-se que se trata de um texto de cópia atenta, custosa e demorada, um desafio árduo para o praticante budista.  40 “retidas na memória”, de virtudes que não teriam os que apenas “se dedicassem” a criticar atos (os mais) abomináveis, “virtudes” indescritíveis, ou incompreensíveis, de tão inadmissíveis, mesmo para o próprio Buda” (GONÇALVES, 1975, p.81-83).A retribuição cármica a esse feito considerado notável pelo Buda estará registrada em várias narrativas setsuwa de cunho heroico-miraculoso presentes no Konjaku Monogatarishuu e no Nihon Ryouiki, assim como aos atos de construir templos e imagens sagradas. O Buda compara com os infinitos grãos de areia do célebre e considerado sagrado Rio Ganges os méritos incalculáveis daqueles que memorizassem, recitassem, lessem e compreendessem o Sutra do Diamante (The Threefold Lotus, p.328,329). A protagonista que visita o reino da morte e dele merece voltar para a completude de sua missão ligada aos sutras budistas é um exemplo da retribuição cármica ricamente sugerida e testemunhada no Nihon Ryouiki. Tal retribuição está reservada para homens e mulheres, não havendo neste texto destaque especial para o gênero feminino. Na China, desafios de memorização de sutras são propostas por personagens cujas biografias sincretizam-se com a de Kuan Yin, a divindade budista da Compaixão chinesa. A presente narrativa diz respeito ao período histórico Nara (710-794), no qual o imperador Shoumu viveu (701-756) e tornou-se conhecido por vários feitos ligados à expansão do budismo, como a encomenda da estátua gigante do Buda Vairochana e do Templo Toudai, em Nara. Na maturidade, tornou-se monge. Era filho do Imperador Mommu e de Fujiwara-no Miyako, filha de Fujiwara-no Fujito, eminente figura política nos períodos históricos Asuka (538-710) e Nara. Duas imperatrizes reinam desde que Shoumu é elevado ao poder ainda criança e assumem o reinado. A obra Kojiki é apresentada concluída à imperatriz Genmei (712), que abdica em 715 em favor da filha Gensho. No Japão, narrativas setsuwa religiosas, ao lado de mostrar personagens virtuosas e merecedoras de auxílio das divindades, como as personagens das narrativas do Nihon Ryouiki, acima, também podem mostrar a mulher associada à perdição do homem, aparecendo na pele de espíritos-raposa e também a mulher apenas referida e sugerida como eixo da família ameaçada pelo comportamento sensual do marido. 41 Uma raposa travestida de mulher. Narrativa 17 do Tomo XVI Budista do Konjaku Monogatarishuu “Como Kaya-no Yoshifuji, de Bichuu, tornou-se marido de uma raposa e foi salvo por Kannon”, do final do período Heian (século XII); o personagem, mal se despede da mulher que viaja, sai à rua em busca de aventura, encontrando o espírito-raposa estrategicamente encarnado em uma formosa jovem. Esta narrativa foi também estudada em minha dissertação de mestrado, com o interesse de serem levantadas e confirmadas ferramentas espirituais e máscaras da divindade feminina Kannon, previstas no Sutra do Lótus. A raposa é uma figura bastante arraigada no imaginário japonês, denotando malícia e enredamento, em uma herança cultural que vem da China. Na família do homem, os parentes ficam angustiados com sua ausência e pensam toda sorte de coisas, mas sem imaginar que o perigoso espírito-raposa tivesse capturado o homem que não seguira as práticas virtuosas da lealdade conjugal. Encontra-se, aqui, a associação da mulher com aspectos de sabotagem e sedução do animal astuto raposa. Note-se que se trata de uma época em que a poligamia era praticada no Japão, mas o ardor sexual desenfreado ou fora do casamento era desaconselhado pela moral budista. Como nos informa Yoshida, o homem na sociedade Heian tinha uma esposa oficial e poderia ter várias fora do casamento, de acordo com a forma matrimonial “ipputasai”, “um marido e diversas mulheres” (YOSHIDA, data, p.99-118). Também