ESTEVÃO DE MELO MARCONDES LUZ Incendiárias Folhas ação política e periodismo na trajetória do padre Antonio José Ribeiro Bhering (1829-1849) FRANCA 2016 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS Incendiárias Folhas ação política e periodismo na trajetória do padre Antonio José Ribeiro Bhering (1829-1849) Tese apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do Título de Doutor em História. Linha de pesquisa: História e Cultura Social. Orientadora: Profa. Dra. Márcia Regina Capelari Naxara. FRANCA 2016 Luz, Estevão de Melo Marcondes. Incendiárias folhas: ação polìtica e periodismo na trajetória do Padre Antonio José Ribeiro Bhering (1829-1849) / Estevão de Melo Marcondes Luz. – Franca: [s.n.], 2016. 283 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientadora: Márcia Regina Capelari Naxara 1. Brasil - Historia - Imperio - 1822-1889. 2. Minas Gerais. 3. Imprensa. I. Tìtulo. CDD – 981.04 ESTEVÃO DE MELO MARCONDES LUZ INCENDIÁRIAS FOLHAS: AÇÃO POLÍTICA E PERIODISMO NA TRAJETÓRIA DO PADRE ANTONIO JOSÉ RIBEIRO BHERING (1829-1849). Tese apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do Título de Doutor em História. Área de concentração: História e Cultura. Linha de pesquisa: História e Cultura Social. BANCA EXAMINADORA Presidente: ________________________________________________________________ Dra. Márcia Regina Capelari Naxara 1º Examinador: ____________________________________________________________ Dra. Izabel Andrade Marson 2º Examinador: ____________________________________________________________ Dra. Helena Miranda Mollo 3º Examinador: ____________________________________________________________ Dra. Marisa Saenz Leme 4º Examinador: ____________________________________________________________ Dra. Virgínia Célia Camilotti Franca, 24 de junho de 2016. Dedicato ria Dedico este trabalho ao homem cujos passos procurei investigar e compreender durante os últimos anos, Antonio José Ribeiro Bhering, homem de seu tempo. Agradecimentos À professora Dra. Márcia Regina Capelari Naxara, minha orientadora, pela parceria durante os anos de realização desta pesquisa e pela amizade que se desenvolveu ao longo deste processo. Às professoras Dra. Marisa Saenz Leme e Dra. Virgínia Célia Camilotti pela participação no Exame Geral de Qualificação e pela leitura atenta que realizaram, trazendo apontamentos importantes e sugestões muito relevantes para o encaminhamento da Tese. À Dra. Izabel Andrade Marson, Dra. Helena Miranda Mollo, Dra. Marisa Saenz Leme e Dra. Virgínia Célia Camilotti por gentilmente aceitarem o convite para a composição da Banca Examinadora. À Hemeroteca Digital Brasileira/Fundação Biblioteca Nacional pelo excelente trabalho de digitalização dos periódicos do século XIX com os quais pude realizar a presente pesquisa, consultando minhas fontes a qualquer hora do dia e da noite a partir de minha própria residência. Ao pessoal da Biblioteca e da seção de Pós-Graduação da Unesp/Franca. À minha família, amigos e minha mulher, Michelle, pelo apoio incondicional durante todo o longo, prazeroso e desgastante período de pesquisa e redação da Tese. À Capes pela bolsa de Doutorado que me permitiu dedicar exclusivamente ao exercício da pesquisa, realizando as necessárias viagens para levantamento e consulta das fontes, assim como participar de eventos fundamentais para enriquecer as discussões realizadas no texto. Resumo A presente pesquisa teve por foco a trajetória de Antonio José Ribeiro Bhering, sua atuação na política imperial e na imprensa periódica. Padre, professor, redator de diferentes jornais, deputado provincial e geral, Bhering começou sua carreira no Seminário de Mariana, de onde foi expulso em 1829 pelo bispo D. Frei José da Santíssima Trindade em função das suas ideias filosóficas e de seu posicionamento político liberal. Sua demissão, tida como injusta e arbitrária pelos “patriotas mineiros”, possibilitou a projeção de seu nome e fomentou uma nova fase em sua carreira, quando assumiu cargos representativos na educação e na política. Sua trajetória se entrelaça com a história política do Brasil. Bhering vivenciou acontecimentos marcantes do Primeiro Reinado, do período Regencial e do Segundo Reinado, tendo tomado parte, na condição de autoridade constituída, de movimentos, discussões e decisões que interferiram no rumo dos acontecimentos. Homem de inteligência aguçada, liberal convicto e combativo, atuou ao lado de figuras importantes da história brasileira, tanto no âmbito da Corte, como em sua província natal, Minas Gerais. Em 1849 aderiu ao Regresso conservador, como fizeram muitos outros liberais que acreditaram na estabilidade e no progresso do Império. Por esta mudança foi duramente combatido por antigos aliados. Nossa intenção foi acompanhar suas ações e ideias por meio de seus escritos e discursos, onde realizava a defesa de um projeto de nação. Analisando as especificidades de sua trajetória e as questões compartilhadas com outros indivíduos e grupos aos quais se alinhou, buscamos identificar a configuração dos espaços político, social e intelectual em que atuou. Seus anseios, ideias e conflitos correspondem à identidade de um grupo e fazem parte do complexo processo de construção do Estado Imperial. A pesquisa documental teve por base os escritos publicados na imprensa, tantos os textos, artigos e correspondências por ele escritos, como textos sobre sua atuação e outros relativos às problemáticas do período. A imprensa periódica teve papel central, agindo como um importante espaço de sociabilidade em formação. Sua atuação política foi investigada com base nas discussões parlamentares, tanto da Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais, como da Câmara dos Deputados, e por meio dos embates e discussões estabelecidos na imprensa. Palavras chave: Antonio José Ribeiro Bhering. Imprensa periódica. O Novo Argos. O Homem Social. Minas Gerais. Brasil Império. Abstract This research was focused on the trajectory of Antonio José Ribeiro Bhering, his political activity and in the periodical press. Priest, teacher, editor of various newspapers, provincial and general deputy, Bhering began his career in the Seminário de Mariana, from which it was expelled in 1829 by Bishop Frei José da Santíssima Trindade on the basis of his philosophical ideas and his liberal political position. His dismissal, seen as unfair and arbitrary by "patriotas mineiros", made possible the projection of his name and fomented a new phase in his career, when he took representative positions in education and politics. His career is intertwined with the political history of Brazil. Bhering experienced significant events of the First Empire, the Regencial period and the Second Empire, having taken part, as a constituted authority, in movements, discussions and decisions that interfere with the course of events. Man of keen intelligence, a combative liberal, he worked alongside important figures in Brazilian history, both within the Court of Rio de Janeiro, as in his home province of Minas Gerais. In 1849 he joined the “Regresso conservador”, as did many other liberals who believed in the stability and progress of the Empire. For this change was strongly opposed by former allies. Our intention was to follow their actions and ideas through his writings and speeches, which held the defense of a national project. Analyzing the specifics of its trajectory and issues shared with other individuals and groups that are aligned, we seek to identify the configuration of the political, social and intellectual spaces in which he served. His aspirations, ideas and conflicts correspond to the identity of a group and are part of the complex process of construction of the Imperial State. The documental research was based on the writings published in the press, like texts, articles and letters written by him, as texts on his performance and others relating to the period. The periodical press played a central part, acting as an important space of sociability that was in formation. His political activity was investigated on the basis of parliamentary discussions, both the Provincial Legislative Assembly of Minas Gerais, as the House of Representatives, and through the conflicts and arguments set out in the press. Key words: Antonio José Ribeiro Bhering. Periodical press. O Novo Argos. O Homem Social. Minas Gerais. Empire of Brazil. Resumen Esta investigación se centró en la trayectoria de Antonio José Ribeiro Bhering, su papel en la política imperial y en la prensa periódica. Sacerdote, profesor, editor de varios periódicos, provincial y general diputado, Bhering comenzó su carrera en el Seminário de Mariana, de la que fue expulsado en 1829 por el Obispo Frei José da Santíssima Trinidade, sobre la base de sus ideas filosóficas y su posición política liberal . Su destitución, vista como injusta y arbitraria por parte de los “patriotas mineiros”, permitió a la proyección de su nombre y fomentó una nueva etapa en su carrera, cuando tomó las posiciones de representación en la educación y en la política. Su carrera se entrelaza con la historia política de Brasil. Bhering participo de acontecimientos significativos del Primer Imperio, del período Regencial y del Segundo Imperio, experimentando, en la condición de autoridad constituida, movimientos, discusiones y decisiones que interfirieron en el curso de los acontecimientos. Hombre de gran inteligencia, um liberal combativo, trabajó junto a figuras importantes en la historia de Brasil, tanto dentro de la Corte de Rio de Janeiro, como en su provincia natal de Minas Gerais. En 1849 se incorporó al “Regresso conservador”, al igual que muchos otros liberales que creían en la estabilidad y el progreso del Imperio. Por este cambio sufrió fuerte oposición de los antiguos aliados. Nuestra intención fue seguir sus acciones e ideas por médio de sus escritos y discursos, que llevan a cabo la defensa de un proyecto nacional. Analizando las características específicas de su trayectoria y los temas compartidos con otros individuos y grupos que están alineados, buscamos identificar la configuración de los espacios políticos, sociales e intelectuales en los que actuó. Sus inquietudes, ideas y conflictos corresponden a la identidad de un grupo y son parte del complejo proceso de construcción del Estado Imperial. La investigación documental se basa en los escritos publicados en la prensa, como textos, artículos y cartas escritas por él, como textos sobre su actuación y otras relacionadas con el periodo. La prensa periódica tuvo papel central, actuando como un importante espacio de sociabilidade en formación. Su actividad política fue investigada com base en los debates parlamentarios, tanto de la Asamblea Legislativa Provincial de Minas Gerais, como de la Cámara de Representantes, y por medio de los conflictos y los argumentos expuestos en la prensa. Palabras clave: Antonio José Ribeiro Bhering. Prensa periódica. O Novo Argos. O Homem Social. Minas Gerais. Imperio del Brasil. SUMA RIO Introdução 11 Capítulo I: “Feliz o tempo, em que se diz o que se pensa, e se pensa o que se quer” 1 O jovem padre e o bispo entre continuidades e transformações 26 2 “Firmemos o pé na terra que nos pertence; sustentemo-nos com honra nas trincheiras da liberdade” 40 3 “Quem tem boca não manda soprar” 54 4 A demissão do Seminário de Mariana 65 Capítulo II: Do Estreito de Bering ao Estreito de Magalhães. 1 O Novo Argos arregala seus olhos americanos 82 2 “De sobre as montanhas do Ouro Preto”, velando “de continuo na prosperidade pública” 100 Capítulo III: “Semeando o grão do Evangelho e da Constituição jurada” 1 Um filósofo entre a razão e a paixão 125 2 O 7 de Abril de 1831 e a “regeneração” polìtica do Brasil 138 3 O Homem Social empunha sua “mal aparada pena” 158 Capítulo IV: No tempo das incertezas. 