UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro A CARTOGRAFIA NA ERA DA CIBERCULTURA: MAPEANDO OUTRAS GEOGRAFIAS NO CIBERESPAÇO Tânia Seneme do Canto Orientadora: Profa. Dra. Rosângela Doin de Almeida Financiamento: CNPq Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia – Área de Concentração Organização do Espaço para obtenção do Título de Mestre em Geografia. Rio Claro (SP) 2010 Comissão Examinadora _________________________________________ Profa. Dra. Rosângela Doin de Almeida (orientadora) _________________________________________ Prof. Dr. Alfredo Pereira de Queiroz Filho (FFLCH/USP/São Paulo-SP) _________________________________________ Prof. Dr. Belarmino Cesar Guimarães da Costa (FC/UNIMEP/Piracicaba-SP) _________________________________________ Tânia Seneme do Canto (aluna) Aprovada Rio Claro, 09 de abril de 2010. À minha querida amiga Lucilene. A G R A D E C I M E N T O S Agradeço à minha família, pelo amor e amizade durante toda minha vida e, pelo estímulo em todos os meus anos de estudo; Ao meu companheiro Saul, por compartilhar comigo os momentos mais felizes e difíceis da vida; À Professora Rosângela Doin de Almeida, por dividir seu conhecimento e me orientar no rumo da minha carreira; Ao grupo de estudos do Laboratório de Pesquisa em Ensino de Geografia e Cartografia, pelas discussões que tanto me apoiaram nesta pesquisa; Ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, por proporcionar um ambiente agradável para a realização deste trabalho; Ao Prof. Dr. Alfredo Pereira de Queiroz Filho, Prof. Dr. Belarmino Cesar Guimarães da Costa e Prof. Dr. Marcelo de Carvalho Borba, por dialogarem com os meus pensamentos; Aos professores do curso de Geografia da Unesp, por participarem da minha formação profissional e pessoal; Aos funcionários da Unesp, por facilitar esta jornada; Ao Daniel Perosio, pela contribuição de suas palavras; Aos amigos que fiz dentro desta Universidade; Aos amigos que tenho fora dela... E a todos aqueles que de algum modo participaram da história desta pesquisa e, da minha vida. Em suma, essas narrativas conferem a cada época o seu mundo, põem-na no mundo, sim, tal como uma mãe põe uma criança no mundo. Michel Serres, 1994. R E S U M O A emergência das novas tecnologias de comunicação e informação tem transformado profundamente o modo de produzir mapas. As recentes ferramentas de mapeamento online abriram o mundo dos mapas para as pessoas em geral, permitindo que não cartógrafos criassem, individualmente ou colaborativamente, suas próprias representações espaciais. A presente pesquisa busca investigar as mudanças culturais introduzidas pelas tecnologias do ciberespaço nas práticas de mapeamento e nas representações criadas por elas. Desse modo, iremos apresentar uma discussão teórica sobre os caminhos que a cartografia contemporânea vem tomando nesse novo contexto técnico-cultural. Palavras-chave: representação do espaço, mapeamentos, internet, linguagem hipermídia, cultura digital. A B S T R A C T Title: Cartography in the age of cyberculture: mapping other geographies in cyberspace. The emergence of new technologies of communication and information has deeply transformed the way of making maps. The recently online mapping tools opened the world of maps to people in general, allowing non-cartographers to create, individually or collaboratively, their own spatial representation. This work searches to investigate the cultural changes introduced by cyberspace technologies in the practices of mapping and in the representations resulted from them. Then, we will present a theoretical discussion about the paths that contemporary cartography has been taking in this new technical-cultural context. Keywords: representation of space, mappings, internet, hypermedia language, digital culture. S U M Á R I O I. Introdução ....................................................................................................... 10 II. Caminhos Investigativos ................................................................................. 12 III. Mapeando a Cartografia Ocidental Moderna .............................................. 15 3.1 Do espaço concebido pela cartografia ........................................................ 17 3.2 Da prática científica de mapeamento .......................................................... 28 IV. Do Surgimento de um Novo Espaço para a Cartografia ............................. 41 4.1 O ciberespaço .............................................................................................. 47 4.2 A linguagem da cibercultura ....................................................................... 61 V. Localizando uma Nova Cultura de Mapeamento ........................................ 76 5.1 A virtualização do mapa ............................................................................. 80 5.1.1 Mapeamentos coletores ............................................................. 86 5.1.2 Mapeamentos colaborativos ..................................................... 90 5.1.3 Mapeamentos pessoais .............................................................. 96 5.2 Post Urbano: escrevendo um lugar subjetivo na cidade ............................. 102 VI. Considerações Finais ...................................................................................... 106 VII. Referências ...................................................................................................... 108 VIII. Anexos .............................................................................................................. 112 8.1 Transcrição da entrevista com Daniel Perosio ............................................ 113 10 I I N T R O D U Ç Ã O No livro “O descobrimento da Terra”, Dreyer-Eimbcke (1992) diz que com o surgimento da cartografia o mundo ficou, paradoxalmente, maior e menor para o homem. As famosas cartas de navegação (des) orientaram a rota dos primeiros marinheiros e os levaram a encontrar terras que não conheciam, ampliando, assim, os horizontes de seu mundo. Contudo, por meio dos mapas, todo o planeta “descoberto” pôde ser transportado a um único ponto do globo e ser percorrido pelos pequenos dedos das mãos humanas. Hoje, as mais recentes tecnologias de comunicação e informação acabam desempenhando esse mesmo papel, pois, alteram nossa percepção das distâncias ao permitir que em questão de segundos, troquemos os mais diferentes tipos de mensagens com pessoas de todo o planeta. No entanto, ao fazer isso, esses novos sistemas técnicos nos colocam também em contato com uma multiplicidade de formas de pensar e realizar, tornando nosso mundo repleto de descobrimentos ainda por serem feitos. Nesse novo contexto, uma cartografia também se faz presente, mas com outros contornos: os contornos do ciberespaço. Através do surgimento de programas de mapeamento online, esse novo espaço de comunicação, que nos permite atravessar as fronteiras e limites outrora mapeados pela cartografia, tem gerado novos mapas do mundo. Imersos na Web, tais programas permitem que qualquer pessoa com acesso a Internet construa suas próprias representações espaciais. Por meio de ferramentas e tecnologias que oferecem aos usuários diferentes formas de apropriação de mapas base e imagens de satélite, esses aplicativos inauguraram práticas de mapeamento que parecem estar transformando profundamente o mundo da cartografia. 11 Usuários com conhecimentos básicos em informática podem agora adicionar fotos, textos, vídeos, linhas, polígonos, etc. aos produtos cartográficos originais dos programas, construindo mapas com conteúdos produzidos por eles mesmos, individualmente ou em colaboração. Já os usuários mais avançados, que compreendem um pouco da linguagem de programação, podem escrever sobre os códigos desses aplicativos e criar novas ferramentas e formas de mapeamento, construindo, desta vez, representações bem inovadoras. As possibilidades são muitas e todas elas são marcadas pelos modos de interação e combinação oferecidos pelo ciberespaço. Assim, a cultura constituída a partir da linguagem digital e dos processos de comunicação promovidos pelas redes, a saber, a cibercultura, passa a conquistar sua própria forma de representar o espaço. Diante disso, o presente trabalho tem por objetivo compreender as mudanças que as novas tecnologias, especialmente a Internet, têm produzido no mundo dos mapas. Através de uma perspectiva cultural, buscamos entender como as principais transformações provocadas pelo advento do ciberespaço afetam a cartografia e o espaço representado por ela. Para tanto, trataremos nesta dissertação das questões-chave que foram levantadas sobre a problemática ao longo da pesquisa de mestrado. 12 I I C A M I N H O S I N V E S T I G A T I V O S Esta pesquisa nasceu da vontade de descobrir como a emergência das novas tecnologias de comunicação e informação está mudando a cartografia e o espaço representado por ela. Desse modo, partimos do princípio de que o fenômeno técnico recente incide sobre a forma de produção, transmissão e acesso do conhecimento, alterando-as profundamente. Sabemos que em grande medida o desenvolvimento da cartografia no mundo ocidental se deve aos avanços conquistados no campo da tecnologia e da ciência, entretanto, o nosso objetivo não era entender os efeitos do surgimento de tecnologias digitais nesse contexto cultural. Buscávamos sim compreender como as transformações no modo de comunicação e interação da sociedade contemporânea vêm refletindo sobre as representações cartográficas. Desse modo, elegemos o ciberespaço como a nossa área de estudo e passamos a navegar em diferentes direções por esse universo repleto de caminhos tortuosos. Nossos percursos nos levaram a diversos lugares virtuais, através dos quais conhecemos uma infinidade de mapeamentos que pareciam nos mostrar os rumos que a cartografia vinha tomando nesse novo mundo. Ao explorar esses projetos de mapeamento percebemos que a maioria deles combinava os mapas do Google Maps com os conteúdos criados pelos próprios internautas. Tentamos então saber, tecnicamente, como isso era possível. Foi daí que descobrimos que o Google havia desenvolvido uma nova tecnologia que permitia diversas formas de apropriação de seus mapas e imagens de satélite pelos usuários. Com isso, a empresa possibilitou que não- cartógrafos mapeassem o mundo de diferentes maneiras diretamente no ciberespaço, adquirindo, assim, todas as suas qualidades. 13 Esse fenômeno nos indicou a primeira mudança que as novas tecnologias poderiam estar produzindo no campo da cartografia. Os usuários haviam se tornado os próprios criadores de seus mapas e, desse modo, representavam uma diversidade imensa de geografias e relações espaciais que não se encontra na agenda dos cartógrafos profissionais. Contudo, para poder olhar para esses novos mapas e compreender o seu significado, tivemos que aprofundar nossos estudos em dois campos teóricos: o da comunicação e o da própria cartografia. Assim, realizamos diversas leituras que em nosso entender podiam ajudar a estabelecer as diferenças culturais entre a cartografia tradicional e aquela construída no ambiente do ciberespaço. Com isso, nesse segundo momento da pesquisa, procuramos compreender como a cartografia se constituiu culturalmente e como as características das novas tecnologias de comunicação transformam nossa relação com o mundo. Através de autores fundamentais como J. B. Harley, John Pickles, Martin Dodge e Rob Kitchin, pudemos descobrir as diversas faces que os mapas possuem em nossa sociedade. Enquanto, no campo da comunicação, autores como Pierre Lévy, Lúcia Santaella, André Lemos, Diana Domingues e Arlindo Machado nos ajudaram a explorar o significado de conceitos como ciberespaço, digitalização, hipermídia, cibercultura, virtualidade, interatividade e convergência das mídias. Através dessas leituras e da pesquisa de campo que realizamos na Web percebemos que as características do ciberespaço afetam os mapas de diferentes maneiras. Tanto o seu modo de construção como os seus conteúdos e usos adquirem novos sentidos nos projetos de mapeamento virtuais. No entanto, um aspecto que nos chamou bastante atenção diz respeito à possibilidade de construir representações abertas, constantemente recriadas através das relações de identidade que estabelecemos com o espaço. Diante disso, resolvemos aprofundar o estudo de um projeto de mapeamento em específico, realizando numa terceira fase da investigação uma entrevista com o seu principal criador. O resultado do encontro com Daniel Perosio, responsável pelo projeto Post Urbano, é apresentado no corpo desta dissertação por meio de pequenos recortes que conversam, dialogam com o nosso texto em diversos momentos, buscando, assim, expressar algumas relações de sentido que encontramos entre a sua experiência e a nossa interpretação do problema de pesquisa. O trabalho como um todo está estruturado em três partes principais. No primeiro capítulo realizamos uma discussão sobre a cartografia a partir das leituras citadas acima. Na segunda parte, apresentamos as transformações sociais e culturais produzidas pelo surgimento do ciberespaço no mundo atual. E, no terceiro e último capítulo, buscamos mostrar, através de 14 diversos projetos, como essas mudanças têm contribuído na construção de uma nova cultura de mapeamento. 