UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE MEDICINA CAROLINE CUSINATO Reforma Psiquiátrica: avanços e desafios das práticas dos profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Saúde Coletiva, Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Área de concentração: Saúde Pública. Orientador (a): Prof.ª(a). Dr (a). Sueli Terezinha Ferrero Martin Botucatu 2016 Caroline Cusinato Reforma Psiquiátrica: avanços e desafios das práticas dos profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Saúde Coletiva, Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Área de concentração: Saúde Pública. Orientador (a): Prof. (a). Dr (a). Sueli Terezinha Ferrero Martin Botucatu 2016 FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA SEÇÃO TÉC. AQUIS. TRATAMENTO DA INFORM. DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO - CÂMPUS DE BOTUCATU - UNESP BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL: ROSEMEIRE APARECIDA VICENTE-CRB 8/5651 Cusinato, Caroline. Reforma psiquiátrica : avanços e desafios das práticas dos profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) / Caroline Cusinato. - Botucatu, 2016 Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Medicina de Botucatu Orientador: Sueli Terezinha Ferrero Martin Capes: 40602001 1. Reforma psiquiátrica. 2. Saúde mental. 3. Centro de Atenção Psicossocial. 4. Pessoal da área de saúde mental. 5. Saúde pública. Palavras-chave: CAPS; Reforma psiquiátrica; Saúde mental; Teoria histórico-cultural. CAROLINE CUSINATO Reforma Psiquiátrica: avanços e desafios das práticas dos profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Botucatu, para obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva. Orientador: Prof. (a). Dr (a) Sueli Terezinha Ferrero Martin Comissão examinadora: Prof. (a). Dr (a) Sueli Terezinha Ferrero Martin – Universidade Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Botucatu Prof. (a). Dr (a) Wanda Maria Junqueira de Aguiar - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Prof.(a). Dr Guilherme Correa Barbosa - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Botucatu Botucatu, 2016. A todos que lutam para que nenhuma forma de manicômio exista em nossa sociedade, assim peço licença ao poeta Mário Quintana para lhes lembrar que “Todos estes que aí estão atravancando o nosso caminho, eles passarão. Nós passarinho! ” AGRADECIMENTO É chegada a hora de agradecer todos aqueles que estiverem comigo nesse caminho sendo lado a lado ou um pouco mais longe, apoiando ou criticando, ouvindo, ajudando, falando sobre o mestrado ou assuntos diferentes, mas que estavam sempre ali, juntos! Poderia escolher leves palavras para agradecer ou poderia ainda manter a formalidade da academia, mas prefiro que nessas linhas fique a simplicidade do meu muito obrigada a todos! Agradeço a Professora Sueli por me aceitar como orientanda e por me orientar cuidadosamente nessa caminhada, mostrando sempre o caminho da ética e colaborando para uma formação crítica, que com muito carinho e dedicação sempre esteve presente fazendo o melhor, obrigada por sempre questionar e me fazer pensar sobre minha pesquisa e sobre o meu papel enquanto pesquisadora. Hoje vejo o quanto isso foi importante para minha formação. Obrigada por ser professora, orientadora e amiga, por tantos ensinamentos, por ser inspiração e exemplo de militância sempre! Agradeço por onde tudo começou, o início do incentivo, do exemplo e da dedicação, meus pais e irmãos, aqueles que sem saber como e por onde foram meus maiores exemplos e incentivadores, que deixaram o caminho mais fácil, que ajudaram a enfrentar meus medos, que não me deixaram perder a graça e nem o riso nos momentos mais difíceis. Pai e Mãe, não são dois anos que tenho que agradecer e sim uma vida toda. Muito obrigada! Di e Nina, muito obrigada pela amizade, pelo companheirismo, pelas ajudas, pelos incentivos e sempre pelos exemplos que são! Má e Pedro, obrigada por todo carinho e pela torcida sempre. Agradeço ao meu avô por me despir dos preconceitos, sigo dizendo meu muito obrigada a minha avó Carmem, minha tia Sara, ao Denaldson, e meu afilhado Henrique, que por muitas vezes compreenderam minha ausência e sempre torceram para que tudo desse certo. À minha tia Rita e Tio Zé, e aos meus primos que se interessam sempre em conversar sobre um assunto tão diferente do nosso dia a dia. Agradeço à família do meu companheiro Caio por torcerem por cada conquista, por compreenderem que por tantos finais de semana eu fui visitá-los mas acabei trabalhando boa parte, agradeço aos cunhados pelas risadas, descontrações e conversas. Às amigas de Santa Rita que foram as mais compreensíveis com minhas ausências e falta de grana (risos)! Obrigada meninas! Às amigas (os) de República do tempo de graduação que nos encontros ficavam ouvindo sobre mestrado, pesquisa, saúde mental, CAPS. À Aninha que com nossos jantares faziam com que eu desligasse um pouco, e fosse possível conversar, descansar e rir para no dia seguinte ter novo ânimo em seguir a caminhada. Aos Amigos Eternos que por dois anos respiraram junto comigo o Mestrado, e que na mesa do bar ouviam por horas as angústias e me faziam relaxar e aproveitar cada momento, e que no fim deixavam saudade quando cada um ia para o seu lugar. Aos colegas do Programa de Pós-Graduação da FMB, em especial à Mel e à Re, agradeço as ricas discussões e apontamentos sobre o projeto. À Ju Pizano que não mediu esforços para me ajudar sempre que preciso. Aos colegas dos grupos que participo (ou participei) seja de estudos, pesquisa e/ou militância: Grupo de Estudos e Pesquisa Psicologia Histórico Cultural e Saúde Coletiva – Botucatu, NEPPEM, ABRAPSO – Núcleo Bauru, Núcleo de Educação CRP- Bauru e Grupo de Trabalho de Saúde Mental CRP- São Paulo. Aos professores que tiveram grande relevância em minha formação acadêmica, muito obrigada Nilma, Juliana Pasqualini, Ângelo, Antônio, Flávia, e em especial o professor Osvaldo que com muito cuidado e carinho me ajudou nos primeiros passos com meu projeto de mestrado e nos estudos sobre Saúde Pública e Saúde Mental. Agradeço a colaboração da Banca de Qualificação, professora Wanda Aguiar e professor Guilherme Barbosa por todos os apontamentos, correções e sugestões. Ao Conselho Regional de Psicologia – CRP Bauru – por me oportunizar muitos aprendizados e vivências na área da Psicologia, em especial a Sandra por acreditar e confiar em meu trabalho. Ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina de Botucatu, todos os professores e funcionários, e à CAPES pelo financiamento da pesquisa. A todos os trabalhadores do CAPS que participaram da pesquisa e que colaboraram sempre para que a coleta de informações ocorresse com muita riqueza. E claro, ao meu grande companheiro, parceiro, amigo, aquele que não foi minhas pernas nessa caminhada, mas foi meu apoio quando elas estavam cansadas. Muito obrigada por me ajudar a pensar no mestrado, a me ajudar tornar realidade, a corrigir meus erros, ajudar com transcrições, citações, formatações! Caio, “de todos os loucos do mundo eu quis você, porque a sua loucura parece um pouco com a minha”, muito obrigada meu companheiro! O descaso diante da realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos. Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando em direção ao passado de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de mudar o final. (Daniela Arbex) CUSINATO, Caroline. Reforma psiquiátrica: avanços e desafios das práticas dos profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). 117p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2016. RESUMO Esta pesquisa visou identificar os avanços e os retrocessos da Reforma Psiquiátrica, assim como os desafios contemporâneos que envolvem os progressos e/ou a reprodução da lógica manicomial nas práticas profissionais dos trabalhadores de um CAPS. Entendemos a reforma psiquiátrica como um processo histórico que tem como objetivos questionar e propor novas estratégias para a transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. O estudo foi realizado em um CAPS I de um município do interior de São Paulo, no qual participaram oito trabalhadores com nível superior e que atuavam há mais de um ano nesse serviço. A pesquisa foi pautada na Teoria Histórico-Cultural, portanto, alicerçada aos pressupostos metodológicos do materialismo histórico-dialético. Os procedimentos utilizados envolveram entrevistas semiestruturadas, observação participante e registros no diário de campo. A partir das entrevistas e da análise das informações coletadas pudemos compreender que alguns trabalhadores no cotidiano do serviço identificam em suas práticas, muitas vezes, uma reprodução da lógica manicomial, realizando constantemente um movimento pessoal e coletivo para que tal lógica seja superada. Enquanto uma outra parcela de trabalhadores acaba por reproduzir e naturalizar essa lógica dentro do serviço que tem como proposta a ruptura com o paradigma manicomial. No entanto, não podemos simplificar a compreensão dos trabalhadores entrevistados em dois grupos completamente distintos (manicomiais X antimanicomiais), já que foi possível observar que, em diversos momentos, alguns trabalhadores apresentavam concepções contraditórias, ora em defesa de práticas de atenção psicossocial, ora em consonância com a reprodução da lógica manicomial, a depender da temática abordada. Observamos também que a compreensão (ou sua ausência) das políticas públicas por vezes está relacionada com a superação ou não da lógica manicomial. Constatamos que para esta superação é importante fortalecer e implantar completamente as políticas públicas de saúde mental, visto que a não consolidação dessas políticas dificulta as ações dos trabalhadores no cotidiano, em especial no que tange à Rede de Atenção Psicossocial no município em questão. Cabe ressaltar ainda a importância de se evidenciar tanto o caráter ideológico como o caráter humanizador das práticas destes profissionais e também a compreensão de que o ideário manicomial vem na contramão do que concebemos para a saúde. Palavras-Chave: Saúde Mental; Reforma Psiquiátrica; CAPS; Teoria Histórico-Cultural Cusinato, Caroline. Psychiatric Reform: Progress and Challenges of the practices of professionals at a psychosocial treatment center (CAPS). 117p. Dissertation (Master`s) – Faculty of Medicine of Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2016. ABSTRACT This survey aimed to identify the advances and regressions of the Psychiatric Reform, as well as contemporary challenges involving the progress and / or reproduction of asylum practices in professionals of a CAPS in the professional practices of workers in a CAPS. We understand the psychiatric reform as a historical process that aims to question and propose new strategies for the transformation of the classical model and paradigm of psychiatry.This study was conducted in the CAPS I of a city in the interior of São Paulo, where eight graduated employees working in this area for over one year were interwied. The survey was guided by the Historical-Cultural Theory, therefore, supported the methodological assumption of historical dialectical materialism. The procedures used involved semi-structured interviews, participant observation and records in a field diary. Based on the collected data we understood that some of these workers often identify on their routine a reproduction of asylum practices, constantly struggling personally and collectively to overcome this situation. Others employees, on the other hand, eventually reproduced and naturalized this practice within the service that intends to break with the asylum paradigm. However we cannot it is not correct to simplify the understanding of these workers in two completely different groups (asylum x anti asylum), once it was observed that many times, some workers had conflicting views, sometimes in defense of the psychosocial mental health practices, others according to the reproduction of asylum logic. We also noted that the understanding or the lack of public policies sometimes is related to overcoming or not the asylum practices. We observed that strengthen and fully implement of public policies of mental health is important to overcome this fact, once the non-consolidation of these policies hinders the workers' actions in daily life, especially with regard to the system of psychosocial service in the studied city. It is worth noting the importance of emphasizing both the ideological and the humanizing character of these professionals practices and the understanding that the asylum ideology is in the opposite direction to what we conceive to health. Keywords: Mental Health; Psychiatric Reform; CAPS; Historical-Cultural Theory. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABRAPSO Associação Brasileira de Psicologia Social CAIS Centro de Atenção Integral a Saúde CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPS Centro de Atenção Psicossocial CAPSad Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas CAPSi Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil CEP Comitê de Ética e Pesquisa CNSM Conferência Nacional de Saúde Mental CRAS Centro de Referência de Assistência Social CREAS Centro de Referência Especializado em Assistência Social CRP Conselho Regional de Psicologia DINSAM Divisão Nacional de Saúde Mental ESF Estratégia de Saúde da Família EUA Estados Unidos da América FMB Faculdade de Medicina de Botucatu MNLA Movimento Nacional da Luta Antimanicomial MTSM Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental NAPS Núcleo de Apoio/Atenção Psicossocial NEPPEM Núcleo de Estudos e Pesquisa, Psicologia Social e Educação e Saúde: Contribuições do Marxismo OMS Organização Mundial da Saúde PACS Programa de Agentes Comunitários de Saúde PSF Programa de Saúde da Família PTS Projeto Terapêutico Singular RAPS Rede de Atenção Psicossocial SAMU Serviço de Atendimento Móvel de Urgência SRT Serviços Residenciais Terapêuticos SUS Sistema Único de Saúde UBS Unidade Básica de Saúde UNESP Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho UPA Unidade de Pronto Atendimento http://mds.gov.br/assuntos/assistencia-social/unidades-de-atendimento/creas URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas WONCA World Organization of Family Doctors https://es.wikipedia.org/wiki/World_Organization_of_Family_Doctors SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................. 14 1. REFORMA PSIQUIÁTRICA ........................................................................................ 19 1.1 BREVE RESGATE HISTÓRICO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO MUNDO ... 19 1.2 RESGATE HISTÓRICO NO BRASIL .......................................................................... 24 2. MODELOS DE CUIDADO ............................................................................................ 30 2.1 MODELO MANICOMIAL ............................................................................................ 30 2.2 MODELO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ................................................................ 34 3. O CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS) ................................................ 38 3.1 CONTEXTUALIZANDO O CAPS ............................................................................... 38 4. OBJETIVOS ....................................................................................................................... 46 4.1 OBJETIVO GERAL ....................................................................................................... 46 4.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ......................................................................................... 46 5. JUSTIFICATIVA ............................................................................................................... 47 6. MÉTODO ............................................................................................................................ 49 6.1 PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS ....................................................................... 49 6.2 PROBLEMA DE PESQUISA ........................................................................................ 54 6.3 CARACTERIZAÇÃO DO LOCAL DA PESQUISA .................................................... 55 6.4 PARTICIPANTES DA PESQUISA ............................................................................... 57 6.5 PROCEDIMENTOS PARA COLETA E ANÁLISE DE INFORMAÇÕES ................. 58 6.6 QUESTÕES ÉTICAS ..................................................................................................... 60 7. RESULTADOS E DISCUSSÃO ....................................................................................... 61 7.1 ANÁLISE DOS NÚCLEOS DE SIGNIFICAÇÃO ....................................................... 61 A. Organização do trabalho em equipe ......................................................................... 62 B. Práticas Assistenciais dos Trabalhadores ................................................................ 69 C. Dificuldades e Desafios encontrados pelos trabalhadores ...................................... 82 D. Reforma Psiquiátrica ................................................................................................. 91 E. Luta Antimanicomial ................................................................................................. 95 7.2 SÍNTESE DOS NÚCLEOS DE SIGNIFICAÇÃO ........................................................ 98 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 104 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 108 APÊNDICES ......................................................................................................................... 115 14 APRESENTAÇÃO Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. (Karl Marx) Ao pensar em minha trajetória enquanto pesquisadora dessa temática que desenvolvi em meu mestrado, é de se esperar que eu comece falando da Psicologia e suas contribuições em minha vida, mas não. Irei começar pela minha infância, pois se misturam, nesse momento em que escrevo, os sentimentos mais puros e a acidez da vida adulta. Começo esse texto relembrando as contribuições de um sábio senhor, dono de uma simpatia inigualável e um carisma surpreendente, que me levava para passar tardes sem preconceitos ou medos em um manicômio. Esse senhor era o meu avô, e foi nessas visitas a um hospital psiquiátrico que conheci amigos e pessoas muito queridas por ele que ali viviam. Meu querido e saudoso avô me ensinou que a loucura não era algo a ser temido e que aquelas pessoas não precisariam ficar presas atrás das imensas grades. Mas ele esqueceu de me contar que ali as pessoas eram torturadas, morriam, passavam frio, fome, recebiam eletrochoques, eram lobotomizadas e vivenciavam as mais diversas atrocidades. E isso eu só fui entender quando já não era mais uma criança. Meu primeiro contato com a temática foi na infância, claro que de uma forma ingênua e sem muito entendimento, mas de fato a escolha acadêmica pela temática de pesquisa envolvendo a luta antimanicomial e os serviços substitutivos de saúde mental aconteceu a partir de estudos e experiências vividas durante a graduação em Psicologia. Nesse período foi possível frequentar disciplinas que me proporcionaram uma visão mais madura e mais crítica ao sistema que estava instalado e que muitos lutavam para que este fosse derrubado, o sistema hospitalocêntrico. Além dos muros era necessário destruir uma cultura, que excluía, que violentava e anulava todos os indivíduos, e isso eu fui compreender com mais cuidado e com mais criticidade quando participei das aulas e discussões sobre Saúde Pública e Saúde Mental. Em 2007 ocorreu o Encontro Nacional “20 anos de luta por uma sociedade sem manicômios”, na cidade de Bauru, onde eu cursava minha graduação na UNESP 15 (Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho). Nesse período eu estava indo para o meu segundo ano da faculdade, participei de algumas atividades do Encontro, mas não como gostaria, pois, nesse momento eu enfrentava uma pequena crise com o curso de Psicologia. A Psicologia naquele momento parecia muito distante daquilo que eu havia escolhido ao entrar na Universidade. É comum que ingressemos no ensino superior sem conhecer detalhadamente o curso que escolhemos e no decorrer da trajetória vamos entendendo o mesmo, nos reconhecendo e nos aproximando de algumas vertentes e linhas teóricas. Nesse momento de crise eu passei a questionar a Psicologia e o que eu realmente queria, era preciso parar para compreender e buscar o que eu desejava. Através de muitas “idas e vindas” dentro do curso pude conhecer a Psicologia, não em sua totalidade, mas em muitas de suas partes. Nesses momentos de “idas e vindas” na graduação tive contato com a Psicopatologia, o que me levou a buscar novas discussões e um novo envolvimento com a saúde mental. Nessa época realizei um estágio extracurricular em um Centro de Atenção Integral à Saúde (CAIS), antigo hospital psiquiátrico no interior de São Paulo. Este, não por coincidência, era o mesmo manicômio que fez parte da minha infância. No momento do estágio ele passava por grandes adaptações propostas pela Reforma Psiquiátrica, naquela conjuntura um dos serviços que foi criado para substituir o sistema hospitalocêntrico, o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), encontrava-se dentro das imediações físicas do antigo hospital, o que resultou em mim uma reflexão crítica sobre os moldes de como ocorria a desospitalização e a desinstitucionalização naquela ocasião e a não permanência das práticas manicomiais, já que a proposta era outra, mas a estrutura era mantida. Ao desenvolver esse estágio tive a oportunidade de estudar um pouco mais sobre a Reforma Psiquiátrica e novo modelo de Atenção Psicossocial, assim essa oportunidade me levou a entender e perceber que a implantação do novo modelo trazia consigo novos desafios aos profissionais, isto posto como algumas resistências e a proposta de rompimento com uma cultura violenta. As minhas reflexões que ocorreram durante esse estágio, tomaram corpo quando comecei a frequentar as aulas de Saúde Pública e Saúde Mental na graduação, as aulas traziam uma contextualização histórica e discussões críticas sobre o antigo modelo e o atual modelo de serviços de saúde, o que me instigou mais ainda a me envolver com essa área. Meu amadurecimento acadêmico veio aos poucos, conforme eu descobria a Psicologia. Como já citado, me envolvi em algumas temáticas diferentes, mas não nego minha identificação e aproximação com a Psicologia Histórico-Cultural desde meu início acadêmico. 