1 A Revolta do ano da Fumaça e o caminho para a Corte 174 2 Um moderado entre exaltados e caramurus 184 3 Províncias, povo e folhas em convulsão 198 Capítulo V: As “circunstâncias” de fins dos anos 1840. 1 As “Revoluções” liberais 211 2 Um infeliz projeto de Felicitação? 234 Considerações Finais 252 Referências 255 Anexos 269 11 Introduça o No final da década de 1820, um jovem padre, professor da mais antiga instituição de ensino das Minas Gerais, iniciava uma briga ferrenha com a maior autoridade religiosa da província. A instituição era o Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, na cidade de Mariana; a autoridade, o próprio bispo. Antonio José Ribeiro Bhering, o jovem padre, fora expulso de suas funções no Seminário pelo bispo D. Frei José da Santíssima Trindade, o responsável direto pela sua nomeação para o cargo de lente de filosofia em 1827. Embora jovem, Bhering havia se destacado dos demais colegas por sua inteligência aguçada e pela disciplina. A relação entre ambos – o bispo e o jovem lente – foi gradualmente se deteriorando por conta de suas aulas, onde novas ideias fervilhavam e repercutiam na mente dos jovens seminaristas. As consequências deste período inicial de sua carreira pública marcaram profundamente sua trajetória política e intelectual. Nascido no ano de 1803 na Imperial Cidade de Ouro Preto, então capital da província de Minas Gerais, Bhering tinha origem pobre. Era filho de José Antonio Ribeiro, um cabo de esquadra, e de Ana Francisca de Assis. Iniciou e completou seus estudos no Seminário de Mariana onde, em novembro de 1826, foi ordenado padre pelo bispo D. Frei José. O sobrenome Bhering não vinha de origem familiar. O que parece ter ocorrido, prática adotada por muitos padres no período, é que após a ordenação adotavam um novo sobrenome, geralmente de um mestre ou pensador pelo qual tinham apreço. Seria uma forma de homenagem, mas também de distinção, pois os nomes se repetiam muito. O de seu pai, por exemplo, era José Antonio Ribeiro, havia ainda, em Ouro Preto, outro padre cujo nome era Antonio José Ribeiro. Não ficou claro o motivo de ter escolhido o sobrenome Bhering, mas fato é que seus irmãos mais novos, que não eram padres, também adotaram o mesmo sobrenome. Em 1827 Bhering assumiu a cadeira de Filosofia do Seminário e as divergências com o bispo logo tiveram início. Um sério embate se estabeleceu entre eles e se intensificou ao longo de suas vidas, marcando, como veremos, sensivelmente suas trajetórias. O bispo de Mariana faleceu em 28 de setembro de 1835 e neste período os ataques entre ambos se sucederam, bem como alguns momentos de curiosa aproximação. O posicionamento do bispo, suas manobras e decisões, assim como as de seus auxiliares da diocese, indicam claramente uma tentativa de conter o desenvolvimento e o avanço das ideias liberais que 12 naquele momento, após a Independência, se difundiam com mais vigor pelo interior do Império. Assim, buscaram combater pelos meios eclesiásticos, por meio de interpretações específicas do direito canônico, das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia e dos concílios papais, a propagação desta tendência que se espalhava e cujos propagadores eram também os próprios padres, cuja influência junto à população era significativa. Diante deste cenário e dos enfrentamentos seguidos Bhering foi demitido. O rompimento traumático com o Seminário, no entanto, ocorrido em 1829, abriu novas portas ao jovem professor, que iniciou sua atuação no mundo da imprensa periódica e do governo representativo. Chegou a ocupar os cargos de vereador na Câmara Municipal de Mariana, foi eleito deputado provincial e deputado geral, atuando na Câmara dos Deputados na 3ª legislatura (1834-1837) e eleito para a 5ª legislatura, que teria início em 1842, mas foi dissolvida por decreto imperial. Fez parte do Conselho Geral da Província, em seu segundo (1830-1833) e terceiro (1834) mandatos, quando foi extinto pela lei de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicional) e criou-se a Assembleia Legislativa Provincial. Nesta foi deputado em várias legislaturas: 1ª (1835-1837), 6ª (1846-1847), 7ª (1848-1849), 8ª (1850-1851), 9ª (1852-1853). Ocupou ainda os cargos de vice-diretor de Instrução Pública da província, Juiz de Paz na cidade de Mariana, secretário da presidência da província, tendo presidido a Assembleia Legislativa Provincial em diferentes ocasiões. O objetivo central da pesquisa esteve pautado pela análise da atuação e posicionamento político e intelectual de Bhering no sentido de conhecer seu papel na vida social e política do Império, buscando identificar as configurações de sua atuação, especialmente no que diz respeito à sua participação na imprensa e no processo de desenvolvimento da cultura impressa do período. Este trabalho, porém, não se pretendeu biográfico no sentido tradicional do termo, mas, obviamente, abordou diferentes aspectos da vida do personagem. A pretensão foi conhecê-la através de suas ideias, escritos, reflexões, de sua atividade pública, por meio dos quais realizou a defesa de um projeto de nação para o Império que transitava por um liberalismo moderado. Neste sentido, foi preciso analisar atentamente sua participação no Parlamento brasileiro, na Assembleia Legislativa Provincial e nas outras esferas do governo representativo das quais participou, abordando os temas com os quais ele esteve envolvido, já que os mesmos foram objeto de suas análises e da sua participação na imprensa, nosso foco especial. Assim foi possível compreender o seu papel nos embates e nos grandes temas do período. Sua trajetória, então, possibilitou a abertura de janelas para se entender o debate político e os acontecimentos de sua época, especialmente com relação à política do credo 13 liberal. A forma como se colocou na cena pública, nos espaços de discussão e circulação de ideias, como a sala de aula, o gabinete de leitura em sua residência, a imprensa, o Parlamento, as ruas, também as questões com as quais dialogou no jogo político estabelecido, são representativos da formação de uma opinião pública e da existência de uma pedagogia liberal. Estas, por sua vez, são sensivelmente significativas de sua ação política e social e representativas do projeto político, das ideias, sentimentos e contradições dos grupos aos quais Bhering esteve ligado. Neste sentido, procuramos deslindar os processos culturais e políticos estabelecidos pelo indivíduo, o que permitiu o reconhecimento de questões identitárias relacionadas a estes grupos, bem como a promoção de seus ideais, tendo como pano de fundo o complexo contexto de formação do Estado imperial. O recorte temporal, entre 1829 e 1849, foi estabelecido com base em dois momentos e fatos marcantes de sua trajetória, muito embora tenha sido necessário ultrapassar um pouco estes limites temporais. 1829 foi o ano em que Bhering foi demitido do cargo de professor do Seminário e que contribuiu para forjar sua projeção pública, marcando a sua ação política. Foi neste momento que deu início à sua carreira como escritor público e redator em periódicos mineiros, demonstrando ser um promissor ativista do pensamento liberal. 1 Já 1849 foi o ano em que aderiu oficialmente ao Regresso conservador, momento que também trouxe graves consequências, dissabores, mas também novas alianças e possibilidades para sua carreira. O caminho escolhido para explorar sua trajetória neste cenário do universo oitocentista passou, necessariamente, pela análise dos escritos deixados por ele na imprensa periódica. Este material é composto por textos, artigos, discursos, ofícios, relatórios e correspondências. Por meio deste aparato documental buscamos identificar e delimitar o(s) grupo(s) ao qual Bhering esteve ligado para conhecer os meios de produção intelectual de que dispunham para atuar e representar por meio da construção de um discurso sobre a realidade que os cercava, já que estes grupos possuíam certa identidade, fruto “de vivências comuns e sustentada pela construção de códigos que a instituem e expressam”, e esta identidade coletiva procurava expressar e defender um projeto político para o Estado nacional. 2 1 O termo ativista é aqui utilizado no sentido da defesa e promoção de certos ideais através de práticas como a publicação de textos, a atuação política em si e o fato de Bhering ter fundado em sua casa um gabinete de leitura, local, por excelência, de discussão e formação de ideias e que não tinha vínculos com o Estado. 2 D‟ALESSIO, Márcia Mansor. “Estado-nação e construções identitárias: uma leitura do perìodo Vargas”. In: SEIXAS, Jacy A; BRESCIANI, Maria Stella & BREPOHL Marion (Orgs.). Razão e paixão na política. 14 Bhering acabou por fazer parte de uma elite letrada que tinha “acesso aos instrumentos da divulgação impressa” e assim se relacionava “com diferentes setores da população, socialmente abaixo ou acima” destes letrados. Havia, então, por parte da imprensa periódica, uma “relação com os espaços públicos que se transformavam” e um “peso inegável na conformação dessa esfera pública no âmbito cultural, fatores fundamentais para a construção de uma identidade e de uma ordem nacional no período pós- independência”. Percebe-se, assim, uma relação estreita e indissociável entre imprensa e sociedade, fazendo com que a imprensa periódica exercesse influência e fosse influenciada por “vozes, falas e gestos não-escritos, em via de mão dupla, numa complexa teia de articulação, recepção e retransmissão de conteúdos que ultrapassavam o espaço impresso”. 3 Os escritos e a função de redator exercida por Bhering, então, constituem uma prática social daquele período, assim como a produção intelectual dos grupos a que esteve vinculado. E também se faziam repercutir no público leitor através de uma aceitação ou apropriação, cujas relações e detalhes buscamos indicar. A historiadora Lúcia Maria Bastos P. Neves ressalta que “essa literatura polìtica transformou-se em uma das principais fontes para a identificação das palavras, ideias, valores e representações pelos quais se exprimiu essa cultura polìtica do liberalismo”. 4 Assim, buscamos compreender o sentido de sociedade defendido e propagado por Bhering através da divulgação de seus ideais, seus valores sociais, sua ação política e de seu posicionamento frente às muitas problemáticas de um Estado em construção, onde “os nossos intelectuais procuravam converter suas vidas e desìgnios privados em modalidades exemplares de suas concepções do público”. 5 A imprensa periódica do período representava um importante espaço de sociabilidade que se consolidava. Sua atuação enquanto redator e escritor público, portanto, teve destacado papel em nossa análise. Interessou-nos, então, demonstrar como e por quais motivos Bhering lutou durante sua trajetória e reconstituir essa luta com base nas armas por ele utilizadas: a ação política e o universo representado pelo periodismo. O conjunto documental analisado é formado basicamente por periódicos brasileiros que circularam no Oitocentos, que integram o acervo da Hemeroteca Digital Brasileira da Brasília: Ed.UnB, 2002, p.159-180. A autora analisa justamente a construção de identidades coletivas no processo de formação do Estado nacional. 3 MOREL, Marco & BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.103 e 104. 4 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. “Liberalismo polìtico no Brasil: ideias, representações e práticas”. In: GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal & PRADO, Maria Emilia (orgs.). O liberalismo no Brasil imperial: origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro: Revan, UERJ, 2001, p.79. 