15 I I I M A P E A N D O A C A R T O G R A F I A O C I D E N T A L M O D E R N A 1 Mapa e cultura são conceitos que se tocam profundamente quando o ato de mapear é compreendido como um processo social de construção de mundo. Nesse paradigma, elaborado pelo árduo trabalho dos historiadores críticos da cartografia, o mapa-múndi de Mercator não é a única imagem possível do planeta, mas apenas mais uma entre tantas já produzidas ao longo do tempo e do espaço e entre outras que ainda estão por vir. Sendo assim, os mapas podem ter várias cores e formas, o que existe em comum entre eles é que sempre refletem a cultura daqueles que lhes deram origem. Um dos maiores teóricos desse campo de estudo tentou explicar essa relação profícua definindo o mapa como um texto. Ao aplicar tal conceito literário a uma forma de representação gráfica, Harley (2005) quis mostrar que os mapas, assim como outras obras humanas, são produto tanto do trabalho intelectual de determinados indivíduos, como da formação cultural e técnica das sociedades em que estão inseridos. Em sua concepção, é a partir dessa leitura da cartografia que “comenzamos a saber que los hechos cartográficos son solo hechos dentro de cierta perspective cultural. Empezamos a comprender que los mapas, al igual que el arte, lejos de ser una ‘ventana abierta al mundo’ no son más que ‘una forma humana particular [...] de ver el mundo’” (HARLEY, 2005, p. 188). 1 Denominamos de cartografia moderna a forma de mapeamento predominante da sociedade contemporânea, pois foi na Idade Moderna que os seus pressupostos foram sendo delineados através do desenvolvimento do pensamento científico da época. Assim, é importante ressaltar que quando utilizamos o termo cartografia moderna no texto estamos nos referindo ao conjunto de mapas e práticas que surgiu como tendência na Idade Moderna (séculos XVII e XVIII) e se consolidou como predominante nos séculos posteriores (XIX e XX). 16 [Las] pinturas de Velázquez o de Caravaggio, son super potentes, el tipo de hizo pintado, un maestro, era lo que tenía el tipo en ese momento, Caravaggio era un monstruo de artista, la gente usa lo que tiene en el momento, es el momento. Post Urbano fue uma idea que, de ese tipo de intervenciones salieron muchas, acciones de ese tipo, políticas, porque, bueno, es la época, vos me decías que venías trabajando en un proyecto similar con los mapas, bueno, es natural del tiempo. Daniel Perosio, Post Urbano, 2009. (grifo nosso). São tantos os conhecimentos que a humanidade conseguiu acumular através do desenvolvimento cartográfico que fica difícil pensar que aquelas primeiras imagens da Terra com as quais tivemos contato na escola, provavelmente folhando um Atlas geográfico, não eram a realidade e sim uma maneira de concebê-la. Desse modo, a perspectiva sociocultural da cartografia nos ensina que esses textos gráficos não representam um mundo previamente dado, eles constituem apenas uma das diversas relações possíveis entre os seres humanos e o espaço. Diante disso, iremos abordar nesta primeira parte da dissertação em que contexto a cultura de mapeamento predominante da sociedade contemporânea surgiu e quais suas características. A cartografia de que falamos tem origem na concepção de espaço desenvolvida na Idade Moderna, a partir dos desdobramentos da arte renascentista no pensamento científico dos séculos XVII e XVIII (Revolução Científica e Iluminismo). Como veremos, os homens dessa época, influenciados pelo movimento da perspectiva linear na pintura, iniciaram uma relação material com o mundo a sua volta, passando a habitar um espaço de domínio físico que foi tomando força ao longo da história e se tornou a visão predominante do campo da ciência e da cartografia. Nesse ambiente cultural, os cartógrafos produziram uma forma específica de representar o espaço objetivo e verificável da nova realidade científica que até hoje perdura. Criaram-se regras e técnicas de mapeamento que foram aperfeiçoadas nos séculos XIX e XX e, ainda são atualmente, a fim de se construir representações cada vez mais fiéis à superfície terrestre. 17 3.1 Do espaço concebido pela cartografia Na Idade Média, a cartografia apreendia, através de suas imagens, um mundo onde o Céu e a Terra conviviam juntos. Os famosos mapas TO, ou de roda, representavam uma realidade composta tanto pelo espaço físico do corpo como pelo espaço imaterial da alma. Seguindo pressupostos bíblicos, a cartografia medieval colocou em segundo plano a preocupação com as dimensões reais da superfície terrestre e priorizou a visão cristã do mundo. Nessa perspectiva, os mapas eram orientados para leste, a Terra Santa se localizava no centro do planeta em proporções muito maiores que as reais e, ainda, o paraíso (Éden) também era considerado conteúdo geográfico e situava-se no topo do mundo. Segundo Raisz (1953), o cartógrafo do medievo, assim como grande parte dos homens dessa Era, estava tão mergulhado no sentido cristão do sobrenatural que construiu mapas com profundos valores simbólicos. A própria feição do planeta expressa pela forma da letra T – resultado da subdivisão bíblica da superfície terrestre em três continentes por Noé – e da letra O – representação da Terra em forma de disco – já estava carregada de significado religioso. A imagem do mundo simétrica concebida pela inscrição de T em O fazia alusão a uma harmonia divina e ao símbolo da cruz. Figura 1: Mapa do mundo medieval, exemplo da inscrição de T em O. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Cartography Para Dreyer-Eimbcke (1992), os mapas-múndi de Ebstorf (1236) e Hereford (1300) captam como que por uma lente a concepção de mundo da Idade Média. Enormes e imponentes, ambos trazem a figura de Jesus Cristo. No mapa de Hereford, Jesus aparece na parte superior externa do disco, encenando o julgamento final; no de Ebstorf, toda a Terra é representada por seu corpo, com seus pés, mãos e cabeça sobressaindo aos limites do círculo. http://en.wikipedia.org/wiki/Cartography 18 As duas representações estão repletas de referências a um mundo onde o espaço físico habitado pelo ser humano também refletia sua existência espiritual. Assim, como colocou Wertheim (2001, p. 24): [...] a visão medieval cristã do mundo [...] era uma cosmologia genuinamente dualista, que consistia tanto de uma ordem física quanto de uma ordem metafísica. Um elemento decisivo dessa cosmologia era que as duas ordens se espelhavam uma à outra e, em ambas, a humanidade estava no centro. Outro aspecto notável da cartografia medieval e destacado por Katuta (2008) refere-se ao seu caráter, ou, fundamento narrativo. Segundo ela, alguns autores consideram que em certa medida os mapas-múndi medievais devem ser vistos como um conto ilustrado. Assim, em contrapartida aos mapas modernos, sistematicamente descritivos, os mapas TO continham um enredo, contava uma história em que o ser humano de algum modo era representado. As várias folhas de pergaminho que compõem a obra do mosteiro de Ebstorf demonstram bem essa característica, pois seu criador, Gervásio de Tilbury, tendo como fonte o texto bíblico, construiu uma narrativa cartográfica que começa na criação do universo, passa pelo surgimento dos animais, o pecado original, o nascimento dos primeiros homens e termina com o dilúvio (RIBEIRO, 2004). Figura 2: Mapa-múndi de Ebstorf, criado em 1236 por Gervásio de Tilbury. Fonte: http://www.flickr.com/photos/28433765@N07/3381198407/ Na cultura científica de mapeamento, esse espaço organizado por Deus não tem vez. O que é considerado passível de ser mapeado é a realidade e, esta, na visão da ciência, abarca apenas o espaço físico. O espaço da alma, aquele onde se situa nosso espírito, não é matéria de representação para os mapas, pois, não pode ser geometricamente medido. Assim, o mundo http://www.flickr.com/photos/28433765@N07/3381198407/ 19 que escapa às tecnologias de visão e à lógica espacial cartesiana é concebido meramente como romance e imaginação. A cartografia contemporânea foi predominantemente delineada por essa perspectiva de mundo e de ciência. A idéia que grande parte da humanidade tem dos mapas hoje se apóia fortemente nesses pressupostos de realidade objetiva e espaço calculável desenvolvidos na Idade Moderna. Como apropriadamente colocou Wertheim (2001, p. 53) “simplesmente não somos capazes de conceber um lugar como ‘real’ a menos que tenha uma localização matematicamente precisa no espaço físico”. Do mesmo modo, só conseguimos conceber como mapa uma imagem que demonstre essa localização exata. Nesse contexto, a atenção dos cartógrafos tem historicamente estado voltada à precisão com que são capazes de produzir cartas e mapas. Na busca por produtos cada vez mais fiéis à realidade e úteis às demandas sociais de cada época, eles tiveram que aprender a lidar com a forma da Terra, para prover os navegadores com direções e distâncias sempre mais confiáveis e, desenvolver técnicas de levantamento topográfico acuradas, para delimitar fronteiras nacionais e limites das propriedades. Mais tarde ainda, as I e II Guerras Mundiais serviram como ímpeto para o desenvolvimento da aerofotogrametria, já que estas eram capazes de proporcionar o reconhecimento detalhado do território inimigo. Nas últimas décadas, mudanças econômicas, sociais e culturais ocorreram e as formas de uso dos mapas se estenderam a diversos domínios da vida. Contudo, a preocupação do cartógrafo continuou centrada no poder da cartografia em prover imagens do mundo precisas e eficientes àqueles que as usam. Hoje, a capacidade de alta resolução dos sensores remotos, o acesso distribuído dos Sistemas de Posicionamento Global (GPS) e os potentes recursos dos Sistemas de Informação Geográfica (SIG ou GIS), permitem que análises espaciais complexas sejam realizadas e que diversas dimensões do nosso habitar pelo espaço sejam rigorosamente controladas. Desse modo, compreender o sentido da cartografia na sociedade contemporânea não é uma questão simples de ser respondida, pois, muitas são as perguntas que subjaz esse tema. Pickles (2006) considera que é preciso investigar diversos aspectos que se confluem na imagem do mapa e no ato de produzi-la. Para ele, isso inclui estudar assuntos mais amplos, como o mundo em que vivemos e mapeamos, os sistemas de crença e práticas que dão origem ao projeto de mapeamento e, também mais específicos, como as regras que governam o processo de tradução e transposição da realidade espacial e os objetivos do cartógrafo ao mapear. Em suas próprias palavras, “to ask what a map is and what it means to map, 20 therefore, is to ask: in what world are you mapping, with what belief