16 Eu estava me formando e me transformando em todas as minhas relações constantemente. Nesse sentido não posso deixar de citar aqui que o corpo docente e os meus colegas de curso foram atores fundamentais na minha formação e nas minhas mudanças, além de citar também que não acredito que um dia irei amadurecer por completo, mas acredito que estarei sempre em construção. Me formei, fui para o mercado de trabalho e o meu descontentamento ao me distanciar gradualmente da saúde pública e da saúde mental me perseguiu nesse período. Meu afastamento, porém, não me privou das discussões, dos questionamentos, das leituras e do interesse pela área. No primeiro ano após realizar a graduação comecei a participar do NEPPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa, Psicologia Social, Educação e Saúde: Contribuições do Marxismo) com a intenção de estar próxima das discussões e estudos promovidos pelo grupo e por considerar que aquele espaço me proporcionaria crescimento pessoal e um maior envolvimento com a Psicologia, mas infelizmente me afastei do grupo depois de um ano, pois acabei me mudando de Bauru, onde aconteciam os encontros. Mesmo envolvida em algumas discussões, participando de eventos, reuniões e espaços que discutiam Saúde Pública e Saúde Mental eu ansiava cada vez mais me aproximar desse campo e foi assim que decidi me envolver mais e não desistir da temática, tive a oportunidade de realizar uma disciplina no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva na Faculdade de Medicina de Botucatu ( FMB – Unesp), a professora que ministrava as aulas de Saúde Pública e Saúde Mental me autorizou a participar de sua disciplina como aluna ouvinte e confesso nessas linhas que esse foi o meu primeiro passo seguro em busca do que eu queria naquele momento, me envolver e me aproximar da luta e da militância pelos direitos humanos dessas pessoas que são condenadas por uma cultura violenta que exclui e anula. Essa experiência também me aproximou da academia novamente, o que contribuiu para criar expectativas reais que me levaram a escrever um pré-projeto de mestrado. Tendo como base a disciplina que cursava e as discussões que a professora fundamentava, foi possível entre viagens de Sorocaba para Botucatu e a saudade de casa e de Bauru começar a reorganizar minha vida e partir em busca do que eu queria, o mestrado. Faço questão de deixar aqui, não nas entrelinhas, mas nas linhas, que esse momento na minha vida deu um novo ânimo e um novo sentido nas minhas escolhas e que essas aulas foram fundamentalmente importantes e seriam novamente em outro momento da minha vida, quando eu assistiria elas de novo como aluna da pós-graduação em Saúde Coletiva e como orientanda da professora que ministrava a disciplina. 17 Estar no mestrado me mostrou que os espaços de discussão e estudos são de extrema importância para minha constante formação, por isso assim que tive a possibilidade, fiz questão de voltar a frequentar alguns grupos que já participei como o NEPPEM, e outros que ainda não havia frequentado, como as reuniões do Núcleo da Associação Brasileira de Psicologia Social, a ABRAPSO de Bauru e o Grupo de Estudos e Pesquisa "Psicologia Histórico-Cultural e Saúde Coletiva" em Botucatu. Esses espaços coletivos foram de extrema importância na minha formação pessoal e profissional, pois a cada reunião era possível me aproximar e aprender mais sobre a temática escolhida, sobre o método, como fazer uma pesquisa, conhecer técnicas e instrumentos a fundo, trocar materiais e angústias. Fazer parte desse universo de pós-graduação também me mostrou algumas dificuldades pessoais que foram importantes superar e compreender no decorrer do desenvolvimento desse processo, como: a pressão da sociedade, a falta de recursos das universidades, a má valorização do pesquisador; algumas vezes me deparei com uma citação de Gramsci que em diversos momentos fizeram sentindo para mim enquanto estudante e pesquisadora. Deve-se convencer muita gente de que o estudo é também um trabalho, e muito cansativo, com um tirocínio particular próprio, não só intelectual, mas também muscular-nervoso: é um processo de adaptação, é um hábito adquirido com esforço, aborrecimento e até mesmo sofrimento. (GRAMSCI, 1932, p.51) Foi vivendo essas contradições que foi possível aprimorar meus conhecimentos, compreender a importância da pesquisa em Saúde Coletiva e em outras áreas, reconhecer e valorizar o papel do pesquisador tanto na área acadêmica quanto na sociedade. Essas situações me ensinaram durante esse percurso que apesar da desvalorização e dificuldades ser pesquisador em Saúde Coletiva é estar comprometido com a sociedade, é lutar diariamente para que nós cidadãos tenhamos direito a uma saúde pública de qualidade, é quebrar paradigmas e preconceitos constantemente. Ao escolher a temática em saúde mental e os serviços que substituem a lógica manicomial, me propus a conhecer, compreender e explorar as políticas públicas em saúde mental, assim como ter sempre um olhar crítico e cuidadoso das políticas e das práticas nesse contexto. No meio dessa constante formação e transformações desenvolvi o meu projeto de pesquisa que apresentarei mais detalhadamente aqui. O projeto tem como propósito discutir o funcionamento de um serviço substitutivo de saúde mental, sendo este um Centro de Atenção 18 Psicossocial - CAPS, assim como abordar a atuação dos profissionais dessa área sob o olhar dos princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira e do Movimento da Luta Antimanicomial. Desta forma a intenção é também identificar os avanços, desafios, dificuldades e mudanças que envolvem a prática dos profissionais e os princípios da lógica manicomial, compreender tais avanços ou retrocessos e refletir sobre os problemas e desafios que são enfrentados. Através de uma revisão bibliográfica, iniciaremos o trabalho com um breve histórico da Reforma Psiquiátrica tanto em seu âmbito geral como no contexto especifico brasileiro, com um intuito de fazer um resgate histórico e também contextualizar como acontece atualmente esse processo. Em seguida discutiremos o antigo modelo de serviço em Saúde Mental, o modelo hospitalocêntrico, mais conhecido como Modelo Manicomial, e a proposta atual de serviço, conhecido como Modelo de Atenção Psicossocial, resgatando os caminhos percorridos do antigo ao novo, até chegar ao que propõe atualmente os serviços substitutivos em Saúde Mental. Iremos caracterizar, discutir e compreender como é e como está o atual serviço substitutivo de saúde mental estudado nessa pesquisa, o CAPS. Descrevemos os objetivos, a justificativa e os procedimentos metodológicos, em que abordaremos a caracterização do local de pesquisa e dos participantes, assim como os procedimentos e estratégias e técnicas utilizadas, discutiremos também os fundamentos teórico-metodológicos. Serão apresentadas aos leitores as informações obtidas na pesquisa e análise realizada a partir dos objetivos e procedimentos metodológicos estabelecidos previamente. Já na finalização do trabalho serão expostos as referências e os apêndices. 19 1. REFORMA PSIQUIÁTRICA Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem. (Rosa Luxemburgo) Neste capítulo abordaremos a Reforma Psiquiátrica, com o objetivo de realizar um resgate histórico e contextualizar como esse movimento está atualmente, quais as ações e as políticas que estão sendo realizadas para o avanço contínuo desse processo, tanto no cenário mundial como na perspectiva brasileira. Amarante (2009) pontua que a Reforma Psiquiátrica em uma dimensão cultural, pode ser entendida resumidamente como um processo de transformação social da loucura, da diferença e da divergência. Conforme assevera Basaglia (1982), “Quando dizemos não ao manicômio, estamos dizendo não à miséria do mundo e nos unimos a todas as pessoas do mundo que lutam por uma situação de emancipação” (p.29). Entendemos que Reforma Psiquiátrica vai além de uma transformação do modelo assistencial, é nesse caminho que pretendemos seguir nesse capítulo, para ampliar o nosso saber desse movimento e compreender a trajetória e o desenvolvimento de todo o processo. 1.1 BREVE RESGATE HISTÓRICO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO MUNDO Ao falarmos sobre a Reforma Psiquiátrica em um contexto geral no mundo é essencial contextualizarmos previamente e muito brevemente a loucura e o surgimento das instituições psiquiátricas. Em um sucinto resgate baseado em leituras sobre a história da loucura, é possível entender que a loucura era vista primeiramente como bruxaria, magia negra e que logo passa a ser vista com cunho religioso, como pecado, “os pecados contra a carne e as faltas contra a razão” (FOUCAULT, 1972, p. 87). Na Idade Média o louco estava presente na vida das pessoas, era visto e se associava a sociedade, sem ser isolado. Na Idade Moderna, época caracterizada pela transição do feudalismo para o modo de produção capitalista, o louco é reorganizado dentro da sociedade passando a ser isolado de todos, tornando-se um objeto desumanizado e passando a ocupar o lugar dos “desocupados” e pobres. Nesse período a loucura é associada a alienação e a não adaptação do indivíduo ao novo modo de produção. As instituições psiquiátricas surgiram muito antes do capitalismo, mas com o advento deste tornaram-se instituições de correção e ajustes morais, ou seja, um sistema regulador de disciplina. Resende (2000) afirma que essas instituições não tinham http://pensador.uol.com.br/autor/rosa_luxemburgo/ http://pt.wikipedia.org/wiki/Capitalismo 20 nenhuma função curativa e sim o objetivo de limpar as cidades dos mendigos e pessoas consideradas antissociais, e que a prioridade era punir a ociosidade e reeducar para a moralidade. Desta forma, eram consideradas um depósito de sujeitos não aptos ao trabalho, indivíduos que não se ajustavam na nova forma de produção, sendo representados em sua maioria por loucos, idosos, mendigos e deficientes mentais. Segundo Gradella Jr. (2008), a exclusão desses indivíduos pelo Estado burguês é subproduto das relações sociais, econômicas e políticas do modo de produção capitalista. Nesse sentido, Heller (1989) afirma que “essa mesma sociedade, ao subsumir o indivíduo sob sua classe, ao submetê-lo às leis econômicas como se essas fossem leis naturais, aboliu aquela possibilidade e fez dos indivíduos livres nada mais que escravos da alienação [...] (p.75). Fica claro que a inserção produtiva (trabalho ou não trabalho) é o que estabelecia os limites entre o que se considerava normal e anormal. Para Basaglia e Basaglia (1979), a estrutura econômica e organização social coincidem sempre e não é casual que os manicômios tenham sido organizados no início da revolução industrial e que mostrem sua mais ampla configuração institucionalizada no momento em que se faz necessário separar o homem produtivo do improdutivo. Com o surgimento da era industrial a relação já não se estabelece entre o homem e a sociedade, mas sim entre o homem e a produção, o que cria um novo uso discriminante de cada elemento como a anormalidade, a enfermidade e a inadaptação. Basaglia (1985) também descreve que nas instituições psiquiátricas é evidente a divisão entre os que têm e os que não têm poder, resultando, portanto, em uma relação de opressão e violência, que exclui todos aqueles desprovidos do poder. Essas instituições, portanto, eram vistas como uma rede de repressão à desordem, que tinham como função social a exclusão daqueles que não se adaptavam a ordem social da burguesia. Desta forma tornavam-se instituições imbuídas de brutalidade, tortura, maus tratos, superlotação e violência. Como pontua Gradella Jr. (2008), além da opressão e da violência, a intervenção sobre a vida do sujeito, rotulando este como normal ou anormal, é uma afirmação do poder médico que se esconde atrás da ciência, mas não deixa de ser uma imposição ideológica do modelo de racionalidade burguesa. A proposta do movimento da Reforma Psiquiátrica surgiu no início do século XX, mas sabe-se que já no final do século XIX algumas medidas reformadoras eram tomadas nos hospitais gerais, as críticas ao modelo de asilamento começam a surgir após a Segunda Guerra Mundial, em um momento de crescimento econômico e de reorganização social. 