5 “Prefácio” de Luiz Werneck Vianna. In: CARVALHO, Maria Alice Resende de. O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro; Revan; IUPERJ-UCAM, 1998. 15 Fundação Biblioteca Nacional (FBN), e que foram digitalizados de forma louvável por esta instituição. Em nosso caso específico, trabalhamos com jornais de diferentes partes da província de Minas Gerais, jornais da Corte e também algumas folhas de outras províncias, mas que mantinham alguma relação com os temas analisados ou com a própria atuação de Bhering. Em alguns destes jornais Bhering teve atuação direta, como foi o caso do O Novo Argos, impresso em Ouro Preto, em que atuou como redator principal desde o seu surgimento em 1829 até 1832, quando se afastou da redação; do O Homem Social, folha impressa em Mariana por sua iniciativa direta, da qual foi redator durante todo período em que circulou, entre 1832 e 1833; O Parlamentar, folha impressa no Rio de Janeiro e da qual participou no período entre 1837 e 1839. Havia uma complexa relação entre redatores de folhas por todo o Império, especialmente entre aquelas de mesma tendência política, e assim havia troca de exemplares, de escritos, de forma que Bhering escreveu também em outras folhas. Neste processo muitas outras folhas foram consultadas com intuito de mapear seus textos, bem como aqueles que mantinham alguma relação com ele e com os temas abordados. Dentre elas tiveram maior destaque jornais como: O Universal, uma das mais importantes folhas mineiras de tendência liberal e da qual Bhering participou assiduamente com seus escritos; Astro de Minas; Estrella Mariannense; Aurora Fluminense; Astréa; O Parahybuna; O Compilador; O Brasil; Correio da Tarde; O Sete d’Abril; O Itamontano; O Conciliador; Diário do Rio de Janeiro; O Bom Senso; Correio Mercantil e Instructivo, Político, Universal; O Telegrapho, órgão de divulgação das ideias e interesses da diocese de Mariana, através do qual o bispo atacava o posicionamento liberal dos mineiros; O Verdadeiro Caramurú; O Regresso; O Amigo da Verdade; dentre outras folhas indicadas ao longo do texto. Aqui cabe informar nossa opção por empregar os nomes dos jornais sem as iniciais O e A, quando existirem, por exemplo, tanto pelo fato de ser uma prática adotada pelos próprios redatores, como para facilitar a escrita e fluência do texto. E com relação às citações retiradas das fontes, optamos por realizar a sua atualização ortográfica, mantendo, no entanto, a pontuação, os itálicos e as letras maiúsculas empregadas nos textos originais. Em termos dos referenciais teóricos e metodológicos, um questionamento lançado por René Rémond, em obra por ele organizada, nos indicou um caminho bastante profícuo. O autor questiona o que haveria de comum entre o estudo dos meios de comunicação e a biografia, sugerindo o aspecto político como ponto de ligação entre ambos. Tal colocação se fez presente desde a nossa proposta inicial, ou seja, focar na exploração do caminho onde 16 imprensa e política se entrelaçam na atuação e na própria vida do indivíduo. Em Por uma história política historiadores lançaram mão de novas possibilidades para este “setor” da história e a mostraram “rejuvenescida” e com possibilidades variadas de contribuição. 6 Também uma perspectiva paralela de renovação, marcada pela preocupação com o estudo de “estruturas sócio-afetivas”, na concepção proposta especialmente por Pierre Ansart em seus estudos, tendo por centro de indagações questões relacionadas à sensibilidade no campo da política, nos forneceu elementos e questionamentos centrais para a análise. Exemplos importantes pautados por estas preocupações e interpretações podem ser encontrados nos trabalhos realizados por outro grupo de historiadores cujas pesquisas têm sido compiladas em coletâneas como Razão e paixão na política, Memória e (res)sentimento, Tramas do político, Sobre a humilhação, Conceitos e linguagens e Indiferenças. 7 Tivemos a oportunidade de acompanhar de perto as pesquisas de historiadores ligados a este grupo por meio da participação nos trabalhos e discussões do grupo de pesquisa Historiar (CNPq/Unesp-Fr). 8 Tais obras, portanto, também se apresentam como referenciais fundamentais para a pesquisa que neste momento apresentamos. A pesquisa caminhou, ainda, amparada pela análise dos conceitos e da linguagem. Não se trata de fazer uma história semântica, mas sim de conhecer o significado dos conceitos e expressões com os quais estavam operando estes personagens em meados do século XIX. Buscamos conhecer os conceitos “a partir do contexto histórico que os produziu” analisando o uso que deles se fazia nos discursos e na imprensa. É importante a percepção de que tais conceitos não são imutáveis, mas sim, que registram as mudanças e as permanências na sociedade e refletem as construções intelectuais e suas disputas. 9 6 RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996, p.10 e p.441. Na “Apresentação” desta obra, Marieta de Morais Ferreira já aponta para o importante movimento de renovação da história política – onde René Rémond tem papel central – com seus novos objetos de interesse, novas abordagens e novas fontes. 7 O grupo intitulado História e Linguagens Políticas: razão, sentimentos e sensibilidades é formado por historiadores brasileiros e estrangeiros e busca compreender a dimensão afetiva da política, como sentimentos, paixões, identidades, etc. Ver, entre outros: SEIXAS, Jacy A; BRESCIANI Maria Stella & BREPOHL Marion (orgs.). Razão e paixão na política. Brasília: Ed. UnB, 2002. BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora Unicamp, 2001. SEIXAS, Jacy; CESAROLI, Josianne & NAXARA, Márcia (orgs.). Tramas do político: linguagens, formas, jogos. Uberlândia: EDUFU, 2012. MARSON, Izabel & NAXARA, Márcia (orgs.). Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU, 2005. NAXARA, Márcia & CAMILOTTI, Virgínia (orgs.). Conceitos e linguagens: construções identitárias. São Paulo: Intermeios; Capes, 2013. NAXARA, Márcia; MARSON, Izabel & BREPOHL, Marion (orgs.). Indiferenças: percepções políticas e percursos de um sentimento. São Paulo: Intermeios; Brasília: Capes, CNPq; Curitiba: Fundação Araucária; Campinas: Unicamp-PPGH, 2015. 8 Historiar: construções identitárias, conceitos, linguagens (CNPq/Unesp-Fr). Coordenação das professoras doutoras Márcia Regina Capelari Naxara e Virgínia Célia Camilotti. 9 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência (1820- 1822). Rio de Janeiro: Revan; Faperj, 2003, p.17. 17 A história dos conceitos, especialmente os estudos de Reinhart Koselleck e de pesquisadores nacionais como João Feres Júnior, possibilitou traçar um panorama do jogo lexical em disputa, assim como da importância do emprego de uma linguagem específica que demonstrava que o embate se dava também no plano da linguagem. Nesta perspectiva, a utilização de determinados conceitos, empregados por ambos os lados do jogo político, diz muito a respeito de seus respectivos posicionamentos com relação aos temas do período. E desta forma é possìvel pensar a atuação dos chamados “escritores públicos” no sentido de uma efetiva pedagogia política. Sua função seria contribuir e facilitar a propagação dos novos conceitos, de forma mais acessível e a um público mais amplo, já que a utilização dos mesmos naquele tempo tornava-se frequente nos discursos, na imprensa, nos debates. Os usos e os lugares de enunciação de conceitos fundamentais para a compreensão das identidades dos grupos e partidos, assim como suas respectivas incompatibilidades, motivaram os vigorosos embates e até mesmo os enfrentamentos armados no Império. Os conceitos e as expressões, portanto, eram depositários de “carga polìtica intensa”, o que demanda um olhar atento aos “lugares discursivos”. 10 Esta nossa preocupação esteve presente ao longo do texto, mas talvez fique ainda mais clara nos primeiros capítulos, onde a exploração de tais conceitos se mostrou primordial para o entendimento do jogo político estabelecido, dos escritos publicados na imprensa, assim como dos respectivos posicionamentos de Bhering ao longo de sua trajetória. Assim, estivemos sempre atentos no sentido de identificar e conhecer as raízes das insatisfações e das disputas que caracterizaram o embate inicial travado entre os “patriotas mineiros” e o grupo ligado ao bispo de Mariana. Já em outros momentos de sua trajetória sua atuação se pautou por uma ação mais “moderada”, apartando-se um pouco de aliados liberais que passaram a ter um pensamento polìtico mais “exaltado” após o 7 de Abril de 1831. Mais adiante, ainda, sua trajetória entra em rota de colisão definitiva com correligionários liberais quando, após o longo processo de pacificação em Pernambuco, com a derrota dos “praieiros”, Bhering se posiciona ao lado dos “saquaremas”, entendendo que as circunstâncias do momento exigiam adesão à ordem, que por sua vez possibilitaria o progresso do país. Nesta perspectiva, focando com especial atenção ao aspecto conceitual, à questão dos sentimentos e das sensibilidades, no sentido de reconhecer a aproximação entre 10 CAMILOTTI, Virgìnia. “(In)diferenças entre Brasil e Portugal: dois tempos de colaboração portuguesa na imprensa brasileira”. In: NAXARA, Márcia; MARSON, Izabel & BREPOHL, Marion (orgs.). Indiferenças: percepções políticas e percursos de um sentimento. São Paulo: Intermeios; Brasília: Capes, CNPq; Curitiba: Fundação Araucária; Campinas: Unicamp-PPGH, 2015, p.255-276, citação p.256 e 257. 18 afetividade e identidade, identificamos e analisamos acontecimentos marcantes que se sucederam ao longo de sua trajetória. Os estudos sobre o movimento liberal no Império e sobre a “revolução”, analisados com muita perícia e sensibilidade por Izabel Marson, tiveram muita relevância para a compreensão da atuação de Bhering, de seu pensamento e dos percursos de sua argumentação, especialmente nas ocorrências da década de 1840. Buscamos compreender a fundo as nuances de seu posicionamento e de suas concepções sobre o tema para então estabelecer uma possível relação entre o indivíduo e os conflitos armados que o mesmo vivenciou. A revolução – com suas variadas formas de significação, tais como revolta, levante, sedição, insurreição – na verdade apresentava-se como possibilidade real de manobra política, sendo adotada em diferentes momentos por liberais e conservadores. A análise transita também pela história política relativa à construção do Estado imperial e do papel da imprensa neste importante processo, cujas obras de referência são variadas assim como as particularidades de objetos e de aspectos importantes nas configurações de busca pelas origens e formação da nacionalidade. Por exemplo, trabalhos que buscam analisar as configurações regionais durante este processo; obras que analisam a formação e atuação da classe política; pesquisas que tiveram como preocupação entender a busca por estabelecer certo caráter nacional durante o século XIX; estudos que focaram no papel da imprensa na configuração de uma participação política e social de indivíduos e grupos das mais variadas tendências e regiões na vida cotidiana do Estado e do papel importante de formação de uma opinião pública sobre os acontecimentos. Bhering vivenciou a repercussão de revoltas políticas importantes durante a Regência e o Segundo Reinado, como a Revolta do Ano da Fumaça de 1833 e a Revolução Liberal de 1842, ambas na província de Minas Gerais, dentre outras espalhadas pelo território imperial e que repercutiram em seus textos e discursos. Mesmo não compactuando com a luta armada e não participando ativamente dos movimentos, Bhering atuou nos bastidores, enquanto autoridade pública, o que nos possibilitou conhecer sua posição no campo político e ideológico. Estes conflitos tiveram naturezas diversas e além da agitação popular, da participação de diferentes setores da sociedade movidos pelo complexo e intrincado jogo de interesses, foram travados também no recinto parlamentar. Portanto, “tal quadro de conflitos foi, certamente, um forte motivo para que o tema Revolução se 19 projetasse na história do Império e também se tornasse a principal referência do debate polìtico desde 1822 até 1850.” 