systems, by which rules, and for what purposes?”2 (PICKLES, 2006, p. 77). Contudo, diante de tantas perguntas o autor nos chama atenção para uma resposta em particular por considerá-la fundamento de todas as outras. Segundo ele, em companhia de outros autores, o traço definidor da cartografia contemporânea é também a pedra de toque do pensamento ocidental, a saber, a importância dada à visão. No seu entender, a prioridade atribuída a esse sentido como forma privilegiada de abarcar a realidade acabou por conceber o mundo como um fenômeno espacial físico, valorizando assim modos de representação marcados por abstrações matemáticas e práticas tecnocientíficas. O olhar cartográfico da modernidade, então... […] assumes what Adorno called a ‘peephole’ metaphysics, an observer epistemology, and a Cartesian commitment to vision as the privileged source of ‘direct’ information about the world. It presuposes what Martin Heidegger called ‘world space’, a parametric manifold within which nature and society can be thematized in terms of their spatial relations. It has prioritized mathematical forms of abstraction over other forms of abstraction in this process of thematization. It has come to see itself as a technical-scientific practice of representing (mirroring) nature.3 (PICKLES, 2006, p. 80). O começo dessa história, entretanto, não emergiu inicialmente no contexto científico. Por isso, para contá-la é preciso recorrer novamente àquela forma de expressão humana evocada por Harley em outro momento do nosso texto: a arte. A relação entre arte e cartografia é tão estreita que filósofos e historiadores dos dois campos frequentemente buscam nela explicações para seus problemas de pesquisa e epistemologias. Como veremos, essa aproximação é também muito significativa quando tentamos entender como o espaço representado pela cultura científica de mapeamento surgiu. Quem nos ajuda nessa missão é Wertheim (2001). Segundo a autora, o olho começou a ser superestimado no Ocidente quando no século XIV os novos mestres da arte se puseram a pintar o que viam em detrimento do que sabiam. Essa transição, que culminou no surgimento da pintura naturalista e realista, pressupunha o deslocamento do órgão da visão do pintor. Assim, ao invés de guiados pela Bíblia olharem 2 Tradução da autora: “perguntar o que é um mapa e o que significa mapear, é, portanto, perguntar: em que mundo você está mapeando, com quais sistemas de crença, através de quais regras, e com que fins?”. 3 Tradução da autora: “[…] assume o que Adorno chamou de uma metafísica do ‘olho mágico’, uma epistemologia do observador, e um compromisso Cartesiano com a visão como a fonte privilegiada da informação “direta” sobre o mundo. Ele pressupõe o que Martin Heidegger chamou de ‘espaço do mundo’, um coletor paramétrico em que a natureza e a sociedade podem ser tematizadas em termos de suas relações espaciais. Ele tem priorizado formas matemáticas de abstração sobre outras formas de abstração nesse processo de tematização. Chegou a ver a si mesmo como uma prática técnico-científica de representar (espelhar) a natureza”. 21 para dentro, para o interior da alma, como estavam acostumados a fazer na Idade Média, os artistas passaram a olhar para fora, para o mundo exterior que nas palavras de Wertheim (2001, p. 65) “seria cada vez mais compreendido como o âmbito do ‘espaço físico’”. O que movia os artistas dessa época era a vontade de retratar com verossimilhança os fenômenos físicos do mundo. Assim, tentavam representar corpos e cenários concretos na ordem visual vista pelo olho. Para transmitir essa aparência em suas obras, os pintores recorriam à ilusão de profundidade e intuitivamente pintavam alguns elementos com aspecto tridimensional. Bacon foi um dos primeiros que viu nessa tendência uma oportunidade para a religião. Ele entendeu que aplicando o estilo realista na pintura de temas cristãos, as narrativas bíblicas seriam mais facilmente interpretadas como realidade e, conseqüentemente, seria um poderoso instrumento para converter incrédulos. Diante desse encantamento, o monge franciscano, que também era grande defensor do pensamento científico, propôs em um dos seus tratados o que considerava ser a chave para essa simulação visual do real. Segundo ele, a geometria era o segredo para dar vida às imagens. (WERTHEIM, 2001). Wertheim diz, no entanto, que a figuração geométrica posta em prática uma década depois do escrito de Bacon ainda não conseguia produzir imagens tão convincentes, pois apenas os objetos materiais pareciam ser dotados de profundidade. O espaço que havia entre esses corpos não era concebido claramente como uma entidade tridimensional. Assim, as pinturas representavam elementos que vistos separadamente pareciam reais, mas quando vistos em conjunto não transmitiam a idéia de unidade. Eram imagens que não tinham integridade espacial e, por isso, a ilusão de realidade física era incompleta. Figura 3: Pintura de Giotto representando a expulsão dos demônios da cidade de Arezzo por São Francisco. Os edifícios são representados com aparência tridimensional, porém as relações espaciais entre eles não são mantidas. Fonte: http://www.zsplast.gdynia.pl/historia_sztuki/kanon/index.htm http://www.zsplast.gdynia.pl/historia_sztuki/kanon/index.htm 22 Essa impressão de espaço desarticulado foi sendo superada gradativamente pelos artistas, até que no século do Renascimento (XV) ela se dá por completo através da codificação das regras da perspectiva linear. Tal codificação significou a formalização da noção de figuração geométrica, pois, dava aos pintores “uma receita concreta para a representação de todos os objetos no mesmo espaço tridimensional” (WERTHEIM, 2001, p.71). Seguindo os parâmetros da perspectiva, os pintores passaram a representar todos os objetos do mesmo ponto de vista, na mesma escala e, principalmente, num espaço contínuo. Desse modo, enfim, a arte conseguiu criar a ilusão da nova realidade que, nas palavras da autora, agora sim poderia ser concebida como a moderna visão científica do espaço. Muito antes do surgimento da ciência moderna, os pintores desempenharam um papel decisivo no estabelecimento dessa visão essencialmente geométrica do espaço. Como Edgerton sugeriu, a “figuração geométrica” reeducou a mente ocidental para ver o espaço de uma nova maneira. (WERTHEIM, 2001, p.71). Nesse contexto, a perspectiva linear formal foi a maneira que os artistas da época encontraram para reproduzir precisamente o que o olho vê. A técnica consistia na projeção matemática do mundo tridimensional sobre uma superfície plana bidimensional. Para isso, foram inventadas algumas tecnologias visuais que se colocavam entre a cena a ser pintada e o pintor. Esses aparatos, formados normalmente por um ocular e uma tela retangular de vidro, ou quadriculada, permitiam que o artista imobilizasse seu olhar, determinando o centro de projeção a partir do qual ele iria traçar todas as linhas de seu desenho. Desse modo, ele olhava a cena como que por uma janela aberta e a desenhava de um único ponto de vista. Figura 4: Xilogravura de Albrecht Dürer (1525) demonstrando a técnica de pintura da perspectiva linear. Fonte: http://employees.oneonta.edu/farberas/ARTH/ARTH_220/looking.htm Com o descobrimento desse rigoroso método que era capaz de imitar fielmente o mundo físico, os pintores buscaram representar cada vez mais essa realidade, afastando-se do simbolismo espiritual para se voltar fortemente ao espaço do corpo. Segundo, Wertheim (2001, p. 81), “do século XV ao XIX, o corpo reinaria supremo na arte ocidental, refletindo o http://employees.oneonta.edu/farberas/ARTH/ARTH_220/looking.htm 23 Zeitgeist profundamente fisicalista que foi característica definidora da era pós-medieval”. Mesmo nas obras que tratavam do mundo divino, a referência dos artistas era a realidade física, assim, os personagens e o próprio cenário que figuravam em tais representações religiosas eram dotados de atributos espaciais baseados em estudos detalhados das dimensões reais dos corpos e dos ambientes. Porém, algo mais importante que a valorização do olho na construção de imagens em perspectiva foi a valorização do olho na recepção dessas imagens. Nas palavras de Wertheim (2001, p. 82), “a perspectiva nos dá imagens especificamente para o olho”. Como suas regras exigem que o artista pinte a cena a partir de um ponto de vista único, o lugar de onde o espectador deve olhar a obra também acaba sendo determinado. Nesse sentido, as pinturas e desenhos que seguem o princípio da perspectiva linear codificam a posição do corpo do receptor, vinculando, assim, o espaço representado na imagem com o espaço físico ocupado pelo observador. Diante dessa forte ligação entre o espaço da imagem e o espaço do espectador, os artistas do Renascimento começaram a produzir efeitos ilusionistas que realmente transportavam o público para um outro mundo. Condicionando a posição do observador, a pintura do teto da Igreja de Sant’Ignazio em Roma, por exemplo, parece dar continuidade à sua própria construção arquitetônica. Assim, localizando-se na marca indicada no piso da Igreja, ao olhar para cima tem-se a impressão de que as paredes se abrem para uma paisagem celeste repleta de anjos. Aos nossos olhos, então, o espaço virtual da imagem se funde ao espaço físico do templo. Figura 5: Obra de Andréa Pozzo no teto da Igreja de Sant’Ignazio, em Roma. Fonte: http://blog.vernaglia.com.br/album/italia/ http://blog.vernaglia.com.br/album/italia/ 24 Nesse contexto, brincar com a localização do corpo do observador se tornou o “passatempo” preferido dos pintores renascentistas. Inicialmente, eles situavam seu ponto de vista no centro da cena a ser representada, fazendo com que o público se colocasse bem a frente da imagem. Mais tarde, pontos de vista tão esquisitos foram sendo incorporados que se o observador quisesse contemplar a obra da maneira tecnicamente correta ele teria que se pôr também em lugares inusitados, como em cima de uma escada. Assim, para receber essas imagens de perspectivas um tanto complexas o olho físico não bastava mais, o espectador teria que praticar um outro modo de olhar que lhe desse condições para viajar por esses diferentes pontos de vista sem se deslocar fisicamente no espaço. Segundo Kubovy (1993 apud WERTHEIM, 2001), a mente humana tinha aptidão para realizar tal tarefa, pois, mesmo quando não estamos posicionados diante do centro de projeção da imagem, nosso cérebro se ajusta automaticamente a esse ponto e então conseguimos ver da perspectiva correta. Wertheim (2001, p. 87) explica que “é como se a mente tivesse um ‘olho virtual’ capaz de vagar pelo espaço independentemente do olho físico”. Para Kubovy, os artistas da época tinham noção do exercício desse jogo mental e, por isso, mais do que surpreender o espectador tecnicamente, eles estavam tentando lhe proporcionar uma experiência psicológica de distanciamento do corpo. Desse modo, a perspectiva linear que no estágio anterior serviu para corporificar o ponto de vista, passou a ser usada agora para libertar o homem de sua condição física. O resultado foi a criação de um olho virtual que permitiu aos cientistas perambular pelo espaço e enxergar o mundo de lugares impossíveis ao olho físico. Segundo Wertheim (2001, p. 87), esse era “precisamente o modelo que Galileu e Descartes iriam adotar ao formular sua nova imagem científica do mundo no século XVII”. Seguindo o modelo dos pintores renascentistas, Galileu dissociou seu olho de cientista de seu corpo e mandou esse olho virtual perambular livremente no espaço à sua volta. Ao longo do século seguinte esse olho/mente desencarnado iria se tornar o árbitro do real. De agora em diante, a missão do físico seria ir em busca, com seu olho virtual, dos fenômenos ‘essenciais’ – isto é, matematicamente redutíveis – no mundo à sua volta. (WERTHEIM, 2001, p. 88). Diante dessa nova experiência perceptiva a idéia da existência do espaço como algo absoluto, uma coisa em si, se tornou cada vez mais