em Asuka, período anterior a Nara e a Heian, era permitido que o homem tivesse outras mulheres e, neste contexto, procuramos analisar o destino narrativo da ex-concubina. Note-se, ainda, que, em contexto poligâmico, isso parece também acontecer no período Edo ou Tokugawa (1603-1868), em que a poligamia existia, mas o casamento ou relacionamento amoroso entre classes sociais diferentes era vedado, o que levava ao conhecido duplo suicídio amoroso, de abundantes casos dramáticos, que inspiram, na literatura de costumes, o escritor Chikamatsu Monzaemon. No presente exemplo da narrativa 17 do Konjaku, o homem infiel (do ponto de vista budista) é enfeitiçado por uma raposa que o aguardava na esquina da transgressão; contraem matrimônio e convivem em território e tempo fantásticos: “Num tempo agora passado, no vilarejo de Ashimori, no Distrito de Kaya, em Bichuu,19 vivia um homem chamado Kaya-no Yoshifuji. 19 Antiga província japonesa, correspondente ao oeste da atual província de Okayama , em Honshuu , ilha central e principal do país.  42 Tornara-se rico graças ao comércio de moedas. Tinha uma predisposição a pensamentos lascivos. No outono do oitavo ano de Kanpei,20 enquanto sua esposa estava fora, na Capital e ele sozinho em casa, resolveu sair para um passeio assim que a noite caiu. Subitamente, avistou uma linda jovem. Era alguém que ele nunca tinha visto antes. Seus pensamentos luxuriantes emergiram, mas a jovem fugiu antes que ele a tocasse. Yoshifuji foi até ela e tomou-a pela mão. ‘Quem sois vós?’, perguntou. Ela estava ricamente vestida, mesmo assim disse: ‘Eu não sou ninguém’. Pode-se considerar que a própria aparição do espírito-raposa já se identifica a si mesma como ser vago, misterioso, ao dizer não ser ninguém. O narrador já introduz as características lascivas do personagem e o próprio drama que ele viverá já é anunciado pelo título. O desdobramento ou punição/retribuição cármica da traição ou sexualidade sem limite já é de se esperar e cumpre com eficácia a intenção da narrativa. No contexto da sociedade poligâmica de Heian, pode-se entender o caráter exortativo dos setsuwa budistas em relação à fidelidade masculina, como no presente caso e, também, retroativamente, a casos registrados pela memória oral em períodos precedentes, anteriores ao trabalho de Keikai. O personagem é punido por procurar companhia feminina tão logo sua esposa viaja. Por outro lado, a punição é representada pela chegada de uma companhia feminina, ou melhor, de um espírito-raposa, ryauko, travestido de mulher. Note-se a convivência de traços leais e importantes para a família budista na figura da esposa e indesejáveis, aliciadores, maliciosos, no caso da raposa). Quão encantadora ela parecia enquanto dizia isso! ‘Tenho um lugar para irmos’, Yoshifuji falou. ‘Não ficaria bem’, respondeu a jovem e tentou afastar-se. ‘Onde morais, então?’, perguntou Yoshifuji e acrescentou: ‘Irei convosco’. Respondeu ela: ‘Logo ali; vamos caminhando’. Yoshifuji acompanhou-a. Ali perto havia uma bela casa que também por dentro era suntuosamente decorada. ‘Estranho’, ele pensou. ‘Nunca soube de um lugar assim por aqui’. Dentro da casa havia um grande clamor, homens e mulheres, pessoas de várias posições sociais, todas gritando: ‘Sua Senhoria chegou!’ 20 Segundo o sistema nengou de classificação, isto é, de acordo com o reinado dos imperadores japoneses. Corresponderia a 896, oitavo ano do reinado de Uda Tennou. É um dado de precisão histórico-temporal não muito comum ao setsuwa em geral.  43 ‘Ela deve ser a filha do dono da casa’, Yoshifuji pensou feliz; e naquela noite uniu-se a ela.” O personagem já estava em processo de enfeitiçamento; não sente real espanto ao estar em lugar próximo que ele jamais conhecera. O cenário fantástico, induzido pela alucinação, é criado para convencer o homem de que se tratava