11 A pesquisa no acervo do Arquivo Público Mineiro (APM), durante a realização de nossa dissertação de mestrado, possibilitou um contato importante com a documentação relativa à Assembleia Legislativa Província de Minas Gerais. Este contato foi fundamental para o conhecimento das fontes e foi onde nos deparamos com o nome e alguns discursos de Bhering. Foi este o começo de nossa curiosidade a seu respeito. A documentação relativa ao governo provincial, composta por relatórios, anais, projetos de deputados, ofícios, etc., foi também consultada por meio das páginas da imprensa periódica do período. Obra importante para compreender a participação de Bhering na Câmara dos Deputados foi O clero no parlamento brasileiro, 12 por meio da qual foi possível acompanhar a atuação e as temáticas levantadas pelos padres. Interessante verificar que não havia necessariamente uma confluência de interesses dentre os membros do clero no Parlamento, pois tinham suas diferentes tendências e interpretações acerca da realidade política e social do Brasil. Ou seja, a atuação dos padres deputados não representou a busca por um projeto único e coeso. A sua divisão espelhava aquela mesma existente na Câmara, seja no que diz respeito à sua composição, ou em relação aos próprios projetos políticos. Outra referência significativa, especialmente para os capítulos iniciais, foi o trabalho do também padre e historiador da diocese de Mariana, Raimundo Trindade, que na primeira metade do século XX publica o seu Arquidiocese de Mariana, 13 obra que contempla uma análise importante sobre as motivações do conflito que se estabeleceu entre Bhering e o bispo. Em diferentes ocasiões Bhering foi reputado por seus pares, tanto adversários como aliados, como um homem de ilustração superior, de admirável inteligência, detentor da arte da retórica e da escrita. Seus discursos eram muitas vezes conciliadores e contemplavam temas da filosofia e da história universal, o que demonstrava sua curiosidade intelectual e seu conhecimento acerca da história da humanidade. Foi também reputado de enérgico em suas palavras quando pretendia convencer os colegas. Era, portanto, homem de personalidade forte, combativo, mas não intransigente. Outra característica que pudemos 11 MARSON, Izabel Andrade. Política, história e método em Joaquim Nabuco: tessituras da revolução e da escravidão. Uberlândia: EDUFU, 2008, p.22. Ver também da mesma autora O Império do progresso: a Revolução Praieira em Pernambuco (1842-1855). São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987. 12 Brasil. Congresso. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. O clero no parlamento brasileiro. Volume 3, Câmara dos Deputados (1830-1842). Brasília; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1979. 13 TRINDADE, Raimundo. [1928]. Arquidiocese de Mariana: subsídios para sua história. 2ª ed., vol. I. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953. 20 verificar desde o começo de sua trajetória foi a disciplina e o respeito às regras estabelecidas. Foram de fato raras as ocasiões em que faltou às sessões da Câmara dos Deputados, da Assembleia Legislativa Provincial, das reuniões do Conselho Geral ou da Câmara Municipal de Mariana, assim como das suas aulas e outras atribuições que assumiu ao longo da vida. Em diferentes momentos chegou a cobrar publicamente das autoridades certa punição aos representantes eleitos que não compareciam aos compromissos, o que ocorria com frequência. Fiel a seus princípios liberais, ao constitucionalismo, crente na obediência às autoridades constituídas e na legislação, Bhering certamente manteve sua convicção mesmo após aderir ao Regresso conservador em 1849. As circunstâncias mudavam, os homens mudavam, assim como mudavam, ao longo de sua trajetória, os respectivos alinhamentos políticos. Foi assim com figuras de grande relevância na província e na Corte, dentre elas, Bernardo Pereira de Vasconcelos. No início era denominado de o maior “patriota mineiro”, o grande legislador, elogiado com todas as forças por Bhering e pelas folhas liberais, mas que em fins da década de 1830, quando aderiu ao Regresso foi com o mesmo empenho combatido, tratado como traidor, criticado e estigmatizado por antigos aliados. Já no caso de Teófilo Ottoni e do padre José Antonio Marinho, figuras que também tiveram grande expressão na política imperial, a relação com Bhering também teve momentos distintos. Ambos mineiros, contemporâneos, foram deputados gerais e, acima de tudo liberais convictos. No caso de Ottoni e Marino, no entanto, com uma tendência mais exaltada e até mesmo republicana. Embora correligionários, aliados no patriotismo e na busca por concretizar as liberdades constitucionais e promover o progresso de seus patrícios, estes homens e Bhering não compactuaram em todos os assuntos e temas, tendo até mesmo demonstrado a existência de certa hostilidade nas lutas parlamentares e na vida pessoal. Foi assim, por exemplo, na ocasião da Revolução Liberal em 1842, quando Ottoni e Marinho organizaram e participaram ativamente do movimento; Bhering, por outro lado, embora defensor das motivações justificadas pelos liberais rebelados, não participou e demonstrou não concordar com a revolta armada e com a resistência. Outra relação curiosa estabelecida por Bhering foi com o também padre Januário da Cunha Barbosa, importante político do primeiro reinado, figura de destaque na vida intelectual da Corte, redator do periódico Revérbero Constitucional Fluminense, publicado no Rio de Janeiro, e membro fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Em um determinado período da carreira de Bhering, em função de seu posicionamento político, de suas ideias liberais, assim como de sua atividade enquanto 21 periodista, professor e escritor público, ele foi denominado de o “novo Januário”, numa referência muito interessante ao padre carioca. Outra possível ligação entre eles era o curso de Filosofia Racional do padre Januário no Rio de Janeiro, no qual Bhering parecer ter se inspirado para formatar o seu curso com o mesmo nome aberto em Ouro Preto por iniciativa dos “patriotas mineiros”. No caso do bispo de Mariana a proximidade inicial foi intensa. Durante seus estudos no Seminário Bhering teria ocupado a função de “fâmulo”, aquele que acompanhava o bispo e realizava determinados serviços no Seminário e no palácio episcopal. E também o de “escriturário particular”, lidando com os ofícios, relatórios e outros procedimentos relativos à diocese e aos papéis particulares do bispo. Não por acaso Bhering demonstrou em outras ocasiões um conhecimento aprofundado das contas e assuntos do bispado. Gozou da proteção e simpatia do bispo, frequentando o ambiente do palácio, conhecendo sua rotina, seus problemas e convivendo de perto com aqueles mesmos indivíduos pelos quais veio a nutrir sentimentos tão graves em outros momentos. Se em um primeiro momento esta estreita relação foi profícua, conveniente, terminou em sério conflito, gerador de humilhação e ressentimento, de provocações e acusações de ambos os lados, com enfrentamentos públicos por vezes agressivos. Parte das motivações foi desvendada e explorada, outras o tempo se encarregou de sedimentar. Homens como Bhering manifestaram uma nítida indignação com certas “arbitrariedades” de seu tempo, especialmente com práticas tidas como absolutistas, que não mais se acomodavam aos tempos constitucionais. Assim, defenderam com vitalidade a Constituição, a liberdade de imprensa e de expressão, promoveram ações filantrópicas dignas de verdadeiros “patriotas”, visitando e assistindo aos pobres, aos presos e enfermos. Apoiaram também a fundação de hospitais e casas de misericórdia. Foram homens pautados por ideias “modernas” sobre a polìtica e sobre a nação, que por meio da iniciativa pessoal e do espírito de associação, buscaram meios para melhorar a condição de seus semelhantes, entendendo que assim contribuíam para o progresso humano e, portanto, ao desenvolvimento da nação. E, neste sentido, cabe aqui uma breve reflexão. Muitas dessas iniciativas mencionadas poderiam nos levar a pensar na Maçonaria. Vale mencionar que estivemos atentos ao tema, da possível participação de Bhering, mas não observamos elementos suficientes, diretos ou indiretos, para pautar uma análise mais acurada a este respeito. É possìvel verificar, ainda, na trajetória de Bhering e outros “patriotas” de seu tempo, algumas possíveis contradições. Embora estivéssemos atentos também ao tema da 22 escravidão, não conseguimos captar o pensamento de Bhering com relação à realidade dos escravos. Aparentemente ele e muitos outros não condenaram publicamente a escravidão, nem mesmo chegaram a debater o tema com profundidade. A questão era, obviamente, bastante sensível e, como observou Izabel Marson, tendo em vista o tema de aceitar ou não a escravidão, é possìvel identificar dois “liberalismos” no Brasil: um que vigora até meados de 1850, período vivenciado por Bhering, e outro daí em diante, quando o tema veio à tona com mais intensidade. É sabido que em função de toda a sua estruturação no Brasil desde os tempos coloniais a escravidão impactava fortemente a economia e as práticas sociais do período, o que por si só demonstra a delicadeza do tema. De qualquer forma, talvez no foro íntimo de homens como Bhering a questão ecoava de forma distinta. Seu testamento, datado de 18 de janeiro de 1856, dia anterior ao de sua morte, trás elementos interessantes, inclusive acerca de sua relação com os escravos que possuía. “Achando-me bastante enfermo, mas em meu perfeito juízo e entendimento, temendo-me à morte a todos certa, resolvi fazer meu testamento sem insinuação de pessoa alguma”. Neste documento, provavelmente o último que assinou, demonstrava pleno conhecimento da proximidade da morte e decretava as suas últimas vontades. Dispôs de seus bens entre seus irmãos de sangue, deixou dinheiro para as irmandades a que pertencia, determinou a distribuição de algum dinheiro entre os pobres. Estabeleceu as quantias a serem pagas por ocasião das missas a serem realizadas após seu falecimento. Após elencar alguns cargos que ocupou afirmava desejar que seu funeral fosse realizado “com as honras devidas a estes empregos e posição que ocupei na Sociedade”. Bhering declarou não ter “filho algum que em consciência o deva reconhecer”. E deu liberdade aos dois únicos escravos que possuìa; Caetano, por “comiseração”, e Margarida “pelos bons serviços que me tem prestado”. Parte importante de seus pertences, composta por “trastes, livros, folhetos e quadros”, dentre os quais provavelmente um retrato de seu rosto, que muito procuramos conhecer, foram entregues a Antonio Eulino de Mello e Souza. A respeito deste amigo próximo de Bhering tivemos pouquíssimas informações. Mas foi professor em Mariana onde seguiu carreira. 14 No primeiro capítulo procuramos mapear detalhadamente e entender os acontecimentos que culminaram com o embate travado entre os dois grupos de cidadãos mineiros – na capital da província, Ouro Preto, e na sede do bispado, Mariana – em função de disputas que tinham como mote principal a observação, ou não observação, das leis e da 14 “Testamento do Reverendo Cônego Antonio José Ribeiro Bhering”. Datado de 18 de janeiro de 1856, foi escrito pelo tabelião Antonio José da Costa Pereira, mas ditado, conferido e assinado por Bhering. Sua assinatura ainda firme e bonita, mas não tão ornada e alegre como em outros tempos, deixa claro que ele estava bastante doente e já no leito de morte, pois faleceu logo no dia seguinte. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM). 23 Constituição do Império, assim como as consequências da liberdade de imprensa por ela estabelecida. De um lado estava o bispo Frei José, junto a seus auxiliares e aliados na diocese, e de outro os “patriotas mineiros”, um grupo de liberais da provìncia determinados a manter, seguir e divulgar a Constituição de 1824. Dentre estes figurava o padre Bhering, cuja expulsão do Seminário, em meio a uma crise de ideias e práticas, acabou por colocar em questão a autoridade do bispo e sua fidelidade ao constitucionalismo e ao novo regime que no Brasil se buscava consolidar. Na base deste embate estava também a busca pela conformação de um espaço público e os dois grupos de indivíduos se lançaram em atritos públicos onde expuseram suas diferentes visões de mundo e sobre os acontecimentos de seu tempo. Neste sentido, ocorreram fatos marcantes que contribuíram para definir as identidades opostas destes cidadãos, delineando os rumos da atuação pública de muitos deles. Entender as origens e identificar as fronteiras deste embate, portanto, foi fundamental para perscrutar a trajetória de Bhering. No segundo capítulo a análise concentra-se, mais especificamente, nos escritos publicados por Bhering em um periódico que ajudou a fundar e no qual atuou como redator principal. Intitulado O Novo Argos, foi impresso e publicado em Ouro Preto entre os anos de 1829 e 1834 e contribuiu muito para projetar Bhering como um escritor público reconhecido entre determinados setores daquela sociedade, especialmente entre jovens liberais da provìncia e as lideranças do “partido” liberal. Seus textos traziam muito de suas referências intelectuais e de suas influências no campo da filosofia e da política. Começava a ganhar importância e reconhecimento neste período a função de escritor público, a qual homens como ele faziam questão de se denominar, e que indicava a existência e os atritos estabelecidos no processo de formação de um espaço público, de uma esfera pública, pela qual estes homens, tidos como liberais e constitucionais, tanto lutaram. A defesa da causa pública passava, necessariamente, pelo combate aos seus opositores práticos e teóricos. E, neste sentido, os escritores públicos lançaram mão da tradução de textos de pensadores específicos de seu interesse – em especial de pensadores franceses da Ilustração – e atuavam no sentido de estabelecer e levar a cabo uma pedagogia liberal, como defendem alguns autores, informando e contextualizando o público em relação aos conceitos, práticas e possibilidades para a nação. Seus textos e as traduções realizadas nas páginas daquele periódico nos permitiram conhecer um pouco de suas referências, ideias e conflitos, assim como dos caminhos que veio a percorrer na sua carreira pública. No terceiro capítulo a análise está focada no trabalho de Bhering como professor de Filosofia, em curso público aberto em Ouro Preto pelos “patriotas” após sua demissão do 24 Seminário, por meio do qual pudemos verificar suas influências filosóficas, sua ação em prol da educação e também as contrariedades que sofreu enquanto mestre. Outro tema central abordado neste capítulo foi o da abdicação de Pedro I e as consequências do 7 de Abril de 1831 para o jogo político, onde analisamos a participação de Bhering como membro do Conselho Geral da Província de Minas Gerais, que precedeu a criação das Assembleias Legislativas Provinciais. Analisamos, ainda, os textos publicados por ele no seu jornal O Homem Social, cujos textos refletem os embates e os anseios frente às questões enfrentados na província e no Império. No quarto capítulo buscamos abordar o conturbado contexto do período Regencial, com as incertezas experimentadas, com os (des)arranjos e as particularidades do cenário mineiro, bem como pelas ocorrências na Corte e demais províncias. Neste conturbado período observou-se a eclosão de movimentos revoltosos em todas as partes do Império, alguns dos quais adentraram com força até o Segundo Reinado, demonstrando a instabilidade geral do Império. Acontecimentos que fomentaram os debates políticos e as discussões na imprensa. Nesta perspectiva, colocamos especial atenção ao movimento conhecido por Revolta do Ano da Fumaça, ocorrido em Ouro Preto em 1833, no sentido de captar o posicionamento de Bhering e seus alinhamentos nestes episódios. Analisamos sua atuação política enquanto deputado Geral, quando vivenciou de perto o ambiente da Corte, passando a conviver com figuras de grande peso político no Parlamento, mas focamos, também, a continuidade de sua atividade como escritor público, quando passou a escrever em jornais do Rio de Janeiro como O Parlamentar, que publicava análises com relação aos trabalhos do parlamento. Este período foi fundamental para compreender as nuances de sua atuação política no âmbito da Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais onde atuou até a década de 1850. No quinto e último capítulo procuramos abordar as causas e consequências dos movimentos liberais ocorridos no Império, com especial atenção à Revolução Liberal de 1842, em Minas Gerais, e na forma como Bhering se postou diante destes acontecimentos dentro dos ambientes em que atuava: imprensa e Assembleia Provincial. Para tanto, abordamos o intrincado processo que culminou com a ascensão dos conservadores com a política do Regresso, com a maioridade de Pedro II, as revoltas liberais que se arrastavam de norte a sul e a dissolução da Câmara em 1842, quando Bhering foi novamente eleito deputado geral. As mudanças em função deste conturbado contexto, com a predominância do Regresso e do projeto saquarema, com a pacificação de alguns conflitos em fins da década de 1840, causaram impacto profundo e acentuado desalinhamento entre antigos 25 aliados liberais. Foi neste momento, especificamente em 1849, que Bhering aderiu oficialmente ao Regresso, quando lançou mão, na Assembleia Legislativa Provincial, de um projeto de Felicitação ao Imperador, no qual deixava claro seu novo posicionamento em função do cenário vivenciado pelo Império, na esperança de que pudesse experimentar um período de ordem e de progresso. A expressão “incendiárias folhas”, que escolhemos para dar tìtulo a esta Tese, foi utilizada em determinados momentos por ambos os grupos aqui mencionados. Os “patriotas” lançaram mão dela para se referir aos “telegráficos” – homens ligados à publicação do jornal Telegrapho –, que a utilizaram para se referir às folhas de tendência liberal. No entanto, o intuito era sempre o mesmo, desqualificar, desmoralizar, taxar de anárquico, subversivo e revolucionário. Em meados da década de 1830 a expressão foi utilizada também por alguns escritores moderados para se referir às folhas de tendência exaltada, que veiculavam ideias republicanas em suas páginas. Na visão do bispo de Mariana, por exemplo, as “incendiárias folhas” buscavam literalmente incendiar os cidadãos através de escritos nocivos e desnecessários ao Império e à religião. Mas sendo uma expressão bastante maleável, foi também empregada para referência ao jornal mantido pela diocese, o Telegrapho, a quem os “patriotas” acusavam de “incendiário”, pois seria uma folha que expressava opiniões anticonstitucionais, ilegais e absolutistas, não condizentes com a nova ordem constitucional do Brasil independente. Foi desta forma que trilhamos o instigante caminho de aproximação com o personagem; seguindo rastros, confrontando indícios, atentos aos significados dos sentimentos e das emoções que motivaram suas ideias e ações, que, por sua vez, forneceram “elementos cruciais para a leitura dos acontecimentos históricos em suas significações”. 15 Estabelecemos uma relação de crítica e de aceitação com Bhering, equilibrando-nos com cuidado em meio à sedução exercida pelo personagem para captar o significado do “percurso de uma vida”, que, por sua vez, esclarecem acerca dos “movimentos da sociedade”, como bem demonstrou Vavy Pacheco Borges em estudo sobre Gabrielle Brune- Sieler. 16 15 MARSON, Izabel & NAXARA, Márcia. “Apresentação”. In: MARSON, Izabel & NAXARA, Márcia (orgs.). Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU, 2005, p.10. 16 BORGES, Vavy Pacheco. “Desafios da memória e da biografia: Gabrielle Brune-Sieler, uma vida (1874- 1940).” In: BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. Unicamp, 2001, p.287-312, citação p.287 e 288. 26 I. “Feliz o tempo, em que se diz o que se pensa, e se pensa o que se quer”1 1. O jovem padre e o bispo entre continuidades e transformações Em 1827 o jovem padre Antonio José Ribeiro Bhering começava a lecionar Filosofia no Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, em Mariana, província de Minas Gerais, cargo que ocupou por um breve período de dois anos. Fontes indicam que durante o período de sua formação, no mesmo Seminário, ele teria se destacado como um ótimo aluno e, logo após receber a ordenação, foi convidado a assumir o cargo de professor daquela instituição. Indicando, ainda, que mantinha uma boa relação com o bispo D. Frei José da Santíssima Trindade 2 . O também padre e historiador da diocese de Mariana, cônego Raimundo Trindade, em sua Arquidiocese de Mariana, ressalta que “apesar de um curso brilhante, não podia ter ainda recomendação para cadeiras de tamanha responsabilidade”, o que confirma a “proteção que lhe continuava” o bispo. O breve período em que lecionou no Seminário, 1 Bhering fazendo referência às palavras de Tácito, historiador e político romano, em texto publicado no Universal, edição 349 de 07/10/1829. Foram preservadas as vírgulas originais do texto. 2 D. Frei José da Santíssima Trindade nasceu na cidade do Porto, em Portugal, em 13 de agosto de 1762. Fez seus estudos no Seminário Episcopal daquela cidade e mudou-se para o Brasil aos dezesseis anos de idade, continuando seus estudos no Convento de Santo Antônio na cidade de Salvador onde se ordenou e seguiu carreira na hierarquia religiosa ocupando diferentes cargos. Viveu por 40 anos em Salvador até ser nomeado bispo de Mariana. Antes de assumir o novo cargo esteve no Rio de Janeiro organizando toda a burocracia necessária para a posse. De lá escreveu ao governador de Minas: “Eu serei feliz, e os súditos de Mariana também o serão, se, dadas as mãos da paz e da justiça, reconhecerem em mim um pastor e em V. Excia. Um Josué benévolo e piedoso”. O futuro bispo não poderia imaginar as dificuldades e contrariedades que enfrentaria em Minas Gerais. Morreu em 28 de setembro de 1835. Ver: TRINDADE, Raimundo. (1928). Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua história. 2ª ed., vol. I. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953, p.183 e 202. 27 provavelmente tenha sido suficiente para que seus superiores notassem sua vitalidade, inteligência e influência sobre os alunos. Influência que começava a ser questionada, pois o rumo “perigoso” que suas ideias ganhavam não era condizente com as propostas do Seminário e da diocese. No decorrer destes dois anos o reitor do Seminário e o próprio bispo advertiram ao jovem professor que ele estaria contaminando seus alunos com ideias perigosas, além de colocar em questão o próprio sistema educacional do Seminário. 3 Cientes das novas ideias que circulavam em suas aulas e das implicações na formação dos novos sacerdotes, seus superiores decidiram agir. Por seguidas vezes ele foi questionado e orientado a rever suas posições filosóficas, mas os avisos parecem não ter tido efeito imediato. Não havia, portanto, no entendimento de seus superiores, outra forma senão interromper a carreira do jovem padre naquela instituição. Foi, então, demitido e as rusgas com o bispo tiveram início. Uma verdadeira batalha de termos e expressões começa a ganhar corpo em torno destes indivíduos e, como ressaltou Reinhart Koselleck, parafraseando Epiteto, “não são os fatos que abalam os homens, mas sim o que se escreve sobre eles”. 