real e tangível ao pensamento moderno. Galileu foi o primeiro a conceber a realidade como um mundo de corpos que se movem num espaço vazio. Mais tarde, Descartes iria estender esse conceito ao infinito e propor sua 25 compreensão a partir da matemática, construindo, assim, uma imagem mecanicista do mundo que deixaria marcas profundas na cultura ocidental, inclusive, na cartografia. Na visão cartesiana “o universo consistia de matéria em movimento através do espaço infinito em conformidade com leis matemáticas estritas” (WERTHEIM, 2001, 108). Contudo, para Descartes, a realidade não era formada apenas por essa dimensão, a qual ele deu o nome de res extensa. Os pensamentos, sentimentos, subjetividade e a própria experiência religiosa, em seu entender, também eram parte fundamental da realidade, mas, situavam-se numa outra esfera, denominada res cogitans, a qual, por não ser de domínio material, não deveria constituir o objeto da ciência. Segundo Wertheim, para o horror do filósofo, sua nova concepção científica do mundo criou condições para que em meados do século XVIII, a res cogitans fosse totalmente abolida da realidade, e esta, então, passasse a ser tomada inteiramente pelo espaço físico: “na visão descrita pela ciência moderna, o mundo físico é a totalidade da realidade, porque nela o espaço físico de estende infinitamente em todas as direções, ocupando todo o território disponível e até concebível” (WERTHEIM, 2001, p. 24). Essa mudança gradativa na forma de conceber a realidade também se fez sentir na representação cartográfica, assim, uma das porções desse vasto território mais sensível ao homem, a superfície terrestre, acabou por ser predominantemente apreendida pela cultura ocidental como uma dimensão estritamente objetiva e calculável. Por lo menos desde el siglo XVII, los topógrafos y los lectores de mapas europeos han ido promoviendo un modelo científico estándar de conocimiento. El objeto del mapeo es producir un modelo “correcto” – en la medida de su semejanza con el original – del terreno. Supone que los objetos del mundo que se van a registrar son reales y objetivos, y que gozan de una existencia independiente del cartógrafo; que su realidad puede ser expresada en términos matemáticos; que la observación y la medición sistemáticas ofrecen la única ruta a la verdad cartográfica, y que esta verdad puede ser verificada de manera independiente. (HARLEY, 2005, p. 190). Desde então, a história dos mapas na cultura ocidental tem sido marcada pela história da própria ciência. Prova disso é que foi a matemática, linguagem tradicionalmente mais estimada na produção do conhecimento científico, que ajudou a constituir as principais bases da cartografia, transformando profundamente a função dos mapas na sociedade e o mundo por eles representado. Através de modelos matemáticos o mapa se tornou uma imagem inanimada do espaço e um instrumento preciso para localização, orientação e avaliação de distâncias, haja vista, três dos principais aspectos que fundamentam sua produção e se destacam como elementos essenciais da representação. 26 Todo mapa é confeccionado a partir de uma projeção cartográfica. As projeções são produto de cálculos avançados que tentam driblar as distorções inerentes à representação dos ângulos, áreas, direções e distâncias de um objeto esférico, como a Terra, numa superfície plana. Todo mapa é construído segundo uma determinada escala. Por meio de relações de proporção, a escala permite que o planeta seja reduzido sem perder a correspondência com as dimensões reais do espaço, assim, a partir de um pequeno pedaço de papel é possível obter medidas do mundo. A rede de linhas imaginárias (muito parecida com aquela tela vazada da perspectiva linear) que se estende por todo o mapa informa as coordenadas geográficas da superfície terrestre. As coordenadas expressam a distância de qualquer ponto do planeta em relação a um meridiano e paralelo principal, dotando todos os lugares do mundo de um endereço fixo e exato. Figura 6 e 7: Mapas do mundo elaborados a partir de modelos matemáticos. A malha de linhas que envolve todo o planeta dão origem as coordenadas geográficas e as diferenças na representação da superfície terrestre varia pela projeção utilizada. Fonte: http://www.progonos.com/furuti/MapProj/CartIndex/cartIndex.html Nesse contexto, no lugar de narrativas geográficas, como era o caso dos mapas medievais, tem-se, agora, descrições espaciais. Isso não significa, porém, que os mapas modernos não contam uma história do homem com o espaço, pois, na sua aparente transparência muitas relações simbólicas se escondem. Como nos mostrou a história da perspectiva e da valorização da visão, a busca por representar fielmente a ordem que o olho via revela-nos a tomada de consciência do espaço físico pelo homem e sua vontade de reproduzir tal espacialidade em representações feitas para serem vistas e não sentidas. A cartografia ocidental herdou dessa mesma cultura o entendimento de que a partir de um conjunto de coordenadas e modelos matemáticos podemos duplicar o mundo e, torná-lo tangível ao olho humano. Mesmo que esse olhar seja apenas possível ao olho virtual de Deus. Afinal, como nos ensina Pickles (2006, p. 80): http://www.progonos.com/furuti/MapProj/CartIndex/cartIndex.html 27 The cartographic gaze is dominated by a commitment to modeling a God’s- eye-view […]. This transcendental positioning is both the view from above, an elevated two-point perspective bird’s-eye-view, and an all seeing eye that views everywhere at the same time.4 4 Tradução da autora: “O olhar cartográfico é dominado pelo compromisso de modelar uma visão-do-olho-de- Deus [...] Esse posicionamento transcendental é ao mesmo tempo a visão do alto, uma elevada perspectiva de dois pontos da visão-do-passáro, e um olho que tudo vê que olha todos os lugares ao mesmo tempo”. 28 3.2 Da prática científica de mapeamento Se, como diz Wertheim (2001, p. 23), “em lugar algum o predomínio atual do mundo físico é exibido com mais intensidade do que em nossa compreensão científica de espaço físico”, então, a cartografia desse mundo também não poderia ter encontrado melhor lugar para se desenvolver do que no campo da ciência. A busca pela construção de uma forma de conhecimento e representação que fosse universal, objetiva e verificável fez com que juntas, ciência e cartografia, crescessem muito mais do que poderiam sozinhas. Sem uma linguagem que permitisse aos cientistas do espaço físico representar a dimensão espacial do seu objeto de estudo e do próprio conhecimento produzido, a ciência moderna com certeza não teria desenvolvido tanto o seu potencial, pois, como uma vez falou McLuhan (1964 apud TURNBULL, 1996, p. 5), “maps are a prime vehicle for repositioning, reframing, rethinking science because theories are maps, maps are science instantiated [...] without maps and geometry, the world of modern science would hardly exist”5. Do mesmo modo, a cartografia não teria conquistado a autoridade que tem hoje se os métodos científicos não fossem qualidade de suas práticas. Sendo assim, cartografia e ciência constituíram uma a outra e fundaram para a sociedade ocidental uma cultura científica de mapeamento. Isso tanto é verdade que o próprio termo mapa se tornou metáfora para os processos e descobrimentos de diversas ciências, inclusive, daquelas que nem mesmo pesquisam a superfície terrestre. Constantemente ouvimos falar em mapeamento genético, mapas cognitivos, conceituais, mentais, etc. Como diz Wertheim (2001, p. 23), “nesta ‘idade da ciência’, mapeamos o universo físico em todos os níveis, da vasta escala dos superaglomerados galácticos até as mais ínfimas partículas”. Diante dessa relação tão profunda com a produção científica, a cartografia incorporou os pressupostos que orientam a construção dessa forma de conhecimento, transformando-se ela própria numa ciência concreta. Assim, desde o século XVII, os cartógrafos têm voltado toda sua atenção para o desenvolvimento de um corpo teórico e prático que lhes garantissem a precisão e o progresso dos mapas ocidentais. Para tanto, ao longo de sua história, a cartografia vem acumulando métodos, modelos, tecnologias e procedimentos que resultariam em representações cada vez mais fiéis à realidade do espaço. 5 Tradução da autora: “mapas são um veículo privilegiado para reposicionar, resignificar, repensar a ciência, porque as teorias são mapas, mapas é a ciência instanciada [...] sem mapas e geometria, o mundo da ciência moderna dificilmente existiria”. 29 Para Harley (2005), esse repertório de conhecimento produzido na área significou a criação de uma espécie de conjunto de regras que fundamentam a prática de mapeamento dos cartógrafos até hoje. Tais normas visam prevenir a construção de imagens subjetivas, imprecisas e tendenciosas ao indicar o caminho mais seguro e correto para confeccionar mapas. Dessa forma, a maior parte das orientações preconiza o domínio de técnicas de mensuração topográfica e padronização simbólica em detrimento de qualquer tipo de teoria social ou política, afinal, o objetivo do cartógrafo em nossa sociedade é produzir uma representação neutra da superfície terrestre. Segundo o autor (2005, p. 191), ao longo dos anos a difusão de tratados e textos que trazem essas regras e o próprio crescimento de instituições voltadas ao ensino da cartografia acabou não só guiando o dia a dia dos cartógrafos, como também desenvolveu neles um “sentido do outro” em relação aos mapas que não se ajustam aos critérios de objetividade e certeza que tanto se valoriza na ciência. Para esses profissionais virou rotina avaliar a enorme quantidade de mapas que circulam no mundo segundo a verdade topográfica, isto é, a verossimilhança da representação com o terreno, mesmo que a intenção de algumas representações não seja exatamente essa. Diante dessa intensa vigilância, tanto os mapas desenhados rapidamente a mão para facilitar a localização e orientação, quanto àqueles produzidos no passado e por culturas não ocidentais ganharam a reputação de serem apenas representações gráficas do espaço e não mapas em si. Para Cosgrove (1999, p. 14), inclusive, essa herança histórica distorcida tendeu “to underemphasize the partial, open and contingent qualities of the map object in favour of its closures, certainties and aesthetics”.6 Mesmo sua dimensão artística que durante tanto tempo chamou a atenção de historiadores, geógrafos e usuários comuns, se tornou mera publicidade. Prova disso, segundo Harley (2005, p. 186), é a revisão que a British Cartography Society fez da definição de Cartografia: Una definición para usarse en la comunicación con el público sería: “La cartografía es el arte, la ciencia y la tecnología del trazado de mapas”. La de los “cartógrafos” sería: “La cartografía es la ciencia y la tecnología de analizar e interpretar las relaciones geográficas y la comunicación de los resultados mediante mapas”. Contudo, adotar como discurso os termos de uma epistemologia científica não livrou a cartografia dos fatores sociais e das relações de poder que, segundo Foucault (1980 apud 6 Tradução da autora: “a subestimar as qualidades abertas, parciais e contingenciais do mapa enquanto objeto em favor daquelas fechadas, totalizantes e estetizantes”. 