21 Inicialmente esses movimentos surgem nos Estados Unidos da América (EUA) e Canadá (Psiquiatria Preventiva), França (Psiquiatria Institucional de Setor), Inglaterra (AntiPsiquiatria) e Itália (Psiquiatria Democrática). No Brasil as críticas a esse modelo imposto irão surgir mais tardiamente. A Reforma Psiquiátrica contou, então, com diferentes modelos pelo mundo, como visto acima, nos EUA e Canadá o modelo predominante era a Psiquiatria Preventiva com uma proposta de que seria possível cuidar e prevenir das doenças mentais, subvertendo o objeto da doença mental para a saúde mental (AMARANTE, 2003). A ideia da Psiquiatria Preventiva era prevenir o adoecimento mental, com isso o conceito principal era evitar e tratar a “crise” o mais rápido possível, assim foi criada uma rede de serviços comunitários (ambulatórios, centros de saúde, oficinas protegidas, lares abrigados, hospitais-dia) nos EUA com a intenção de prevenção à crise, como pontua Amarante (2007), nesse contexto criou-se uma caça a todo tipo de suspeito com desordem mental. O autor acrescenta ainda que, apesar de serem instalados tantos serviços que também tinham como objetivo a “desospitalização” desses sujeitos, o que se percebeu foi um aumento da demanda psiquiátrica não apenas para esses serviços, mas também para os hospitais psiquiátricos. Assim esses serviços comunitários se tornaram grandes captadores e encaminhadores para os hospitais psiquiátricos. Na França o modelo prevalecente era a Psiquiatria de Setor, no qual a ideia foi levar o tratamento ao meio social dos doentes (AMARANTE, 2003). A partir do espaço hospitalar, as cidades foram divididas em setores com a presença de uma equipe técnica responsável pelo atendimento psiquiátrico, garantindo “uma relação direta entre a origem geográfica e cultural dos pacientes com o pavilhão em que serão tratados” no hospital (AMARANTE, 1995a, p.35). Amarante (2007) levanta que através desse modelo é que se fala pela primeira vez da regionalização da assistência psiquiátrica e há um deslocamento do cuidado do hospital para um espaço extra-hospitalar, um cuidado no território. Foi nesse momento que surge a ideia e o princípio de comunidade terapêutica de Maxwell Jones, na Inglaterra, baseada em experiências desenvolvidas em um hospital psiquiátrico, com a adoção de medidas coletivas, democráticas e participativas dos pacientes, com o objetivo de resgatar o processo terapêutico a partir da transformação da dinâmica institucional. Na Inglaterra, além da Comunidade Terapêutica, o modelo vigente de reforma foi a Antipsiquiatria, com uma negação radical ao saber e às instituições psiquiátricas e uma forte crítica à incapacidade da psiquiatria tradicional no tratamento da loucura. Para a Antipsiquiatria, diferentemente da Psiquiatria, não havia doença mental, mas sim uma 22 experiência do sujeito e sua relação com o ambiente social em que vive (AMARANTE, 2007). Esse modelo foi importante pois denunciava a violência que acontecia nas instituições psiquiátricas, e também porque contribuiu com o conceito de desinstitucionalização no sentido de desconstrução. A Antipsiquiatria adotou assim como na Psiquiatria de Setor a proposta das Comunidades Terapêuticas, porém não como uma ideia asilar, mas como uma instituição aberta. Na Itália, o modelo de reforma instalado é a Psiquiatria Democrática que teve como precursor Franco Basaglia. O conceito de Reforma nesse contexto se modifica, pois como afirma sua própria esposa e colaboradora Franca O. Basaglia (1996), esse processo não foi uma simples mudança, mas a demolição concreta de uma cultura, somente possível se outras culturas fossem construídas, outro conceito de saúde e doença, de normal e anormal. Através de sua experiência no hospital psiquiátrico de Gorizia e Trieste na Itália, onde realizou mudanças práticas e conceituais, influenciado pela fenomenologia e o existencialismo, e pelo marxismo segundo a tradição de Antônio Gramsci, Franco Basaglia rompe com a psiquiatria tradicional e propõe um novo dispositivo para a saúde mental, a desinstitucionalização. Antes o movimento sugeria a humanização dos hospitais gerais e psiquiátricos, neste momento da história Basaglia irá propor o fim dos manicômios, rompendo com todas as formas violentas e desumanas que acuavam os doentes mentais. Este movimento resultaria em uma luta contra a institucionalização hospitalar e a institucionalização externa. Em 1978 é aprovada a Lei 180, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Basaglia que, além de prever o fechamento gradual dos manicômios, propõe a sua substituição com criação de serviços territoriais e práticas baseadas nesse novo olhar que a Reforma Psiquiátrica italiana traz sobre a loucura. Esses serviços territoriais são propostos através dos centros de saúde mental, cooperativas de trabalho, residência para egressos dos manicômios, ações culturais, entre outras que atendiam as necessidades desse novo sujeito através de uma nova prática proposta, que a partir da reforma se encontrava em liberdade. (ROTELLI, 1991) Assim, foram nesses espaços e contextos diferenciados que surgiram diferentes formas de atuação do processo da Reforma Psiquiátrica, inicialmente acontecendo na Europa e na América do Norte, mais tardiamente esse processo chegaria até o Brasil com fortes influências da proposta de reforma realizada na Itália, que será abordado no tópico seguinte. Com o movimento da Reforma Psiquiátrica acontecendo gradual e gradativamente no âmbito mundial, algumas declarações e documentos foram publicados e divulgados pelas mais diversas organizações ligadas à Saúde. 23 Em 1978 aconteceu em Alma-Ata, URSS, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, onde foi redigido um documento conhecido como Declaração de Alma-Ata (1978). Nessa declaração foi explicitada a necessidade de uma ação urgente de todos os governos, de todos os que trabalham nos campos da saúde e do desenvolvimento e da comunidade mundial para promover a saúde de todos os povos do mundo. O documento ressalta a importância da participação do governo na prevenção e promoção da saúde, justificando ser essencial essa atuação para o contínuo desenvolvimento econômico e social. A Declaração de Alma-Ata foi um marco que representou o início para outras iniciativas acontecerem. (BRASIL, 2001a) Muitas outras declarações e documentos foram publicados e são referências para a Saúde Mental, dentre eles citaremos alguns que marcaram mundialmente a saúde nesse contexto de Reforma Psiquiátrica, como a Declaração de Caracas em 1990 que aponta que a atenção psiquiátrica tradicional não é compatível com uma atenção comunitária, integral, descentralizada, contínua, participativa e preventiva, tendo os objetivos completamente diferentes. Além disso esclarece que manter o hospital psiquiátrico como a única modalidade de assistência dificulta que os objetivos de um novo modelo de atenção sejam alcançados. A Declaração de Caracas, a partir disso, irá afirmar que a reorganização da atenção psiquiátrica ligada à Atenção Primária à Saúde possibilita a promoção de modelos de atenção centrados na comunidade, implicando em uma revisão crítica do papel hegemônico e centralizador do hospital psiquiátrico. (BRASIL, 2001a) Ainda nesse documento é declarado que os recursos, os cuidados e o tratamento devem proteger os direitos humanos e civis e a dignidade dos usuários, assim como devem propiciar e incentivar a permanência do sujeito na comunidade. Ressalta-se também a importância de os países ajustarem suas legislações para que seja cumprido e para que também garantam o cumprimento da Declaração de Caracas, assegurando os direitos dos usuários. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2005): A Declaração visa promover serviços de saúde mental de base comunitária e integrados sugerindo uma reestruturação da atenção psiquiátrica existente. Ela afirma que os recursos, a atenção e o tratamento para pessoas com transtornos mentais devem salvaguardar sua dignidade e direitos humanos, fornecer tratamento racional e apropriado e empenhar-se para manter as pessoas com transtornos mentais em suas comunidades. Afirma ainda que a legislação de saúde mental deve salvaguardar os direitos humanos de pessoas com transtornos mentais e que os serviços devem ser organizados de modo a garantir a aplicação desses direitos. (p.19) 24 A OMS divulga com determinada frequência relatórios1 sobre Saúde Mental e a integralidade com outros campos da saúde. Em 2005 foi publicado um Atlas de Saúde Mental que teve como objetivo mapear os recursos de saúde mental no mundo. Os dados obtidos nesse mapeamento foram necessários e importantes para avaliar a situação atual de cada país em relação a saúde mental, levantando as necessidades regionais e globais com o intuito de auxiliar no desenvolvimento de planos que ajudem nessas necessidades. Outra importante publicação nesse mesmo ano foi o Livro de Recursos da OMS sobre Saúde Mental, Direitos Humanos e Legislação - Cuidar, sim - Excluir, não – que tem como objetivo orientar os países na concepção, adoção e implementação de legislação que corresponde diretamente com a normas e padrões aceitos internacionalmente, levando principalmente em consideração a boa prática em direitos humanos. O objetivo, portanto, não é determinar um modelo legislativo específico para os países, mas salientar as questões a serem incorporadas à legislação, ligados aos princípios da Reforma Psiquiátrica e dos Direitos Humanos. O relatório mais recente que envolve a temática saúde mental como umas das prioridades foi publicado em 2008 pela OMS e a Organização Mundial dos Médicos de Família (WONCA), com o título “Integração da saúde mental nos cuidados de saúde primários: uma perspectiva global”, com o objetivo de apresentar as vantagens de se prestar serviços de saúde mental em nível de cuidados primários. Também orientar, proporcionando conselhos sobre como implementar e melhorar cuidados primários para a saúde mental, e relatar como diversos e diferenciados sistemas de saúde realizaram esta transformação com sucesso. (OMS/WONCA, 2008) Em um contexto global é possível acompanhar as medidas e os programas que vêm sendo realizados mundialmente nesse momento histórico através desses documentos, relatórios e declarações. 1.2 RESGATE HISTÓRICO NO BRASIL Nesse tópico abordaremos a contextualização da Reforma Psiquiátrica no cenário brasileiro, através de um breve resgate histórico. No contexto brasileiro seremos influenciados diretamente pelas lutas e pela Reforma Psiquiátrica Italiana baseada nas ideias de Franco Basaglia, mas antes é importante 1 Para a leitura na íntegra dos Relatórios divulgados pela OMS sugerimos o acesso ao site: http://www.who.int/eportuguese/publications/pt/ 25 descrever que no Brasil no início do século XIX, os considerados loucos, alienados, viviam nas ruas, como indigentes. Já em meados do mesmo século os loucos passam a ser encaminhados para a Santa Casa de Misericórdia2 com a intenção de higienização das ruas, onde viviam nos porões da instituição, sem assistência médica. Em 1830 iniciam-se as construções dos primeiros hospitais psiquiátricos devido as denúncias realizadas à Santa Casa, em 1852 inaugura-se o Hospício Pedro II, que seguia os moldes de um modelo asilar já proposto na Europa por Pinel3. A psiquiatria será somente reconhecida como uma especialidade médica, no começo do século XX, momento este em que o louco/alienado passa a ser visto como um doente passivo de tratamento. É nesse momento histórico no Brasil que irão surgir as colônias agrícolas4 para onde serão levados aqueles que são condenados como loucos. No final dos anos 1950, com o crescimento exacerbado de hospitais psiquiátricos e colônias agrícolas, começam as denúncias em relação a superlotação e aos maus tratos aos sujeitos que ali estavam asilados. Segundo Tenório (2002), no Brasil um movimento que irá anteceder o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) e o Movimento da Reforma Psiquiátrica, é o da Psiquiatria Comunitária, que surgiu como uma alternativa ao sistema asilar e de colônias, com uma proposta da psiquiatria se organizar num plano mais amplo que conseguisse atingir a comunidade e a prevenção do adoecimento mental. Para Tenório, (2002 p. 30): Tratava-se não apenas de detectar precocemente as situações críticas, de modo a resolvê-las sem que chegassem à internação, mas de organizar o espaço social de modo a prevenir o adoecimento mental. Essa intenção preventivista traduzia-se na bandeira de promoção da saúde mental, 2 Santa Casa de Misericórdia – Segundo Gandelman (2001), a Santa Casa de Misericórdia correspondia a esferas bem mais amplas do que o que hoje entendemos como sendo as de um hospital. Essa instituição tinha como objetivo atender aos enfermos dos navios dos portos, moradores das cidades e os loucos que vivam nos porões dos edifícios. A Santa Casa de Misericórdia foi uma marca da colonização portuguesa no Brasil. 