4 Trindade sugere que os motivos da demissão estavam relacionados ao fato de que o padre, cheio de soberba, estava atuando de forma indisciplinada e contra os ditames da religião e da Igreja Católica Apostólica Romana: “Ensoberbecido com sua ciência, desandou o improvisado lente de Filosofia a pregar de sua cadeira novidades filosóficas, sendo forçado o escrupuloso bispo a eliminá-lo do quadro dos professores”. 5 No entanto, as motivações que levaram ao conflito e à demissão do “improvisado” professor de Filosofia, nos parecem muito mais complexas do que aparentam inicialmente e fazem parte de uma longa lista de acontecimentos marcantes. As divergências e interpretações que se fazia destes acontecimentos foram geradoras de graves embates e 3 Cônego Raimundo Otávio da Trindade nasceu no ano de 1883 na cidade de Barra Longa (MG) e veio a falecer em Belo Horizonte a 02 de abril de 1962. Estudou no Seminário de Mariana, onde recebeu sua ordenação no dia 04 de abril de 1908 e exerceu o ministério de diferentes cidades da região. Foi diretor do Museu da Inconfidência de Ouro Preto e diretor do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, cujo importante acervo ajudou a organizar. Pesquisador da história religiosa de Minas Gerais, teve acesso a documentos importantes para a história da diocese de Mariana, alguns já desaparecidos, como “as mimosas cartas do velho bispo, que o roçar do tempo vai gastando sem dó e que irão certamente desaparecer desconhecidas” (p.188). Escreveu importantes obras sobre o tema e, no caso do conflito travado entre o bispo Frei José e Bhering, defendeu arduamente o bispo, assim como em relação aos demais conflitos que marcaram seu bispado, mesmo reconhecendo a dificuldade que tinha o bispo em aceitar as mudanças e transformações advindas dos “tempos modernos”, constitucionais e liberais. TRINDADE, Raimundo. Arquidiocese de Mariana... Op. cit., p.188 e 193. 4 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, p.97. 5 TRINDADE, Raimundo. Arquidiocese de Mariana... Op. cit., p.401. 28 representaram, ainda, “o confronto de diferentes modalidades de apreensão do mundo, no interior de uma certa cultura”. 6 A primeira metade do século XIX, em especial o período que vai de 1808, com a chegada da Corte ao Brasil, a 1831, com a abdicação de D. Pedro I, foi marcada por acontecimentos importantes e também traumáticos. Dentre eles, a elevação do Brasil à condição de Reino Unido, a Independência, a outorga da Constituição em 1824, assim como revoltas de caráter separatista e revoltas de escravos. Esses e outros episódios não menos importantes nos remetem, portanto, às dificuldades enfrentadas no processo de emancipação, de busca por soberania e de formação das bases da nação e de sua nacionalidade. Mas em um território tão amplo, com população e interesses tão heterogêneos, os conflitos eram inevitáveis. Ocorreram “embates polìticos virulentos travados entre as diferentes facções em que se achava dividida a elite polìtica imperial”. Estas diferentes “facções”, segundo Marcello Basile, “envolveram-se em acirrada disputa pelo poder, trazendo à baila projetos polìticos distintos”. 7 A intenção neste primeiro capítulo é justamente esclarecer as raízes, motivações e características deste embate que aqui se apresenta. O conflito entre padre, bispo e seus respectivos aliados ganha notoriedade em função da circulação dos escritos de ambos na imprensa periódica. O debate, então, torna-se público e fica ainda mais áspero, incitando ao público para que manifestasse suas posições. Naquele momento alguns periódicos já circulavam na província, refletindo os interesses variados da sociedade. Desta forma, estes indivíduos passaram a apresentar suas posições por meio de narrativas na imprensa, com discursos que carregavam todo o peso de suas respectivas posições políticas, ideológicas e também religiosas. Buscava-se a todo custo conquistar a incipiente opinião pública não apenas por meio dos escritos publicados na imprensa e das discussões que estes geravam, mas também utilizando-se de outras formas possíveis como as pregações públicas realizadas pelos religiosos, a prática docente, a tradução de obras importantes, os debates nas assembleias, as conversas nas ruas, tais como “nos novos espaços de sociabilidade, que cafés, academias, livrarias e sociedades secretas [...] tinham passado a constituir”. 8 6 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. A “guerra das penas”: os impressos políticos e a independência do Brasil, Tempo, Rio de Janeiro, n.8, 1999, p.1-17, citação p.16. 7 BASILE, Marcello. “Projetos de Brasil e construção nacional na imprensa fluminense (1831-1835)”. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco & FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. (orgs.). História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A; Faperj, 2006, p.60. 8 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. A “guerra das penas”... Op. cit., p.2. 29 Nesse cenário, portanto, ganhava corpo uma verdadeira “batalha semântica para definir, manter ou impor posições polìticas e sociais”. 9 Um embate vigoroso de expressões e conceitos travado entre os dois grupos, evidenciando o embate político e a disputa que se estabeleceu no plano da linguagem. 10 A linguagem, ou as linguagens, tem, portanto, papel destacado neste vigoroso embate. As identidades opostas destes grupos foram consolidadas com base em polêmicas e ficaram marcadas por frustrações e satisfações onde o componente afetivo teve importante papel. Como ressaltam Stella Bresciani e Pierre Ansart, na “Apresentação” da coletânea Razão e paixão na política, “as identificações e as identidades fazem parte das ações políticas e ajustam-se às situações especìficas”. Ou seja, “uma afirmação identitária pode tanto favorecer a confiança em si como a agressividade em relação ao outro”. 11 A adoção de determinados conceitos representava e também despertava, como ressalta Fernando Catroga 12 , uma demarcação, tomada de posição, de defesa e ataque, assim como o despertar e a exteriorização de sentimentos por parte daquele, indivíduo ou coletividade, que com estes operava. Refletir sobre os usos e significados destes conceitos permite, então, compreender e mapear as relações de pertencimento, identidade, fidelidade e as mobilizações existentes. Assim, o foco volta-se para a utilização que Bhering faz destes conceitos em seus discursos, na sua produção intelectual e em sua atuação dentro do jogo político estabelecido. O conceito de cidadão, por exemplo, analisado por Beatriz Santos e Bernardo Ferreira e que surgira com a Revolução Francesa, ganhou corpo no Brasil independente, lançando questionamentos importantes de identidade do brasileiro – o que implicava, de certa forma, uma adesão ao projeto nacional. 13 Analisando a variação lexical do conceito liberal, Christian Lynch indica também que foi somente após a Independência que começou a se difundir no Brasil uma noção moderna de liberdade, “não mais a liberdade dos antigos, republicana clássica ou constitucional antiquaria, ou de liberdade como privilégio, mas de uma liberdade caracterizada pelos direitos e garantias individuais, baseados em critérios 9 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado... Op. cit., p.102. 10 O conceito de grupo, aqui empregado, e sua significação, vem de um indicativo de Reinhart Koselleck, quando sugere que a identidade de um grupo pode ser articulada ou produzida no campo linguístico. 11 BRESCIANI, Maria Stella & ANSART, Pierre. “Apresentação” In: SEIXAS, Jacy A.; BRESCIANI, Maria Stella & BREPOHL Marion (orgs.). Razão e paixão na política. Brasília: Ed. UnB, 2002, p.8 e 9. 12 CATROGA, Fernando. “Pátria, nação”. In: NAXARA, Márcia & CAMILOTTI, Virgínia (orgs.). Conceitos e linguagens: construções identitárias. São Paulo: Intermeios; Capes, 2013, p.15-31. 13 SANTOS, Beatriz Catão Cruz Santos & FERREIRA, Bernardo. “Cidadão”. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da história dos conceitos políticos no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009, p.43-64. 30 isonômicos”. 14 O conceito ganha ao longo do século XIX o significado de progressista, de portador de ideias avançadas. A própria ideia de progresso no século XIX, segundo demonstra Jacques Le Goff, era herdeira direta das Luzes e da Revolução. 15 Este vigoroso embate no campo da linguagem passa a refletir a situação política e social que o Império brasileiro atravessava e que seria fundamental para sua formação enquanto Estado e nação. Em realidade, o padre e o bispo, embora ambos eclesiásticos, representavam dois lados opostos de um mesmo jogo político, o embate entre a manutenção dos valores e tradições do Antigo Regime e a busca por renovação baseada nos princípios liberais. A interpretação que Lúcia Maria B. P. Neves faz do período que vai de 1820 a 1823, cujo ideário polìtico estaria marcado pela oposição “entre o despotismo, enquanto sìmbolo de um passado que se pretendia „regenerar‟, e o liberalismo-constitucionalismo, proposto como imagem de um futuro ideal a que se almejava, é representativa das motivações do embate que aqui se propõe analisar, iniciado a partir do final da década de 1820. 16 Há que ressaltar, ainda, o fato de que padre e bispo representavam também, conforme suas respectivas origens, o conflito travado no Brasil pós Independência entre portugueses e brasileiros, “pugnando por diferentes projetos polìticos”. Naquele momento, “os principais centros urbanos assistiram a inúmeros episódios de confronto físico entre nacionais e portugueses, que disputavam negócios de variadas modalidades”. 17 O bispo, nascido em Portugal ainda na década de 1760, parece preceder cronológica e ideologicamente àquela que Neves denominou de elite coimbrã, que estaria imbuìda “do ideal reformador cosmopolita moldado pelas pragmáticas, ainda que mitigadas, Luzes portuguesas”. Indivìduos capazes de “criticar as práticas do Antigo Regime e de simpatizar com o ideário de um liberalismo moderado”, mas também capazes de “manifestar a mais completa desconfiança em relação a qualquer procedimento que lembrasse os horrores da Revolução Francesa”. Assim será identificado o bispo no decorrer dos acontecimentos, justamente ao Antigo Regime e taxado de anticonstitucional, arbitrário, corcunda, déspota, etc. 18 14 LYNCH, Christian Edward Cyril. “Liberal/Liberalismo”. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da história dos conceitos políticos no Brasil, Op. cit., p.144. 15 LE GOFF, Jacques. “Progresso/Reação”. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 1, Memória – História. Porto: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1984, p.338-369. 16 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. A “guerra das penas”... Op. cit., p.9. 17 MARSON, Izabel. “Conciliação e esquecimento: Nabuco e a revolução”. In: BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2001, p.175-196, citação p.176. 18 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. A “guerra das penas”... Op. cit., p.9. Quanto à denominação “elite coimbrã” a autora indica, ainda, que R. Barmam – Brazil: the forging of a nation (1798-1852) – utiliza o conceito de “elite luso-brasileira” para caracterizar esse grupo. 31 Alguns autores sugerem que Frei José era adepto das ideias ultramontanas e que simpatizava com os grupos restauradores estabelecidos no Brasil. Ronald Polito de Oliveira levanta esta importante hipótese ao buscar elementos que fossem “suficientes para uma primeira tentativa de caracterização de Dom Frei José em termos polìticos e doutrinários”. 