30 HARLEY, 2005), estruturam qualquer campo do conhecimento. Mesmo que esse conhecimento seja escrito em códigos nas folhas dos Atlas, aspectos completamente opostos àquilo que as convenções cartográficas propagam podem ser lidos nas entrelinhas dos mapas e dos processos que lhes dão origem. Desse modo, para Harley, por traz da razão e geometria empregadas pela ciência cartográfica forças externas e internas ligadas muito mais a valores culturais que matemáticos confluem na produção e na imagem dos mapas, fazendo deles tanto instrumentos do poder como formas de poder. Segundo o autor, as regras científicas de mapeamento estão sujeitas a um outro conjunto de normas que geralmente não são tratados em livros e manuais. Ocultas pelo discurso cientificista, elas dizem respeito aos valores étnicos, religiosos, políticos e sociais que os cartógrafos imprimem nos mapas através das escolhas que fazem em diferentes etapas da produção. Desde a seleção do tema a ser mapeado até a opção pelas cores, projeção, orientação, ícones, a serem utilizados nas representações, os cartógrafos sofrem a influência do sistema social e cultural em que estão inseridos. Em seu livro sobre o poder dos mapas, Wood (1996) mostra como a cartografia funciona servindo interesses. Segundo ele, todo mapa é fruto de uma seleção, entretanto, tal seletividade não é imparcial, pois, ela sempre atende aos interesses de uma determinada classe ou associação, cidade ou país, que buscam, em última análise, reproduzir uma ordem social e cultural. Assim, as “presenças e ausências” incorporadas ao mapa no processo cartográfico não representam a realidade, mas, sim os valores e interesses de seus produtores. Como exemplo, basta lembrar-nos do famoso mapa de Mercator. Construído em 1569, ele não só supriu à demanda dos estados europeus por instrumentos de navegação precisos que permitissem a conquista de novos territórios, como também materializou em linhas a superioridade das nações nórdicas ao representá-las com dimensões muito maiores que na realidade. Por esse motivo, mesmo fora do contexto das grandes navegações, o mapa de Mercator continuou a ser difundido no Ocidente como a principal representação geográfica do planeta. Ainda hoje, os países desenvolvidos, que em sua maioria encontram-se no hemisfério norte, veiculam essa imagem em seus mais importantes canais de comunicação. Ironicamente, o Google Maps, por exemplo, utiliza tal projeção para representar o espaço mundial ao próprio mundo. 31 Figura 8: Mapa-mundi baseado na projeção de Mercator. Fonte: Google Maps. http://maps.google.com.br/ Na história da cartografia contada por Harley (2005, p. 108), muitos outros mapas se inscreveram como signos da ordem social vigente. Los mapas de Estado, aunque derivados de un levantamiento instrumental, simbolizaban un estructura social basada en la propriedad de la tierra; los mapas de condado y regionales, aunque fundamentados en la triagulación, articulaban los valores e los derechos locales; los mapas de los Estados- nación, aunque construídos sobre la base de los meridianos, eran una síntesis simbólica de un complejo de ideas nacionalistas; los mapas-mundi, aunque con mayor frecuencia trazados sobre proyecciones matematicamente definidas, dieron un giro total al destino manifiesto de la conquista y la colonización europeas en el Nuevo Mundo. Diante disso, podemos dizer que apesar dos mapas da cultura científica reividicarem valores de objetividade e neutralidade; como construções sociais que “redescriben el mundo, al igual que cualquier otro documento”7, a leitura atenta de seu conteúdo e da forma como vêm ao mundo sempre nos revela algo sobre o modo como simbolicamente enxergamos a realidade e agimos sobre ela. Por isso, Harley (2005, p. 195) pensa que “[…] los mapas sean, por lo menos, una imagen del orden social así como la medición del mundo fenomenal de los objetos”. Com tanto espaço para a manifestação das regras sociais, o autor considera que a cartografia está tão aberta ao exercício do poder quanto está ao exercício da verdade. Nesse contexto, para ele, os mapas respondem a dois tipos distintos de interesse político, um que se origina do seu uso e outro que se origina do processo de mapeamento. 7 Harley, 2005. http://maps.google.com.br/ 32 Em relação à primeira forma de poder, Harley está querendo tratar de como a cartografia é utilizada pela sociedade para reproduzir algum tipo de dominação. Na história, os mapas se mostraram instrumentos eficientes ao controle social e territorial dos Estados. Assim, tanto para conservar seu poder internamente quanto para conquistar novos domínios, os governos, já há um bom tempo, investem pesado em tecnologias de mapeamento de alta precisão. Prova disso, foi o desenvolvimento das imagens de satélite. Difundidas em grande escala pela mídia e, principalmente, pela Internet através dos programas de mapas, as imagens de satélite são hoje uma das principais fontes de informação geográfica da qual dispomos. Carregando sensores potentes, os satélites artificiais lançados no espaço conseguem capturar imagens da Terra capazes de nos mostrar claramente o jardim de nossas casas ou fenômenos diretamente invisíveis ao olho humano. Sendo assim, em muitos casos elas substituem a necessidade do mapa e em outros são utilizadas como base para mapeamentos diversos. Como veremos, atualmente, até mesmo pessoas sem conhecimento especializado no campo científico e cartográfico as têm utilizado para criar mapas. Contudo, apesar de ter ganhado tal importância social, essa tecnologia de tele detecção do terreno surgiu no contexto da Guerra Fria, quando a União Soviética e os Estados Unidos viviam intensamente a chamada corrida armamentista. Há muitos anos os setores militares das nações buscam vigiar o que ocorre dentro dos limites territoriais do inimigo através de imagens. As fotografias aéreas tiradas inicialmente a bordo de balões e depois de aviões foram amplamente utilizadas na I e II Guerra Mundial. Contudo, como esses meios de transporte eram muito vulneráveis, já que podiam ser facilmente derrubados, os países envolvidos na Guerra Fria vinham tentando encontrar alternativas para espionar o território alheio. Depois que a URSS colocou o Sputnik no espaço, os EUA se sentiram muito próximos de um possível ataque e resolveram com a mesma tecnologia tentar descobrir o poderio bélico dos soviéticos. Assim, em 1959, o governo norte-americano lança o programa Corona e põe em órbita seu primeiro satélite voltado para obter informações visuais da Terra, especialmente da União Soviética. A partir de então, o desenvolvimento das tecnologias de imagem de satélite não parou mais de avançar. (CORSON; PALKA, 2004). Muito embora, essas formas tecnológicas de controlar o espaço e suas ações nele sejam hoje instrumentos poderosos para a expansão do capitalismo, Monmonier (1985) acredita que a necessidade de uma segurança e defesa nacional efetiva continuará sendo o principal ímpeto para novos e maiores desenvolvimentos em mapeamentos e uso de mapas. Segundo ele (1985, p. 45), “only the comparatively lavish appropriations for defense are 33 likely to sustain or increase the current rate of development in digital cartography”.8 Ou seja, “mapping thrives on war and threats of war”.9 A própria difusão da linguagem cartográfica no mundo foi impulsionada por um desses contextos em que o poder não poderia ter sido exercido de modo mais extremo ou violento. Conforme Robinson (1977), a II Guerra Mundial foi um marco para a consolidação e popularização dessa área do conhecimento, pois, a demanda de mapas gerada pelos militares nos gabinetes e campos de batalha também produziu um maior interesse da população em geral pela cartografia. […] the Second World War created an unprecedented demand for maps. As a consequence, new agencies were formed and hundreds, and perhaps thousands, of persons became 'instant cartographers'. In addition, innumerable individuals, military and civilian, learned to use maps during the War, and there came into existence a widespread interest in maps such as had never occurred before.10 (ROBINSON, 1977, p. 4) No entanto, Harley (2005) considera que o poder não só vem do mapa como também atravessa o modo como são feitos. Em seu entender, internamente, o processo de mapeamento contém uma dimensão política, pois, o conjunto de regras científicas que guia a atividade do cartógrafo visa em ultima instância controlar a imagem do mundo. Assim, as diversas etapas e técnicas que os cartógrafos julgam essenciais para representar a realidade constituem, sem que percebam, formas de poder sobre o conhecimento incorporado ao mapa e, assim, difundido à população. A seleção das categorias, a generalização das normas de abstração das feições e fenômenos geográficos e, a organização hierárquica desses elementos no mapa, são considerados, pelo autor, esquemas legítimos que buscam padronizar a representação do espaço. Desse modo, os objetos a serem mapeados sofrem tanto um processo de simplificação como de normalização. Daí, o autor estabelecer a seguinte relação com as teorias de Foucault: 8 Tradução da autora: “apenas as dotações relativamente generosas para a defesa estão suscetíveis de manter ou aumentar a taxa atual de desenvolvimento em cartografia digital”. 9 Tradução da autora: “o mapeamento prospera na guerra e nas ameaças de guerra”. 10 Tradução da autora: “[...] a Segunda Guerra Mundial criou uma demanda sem precedentes para os mapas. Como conseqüência, novas agências foram formadas e centenas, talvez milhares, de pessoas tornaram-se ‘cartógrafos instantâneos’. Além disso, inúmeros indivíduos, militares e civis, aprenderam a utilizar os mapas durante a guerra, e então passou a existir um grande interesse em mapas, como nunca havia ocorrido antes”. 34 Se puede establecer una analogía entre lo que sucede con los datos en el taller del cartógrafo y lo que pasa a la gente en las instituiciones disciplinarias (prisiones, escuelas, ejército, fábricas) descritas por Foucault; en ambos casos se da un proceso de normalización. […] En general, el poder del cartógrafo no se ejercía sobre los indivíduos, sino sobre el conocimiento del mundo puesto a la disposición de toda la gente. (HARLEY, 2005, p. 205). Assim como nessa lógica “todo el mundo está diseñado para verse igual”11, o cartógrafo, quando está mapeando, além de controlar a imagem que temos do mundo, produz realidades estereotipadas. A diversidade e multiplicidade do espaço são representadas na medida em que o tamanho do papel e as normas cartográficas permitem. Nesse contexto, tudo aquilo que diferencia os espaços e os tornam lugares não tem muita chance de aparecer no mapa. Em outras palavras, Harley (2005, p. 131) explica: [...] la falta de diferenciaciones cualitativas en los mapas estructurados por la episteme cientifica sirve para deshumanizar el paisage. Estos mapas transmiten un conocimento que mantine al sujeto al margen. El espacio adquire una importância mayor que la del lugar: si los lugares se vem parecidos, se les puede tratar de manera parecida. Por lo tanto, con el progreso del mapeo cientifico el espacio se volvio muy fácilmente un producto socialmente vacío, un paisaje geométrico de hechos fríos, no humanos. Uma vez, folhando o atlas rodoviário dos Estados Unidos, o autor até tentou procurar os “personagens” que animam o espaço e o dota de uma complexidade e heterogeneidade muito maior do que aquelas que usualmente vemos estampadas nos mapas. Entretanto, nas imagens vazias e genéricas que ilustravam tantas páginas parecia não haver nenhum sinal de vida: “En estos mapas anónimos, ¿dónde está la variedad de la naturaleza, dónde está la historia del paisaje y dónde el espacio y el tiempo de la experiencia humana?” (HARLEY, 2005, p. 206). Diante disso tudo, como dizer que essas imagens representam a realidade? Ao tentar garantir a neutralidade e a objetividade dos mapas, as regras da cartografia reduzem a natureza do espaço, colocando a margem o principal “objeto” que dá sentido ao mundo e cria a realidade: o ser humano. Ao buscar desenvolver toda a precisão que é capaz de alcançar, ela se associa a ordem social hegemônica e serve a ela como instrumento poderoso de manipulação do espaço. E, ao traçar linhas e pontos, ela reescreve todas as hierarquias e valores culturais que historicamente foram eleitos como a verdade do mundo. Por isso, para Harley, a relação entre mapa e realidade está mais vinculada à criação da realidade do que a sua representação. Em suas palavras: “al tiempo que el mapa nunca es la 11 Harley, 2005. 