3 Philippe Pinel - Pinel foi um médico psiquiatra francês que começou sua carreira hospitalar em Bicetrê, e depois em Salpêtrière, sendo esses os dois maiores estabelecimentos do Hospital Geral de Paris, apresentando este uma pluralidade de funções e uma diversidade de população como afirma Castel (1978). Ainda o autor assevera que a ideia de Pinel não era retirar as correntes dos alienados, mas sim o ordenamento do espaço hospitalar. 4 Colônias Agrícolas – Segundo Guerra (2008), as Colônias Agrícolas indicavam o trabalho como uma necessidade terapêutica associada ao tratamento moral, preconizando a reabilitação através da laborterapia. 26 prioritariamente ao tratamento da doença, cujo estabelecimento devia ser evitado. Influenciado pelas ideias italianas de Franco Basaglia, o movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil tem início no final dos anos 1970, com avanços significativos nos anos 1980 e 1990. No Brasil as questões sobre a doença mental parecem ter permanecido silenciosas durante muito tempo, como aponta Tenório (2002), não se questionavam os princípios dos asilos e da psiquiatria, mas seus exageros e desvios. O movimento da Reforma irá emergir a partir dos questionamentos dos movimentos sociais em relação aos maus tratos, abusos e violência contra os doentes mentais. Está sendo considerada reforma psiquiátrica o processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o questionamento assim como a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. No Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais concreta e principalmente a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 1970, fundado não apenas na crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, mas também, e principalmente, na crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda a movimentação político-social que caracteriza esta mesma conjuntura de redemocratização. (AMARANTE, 1995a, p. 91) Naquela conjuntura o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) foi o pioneiro a protagonizar a luta antimanicomial no Brasil e responsável pela forte crítica ao saber psiquiátrico (naquele momento o “saber da exclusão”). O MTSM se organizou a partir de um momento histórico de crise da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), órgão do Ministério da Saúde responsável pela elaboração das políticas de saúde, com o principal objetivo, segundo Amarante (1995a), de organizar um espaço de luta não institucional, um local de debate e encaminhamento de propostas da assistência psiquiátrica, que agregasse informações, promovesse eventos e que unisse trabalhadores em saúde. Esse movimento irá iniciar as denúncias e a luta contra as instituições da indústria da loucura, ao sistema “hospitalocêntrico” e estabelecem a proposta de desinstitucionalização. Além disso, denunciam também a falta de recursos e de profissionais, a precariedade das condições de trabalho e da assistência prestada. Amarante (1996) pontua a desinstitucionalização em categorias, sendo elas: desinstitucionalização como desospitalização, a desinstitucionalização como desassistência e a desinstitucionalização como desconstrução. 27 Conforme o autor, a desinstitucionalização como desospitalização se orienta a partir do paradigma psiquiátrico tradicional, partindo do pressuposto de que a reforma implica em aplicar corretamente o saber científico e as técnicas psiquiátricas, assim como considera que deva haver um rearranjo estrutural e nas conduções administrativa, como: diminuição de leitos e de tempos médios de permanência hospitalar e aumento do número de altas e/ou criação de serviços intermediários, assim como a implantação de uma rede de serviços e ações de cunho sanitário, preventivo e comunitário que substituam o aparato hospitalar. A desinstitucionalização como desassistência se coloca em oposição à desinstitucionalização, pelo fato de entender o processo como uma simples desospitalização sem criar novos modelos, serviços e políticas, por entender que a desinstitucionalização não significa a substituição do modelo hospitalar por outras modalidades de assistência e cuidado. (AMARANTE,1996) Ainda segundo o autor citado, a desinstitucionalização como desconstrução no sentido de se aproximar e identificar-se com a trajetória prático-teórica da tradição desenvolvida por Franco Basaglia, em que a principal referência está no conceito de desinstitucionalização, fortalecendo um novo significado para o processo. Assim Amarante (1996) irá afirmar que se a realidade é essencialmente construída, pode ser substancialmente modificada. A reforma estava presente no contexto histórico do Brasil, porém a luta antimanicomial surgiu de maneira decisiva em dezembro de 1987 no II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, realizado em Bauru, com o lema “Por uma sociedade sem manicômios! ”, um movimento social que luta pela extinção dos manicômios e de toda violência praticada pela assistência psiquiátrica. Este Congresso aconteceu logo após a I Conferência Nacional de Saúde Mental (I CNSM) que teve como temas: Economia, Sociedade e Estado: impactos sobre saúde e doença mental; Reforma Sanitária e reorganização da assistência à saúde mental; Cidadania e doença mental: direitos, deveres e legislação do doente mental. A partir dessas temáticas discutidas nessa Conferência foi possível no II Congresso discutir a ideia de desinstitucionalização do tratamento/assistência psiquiátrico. Esse movimento realizado no II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental está historicamente ligado à defesa dos direitos humanos, como também incentivava a militância política e social contra a violência institucional praticada nos espaços manicomiais. 28 Nesse evento foi publicado o Manifesto de Bauru5 que contém uma postura contra a mercantilização da doença; contra uma reforma sanitária privatizante e autoritária; proposta de uma reforma sanitária democrática e popular; proposta de uma reforma agrária e urbana; que os trabalhadores pudessem se organizar livre e independente; solicitava também o direito à sindicalização dos serviços públicos; assim como a criação do Dia Nacional de Luta Antimanicomial em 1988 e fazia um apelo pelo o fim dos manicômios. Amarante (1995a) afirma que com o lema “Por uma sociedade sem manicômios! ”, a ideia de desinstitucionalização na tradição basagliana ressurge com um conceito básico de reorganização do sistema de serviços. Assim, a desinstitucionalização proposta pela Reforma Psiquiátrica não poderia ser entendida como uma desassistência aos doentes mentais, pois além da criação de novos serviços em saúde mental, ela também tem como foco a ideia da desconstrução de práticas manicomiais. Boarini (2011, p.131) certifica que: A desinstitucionalização da atenção à saúde mental se traduz pelo abandono do paradigma que valoriza o “ajustamento social” e a norma e faz da razão seu único apoio. É o rompimento com o paradigma que entende o transtorno mental como sinônimo de incapacidade e periculosidade, e por esta razão justifica, adota e advoga medidas de tutela e exclusão. É a ruptura com um paradigma que não reconhece as singularidades e, neste sentido, não tolera autonomia e, assim sendo, estigmatiza e exclui posições diferentes. Enfim tais rupturas não se circunscrevem a humanizar ou “abrir as portas dos hospitais psiquiátricos”. Naquele contexto, temos um momento político de grande importância, pois é um período marcado por muitos eventos, que discutiram e problematizaram questões referentes a saúde mental, a sua condição e seu futuro, como: 8° Conferência Nacional de Saúde, I Conferência Nacional de Saúde Mental, II Congresso Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental e também marcos significativos como a criação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS ITAPEVA em São Paulo – criado em 1987 ) e do primeiro Núcleo de Apoio/Atenção Psicossocial (NAPS –BAURU – criado em 1987). As políticas públicas de Saúde Mental irão avançar e em 1992 é publicada a Portaria/SNAS nº 224 que formaliza as funções dos NAPS/CAPS nacionalmente. Outras políticas e ações irão tomar corpo e se desenvolver no decorrer desse processo da Reforma. 5 Manifesto de Bauru – para ter acesso ao Manifesto na íntegra indicamos a leitura do mesmo, disponível em www.abrasme.org.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3708. 29 Para o Movimento da Reforma Psiquiátrica e o Movimento da Luta Antimanicomial brasileiros, o referencial para a reforma foi a Itália que em maio de 1978 aprovava a Lei 180, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Basaglia, que foi comentada brevemente no capítulo anterior. Baseada nas ideias italianas, em 6 de abril de 2001, foi aprovada no Brasil a Lei n° 10.216, mais conhecida pela Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Paulo Delgado, que instituía um novo modelo de tratamento aos usuários de saúde mental no Brasil. Tal lei dispõe sobre a “proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”, propondo um modelo de Atenção Psicossocial, discutiremos esse modelo em um próximo capítulo. (BRASIL,2001) Nos capítulos abaixo discutiremos os modelos manicomiais e de Atenção Psicossocial, assim como a implantação dos novos serviços que substituem o antigo modelo, além de pensar e refletir sobre os avanços e desafios desse movimento da Reforma Psiquiátrica. 30 2. MODELOS DE CUIDADO Abrir uma instituição, o manicômio, não é apenas abrir as portas, mas abrir nossa cabeça em confronto com aquele que nos procura. (Franco Basaglia) Nesse Capítulo iremos discorrer sobre os modelos de cuidados em Saúde Mental, em específico o modelo manicomial e o modelo de atenção psicossocial. O objetivo do texto é contextualizar os dois modos de atenção, resgatando a concepção de cada um. Inicialmente falaremos do modelo manicomial, ainda existente, retomando o que eram os manicômios, como funcionavam e como ele passa a ser questionado e criticado, discutiremos também o processo que repensa esse modelo e propõe um novo modelo baseado em uma nova prática. No item seguinte continuaremos a discussão apresentando paradigma proposto, o modo de atenção psicossocial, o que é, quais são as propostas, as práticas e ações e finalizaremos com a análise dos atuais desafios desse novo modelo estabelecido. 