19 Ivan Aparecido Manoel afirma que a expressão “Catolicismo Ultramontano”, se refere “àquela auto compreensão da Igreja vigente entre o pontificado de Pio VII (1800-1823), quando a doutrina conservadora e restauradora da Igreja inicia sua consolidação, e o pontificado de João XXIII (1958-1963)”, com o Concìlio Vaticano II. 20 Mas foi a partir da década de 1860 que apareceu com maior intensidade na sociedade brasileira as discussões, as disputas, os conflitos e as repercussões em relação ao pensamento ultramontano, que caracterizava a parte mais conservadora do clero. Polito os define da seguinte forma: Fundamentalmente propugnadores da concentração do poder eclesiástico nas mãos do papa, os ultramontanos eram ainda contrários à imigração e propagação protestante ou à legislação favorável aos protestantes, às orientações ideológicas e sociais da Revolução Francesa e a todos os outros grupos ideologicamente constituídos, como o galicanismo, o jansenismo, a maçonaria, o racionalismo, o deísmo, o socialismo, o liberalismo e seus corolários civis, como casamento civil, liberdade de religião ou liberdade de imprensa. 21 Manoel também destaca algumas de suas características fundamentais: Na esfera intelectual, a rejeição à filosofia racionalista e à ciência moderna; na politica externa, a condenação à liberal democracia burguesa o concomitante reforço da ideia monárquica; na politica interna, o centralismo em Roma e na pessoa do Papa e o reforço do episcopado. [...] na esfera doutrinaria, a retomada das decisões fundamentais do Concilio de Trento (1545-1563), em especial aquelas estabelecidas para o combate ao protestantismo, que, no século XIX, englobou também o combate ao espiritismo e caracterizou-se, no Brasil, na criação de seminários fechados 19 OLIVEIRA, Ronald Polito de (org.). Visitas pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821- 1825). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Centro de Estudos Históricos e Culturais; Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, 1998, p.36. O autor se baseia, especialmente, nos estudos de David Gueiros Vieira, Francisco Iglésias e Raimundo Trindade, assim como em vasta documentação relativa ao bispo de Mariana. 20 MANOEL, Ivan Aparecido. O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960). Maringá: Eduem, 2004, p.10. 21 OLIVEIRA, Ronald Polito de (org.). Visitas pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade..., Op. cit., p.36. 32 para a formação do clero e na criação de colégios católicos, masculinos e femininos, para a educação da juventude. 22 Fato é que no Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, havia um movimento de ideias e de práticas que gerava conflitos entre determinados grupos, como é o caso do embate que veremos adiante. Bhering, por sua vez, nascido no Brasil no raiar do século XIX, seria um herdeiro direto daquela que a mesma autora denomina de elite brasiliense, onde figuram muitos personagens importantes da política brasileira e aclamadas pelo próprio Bhering. Geralmente “desprovidos de contatos diretos com o exterior, mostravam-se menos doutrinados por vias formais e mais abertos às ideias do pensamento francês”. É possìvel identificá-lo aproximadamente como herdeiro deste grupo em função de suas próprias preferências filosóficas e políticas, das citações em seus textos e do fato de ser conhecedor e professor de língua francesa. 23 Doravante, portanto, estabeleceu-se um intrincado jogo de vaidades, de verdades e mentiras, de insultos e declarações apaixonadas, de disputas pela atenção da opinião pública e de manipulação da mesma, e muitos foram os termos, as expressões e os conceitos utilizados. O bispo alegava que Bhering estaria fornecendo aos jovens seminaristas ensinamentos subversivos e contrários à religião católica. Bhering, por seu lado, disparava contra o conservadorismo e os resquícios absolutistas presentes naquela instituição e na província, os quais deveriam ser combatidos para que as luzes pudessem se difundir livremente. Ele seria, de acordo com o bispo, um indivíduo ingrato e demagogo pelo fato de ter recebido no Seminário toda sua instrução, de ter sido mantido pelo tempo de seis anos e, então, disparar contra a instituição que o havia acolhido, publicando insultos públicos em “incendiárias folhas”. 24 De um lado, disputavam a atenção do público da província os “patriotas mineiros”. Interessante observar que o termo “patriota” era empregado pelos dois grupos, ou seja, pelos próprios “patriotas”, que com este termo buscavam afirmar uma posição política e ideológica dentro daquela sociedade, e pelos adversários conservadores, que empregavam o termo de forma depreciativa. Para estes mineiros o “patriota” era o amigo da pátria, aquele indivíduo dotado de patriotismo e disposto a afirmar este amor e zelo pela pátria aos demais cidadãos. Este patriotismo “constitui uma verdadeira paixão, e esta não pode produzir ações 22 MANOEL, Ivan Aparecido. O Pêndulo da história... Op. cit., p.11. 23 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. A “guerra das penas”... Op. cit., p.9. 24 Na Introdução fazemos referência quanto ao uso desta expressão como título da Tese. 33 heroicas, se não quando é guiada pela virtude, e pelos bons costumes”. 25 Havia então uma relação direta com o lugar de nascimento que reforçava ainda mais a oposição entre os dois grupos, especialmente em relação aos portugueses, com os quais os “patriotas mineiros” tinham um discurso ainda mais áspero. No caso do bispo D. Frei José, português de nascimento, a ira era ainda maior, tanto pela origem, quanto pelo cargo importante que ocupava. Além disto, seus secretários e auxiliares mais próximos na diocese de Mariana eram também frades e portugueses. O campo semântico do termo “patriota” em meados do século XIX é bastante interessante e envolve necessariamente outros conceitos como pátria, o que remete a um sentimento de pertença, de local de nascimento, fidelidade, patriotismo, que por sua vez remete à mobilização de sentimentos coletivos para com a pátria. “As ideias de pátria e de patriotismo desempenharam papel nuclear no que diz respeito à mobilização das fidelidades grupais e coletivas”. Assim, tendo como base o Diccionario da língua portuguesa, de Antonio de Moraes Silva, edição de 1844, Catroga informa que “patriota, patriótico e patriotismo são vocábulos modernos derivados do Francês ou Inglês” e que o “uso geral os tinha apostolado, o que permite presumir dizer que, [...] a circulação do último termo se tenha intensificado sob os efeitos da Revolução Francesa”. Assim poderia se definir o patriotismo “como o amor, o zelo do bem comum da pátria”. 26 O Diccicionário registra ainda expressões como “ação patriótica”, “sociedades patrióticas” e “experiência histórica assumidamente patriótica”, expressões e definições que indicam necessariamente a ação individual e coletiva, a mobilização existente em certo sentido, da fidelidade a esta mobilização, de reivindicação política, de sentimento de pertencimento, assim como do seu oposto, a existência do estrangeiro, estranho a tais mobilizações, que não pertence ou não pode ser identificado a esta ação, a esta reivindicação, a esta pátria. Os termos eram fruto das revoluções liberais e foram empregados na “luta contra o absolutismo e antibritânica no decorrer da revolução liberal de 1820-1822”. 27 Definição interessante do conceito é dada pelo periódico Universal 28 em uma de suas seções denominada Pensamento. 25 O Universal, edição 2057 de 16/11/1835. 26 CATROGA, Fernando. “Pátria, nação”. In: NAXARA, Márcia & CAMILOTTI, Virgínia (orgs.). Conceitos e linguagens: construções identitárias. São Paulo: Intermeios; Capes, 2013, Op. cit., p.23, 26 e 27. 27 CATROGA, Fernando. “Pátria, nação”. In: NAXARA, Márcia & CAMILOTTI, Virgínia (orgs.). Conceitos e linguagens: construções identitárias. São Paulo: Intermeios; Capes, 2013, Op. cit., p.26. 28 O Universal foi um dos mais duradouros e representativos periódicos da província de Minas Gerais. Surgiu em julho de 1825, após o desaparecimento do Abelha do Itaculomy, e deixou de circular em junho de 1842. 34 Patriota é aquele homem, que em um governo livre faz consistir toda a sua gloria, e felicidade em servir a sua Pátria com zelo, conforme os meios, e faculdades a seu alcance. Este pois se pode dizer que tem Patriotismo, isto é, amor da Pátria. O ser Patriota não é um dever quimérico, é uma obrigação real. Por tanto é só Patriota aquele, que renuncia os prazeres da Sociedade, para consagrar seus dias ao serviço de sua Pátria: o contrario, isto é, aquele, que só tem em vista seus interesses, e regalos particulares, aquele por exemplo, que só quer aumentar sua fortuna, adquirir um posto, ganhar um renome vão, e impostor, tem uma alma vil, e baixa, não tem pensamentos elevados, ideias nobres, nem deseja prazeres sólidos. 29 Estas definições possibilitam pensar os “patriotas” talvez como membros de uma geração de indivíduos nascidos já no século XIX – nas suas primeiras décadas ou final do século XVIII – e que por este motivo vivenciaram de forma distinta experiências marcantes da vida política e social do Império, como a Independência e a abdicação de D. Pedro I. Este, aliás, após deixar o trono imperial, passa a ser associado ao Regresso, ao absolutismo, fazendo com que o dia 7 de Abril se tornasse um dos estandartes daquela geração. Ironicamente foi um português, um chapeleiro de nome José Barbosa, que obteve autorização em abril de 1822 para fundar a primeira tipografia de Minas Gerais, a qual deu o nome de Tipografia Patricia, em razão de ter sido toda projetada e construída com materiais do solo mineiro e, consequentemente, brasileiro. Do outro lado do conflito estavam os chamados “inimigos do filosofismo destruidor”, denominação dada pelos liberais. Se consideravam também constitucionais, mas faziam restrições contra a liberdade de imprensa e contra as novas ideias e práticas do liberalismo. Eram justamente eles que se opunham publicamente aos “patriotas” e que se localizavam exatamente do lado oposto das definições acima apresentadas. Neste grupo figuravam o bispo de Mariana, como um dos seus personagens centrais, assim como alguns membros importantes da diocese, alguns cidadãos, o redator do periódico o Telegrapho 30 , Saia três vezes por semana, as segundas, quartas e sextas-feiras. Era impresso na Tipografia Patricia de Barbosa & Cia, em Ouro Preto, que depois foi denominada Tipografia Patricia do Universal. De orientação liberal moderada, a sua direção foi atribuída em certos momentos a Bernardo Pereira de Vasconcelos, embora não divulgasse os nomes dos seus responsáveis. Sabe-se que participaram da sua redação nomes como José Pedro Dias de Carvalho e Joaquim Antão Fernandes Leão, além do próprio Vasconcelos. “Veìculo de livre expressão, participa da ebulição das ideias que agitam os primórdios da nacionalidade, defendendo, com firmeza, os altos interesses políticos e econômicos que alicerçavam a independência do país e a prosperidade dos brasileiros”. Por ocasião da Revolução Liberal em 1842 este periódico deixou de ser publicado definitivamente. Ficou, então, a simbólica imagem de que os seus tipos foram fundidos e com eles se fizeram balas para enviar aos liberais nos campos de batalha. Para tais informações consultar os Anais da Biblioteca Nacional, edição 117 do ano de 1997, disponível no site da Hemeroteca Digital Brasileira/Fundação Biblioteca Nacional. 29 O Universal, edição 2036 de 25/09/1835. 