35 El proyecto tenía que ver con bajarlo al barrio y ponerlo en contexto esa información que andaba por ahí ponerla en su lugar y ver que pasaba. [...] Para mí fue algo que pasó, pero eso alguien lo vê y está pasando, se recrea continuamente, no se desvanece ... Daniel Perosio, Post Urbano, 2009. (grifo nosso). realidad, de cierta manera contribuye a crear una realidad diferente. Una vez insertas en el texto publicado, las líneas del mapa adquieren una autoridad que puede ser difícil de desplazar” (HARLEY, 2005, p. 206). Desse modo, podemos nos perguntar: até que ponto o mapa de Mercator não ajudou a Europa conquistar a posição hegemônica que tem hoje? Quantas batalhas provavelmente já não foram travadas por causa de fronteiras desenhadas por cartógrafos? Em que medida a ausência de vida nas representações cartográficas não influenciou a concepção racionalista que temos do espaço? E, ainda, até que ponto podemos pensar que nossa visão de mundo como um todo não foi estruturada pelas regras científicas e sociais que a cartografia difundiu? Para alguns autores (KITCHIN; DODGE, 2007), no entanto, a verdadeira natureza do mapa é ser contingente e relacional. Desse modo, a cartografia não seria uma forma de representar a realidade e nem de impor uma visão de mundo as pessoas, mas sim, um meio pelo qual através de nossas práticas fazemos emergir a própria realidade. Nessa perspectiva, independentemente das regras científicas e dos valores sociais e culturais (re) produzidos pelo cartógrafo, um mapa sempre nasce como a resposta de certa pessoa a um determinado problema. Os problemas daqueles que os produzem e aqueles que os usam não são os mesmos, por isso, ao consultar um mapa, os usuários também estão dando origem a novos mapas em suas mentes. Sendo assim, não seria possível ter segurança alguma quanto ao sentido ou a realidade de uma representação cartográfica, seja no contexto de sua produção ou do seu uso. Então, totalmente voltados a solucionar uma questão particular sobre o mundo, as linhas e pontos impressos nas páginas de um Atlas só se tornam realmente mapas quando as pessoas estão envolvidas com eles. Diante disso, os mapas estão sempre prestes a acontecer. Os conhecimentos, as habilidades e as experiências mobilizadas pelos indivíduos no processo de construção e utilização de um mapa é que o traz ao mundo. Assim, tanto a mensagem materializada pelo cartógrafo como sua interpretação pelos usuários dependem profundamente daquilo que eles buscam responder com o mapa e das interações que os levam 36 ... tiene que ver con los territorios, el entorno en que uno vive, el conocer donde uno vive, tiene que ver con cómo construye la subjetividad también uno, ¿no?, la identidad también, qué es lo que somos, cómo somos, cómo vivimos y, bueno, la interacción entre esas cosas. [...] La posibilidad también de construir también geografías, no solamente la foto. Daniel Perosio, Post Urbano, 2009. (grifo nosso). a encontrar essa resposta. Por isso, para Kitchin e Dodge, os mapas devem ser entendidos como eternos mapeamentos, ou seja, representações nunca acabadas ou definidas, constantemente refeitas por práticas situadas em espaços e tempos específicos. Maps are of-the-moment, brought into being through practices (embodied, social, technical), always remade every time they are engaged with; mapping is a process of constant reterritorialization. As such, maps are transitory, fleeting, being contingent, relational and context-dependent. Maps are practices – they are always mappings; spatial practices enacted to solve relational problems […]12 (KITCHIN; DODGE, 2007, p. 335). Contudo, como a compreensão das pessoas sobre o mundo e sobre a cartografia é variável, por mais que se tente, as práticas espaciais que dão origem aos mapas não são capazes de serem fixadas por regras, convenções ou manuais. Assim, essa forma de conhecimento nunca é totalmente estável e transferível. Dependendo de quem interage com os seus códigos, a realidade produzida é uma. Nesse sentido, além de serem entidades sempre em situação de devir, os mapas são mutáveis, isto é, passíveis de adquirirem significados diferentes através das pessoas. Desse modo, para os autores (2007, p. 335), “[a map] does not re-present the world or make the world (by shaping how we think about the world); it is a co- constitutive production between inscription, individual and world”13. Para entender melhor o que Kitchin e Dodge (2007) estão querendo dizer com essas idéias, vamos aos seus exemplos. Segundo eles, quando um cartógrafo se defronta com um conjunto de dados espaciais que precisam ser reportados através de um mapa, ele inicia uma sequência de práticas que em seu entender constitui o que seja um mapa para ele e para os outros. Nesse processo, muita coisa é determinada pelas regras oficiais da cultura científica de mapeamento. Mas nem tudo, 12 Tradução da autora: “Mapas são do momento, trazidos à existência através de práticas (incorporadas, sociais, técnicas), refeitos toda vez que se envolve com eles; mapear é um processo de constante reterritorialização. Assim, mapas são transitórios, fugazes, sendo contingentes, relacionais e dependentes do contexto. Mapas são práticas – eles são sempre mapeamentos; práticas espaciais criadas para resolver problemas relacionais […]”. 13 Tradução da autora: “[um mapa] não re-apresenta o mundo ou faz o mundo (modelando como pensamos sobre o mundo); ele é uma produção co-constitutiva entre a inscrição, indivíduo e mundo”. 37 apenas até certo ponto, as práticas espaciais realizadas no laboratório de cartografia refletem as padronizações e classificações estabelecidas pelo conhecimento cartográfico acumulado. Na visão de Kitchin e Dodge (2007), buscando atingir aquilo que ele pensa ser a melhor maneira de apresentar seus dados aos leitores do mapa, o cartógrafo experimenta as possíveis formas de aparência da representação e toma decisões mais ligadas as suas práticas habituais e afetivas do que cognitivas. Assim, importante nesse processo também seria “the idea of play – of ‘playing’ with the possibilities of how the map will become, how it will be remade by its future makers – and of arbitrariness, of unconscious and affective design”14 (KITCHIN; DODGE, 2007, p. 338). Apesar de algumas dessas práticas a princípio parecerem irrelevantes, como a escolha do esquema de cores a ser utilizado, da localização da legenda, da orientação e da escala, etc., é o conjunto de todas elas que faz uma representação espacial se tornar um mapa para o cartógrafo. Como dizem, “the procession of decision and action ‘grows’ the map”15. Isso não significa, porém, sua conclusão, pois, na teoria dos autores a criação de um mapa nunca está definida até que alguém se envolva com ele. Like street geometrically defined by urban planning, and created by urban planners, is transformed into place by walkers (de Certeau, 1984), a spatial representation (the coloured ink on the paper) is transformed into a map by individuals.16 (KITCHIN; DODGE, 2007, p. 338). Mas, assim como cada indivíduo experimenta a cidade a partir de seu próprio cotidiano, “each person engaging with a spatial representation beckons a different map into being”17 através do seu modo de mobilizá-la. Nesse sentido, para os autores, “the beckoning of the map generates a new, imaginative geography (an ordered, rationale, calculated geography) for each person”18. (KITCHIN; DODGE, 2007, p. 339). 14 Tradução da autora: “a idéia de jogar – de “jogar” com as possibilidades de como o mapa se tornará, como ele será refeito pelos seus futuros fazedores – e da arbitrariedade, do desenho inconsciente e afetivo”. 15 Kitchin; Dodge, 2007. Tradução da autora: “o processo de decisão e ação “cresce” o mapa”. 16 Tradução da autora: “Como a rua geometricamente definida pelo planejamento urbano, e criada pelos planejadores urbanos, é transformada em lugar pelos pedestres (de Certeau, 1984), uma representação espacial (a tinta colorida no papel) é transformada num mapa pelos indivíduos”. 17 Tradução da autora: “cada pessoa se envolvendo com uma representação espacial sinaliza um diferente mapa à existência”. 18 Tradução da autora: “a sinalização do mapa gera uma nova, geografia imaginativa (uma geografia ordenada, racional, calculada) para cada pessoa”. 38 ... me gustaria poder encontrar en el mapa una calle y no se como hacer... os digo que yo naci en el barrio y llevo desde el año 1982 que vivo en España, y me gustaria poder anexar un comment... pero no donde esta mi calle.... jajaja tantos años que ya no conosco el barrio... vuelvo a mi barrio , si los dioses del olimpo me lo permiten, en agosto de vacaciones y la verdad da un poco de miedo volver a reencontrarse con todo esto (despues de mas de 20 años), desde ya muchas gracias por leer este rollo de coment... un saludo afectuoso para todos y porfa decirme como encontrar una calle (Avda. Mendoza). E-mail enviado a Perosio por um morador de Valencia-Espanha, que não conseguia encontrar no mapa a rua em que viveu em Rosário. (grifo nosso). Mesmo quando o conjunto de linhas e pontos publicado como um mapa é utilizado por nós para resolver os problemas mais óbvios, conseguimos desenhar novos mapas e geografias. Ao perguntarmos como fazemos para chegar do ponto A ao ponto B, temos abertura para realizar uma amplitude de práticas que podem responder essa questão. Todas elas fazem emergir uma realidade diferente. Vejamos o caso de Jane (KITCHIN; DODGE, 2007, p. 339). Viajando de um bairro de Manchester ao centro da cidade, Jane se perde e resolve consultar o mapa de ruas que carrega em sua mochila. Meio a tantos símbolos e traços, ela tenta se localizar e encontrar o melhor caminho para chegar a seu destino. Através do conhecimento, habilidade e experiência que tem com a linguagem cartográfica e com os dados espaciais representados, Jane busca por correspondências entre aquilo que está materializado no espaço concreto e no espaço do mapa. Assim, “she looks at the map, and than at the road, than back at the map, [trying] to find objects such as street names and landmarks in the landscape that she can match to the map and vice-versa”19 (KITCHIN; DODGE, 2007, p. 339). Nesse processo, a garota então se coloca entre duas geografias (a do espaço “real” e a do mapa) e faz emergir a sua própria. Buscando resolver seu problema e descobrir onde está, suas práticas espaciais inscrevem, mundo e mapa, um no outro e os reconstroem. Em outras palavras, “the map Jane beckons into being does not represent a space, or simply re-present a space, it brings space into being”20 (KITCHIN; DODGE, 2007, p. 339). Outros espaços poderiam emergir com Jane se ela tivesse recebido auxílio de outras pessoas. Imagine se para facilitar sua vida, antes de sair de casa, um amigo tivesse lhe 19 Tradução da autora: “ela olha para o mapa, e depois para a estrada, depois volta para o mapa, [tentando] encontrar objetos como nomes de ruas e pontos de referência na paisagem que ela pode combinar com o mapa e vice-versa”. 20 Tradução da autora: “o mapa que Jane sinaliza à existência não representa um espaço, ou simplesmente re- apresenta um espaço, ele traz o espaço à existência”. 