2.1 MODELO MANICOMIAL Para falarmos do modelo manicomial é importante resgatar o que foram (e ainda são) os manicômios. O objetivo é contextualizar nesse momento do capítulo o que eram os manicômios, mas não podemos ignorar que muitos hoje ainda existem nos mesmos moldes do passado, por isso escolhemos que a partir dessa circunstância escreveremos o texto no presente, para o leitor entender de maneira clara que esse modelo está ainda vigente, mesmo com muita luta para que consigamos uma sociedade sem manicômios. Os manicômios são instituições para onde são reclusos os loucos, alienados, doentes mentais, todos aqueles que são considerados desprovidos de razão, muitas vezes considerados incapazes e perigosos para a sociedade em geral, era e é assim que ainda funcionam essas instituições. Com a Reforma Psiquiátrica muito se avançou, tanto em relação a luta antimanicomial quanto às políticas de saúde mental, mas o nosso foco agora é relembrar o passado e repensar o retrocesso, a permanência e existência dessas instituições para em seguida pensarmos no modelo atual. Para entendermos melhor o tipo de instituições que estamos falando Goffman (1974) irá defini-las como instituições totais, caracterizando essas instituições pelo seu 31 "fechamento" ou seu caráter total, que é representado pelas proibições de saídas e pelo impedimento da relação social do indivíduo encarcerado com o mundo externo. Pessotti (1996) define os manicômios como locais pequenos com escassez de leitos e quando haviam eram desordenados e insalubres, os médicos raramente visitavam os internos, seu papel era apenas para tratar de ferimentos ou doenças físicas. O autor ressalta que se utilizava correntes e a violência era constante nesse ambiente. Outro autor a fazer apontamentos sobre o manicômio é Ugolotti, caracterizando- os como um ambiente onde não tinha muito ar e nem muita luz. Afirma que em especial os quartos dos internos que eram pavimentos úmidos e sujos, que havia uma pedra nos quartos que servia muitas vezes para fixar as correntes que os continham. Relata ainda que as comidas eram escassas e mal preparadas, que os loucos ficavam enjaulados como uma fera e que as pessoas que trabalhavam no serviço de assistência tinham como principal função “domar” os doentes mais inquietos. Sobre as formas de tratamento nos manicômios o autor aponta o tratamento violento sob os mais diversos aspectos, pontuando que o tratamento era prescrito pelos médicos como meios curativos, mas que também eram empregados com intenção punitiva e como castigo de maneira brutal. Ele chama esse tratamento de terapia violenta, que ia desde privações de alimentos até queimaduras na nuca, além das ameaças e intimidações. (UGULOTTI, 1949 apud PESSOTTI, 1996). No Brasil as Santas Casas de Misericórdia representavam essas instituições. Os “hóspedes” eram aglomerados nos porões sem nenhuma assistência médica, quando tinham delírios, alucinações e encontravam-se agitados eram contidos por guardas e carcereiros através de espancamentos ou contenções, muitas vezes eram levados à morte por maus tratos, desnutrição e doenças. (RESENDE, 1987) Para Kinoshita e Zonta (1988) é neste contexto asilar que as práticas psiquiátricas se concretizam para além de suas funções terapêuticas, exercendo também funções político- administrativas e de controle social. É possível complementar com Amarante (1992), que diz que: a história da psiquiatria é a história de uma apropriação, de um seqüestro de identidades e cidadanias, de um processo de medicalização6 social, de disciplinarização, de inscrição de amplos segmentos sociais no âmbito de um saber que exclui e tutela, e de uma instituição asilar que custodia e violenta. (p. 104). 6 Medicalização – De acordo com Collares e Moysés (1985), medicalização é o processo pelo qual um problema de origem eminentemente social é compreendido a nível organicista e individual. 32 Muitas eram as práticas realizadas em manicômios, entre elas Goffmam (1974) coloca a realidade asilar, o modelo médico e a cultura da violência. Entende-se aqui como modelo asilar a realidade da exclusão, do isolamento, do controle. O autor expõe que nessas instituições as portas eram fechadas, as paredes altas, nos muros haviam arames farpados, ao redor haviam fossos, água, florestas ou pântanos, que impediam que os sujeitos saíssem, deste modo eles acabavam enclausurados, encarcerados e isolados nessas instituições. Como modelo médico compreende-se um instrumento de controle social que anula as potencialidades do indivíduo, centralizando a atenção na doença, no sintoma e na cura. Quando um futuro paciente chega para sua primeira entrevista de admissão, os médicos aplicam imediatamente o modelo de serviço médico. Quaisquer que sejam as condições sociais do paciente, e qualquer que seja o caráter específico de sua "perturbação'', ele pode ser tratado nesse ambiente como alguém cujo problema pode ser enfrentado, ainda que não tratado, pela aplicação de uma única interpretação psiquiátrica técnica. O fato de um paciente diferir de outro quanto a sexo, idade, grupo racial, estado conjugal, religião ou classe social é apenas um item a ser levado em consideração, a ser, por assim dizer, "neutralizado", de forma que a teoria psiquiátrica geral possa ser aplicada e a fim de que os temas universais possam ser identificados sob as superficialidades das diferenças externas na vida social. (GOFFMAN, 1974, p.285.) Como cultura da violência considera-se todas as formas de violência sofridas, sendo ela física, psíquica e/ou moral, uma cultura que expropria o indivíduo de sua relação e direitos com o mundo externo e anula toda a história individual e coletiva do sujeito. Para Garcia (2012), as violações dos direitos humanos nos manicômios são invisíveis na maioria das vezes, pois além de envolver instituições fechadas os internos ficam afastados dos olhares públicos. Esse modelo que falamos, o modelo manicomial, hospitalar, asilar, nasceu então do modelo biomédico e tendo, portanto, como principal característica a hospitalização dos sujeitos, se aproximando das práticas das instituições carcerárias, assim é um sistema fundamentado na vigilância, controle e disciplina. (AMARANTE, 2007). Ainda esse autor nos apresenta o artigo 32 do Estatuto do Hospício de Pedro II (Hospital Psiquiátrico Brasileiro) que falava sobre os meios de repressão que eram permitidos no Hospital para obrigar os alienados a obedecerem, tais como: privação de visitas, passeios; diminuição de alimentos; reclusão em solitárias; uso do colete de força. Em consonância, Lüchmann e Rodrigues (2007) vão dizer que o manicômio é essa instituição que exclui, controla e é violenta, seus muros ocultam a violência física e 33 simbólica através de uma roupagem protetora que retira a culpa da sociedade e descontextualiza os processos sócio-históricos da produção e reprodução da loucura. Como já apresentado no capítulo anterior, o movimento da Reforma Psiquiátrica vem na contramão da manutenção desse modelo e instituições. Ela vem no sentido de romper com a estrutura e a lógica imposta, trazendo novas propostas, dentre elas a desinstitucionalização. Assim, no sentido de desconstrução desse modelo Yasui (2010) afirma que: Se nos colocamos na perspectiva de uma ruptura com esta racionalidade que determina o lugar do cuidado da loucura como o do isolamento, da exclusão, da disciplinarização e, também, como dispositivo que se espraia pela sociedade como estratégia de controle, vigilância, domesticação, devemos estar atentos sobre as relações entre a produção de cuidado e o território no qual se inscreve o serviço. (p.2) Para Rotelli, Leonardis e Mauri (1990) a desinstitucionalização é a ruptura com um paradigma, é um trabalho de transformação prática do manicômio. Os autores asseveram que no processo de desconstrução do manicômio esta transformação citada é reproduzida através da eliminação dos meios de contenção, do reestabelecimento do indivíduo com o próprio corpo, da reconstrução do direito e da capacidade de os sujeitos utilizarem seus objetos pessoais e terem a capacidade da fala. Além disso deve abrir portas, produzir relações e espaços, permitir os sentimentos, devolver aos indivíduos os direitos civis, e promover a reinserção e o intercâmbio social. Ainda para os autores, a desinstitucionalização tem o objetivo de romper com a rigidez mecanicista da doença, removendo a ênfase do processo de cura e promovendo a ênfase na produção da vida, na utilização dos espaços coletivos, construindo uma nova prática, uma nova política. Portanto, a desinstitucionalização não se limita apenas a uma reorganização técnica de serviços e a novas terapias, mas a desinstitucionalização é um processo complexo de reconstruir saberes e práticas, de reposicionar o problema e estabelecer novas práticas e acima de tudo, é um processo ético-estético, que deve reconhecer que novas situações geram novos sujeitos, sujeitos de direito (AMARANTE, 2009). Dessarte, esse processo de desinstitucionalizar a loucura exige uma complexidade de fatores, sejam eles administrativos, financeiros, organizacionais, técnicos ou afetivos, subjetivos, ou seja, uma sucessão de demandas sociais articuladas com a produção da vida em sociedade. (ALVERGA, DIMENSTEIN, 2006). 34 Como pontuado por Amarante (1995b), não falamos de fechar essas instituições e abandonar os sujeitos ali internados e seus familiares, tampouco falamos em fechar leitos para reduzir os gastos indicando um ideal neoliberal ou mesmo um enxugamento do Estado. Para o autor fica claro que falar de desinstitucionalização não significa apenas desospitalizar, mas sim descontruir, romper e superar um modelo obsoleto que se centraliza na doença e não no sujeito. Desinstitucionalização significa tratar o sujeito em sua existência e em relação com suas condições concretas de vida. Isto significa não administrar- lhe apenas fármacos ou psicoterapias, mas construir possibilidades. O tratamento deixa de ser a exclusão em espaços de violência e mortificação para tornar-se criação de possibilidades concretas de sociabilidade a subjetividade. O doente, antes excluído do mundo dos direitos e da cidadania, deve tornar-se um sujeito, e não um objeto do saber psiquiátrico... (AMARANTE, 1995b, p.494) Essa lógica de desinstitucionalização surgiu com o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) que tinha como modelo as ideias das ações italianas, como colocado no capítulo anterior. É nesse movimento que irá surgir uma nova proposta de cuidado aos doentes mentais, um cuidado que substitua essa lógica manicomial e essas instituições. No item abaixo apresentaremos com mais detalhes esse novo modelo, com uma nova lógica e uma nova proposta de serviços em Saúde Mental. 2.2 MODELO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL O modelo de Atenção Psicossocial surge nesse contexto em que se pretende romper com a realidade asilar, com o modelo médico e com a cultura da violência e assim estabelecer uma nova prática e uma ruptura com os velhos hábitos. Atenção Psicossocial é, portanto, um novo paradigma que surge com a intenção de substituir o antigo modelo manicomial como citado acima, no contexto da Reforma Psiquiátrica. Segundo Costa-Rosa, Luzio e Yasui (2003), o modelo de atenção psicossocial é utilizado para designar novos dispositivos institucionais, entre eles os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS), que buscam outra lógica, que não a velha lógica do modo asilar; outra fundamentação teórico-técnica que não o modelo médico centralizado na doença; outra fundamentação ética, outro modelo que fuja dos paradigmas psiquiátricos. Costa-Rosa (2000) irá conceituar a atenção psicossocial de acordo com quatro parâmetros: 35  Concepção do “objeto” e dos meios de trabalho - valoriza a implicação subjetiva do sujeito; segundo Costa-Rosa é a definição de seu objeto, e dos (meios) teórico-técnicos de intervenção (o que inclui as formas da divisão do trabalho)  Formas de organização das relações intrainstitucionais - preconiza a horizontalização, com a distinção obrigatória entre as esferas do poder decisório, de origem política e as esferas do poder de coordenação de origem mais optativa;  A instituição no espaço geográfico, no imaginário e no simbólico - prioriza a integralidade das ações no território, instituição como espaço de interlocução, deslocamento do antigo interior da instituição para tomar o próprio território como referência; assim como o relacionamento com os usuários e a população.  