30 O Telegrapho começou a circular em maio de 1829. Tinha orientação conservadora, tendo sido denominado de “corcunda” e “absolutista”. A tipografia pertenceu à Fazenda Pública e foi arrematada em licitação por um 35 políticos conservadores e também certos padres mestres que lecionavam no Seminário. Estes também eram identificados, por seus opositores, como “corcundas”, “déspotas”, “pés de chumbo”, “caramurus”, “anticonstitucionais”, “servis”, “absolutistas”. O termo “corcunda” ou “carcunda”, por exemplo, depois de consumada a Independência, passa a “caracterizar o português, elevado a típico partidário do Antigo Regime, que conservara o desejo de ainda ver no Brasil a bandeira de Portugal”. 31 A apropriação de determinados conceitos por parte dos “patriotas” para representar seus inimigos indica a oposição direta existente entre eles, sugerindo que tais conceitos eram importantes instrumentos deste combate. A expressão “inimigo do filosofismo destruidor”, por exemplo, foi utilizada como uma espécie de pseudônimo por Frei Antonio da Conceição 32 , professor e secretário particular de D. Frei José, em resposta às supostas ofensas publicadas por um “patriota”, o padre Francisco Rodrigues de Paula 33 , como veremos. valor muito abaixo do que realmente valia, fato que gerou revolta e conflito com os jornais liberais. Quem comprou a tipografia foi José Gonçalves Cortes, figura que logo se tornou um dos principais inimigos dos liberais e de suas folhas. Tinha ainda como colaborador e redator Francisco de Assis Lorena, que também foi alvo constante dos liberais. O bispo de Mariana era também atacado constantemente como sendo um dos mantenedores deste periódico, através do qual era defendido dos muitos ataques lançados pelas folhas liberais, como Novo Argos, Universal, Astro de Minas, Homem Social, dentre outros. O Telegrapho era publicado uma vez a cada duas semanas (bissemanal) e circulou até abril de 1831, quando interrompeu sua publicação. A tipografia, então, foi vendida em Mariana em março de 1832 e ironicamente parece ter dado origem à Tipografia Mariannense, que por sua vez, passou a publicar periódicos de tendência liberal, como o Homem Social, cujo redator era o padre Antonio José Ribeiro Bhering. Para tais informações consultar os Anais da Biblioteca Nacional, edição 117 do ano de 1997, disponível no site da Hemeroteca Digital Brasileira/Fundação Biblioteca Nacional. 31 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. A “guerra das penas”... Op. cit., p.7. 32 Frei Antonio da Conceição fazia parte do corpo docente do Seminário de Mariana e era professor das disciplinas Filosofia e Teologia Dogmática. Fora nomeado pelo bispo D. Frei José após a reestruturação da instituição que havia ficado fechada por nove anos seguidos e que voltou a funcionar a partir de 1821. Raymundo Trindade afirma que ele era familiar do bispo, assim como outros frades que atuavam na diocese. Por serem portugueses e também em função do conflito travado com o padre Francisco Rodrigues de Paula eles foram perseguidos pelos “patriotas mineiros” e denunciados pelo desembargador Manuel Inácio de Melo e Souza – Barão de Pontal, português de nascimento e brasileiro naturalizado – à regência como “inimigos do novo regime, turbulentos, propagadores de doutrinas subversivas”. Eles foram oficialmente expulsos da provìncia e “saìram de Mariana, em agosto de 1832, depois de doze anos de útil companhia a Dom Frei José”. A este fato voltaremos adiante. Ver TRINDADE, Raimundo. Arquidiocese de Mariana... Op. cit., p.195, 196, 400 e 401. 33 Padre Francisco Rodrigues de Paula nasceu em 29 de novembro de 1788 na freguesia de Guarapiranga, Minas Gerais. Ordenou-se em 19 de dezembro de 1812 e em 1828 colou-se na paróquia do Sumidouro, de onde se envolveu na polêmica com o bispo sobre a questão dos matrimônios. “Com o pseudônimo de Levita tomou a defesa dos direitos da diocese sobre o seu Seminário, contra certos deputados da assembleia provincial que pretendiam fazer mão baixa na Casa de Dom Frei Manuel da Cruz”. Em 1835 renuncia a paróquia e assume as cadeiras de Moral e Direito Canônico, “disciplinas em que sua palavra era acatadìssima em todo o bispado”. Em 1841 entrou para o Cabido da Sé, em 1852 foi promovido ao cargo de arcipreste. Foi o primeiro vigário geral no bispado de D. Antonio Ferreira Viçoso, sendo “o braço direito do santo bispo em todos os seus trabalhos e empresas e particularmente no estabelecimento das Irmãs de Caridade na cidade episcopal”. Padre Francisco “amanheceu morto, vitima de um assalto cardìaco, a 11 de março de 1861, contando cerca de setenta e três anos de idade”. Ver TRINDADE, Raimundo. Arquidiocese de Mariana... Op. cit., p.335 e 336. 36 As contínuas provocações faziam-se presentes na imprensa, nas ruas, no parlamento e na própria diocese. Os conservadores se autodenominavam os únicos detentores de um projeto realmente amplo, de caráter nacional, que abrangia todo o Império. No entanto, para a aplicação deste projeto seria necessário que a vontade nacional não se curvasse aos interesses regionais. Em outras palavras, tratava-se de centralizar o sistema político da monarquia para assegurar a aplicação de um projeto nacional para todo o Império. Entre os liberais prevalecia o projeto de “conduzir a polìtica de modo que assegurasse o predomìnio de cada grupo em seu âmbito provincial e que deveria expressar-se numa distribuição tendencialmente mais equilibrada do aparelho do Estado pelo território imperial”. 34 A Constituição de 1824, enquanto “instrumento de um ideário polìtico, era vista como capaz de assegurar a possibilidade de triunfo das práticas liberais”. 35 É importante ressaltar que estabelecia que “todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritos, e publicá-los pela Imprensa sem dependência de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício deste direito”. 36 Por esta razão observa- se o surgimento de vários periódicos, como também justifica-se a importância vital de se tornar um autor de artigos, articulista de palavras e semeador de ideias, o que ocorreu com Bhering e outros “patriotas”. O conflito, então, ganhou as páginas dos periódicos mineiros, em especial do Universal e Novo Argos 37 , de tendência liberal, e Telegrapho, espaço de difusão do pensamento conservador dos aliados do bispo. Como já ressaltamos, este período coincide com o momento em que a imprensa periódica ganhava espaço e consolidava-se como um dos pilares de manifestação das culturas políticas do Império. Nos dizeres de Isabel Lustosa, em seu Insultos impressos, a imprensa foi “o laboratório onde tiveram lugar embrionárias e 34 MATTOS, Ilmar R. de. O tempo saquarema: formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 2004, p.117. 35 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das. & NEVES, Guilherme Pereira das. “Constituição”. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil, Op. cit., p.70. 36 Artigo 179, §. 4 da Constituição de 1824. O Universal, edição 205 de 03/11/1828. 37 O Novo Argos começa a circular em novembro de 1829, ano emblemático na luta travada entre liberais e conservadores, especialmente entre alguns religiosos de tendência liberal e o bispo de Mariana. Foi neste ano que o padre Bhering, seu diretor e redator por algum tempo, foi demitido do cargo de lente de filosofia do Seminário. Este periódico era publicado uma vez por semana e impresso na Tipografia Patricia do Universal em Ouro Preto. Em abril de 1830 Bhering deixa a redação desta folha e quem assume é Herculano Ferreira Pena. Depois o também padre e liberal José Antonio Marinho assume a direção. Assim como outras folhas liberais o Novo Argos deixa de circular no período entre março de 1833 e julho daquele mesmo ano em função da Sedição de Ouro Preto. Neste sentido, moveu “tenaz campanha contra a proteção dispensada pela polìtica ministerial aos sediciosos, fazendo eco dos protestos surgidos em vários pontos da provìncia”. Para tais informações consultar os Anais da Biblioteca Nacional, edição 117 do ano de 1997, disponível no site da Hemeroteca Digital Brasileira/Fundação Biblioteca Nacional. 37 imprevisìveis formas de competição polìtica”. 38 Foi, portanto, fundamental no processo de desenvolvimento e consolidação de espaços públicos e de uma nova cultura política. Espaços onde foram se configurando os conceitos, as práticas e ideias políticas que marcaram o período e que foram fundamentais na mobilização das demandas afetivas enquanto potencializadoras dos sentimentos. A sociedade, marcada por uma forte oralidade, foi lenta e gradualmente se transformando com o desenvolvimento da imprensa. “A espantosa quantidade de periódicos, folhetos políticos e panfletos postos em circulação naquele momento possibilitou novas discussões e inaugurou práticas polìticas até então desconhecidas no Brasil”. Neste sentido, “mais do que obras de cunho teórico, foram esses escritos que acabaram por introduzir „palavras da moda‟, tais como constituição, com novos significados, que anunciavam princìpios, definiam direitos e deveres do cidadão”. 39 As relações entre as pessoas mudaram, assim como a relação entre as pessoas e as instituições. O desenvolvimento das tipografias foi central nesse processo e possibilitou a formação de uma cultura dos impressos, constituindo “um dos elementos que contribuìram para a transformação da sociedade mineira da primeira metade do oitocentos”. 40 Marco Morel sugere que a imprensa na primeira metade do século XIX deve ser compreendida como “um dos mecanismos de participação política, com sua própria especificidade e ritmos”. No entanto, ressalta que estaria “interligada a outros destes mecanismos que transcendiam a palavra impressa”, dentre os quais elenca o “pertencimento às sociabilidades, lutas eleitorais e parlamentares, exercício da coerção governamental, movimentações nas ruas, mobilização de expressivos contingentes da população, recursos à luta armada e, sobretudo, formas de transmissão oral e manuscrita tão marcantes nas sociedades daquela época”. Havia então uma espécie de “cìrculo” onde estes mecanismos estavam inseridos e que possibilitava uma relação dinâmica entre a imprensa, ou a palavra impressa, como destaca Morel, e a sociedade. 41 38 LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência (1821-1823). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.16. 39 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das & NEVES, Guilherme Pereira das. “Constituição”. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil, Op. cit., p.70. 40 MOREIRA, Luciano da Silva. “Combates tipográficos”. Revista do Arquivo Público Mineiro, ano XLIV, n.1, Belo Horizonte, 2008, p.24-41. 41 MOREL, Marco. “Independência no papel: a imprensa periódica”. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, p.617. 38 O conflito entre os “patriotas” e o bispo tornou-se tão intenso que este chegou a escrever ao Núncio Apostólico 42 no Rio de Janeiro cogitando seu afastamento do cargo. Neste debate ainda foram questionados os Estatutos do Seminário de Mariana, que haviam sido reformulados pelo próprio D. Frei José em 1820 quando assumiu a instituição que, à época, encontrava-se em péssimas condições. Duras críticas foram publicadas pelos oposicionistas no sentido de mostrar que o Seminário não era uma propriedade do bispado, mas sim um espaço público, de livre circulação e pensamento, um espaço de sociabilidade. Mas, obviamente, o entendimento do bispo era completamente distinto. Os debates públicos, portanto, colocavam em lados opostos dois projetos diferentes encabeçados e identificados, segundo os dizeres da época, pelos “tiranos absolutistas” e pelos “sectários do filosofismo moderno”. O episódio confirma a observação de que o século XIX desenrolava-se “sob a égide do embate entre Antigo Regime e Luzes, um sinal, talvez o mais evidente, daquilo que muit