39 Aquí nací y viví hasta los 24 años. Los árboles más añosos de este lugar, los planté junto a mi viejo. Acá teníamos un vivero que era referente en la zona. Fernando Travesso, Post Urbano, 2009. (grifo nosso). desenhado uma rota sobre o mapa oficial, ou, se alguém que passasse na rua a visse tentando decifrar a representação espacial resolvesse ajudá-la. Em ambos os casos os mapas tomariam outra forma e, conseqüentemente, a realidade também. Através das anotações feitas na base cartográfica pré-existente, o amigo de Jane produziria um mapa totalmente novo, combinando seu conhecimento sobre a cidade com o conhecimento do cartógrafo que produziu a primeira representação. Para os autores, isso demonstra como as pessoas são capazes de se apropriar do mundo do outro para escrever o seu próprio. “Rather than rely solely on the ‘frozen’ cartographic representations from a ‘professionally’ published source, such route mapping empowers individuals to describe their place in the world to others”21 (KITCHIN; DODGE, 2007, p. 340). Já no caso do transeunte que resolve lhe ajudar a determinar sua posição e as direções que pode levá-la até seu destino, Jane conta agora com a participação de outra pessoa na realização de suas práticas espaciais. Assim, conversando e compartilhando pontos de vista diferentes sobre a representação espacial e sobre o mundo, os dois personagens colaboram um com o outro no processo de construção de seus mapas. “In this sense, Jane’s map is a ‘collaborative manufacture’, as is the space they beckon into being”22 (KITCHIN; DODGE, 2007, p. 340). Nessa perspectiva, os autores querem mostrar que a cartografia não deve ser entendida como uma ciência representacional, mas sim processual. Pois, dada sua natureza contingencial e relacional, são as práticas espaciais que fazem o mapa emergir. Desse modo, o que importa saber não é o que um mapa é ou o que um mapa faz, mas como o mapa se faz, ou seja, como ele passa de uma representação espacial para um mapa. Diante disso, Kitchin e Dodge acreditam que a cartografia deixaria de ser abordada de modo construtivista e essencialista e se transformaria no que chamam de “[an] emergent cartography”, isto é, uma cartografia emergente. 21 Tradução da autora: “Ao invés de confiar apenas nas representações cartográficas "congeladas" de uma fonte "profissionalmente" publicada, este mapeamento de rota, apodera os indivíduos para descrever o seu lugar no mundo para os outros”. 22 Tradução da autora: “Nesse sentido, o mapa de Jane é um “produto colaborativo”, assim como o espaço que eles sinalizam à existência”. 40 ... es una posibilidad que te da de relacionar los puntos con otras cosas, que es libre esa relación, porque los puntos tienen diferentes colores entonces vas como mapeando, digamos, sobre eso hay otro dibujo que es conceptual, de vivencias personales, política y vas descubriendo. ...el proyecto sigue avanzando, por más que vos lo abandones, él sigue avanzando, solo, solo, solo. Daniel Perosio, Post Urbano, 2009. (grifo nosso). 41 I V D O S U R G I M E N T O D E U M N O V O E S P A Ç O P A R A A C A R T O G R A F I A Como vimos, o desenvolvimento de uma forma de representação artística compromissada com as relações espaciais do mundo físico deu origem a uma cultura de mapeamento que durante as Idades Moderna e Contemporânea se consolidou como a ciência da representação do espaço. Desse modo, a cartografia se tornou, na sociedade ocidental, um meio pelo qual o espaço é tomado como uma realidade objetiva e concreta, passível de ser representada apenas por especialistas que dominam as técnicas e regras científicas de construção de mapas. Independentemente do grau de subjetividade que permeia a produção e a leitura de um mapa, tornando possível a criação de realidades e espaços não tão verificáveis, como quer Kitchin e Dodge (2007), a cartografia se desenvolveu a partir dos pressupostos da ciência e dos avanços tecnológicos. Sendo assim, a função da maioria dos mapas na cultura ocidental tem sido o de transmitir de modo preciso um conhecimento profundamente objetivo, como a localização de determinado estabelecimento, a direção de uma cidade e a distribuição espacial de certo fenômeno. Nas últimas décadas a tecnologia que mais tem influenciado o campo da cartografia tem sido os SIGs. Com a digitalização da informação espacial e a evolução dos computadores e dos sistemas gerenciadores de bancos de dados, os mapas passaram a ser construídos em ambiente computacional. Isso mudou profundamente seu processo de produção e seu campo de aplicação, pois, além de automatizar as etapas do mapeamento, tais sistemas integraram dados georreferenciados de diferentes fontes, o que permitiu o tratamento e a combinação de informações mais complexas pelos cartógrafos. Desse modo, hoje, através dos SIGs, os mapas 42 ... la interactividad es una cuestión que ya está conocida, lo que ayuda es la herramienta, es una herramienta, la idea es superar, no hay que encerrarse tanto en herramientas, sino que hay que superar. Es más fuerte que sea la idea que tenga la potencia, una mirada. La tecnología, bueno, podría ser otra cosa... Daniel Perosio, Post Urbano, 2009. (grifo nosso). têm sido amplamente utilizados como meio ou resultado de diferentes tipos de análises espaciais, servindo a estudos, pesquisas e à tomada de decisões nas áreas de Planejamento Urbano e Regional, Transporte, Comunicação, Recursos Naturais, Energia, etc. Nesse contexto, os SIGs difundiram a cartografia em esferas públicas e privadas voltadas à gestão de setores socialmente estratégicos. Segundo Miller (2006), o potencial dos SIGs para analisar e ilustrar dados geográficos levou muita gente a pensar que o mundo dos mapas teria se aberto a uma participação muito maior da sociedade e a novas abordagens, tornando-se assim uma linguagem mais democrática. Infelizmente, contudo, não foi isso o que se viu, pois, primeiro, para utilizar um Sistema de Informação Geográfica é preciso de muito treinamento, conhecimento e recursos de infraestrutura, e, segundo, não há disponibilidade de ferramentas de produção colaborativa e de participação das comunidades locais. Diante disso, junto ao SIG, a cartografia ainda se manteve predominantemente técnica e objetiva. [GIS] has become true for only the portion of that user population that could muster support for hardware, software, data, and training; those for whom access to authoritative, quality data was also not a problem; and, more controversially, those for whom the factual relationship with geospace was more important than the social or political relationship.23 (MILLER, 2006, p. 188). Alguns anos antes de Miller, Harley (1990) já havia feito duras críticas ao modo como essa tecnologia tem sido utilizada pelos cartógrafos. Segundo ele, os SIGs estariam sendo concebidos como um fim em si e não como a nova forma do conhecimento geográfico. “The technology of Geographic Information Systems (GIS) becomes the message, not just the form or medium of our knowledge”24 (HARLEY, 1990, p. 7). Desse modo, para o autor, a cartografia estaria passando por um momento de crise da representação. 23 Tradução da autora: “[SIG] se tornou verdadeiro apenas para a porção daquela população de usuários que podia contar com suporte de hardware, software, dados, e treinamento; aqueles para quem o acesso a dados autorizados e de qualidade também não eram problema; e, mais controversamente, aqueles para quem a relação factual com o geoespaço era mais importante do que para as relações sociais ou políticas”. 24 Tradução da autora: “A tecnologia dos Sistemas de Informação Geográfica (SIG) se tornou a mensagem, não somente a forma ou meio de nosso conhecimento”. 43 Tal frustração, no entanto, não fez com que aquelas pessoas mais preocupadas com a importância da cartografia e, da informação geográfica como um todo, no desenvolvimento social e cultural das comunidades, desistissem da tecnologia. Para muitos estudiosos esses sistemas podem realmente desempenhar um papel diferenciado na sociedade se conseguirem se tornar instrumentos “accessible-but-powerful, technological-but-democratic, professional- but-affordable”25. Para tanto, segundo Harris e Weiner (1998 apud MILLER, 2006) é preciso aceitar o desafio e criar uma segunda versão de SIG, que permita unir a técnica e a ciência a formas alternativas de conhecimento. Certainly, the social history of GIS development places the technology within a western, first world science paradigm. The system is predominantly based upon the scientific map as metaphor and the basic spatial primitives of point, line, polygon, and pixel. […] Non-Euclidean sketch maps, cognitive and mental maps, narrative and oral histories, pictorial images and moving images are generally excluded from current GIS knowledge bases. […] GIS epistemologies and multiple realities thus pose considerable challenges to the GIS community with regard to handling potentially conflicting information arising from broadening the representation of groups within the system and combining top-down expert knowledge with bottom-up local knowledge.26 (HARRIS; WEINER, 1998 apud MILLER, 2006, p. 189). Muitos esforços têm sido empregados na busca pelo GIS/2. Miller cita algumas tentativas teóricas e práticas nessa direção, mas, entende que a maioria delas não passa de modelos abstratos ou atividades mediadas por algum especialista. Desse modo, para ele, apenas recentemente um verdadeiro candidato ao posto foi produzido e sua origem é “duvidosa”, pois, veio de um lugar inesperado, fora do meio acadêmico e das companhias desenvolvedoras dos SIGs. Veio do ciberespaço. Na concepção do autor, aquilo que podia e deveria ser construído por indivíduos, agências e institutos que há um tempo razoável têm se desdobrado em debates como GIS and Society27, foi, na verdade, criado, quase 25 Miller, 2006, p. 189. Tradução da autora: “acessível-mas-poderoso, tecnológico-mas-democrático, profissional-mas-barato”. 26 Tradução da autora: “Certamente, a história social do desenvolvimento do SIG coloca a tecnologia dentro de um paradigma científico ocidental e de primeiro mundo. O sistema é predominantemente baseado no mapa científico como metáfora e nos fundamentos espaciais básicos do ponto, linha, polígono, e pixel. […] Esboços de mapas não-euclidianos, mapas cognitivos e mentais, narrativas e histórias orais, imagens pictóricas e imagens em movimento são geralmente excluídas das atuais bases de conhecimento do SIG. […] As epistemologias do SIG e as múltiplas realidades, assim, colocam desafios consideráveis à comunidade SIG no que diz respeito ao tratamento de informações potencialmente conflitantes decorrentes da ampliação da representação de grupos dentro do sistema e combinando conhecimento especialista, na forma top-down, com o conhecimento local, na forma bottom-up”. 27 Nome dado ao debate acadêmico que se iniciou em 1996 com propósito de discutir as implicações sociais do modo como as pessoas, o espaço e o meio ambiente são representados no GIS. Tais discussões deram origem ao relatório Initiative 19, o qual pode ser consultado no site http://www.geo.wvu.edu/i19/ . http://www.geo.wvu.edu/i19/ 44 espontaneamente, através de uma rara combinação: a criatividade de dois texanos de vinte e poucos anos e o sistema de mapas do Google. I am arguing here that Google’s Google Maps service, or, more, specifically the applications being built atop its easily hackable application programming interface (API), are poised to provide that very rare beast about which GIS scholars have been arguing for some time: a geospatial information platform upon which non-GIScientists, but nonetheless interested parties, can read, write, alter, store, test, represent, and present information in ways that they desire and in formats and environments they understand.28 (MILLER, 2006, p. 188) A esse tipo de aplicação ou combinação tem-se dado o nome de Google Maps Mashups. Mashups são aplicações ou serviços online construídos a partir do código e da função de dois ou mais programas já existentes, ou ainda, através da incorporação de novos códigos e dados a esses programas. Assim, os mashups de que Miller trata é resultado de combinações do Google Maps com outros programas, recursos e fontes de informação. Na Web podemos encontrar várias aplicações desse tipo e a maioria delas utiliza os mapas e imagens de satélite interativas providas pelo sistema do Google apenas para visualizar espacialmente informações produzidas em outros sites. Diante disso, grande parte dos criadores de mashups não são diretamente responsáveis pelos conteúdos de seus mapas. No entanto, como coloca o autor, existem também aplicações que permitem facilmente a participação direta de pessoas no processo de mapeamento e, nesta perspectiva, os mashups estariam muito próximos do que seria um SIG/2. Como exemplo desse tipo de mashup, Miller (2006) cita a aplicação criada por dois jovens texanos em setembro de 2005. Originalmente, o projeto de mapeamento estava hospedado no site scipionus.com, hoje, porém, é possível visualizá-lo acessando a página29 de um de seus criadores. Nessa página, podemos encontrar um Google Maps Mashup desenvolvido para ajudar a população de New Orleans na época do furacão Katrina. Desse modo, ao clicar nos marcadores em forma de balão, que se espalham por todo o mapa da região, iremos encontrar mensagens de diferentes pessoas procurando familiares e amigos, dando noticias de sua situação e falando sobre as condições de determinados pontos da cidade. 