A ética dos efeitos das práticas em saúde mental - as implicações éticas dos efeitos de suas práticas em termos jurídicos, teórico- técnicos e ideológicos. No mesmo sentido, ao repensar as práticas e as transformações desse cenário, Amarante (1999) apresenta quatro campos de transformação na Saúde Mental, para romper com o antigo modelo, sendo eles: teórico-assistencial, técnico-assistencial, jurídico-político e sociocultural. Costa-Rosa, Luzio e Yasui (2003), a partir desses campos irão visualizar a práxis da Atenção Psicossocial e defini-las:  No campo teórico-assistencial há a prevalência da desconstrução de conceitos e práticas apoiados na psiquiatria e na psicologia que mantêm suas visões apenas na doença mental e não no sujeito, é, portanto, o rompimento e reconstrução do modelo médico.  No campo técnico-assistencial há a prevalência do foco no sujeito e não na doença, em que é construída uma rede de serviços que esteja preparada para receber esses indivíduos, que seja um espaço de troca, onde se promova saúde e dê espaço e visibilidade ao sujeito.  No campo jurídico-político a luta e a transformação vêm no sentido de extinguir os manicômios substituindo-os por espaços abertos que possibilitem o exercício de direitos à cidadania, ao trabalho e à inclusão social. 36  No campo sociocultural é a construção de práticas sociais que promovem um processo de mudança da imagem da loucura e do louco, em que o louco seja visto como um cidadão de direitos. Os autores ao realizarem esses apontamentos nos evidenciam ainda mais que a Atenção Psicossocial é a transformação da antiga lógica manicomial-asilar para uma nova lógica com novos paradigmas. Amarante (2007) aponta que o modo de Atenção Psicossocial não pode ser visto como um modelo, mas sim como um processo que é social e complexo, portanto, que está em constante transformação e superação dos antigos paradigmas manicomiais. Luzio (2011, p.146) também defende que: Atenção Psicossocial não é apenas mudança da assistência psiquiátrica, mas um processo de transição paradigmática. Como um processo que aspira à construção de um outro paradigma, ela requer uma transformação estrutural em constante movimento, com a participação de diversos atores sociais [...]. Ainda para Luzio (2011), o desafio era não apenas desenvolver-se na humanização das relações entre indivíduos, sociedade e instituições psiquiátricas, era cuidar dos doentes mentais no território, produzir vida, promover cidadania e romper com os princípios e ideais do asilamento. Percebemos então, a necessidade de um constante movimento de transformação na estrutura do modelo que irá substituir o antigo modelo manicomial; e a constante participação de profissionais, usuários, familiares e uma política pública que apoie e forneça subsídios e referenciais para que essa transição seja realizada e assim favorecer a inserção social dos indivíduos. Portanto, a Política Nacional de Saúde Mental, apoiada na lei 10.216/01, busca consolidar um modelo de atenção aberto e de base comunitária, proporcionando aos usuários cuidados com base nos recursos que a comunidade oferece. Sobre esse novo modelo como apresentado pelo Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental: A reorientação do modelo assistencial deve estar pautada em uma concepção de saúde compreendida como processo e não como ausência de doença, na perspectiva de produção de qualidade de vida, enfatizando ações integrais e promocionais de saúde. A efetivação da Reforma Psiquiátrica requer agilidade no processo de superação dos hospitais psiquiátricos e a concomitante criação da rede substitutiva que garanta o cuidado, a inclusão social e a emancipação das pessoas portadoras de sofrimento psíquico. Nesta perspectiva é necessário que os municípios desenvolvam, de acordo com as 37 diretrizes acima expostas, políticas de saúde mental mediante a implementação de uma rede de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, territorializados e integrados à rede de saúde que realize ações de proteção, promoção, prevenção, assistência e recuperação em saúde mental. (CNSM, 2002, p.23) Esse modelo conta inicialmente com uma rede de serviços substitutivos variados, tais como: Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência e Cultura e os leitos de atenção integral (em hospitais gerais e nos CAPS III) (BRASIL, 2001b). Os serviços de atenção psicossocial devem ter uma estrutura bastante flexível para que não se tornem espaços burocratizados, repetitivos, pois tais atitudes representam que estariam deixando de lidar com as pessoas e sim com as doenças (AMARANTE, 2007, p.83). É importante que essa rede esteja integrada a rede básica de saúde, que esses serviços se estruturem de forma descentralizada, que se articulem e sejam intersetoriais se garantindo assim como serviços humanizados e de qualidade, serviços esses que vinculem, criem laços entre usuários, profissionais, familiares e a comunidade como um todo. Luzio (2011) ressalta que a Atenção Psicossocial tem progredido como um processo de construção de uma nova ordem institucional, assim é possível, segundo a autora, observar a ampliação de rede de atenção, a criação de serviços abertos e ações no território, promovendo uma diminuição das internações e dos leitos psiquiátricos, além de uma diminuição da exclusão social e a criação de uma cultura contra os manicômios, mesmo com esses avanços é um novo modelo que enfrenta muitos problemas e desafios. Como já citado nesse texto a implantação desse novo modelo de serviços de atenção psicossocial não é apenas a desconstrução e reestruturação de algo já existente. A implantação implica em criar novas possibilidades, novas práticas e novos saberes. Para que isso aconteça é necessário o enfrentamento de muitos desafios e é importante que as Políticas Públicas em Saúde Mental sejam sólidas e fortalecidas. 38 3. O CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS) Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres. (Rosa Luxemburgo) Iremos dedicar este capítulo ao CAPS, com a intenção de conhecer e entender a Política Pública que propõe esse serviço como um serviço substitutivo aos Hospitais Psiquiátricos, através disso apresentaremos o que são os CAPS, como estão organizados e a proposta de funcionamento desse serviço. Ainda iremos apresentar e discutir algumas pesquisas que se dedicaram a avaliar esse serviço em suas diversas instâncias e através delas teremos um panorama geral de como ele foi proposto pela Política Pública e como ele vem sendo realizado. 3.1 CONTEXTUALIZANDO O CAPS Em dezembro de 2011 foi publicada a portaria n°3.088 que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidade decorrente do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do SUS, caracterizando a RAPS em relação as diretrizes, objetivos, funcionamento, território e outras características. Os objetivos a serem alcançados com a criação dessa rede são: ampliar o acesso à atenção psicossocial da população em geral; promover o acesso das pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e suas famílias aos pontos de atenção; e garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências (BRASIL, 2011). A RAPS, portanto, é uma rede que deve promover a atenção psicossocial, e deve ser articulada para a melhor promoção da saúde do usuário de Saúde Mental. Para entendermos essa articulação é importante conhecermos os espaços que compõem essa rede: atenção básica em saúde, formada pelos seguintes pontos de atenção: Unidade Básica de Saúde; Equipe de atenção básica para populações específicas (Equipe de Consultório na Rua e Equipe de apoio aos serviços do componente Atenção Residencial de Caráter Transitório), Centros de Convivência; Atenção psicossocial especializada: Centros de Atenção Psicossocial, nas suas diferentes modalidades; Atenção de urgência e emergência (SAMU, Sala de Estabilização, UPA 24 horas, portas hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro, Unidades Básicas de Saúde, entre outros); Atenção residencial de caráter transitório 39 (Unidade de Acolhimento, Serviços de Atenção em Regime Residencial); Atenção hospitalar; Estratégias de desinstitucionalização (Serviços Residenciais Terapêuticos; Reabilitação Psicossocial). (BRASIL, 2011) Esses dispositivos estão orientados pela lógica de um novo modelo de cuidado em saúde mental, articulados em redes e seguindo a lógica da territorialização e tornando-se independente de qualquer estrutura hospitalar psiquiátrica. Temos como exemplo desses serviços os CAPS, já citados acima, que serão aqui definidos mais detalhadamente por ser o local onde a pesquisa está sendo realizada. Para isso precisamos conhecer e entender as políticas públicas que criaram e consolidaram esse serviço. Assim, em janeiro de 1992 a Portaria n° 224 da Secretaria Nacional de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde, estabelece algumas diretrizes e normas, dentre elas especificando e definindo os Núcleos/Centros de Atenção Psicossocial (NAPS/CAPS) como unidades de saúde locais e/ou regionalizadas que devem oferecer atendimento de cuidados intermediários, ou seja, atenção aos doentes substitutiva ao regime ambulatorial e a internação hospitalar. Além disso, naquele momento, esses dispositivos deviam ser a porta de entrada da rede de serviços para as ações relacionadas à saúde mental, assim como deviam atender também pacientes referenciados de outros serviços de saúde, dos serviços de urgência psiquiátrica ou egressos de internação hospitalar. A portaria afirma, ainda, que esses serviços deviam estar integrados a uma rede descentralizada e hierarquizada de cuidados em saúde mental. (BRASIL, 1992) Dez anos depois surge a portaria n.º 336/02 complementando a Portaria n° 224, instituindo os CAPS como serviços substitutivos ao Hospital Psiquiátrico (BRASIL, 2002). Nos documentos oficiais da política pública em Saúde Mental: O objetivo dos CAPS é oferecer atendimento à população de sua área de abrangência, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. É um serviço de atendimento de saúde mental criado para ser substitutivo às internações em hospitais psiquiátricos. (BRASIL, 2004, p. 13) No documento publicado em 2004 com o título de “Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial” serão expostos desde a estrutura física de um CAPS assim como seus objetivos, público alvo, profissionais envolvidos, tipo de atendimentos realizados, relação com usuários e familiares e outras informações que nos norteiam e nos proporcionam um maior e um amplo entendimento do serviço. A partir desse documento entendemos que os 40 CAPS são, portanto, dispositivos que devem estar vinculados a rede de serviços de saúde e precisam sempre de outras redes sociais, de outros intersetores, para auxiliar na inclusão daqueles que excluídos da sociedade por transtornos mentais. (BRASIL, 2004). Como objetivo principal tem-se o atendimento à população de sua área de abrangência, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários. A reinserção é proposta através do acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Neste sentido os CAPS visam: • oferecer atendimentos em regime de atenção diária; • coordenar os projetos terapêuticos; • promover a inserção social dos usuários através de ações intersetoriais, como: educação, trabalho, esporte, cultura e lazer, criando estratégias em conjunto para o enfrentamento dos problemas; • ser responsável por organizar a rede de serviços de saúde mental de seu território; • oferecer apoio e supervisionar a atenção à saúde mental na rede básica, PSF (Programa de Saúde da Família), PACS (Programa de Agentes Comunitários de Saúde); • regular a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental de sua área; • coordenar junto com o gestor local as atividades de supervisão de unidades hospitalares psiquiátricas que atuem no seu território; • manter atualizada a listagem dos pacientes de sua região que utilizam medicamentos para a saúde mental. (BRASIL, 2004) Segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2002), existem cinco tipos de CAPS, cada um com atendimentos diferenciados divididos em: adultos, crianças/adolescentes e usuários de álcool/drogas, além disso, a implantação de um CAPS em um município depende do contingente populacional. Todas as estruturas de CAPS (CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi e CAPSad) são compostas por equipes multiprofissionais com olhar interdisciplinar, com presença obrigatória de médico (com formação em saúde mental ou psiquiatria), profissionais de nível superior entre as seguintes categorias profissionais: psicólogo, assistente social, enfermeiro, terapeuta ocupacional, pedagogo ou outro profissional necessário ao projeto terapêutico singular (de três a cinco profissionais), aos quais se somam outros profissionais do campo da saúde. (BRASIL, 2002). 