28 Tradução da autora: “Estou dizendo que o serviço Google Maps, ou, mais especificamente, as aplicações que estão sendo construídas sobre sua interface de programação facilmente manipulável (API), estão preparadas para fornecer aquela rara besta sobre a qual os acadêmicos do SIG vêm discutindo por algum tempo: uma plataforma de informação geoespacial sobre a qual não-SIG-cientistas, mas partes não menos interessadas, podem ler, escrever, alterar, armazenar, testar, representar, e apresentar informação da maneira como desejam e nos formato e ambientes que entendam”. 29 http://gregstoll.dyndns.org/scipionus/ http://gregstoll.dyndns.org/scipionus/ 45 Segundo Miller (2006), essas marcas têm as mesmas propriedades que os pontos de dados que compõem os mapas criados num SIG; elas possuem simbologia, latitude e longitude e meta-atributos sobre sua criação e modificação. No entanto, como diz o autor, os dados desse mapa construído diretamente no ciberespaço, vêm de uma fonte pouco usual: “the communities being mapped”30. Nesse contexto, enquanto a maioria dos sistemas de informação geográfica era utilizado para mapear a localização exata do olho do furacão Katrina, Scipionus permitia que pessoas diretamente afetadas pelo desastre mapeassem o que sabiam e o que precisavam saber sobre aquele lugar, naquele momento. Assim, para Miller, apesar da falta de precisão e rigor presente nesse mapeamento, definitivamente, é ele que mais chega perto de um SIG participativo. The geography of the markers is approximate geography, not representing triangulated locations at all but, rather, indicating the imprecise ‘‘geographic’’ location where a distraught survivor or survivor’s friend or relative placed the cursor and clicked. The geo-coding was calculated from memory, the method of feature class editing no different than a mouse-click on a Web page anywhere else, eBay or Amazon. But the gravitas and pathos of this GIS work is like no other, and this makes it that much easier to see in Scipionus a decidedly participatory GIS.31 (MILLER, 2006, p. 195). Para o autor, contudo, a possibilidade de construir ferramentas e sistemas de mapeamentos mais participativos na Web não significa que os próprios SIGs tenham mudado e se transformado numa nova versão. Existem muitas diferenças entre essas duas formas de mapear e as práticas que são realizadas a partir delas. Com certeza, o desenvolvimento dessas aplicações teve um profundo impacto nos debates sobre SIG/2, já que são facilmente compreendidos por um amplo público, mas, como diz Miller (2006, p. 193) “just because new populations are tinkering with geospace, this doesn’t necessarily mean that GIS itself is changing”32. Particularmente para nós, esse fenômeno talvez não garanta a mudança dos Sistemas de Informação Geográfica e nem da cartografia, porém, pode ser o indício do surgimento de uma nova cultura de mapeamento. Uma cultura marcada pelos modos de comunicação do ciberespaço e pela linguagem híbrida da cibercultura. 30 Miller, 2006. Tradução da autora: “das comunidades sendo mapeadas”. 31 Tradução da autora: “A geografia dos marcadores é uma geografia aproximada, não representa, de forma alguma, locais triangulados, mas indica o impreciso local “geográfico” onde um inquieto sobrevivente ou um amigo ou parente do sobrevivente colocou o cursor e clicou. O geocódigo foi calculado da memória, seu método de classificação de atributo não difere do clique em qualquer outra página Web, eBay ou Amazon. Mas a gravidade e a paixão desse trabalho SIG são como em nenhum outro, e isso torna muito fácil ver no Scipionus um SIG decididamente participativo”. 32 Tradução da autora: “apenas porque novas populações estão mexendo com o geoespaço, não siginifica, necessariamente, que o SIG propriamente dito está mudando”. 46 Nesse contexto, trataremos, nessa segunda parte da dissertação, de como o desenvolvimento das redes transformou nossa relação com o espaço físico produzido pela ciência, nos oferecendo um ambiente para práticas sociais e culturais criadoras de novas relações de sentido. 47 4.1 O ciberespaço Em 1969, na Califórnia, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos criou a 1ª rede de conexão de computadores a longa distância denominada Arpanet. Aberta aos centros de pesquisa que cooperavam com os projetos militares, esse novo meio de comunicação, que veio a se tornar a Internet, também foi concebido nos anos 50 durante a Guerra Fria. Buscando precaver seu sistema de comunicação de um possível ataque soviético, a agência norte-americana responsável pelo desenvolvimento de pesquisas avançadas no setor militar investiu fortemente numa nova estratégia de troca de informações digitais baseada na comutação de pacotes. Esse novo sistema permitiu a formação de uma rede de computadores estendida e independente de um centro e de uma única rota para a circulação da informação, tornando-se, assim, pouco vulnerável a uma possível ofensiva. Seguindo essa nova lógica de conexão sem hierarquias e limites, a Arpanet foi se expandido para as universidades e institutos de pesquisas de todos os cantos dos Estados Unidos, deixando de ser um meio de comunicação estrito para assuntos militares. Algumas outras redes de computadores foram sendo criadas para atender a demanda das comunidades de pesquisadores e estudiosos que não viam a hora de começarem a se comunicar nesses novos termos. Entretanto, todas essas novas redes estavam conectadas a Arpanet. Esta, então, se transformou na Arpa-Internet, a rede das redes, muito embora não ainda de alcance global, já que sua capacidade de transmissão e processamento de dados não era suficiente para que “todo o mundo”33 se interconectasse. A Internet, a verdadeira rede de comunicação mundial, só foi viabilizada em 1983, quando algumas adaptações de protocolos permitiram todo tipo de transferência de dados digitais entre computadores e redes diferentes. A partir disso, segundo Castells (1999, p. 376), as condições para a comunicação horizontal global estavam postas e “o sistema de redes surgiu em grande escala como redes locais e redes regionais conectadas entre si e começou a se expandir para qualquer lugar onde houvesse linhas telefônicas e computadores munidos dos equipamentos baratos chamados modems”. O que isso significou para a sociedade? Entre outras coisas, significou o surgimento de um novo tempo e espaço vivido pelo homem. 33 Sabemos que a comunicação global não depende apenas de condições tecnológicas existentes, já que o acesso aos bens necessários para isso ainda é muito desigual tanto entre os países como entre as diferentes classes sociais que compõem uma nação. 48 Yo empecé haciendo las que no usan, eran muchísimo más puntuales, muchísimos acontecimientos en el lugar, Internet lo que tiene es, primero, que se va documentando, va archivando y generando un archivo y va funcionando como a destiempo. Daniel Perosio, Post Urbano, 2009. (grifo nosso). Segundo Ferrara (2008), há tempos a sociedade ocidental vem percorrendo o paradigma da velocidade, buscando diminuir o tempo de deslocamento dos fluxos de informação, de materiais e de indivíduos. Desde a Revolução Industrial, meios de comunicação e transporte cada vez mais velozes têm sido inventados pela ciência, contudo, a Internet é a primeira de todas essas tecnologias que consegue de modo descentralizado e em escala global reduzir quase a zero esse tempo, tornando o próprio deslocamento algo banal. Por enquanto, apenas imagens, textos e sons em formato digital conseguem se descolar nesse novo tempo, mas, se considerarmos que, hoje, quase tudo é digitalizável, inclusive nossa própria voz e movimento, parece que mesmo através de uma tela de computador conseguimos nos sentir mais próximos de quem está fisicamente a milhares de quilômetros de distância, do que daqueles que estão logo aqui do lado. A Internet, assim como outras tecnologias de comunicação baseadas em satélite, laser e fibra ótica, funciona na velocidade da luz, ou seja, à 300.000 Km/s. Isso quer dizer que através de ondas eletromagnéticas, um pacote de dados situado aqui no Brasil, ou em qualquer outra parte do mundo, pode ser instantaneamente reconstituído como imagem (estática ou em movimento), som e texto em computadores localizados no Japão. Ou seja, o tempo de deslocamento, ou transmissão, de informações digitais pela Internet tornou-se quase imperceptível para nós. Assim, o que existe aqui pode estar, agora, no lado oposto do planeta e também nos seus lados adjacentes, já que estamos todos conectados em rede. Nesse contexto, ou melhor, nessa velocidade, passamos, então, a viver o tempo das transmissões simultâneas e instantâneas, isto é, o tempo real da produção do sentido, seja ele de natureza econômica, social, ambiental, cultural ou psíquica e, esteja seu signo estocado em qualquer parte do mundo. O globo e tudo o que o anima, imagens, palavras, números, pessoas, lugares, desejos, pensamentos, se fazem presente diante de nossos olhos! Desse modo, através das ondas que transportam os códigos, bits, de nossas trocas simbólicas, inauguramos uma nova relação com o tempo e conquistamos novas formas de contato. Em tempo real, podemos concretizar negócios, realizar reuniões, conhecer pessoas, namorar, fazer amigos, acessar informações, debater idéias, criar mapas, produzir arte, sem que para isso ninguém precise mais sair de casa. 49 Tais fenômenos comunicativos indicam que a nova velocidade vem transformando várias das atividades humanas que há pouco exigiam a obrigação do deslocamento. São tantas as esferas de nossa vida que pelas novas tecnologias de comunicação se tornaram transmissíveis em tempo real que cada vez mais diminuímos o tempo que despendemos percorrendo trajetos, indo de um lugar para outro. Para Virilio (1993), esse processo, que em sua opinião caminha em direção à própria abolição da mobilidade, transforma também a noção clássica de espaço que construímos com a ajuda da perspectiva geométrica e que mapeamos com a cartografia. Já que as transmissões no tempo da velocidade-luz se mostraram capazes de comprimir o espaço entre as coisas, entre as pessoas e entre os lugares para se fazer ver, ouvir, agir e até sentir à distância, o autor entende que uma nova forma de perspectiva vem se sobrepor àquela produzida pelo Renascimento. Como vimos no primeiro capítulo da dissertação, a perspectiva clássica foi inventada para aprimorar a representação do que o olho via na realidade. Para tanto, essa técnica exigia que o artista se posicionasse diante da cena a ser pintada, ou desenhada, e a observasse de um único ponto de vista, através de uma tela vazada, ou transparente, que se colocava entre eles. Assim, o artista conseguia construir uma imagem que conservava o aspecto tridimensional dos objetos e personagens que se destacavam no horizonte aparente e, também, do próprio espaço vazio que envolvia a cena. Hoje, a tela que se situa entre o olho e o que é visto nos permite enxergar o que está muito além do horizonte aparente, pois, a emissão e recepção instantânea de dados digitais produzem uma nova forma de transparência que elimina qualquer distância que possa haver entre dois pontos do globo. Desse modo, um pintor da era do tempo real poderia representar uma cena localizada na França, estando nos Estados Unidos, tal como faz Bill Guffey34. O artista plástico norte-americano vive no estado de Kentucky, mas com a