41 Na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a portaria 3088 (BRASIL, 2011), artigo 7, parágrafo 4, orienta que os Centros de Atenção Psicossocial fazem parte da atenção psicossocial especializada e estão organizados nas seguintes modalidades:  CAPS I: atende pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e também com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas de todas as faixas etárias; indicado para Municípios com população acima de vinte mil habitantes;  CAPS II: atende pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, podendo também atender pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, conforme a organização da rede de saúde local, indicado para Municípios com população acima de setenta mil habitantes;  CAPS III: atende pessoas com transtornos mentais graves e persistentes. Proporciona serviços de atenção contínua, com funcionamento vinte e quatro horas, incluindo feriados e finais de semana, ofertando retaguarda clínica e acolhimento noturno a outros serviços de saúde mental, inclusive CAPS Ad, indicado para Municípios ou regiões com população acima de duzentos mil habitantes;  CAPS II AD: atende adultos ou crianças e adolescentes, considerando as normativas do Estatuto da Criança e do Adolescente, com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. Serviço de saúde mental aberto e de caráter comunitário, indicado para Municípios ou regiões com população acima de setenta mil habitantes;  CAPS AD III: atende adultos ou crianças e adolescentes, considerando as normativas do Estatuto da Criança e do Adolescente, com necessidades de cuidados clínicos contínuos. Serviço com no máximo doze leitos para observação e monitoramento, de funcionamento 24 horas, incluindo feriados e finais de semana; indicado para Municípios ou regiões com população acima de duzentos mil habitantes; e  CAPS i: atende crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes e os que fazem uso de crack, álcool e outras drogas. Serviço aberto e de caráter comunitário indicado para municípios ou regiões com população acima de cento e cinquenta mil habitantes. 42 Em relação aos cuidados aos usuários do CAPS, cada um deve ter um projeto terapêutico singular (PTS) que respeite a sua particularidade, que personalize o atendimento de cada pessoa na unidade e fora dela e proponha atividades durante a permanência diária no serviço, segundo suas necessidades. No projeto terapêutico singular dos usuários constará também a conduta a qual atendimento ele irá participar segundo o que o próprio CAPS poderá oferecer, conforme as determinações da Portaria GM 336/02, como: • Atendimento Intensivo: refere-se ao atendimento diário, ofertado quando a pessoa se encontra com grave sofrimento psíquico, em situação de crise ou dificuldades intensas no convívio social e familiar, precisando de atenção contínua. • Atendimento Semi-Intensivo: nessa modalidade de atendimento, o usuário pode ser atendido até 12 dias no mês, é oferecida quando o sofrimento e a desestruturação psíquica do usuário diminuíram, com significativa melhora de relacionamento, mas a pessoa ainda necessita de atenção direta da equipe para se estruturar e recuperar sua autonomia. • Atendimento Não-Intensivo: oferecido quando a pessoa não precisa de suporte contínuo da equipe para viver em seu território e realizar suas atividades na família e/ou no trabalho. (BRASIL, 2004). Ainda nesse documento, fica esclarecido que algumas dessas atividades são feitas em grupo, outras são individuais, outras destinadas às famílias, outras são comunitárias. Quando uma pessoa é atendida em um CAPS, ela tem acesso a vários recursos terapêuticos: • Atendimento individual: prescrição de medicamentos, psicoterapia, orientação; • Atendimento em grupo: oficinas terapêuticas, oficinas expressivas, oficinas geradoras de renda, oficinas de alfabetização, oficinas culturais, grupos terapêuticos, atividades esportivas, atividades de suporte social, grupos de leitura e debate, grupos de confecção de jornal; •Atendimento para a família: atendimento nuclear e a grupo de familiares, atendimento individualizado a familiares, visitas domiciliares, atividades de ensino, atividades de lazer com familiares; • Atividades comunitárias: atividades desenvolvidas em conjunto com associações de bairro e outras instituições existentes na comunidade, que têm como objetivo as trocas sociais, a integração do serviço e do usuário com a família, a comunidade e a sociedade em geral. Essas atividades podem ser: festas comunitárias, caminhadas com grupos da comunidade, participação em eventos e grupos dos centros comunitários; • Assembleias ou Reuniões de Organização do Serviço: a Assembleia é um instrumento importante para o efetivo funcionamento dos CAPS como um lugar de 43 convivência. É uma atividade, preferencialmente semanal, que reúne técnicos, usuários, familiares e outros convidados, que juntos discutem, avaliam e propõem encaminhamentos para o serviço. (BRASIL, 2004) Para Luzio (2011) é preciso entender como um CAPS se organiza para compreender seus objetivos e finalidades, ou seja, esse serviço deve criar espaços coletivos concretos com a intenção de que nesses espaços circulem falas e escutas, que promova a autonomia, que incentive a participação da família e da comunidade. Yasui (2006, p.107), define que: o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), o principal instrumento de implementação da política nacional de saúde mental, deve ser entendido como uma estratégia de transformação da assistência que se concretiza na organização de uma ampla rede de cuidados em saúde mental. Neste sentido, não se limita ou se esgota na implantação de um serviço. O CAPS é meio, é caminho, não fim. Assim, estar em tratamento no CAPS não significa que o usuário tem que ficar a maior parte do tempo dentro do CAPS, as atividades podem ser desenvolvidas fora do serviço, na comunidade, no trabalho e na vida social, possibilitando uma melhor reabilitação psicossocial e reinserção social. (BRASIL, 2004). A partir disso, Luzio (2011, p. 153), também em consonância com Yasui, reforça a importância do CAPS na organização de uma rede de cuidado em saúde mental. Para a autora no que se refere às finalidades dos CAPS, em todas as suas modalidades, devem articular todas as frentes de cuidados em Saúde Mental, desde a atenção básica em saúde como na Estratégia de Saúde da Família (ESF), na rede de ambulatórios, nos hospitais, assim como nas atividades de suporte social, como trabalho protegido, lazer, residência terapêutica e atendimento das questões previdenciárias e de outros direitos. Assim como afirma a portaria da RAPS (BRASIL, 2011), as atividades no CAPS devem ser realizadas prioritariamente em espaços coletivos e de forma articulada com os outros pontos de atenção da rede de saúde e das demais redes. Segundo Amarante (2007), o objetivo é que existam serviços de atenção psicossocial que oportunizem acolhimento, e que todas as pessoas envolvidas com o usuário que procura o serviço possam ser ouvidas, expressando suas dificuldades, medos e expectativas. É essencial que se estabeleça vínculos afetivos e profissionais com essas pessoas, que elas se sintam realmente ouvidas e cuidadas. Nos novos serviços substitutivos de saúde mental “o objetivo era formar equipes multiprofissionais comprometidas com as novas 44 tarefas desse modelo assistencial que se apresentava enquanto crítica ao asilo e como solução para os problemas de precariedades da assistência psiquiátrica. ” (DIMENSTEIN, 1998, p.6). Debatemos com maior ênfase aqui apenas o CAPS, pois a intenção inicial é entender o funcionamento desse serviço substitutivo, assim como a atuação dos profissionais da saúde neste e, principalmente, a permanência ou não de práticas manicomiais nas ações dos profissionais desses serviços. Tais práticas serão aqui entendidas conforme expõe Basaglia (2008, p.27): [...] quando o serviço se coloca como simples espaço ambulatorial, distribuidor de medicação ou de psicoterapia por hora; quando se faz o “jogo da empurra” entre as competências, ignorando as necessidades do doente e as dificuldades das famílias; quando se mistifica com uma simples mudança de etiqueta, a permanência dos velhos serviços e da velha lógica institucional. Ao questionar as práticas dos profissionais e sua atuação nos serviços substitutivos é importante ter claro que, tal como Dimenstein afirmou nos anos 1990, ainda hoje: Os cursos de graduação, por sua vez, desempenham um papel fundamental na determinação de modelos de atuação extremamente limitados e inadequados à realidade sanitária do país [...]. O contexto atual dos serviços públicos de saúde requer novas habilidades dos profissionais e a universidade continua formando profissionais despreparados para atuar nesse campo. Os cursos atendem apenas o ideal de profissional liberal presente entre os alunos e aos interesses corporativos dos profissionais. Os currículos apresentam-se muitas vezes como uma colagem de disciplinas estanques e descontextualizadas [...]. (DIMENSTEIN, 1998, p.12) Destarte, os profissionais da área da saúde, em geral com uma formação acrítica e ahistórica, acabam por exercer, muitas vezes sem se dar conta, o papel de vigilantes da ordem, e por acreditarem na neutralidade e objetividade da ciência moderna, não sabem lidar com a vida, quando se deparam com ela (MOYSÉS, COLLARES, 2002). Vivenciamos um processo contraditório, em que há algumas instituições que avançam em relação as discussões contra hegemônicas, outras apresentam uma formação acadêmica em que não se discute as políticas públicas e os serviços vigentes, tendo como consequência uma formação inconsistente e cada vez mais empobrecida do ponto de vista crítico. Tudo isso, pois enfrentamos momentos de mercantilização da educação, visto que a intenção é o aumento do lucro com a criação dos cursos superiores e a manutenção da ordem estabelecida. Para iniciar a mudança deste quadro, espera-se na formação “um profissionalismo que não seja mais caricatural e simplificado, mas 45 um profissionalismo completo, que consiga ser um elemento de transformação cultural da sociedade” (ROTELLI, 1992, p. 74). Orientados por essas preocupações e convencidos de que é importante conhecer o cenário desse serviço substitutivo de saúde mental propomos a discussão da atuação dos profissionais com a intenção de pesquisar se o serviço que surgiu para substituir a velha lógica manicomial por um novo modelo de atenção psicossocial, garante o fim das práticas manicomiais, os avanços e retrocessos nesse proc