LEANDRO RIBEIRO GOMES LIBERTÁRIOS E BOLCHEVIQUES: A repercussão da Revolução Russa na imprensa operária anarquista brasileira (1917-1922) Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista, para a obtenção do título de Mestre em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientador: Claudinei Magno Magre Mendes ASSIS 2012 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Gomes, Leandro Ribeiro G633l Libertários e Bolcheviques: a repercussão da Revolução Russa na imprensa operária anarquista brasileira (1917-1922) / Leandro Ribeiro Gomes. Assis, 2012 242 f. : il. Dissertação de Mestrado - Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr. Claudinei Magno Magre Mendes 1. Movimento operário. 2. Imprensa Trabalhista - Brasil - História. 3. Imprensa e política. 4. Anarquismo e anarquistas. 5. Rússia – História – Revolução, 1917 – 1922. I. Título. CDD 331.1 947.084 Dedico este trabalho em especial a minha mãe, Cassia Aparecida Ribeiro Gomes, que muito me ensinou a amar. E com carinho, ao meu pai, David Gomes, um trabalhador, ao qual eu me orgulho em ter aprendido o ofício de borracheiro. Agradecimentos Inicialmente, gostaria de agradecer à FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) pelo apoio material que me foi concedido durante grande parte desta pesquisa e de meu programa de Mestrado. Sem os seus recursos, a realização deste trabalho não seria possível, assim como a coleta de documentos nos arquivos consultados e a participação em congressos. Quero agradecer em particular, e com muito afeto, ao meu primeiro orientador, o professor Sergio Augusto Queiroz Norte e Silva, que muito apoio e preciosas indicações me ofereceram, desde o início do projeto, ao qual esta pesquisa não teria se realizado sem o seu auxilio. A este professor, eu agradeço também pela liberdade que me foi dada na condução deste estudo, que muito contribuiu para a minha formação de historiador. Obrigado, te admiro, “saúde e liberdade” companheiro. Agradeço também com grande alegria ao meu segundo orientador, o professor Claudinei Magno Magre Mendes, que aceitou me orientar com a ausência do Sergio. Professor este, que me auxiliou com grande atenção na conclusão deste trabalho, enriquecendo ainda mais esta pesquisa com sugestões e ajudas valiosas. Obrigado professor. E como uma pesquisa desta não é um empreendimento individual, pois depende e precisa da ajuda e os aprimoramentos dados por muitos, eu também agradeço aos outros professores que me auxiliaram. Assim, lembro também o professor Carlos Alberto Sampaio Barbosa do departamento de história da UNESP que participou do meu exame de qualificação, adicionando mais sugestões e críticas, assim como o professor Cesar Augusto de Carvalho, da UEL (Universidade Estadual de Londrina), também presente no referido exame. Tenho que agradecer também a professora Isabel Aparecida Bilhão, atualmente professora da Universidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, que me ajudou com indicações sobre o movimento operário gaúcho. Agradecimentos também com grande satisfação a minha querida amiga Cibele Verrangia Correa da Silva, que me ajudou com a revisão final do texto desta Dissertação. Na parte gráfica, nos anexos que se encontram no final deste trabalho, também devo a ajuda de Eder Capobianco, amigo que também prestou a sua colaboração. Não devo esquecer ainda dos funcionários e das instituições que me auxiliaram, imprescindíveis ao longo deste programa de Mestrado. Dessa forma, cito o nome de Marcos Francisco D’Andrea, funcionário da seção de pós-graduação da UNESP de Assis, que muito me auxiliou nos compromissos burocráticos. Obrigado também a Márcio José Gusmão Carvalho, do Escritório de Pesquisa da mesma universidade, que da mesma forma sempre me socorreu com as obrigações burocráticas da FAPESP. Aos funcionários da Biblioteca da FCL – UNESP/Assis e ao pessoal do CEDAP (Centro de Apoio à Documentação e Pesquisa da UNESP/Assis), que também me ajudou com as digitalizações que se encontram no anexo. Aos funcionários, e aos centros de documentação onde realizei as minhas pesquisas: ao CEDEM (Centro de Documentação e Memória da UNESP), em São Paulo, e ao AEL (Arquivo Edgard Leuenroth), na UNICAMP, em Campinas. À minha família, agradeço pela paciência, incentivo, carinho e compreensão pelos meus momentos de ausência, a minha mãe, ao meu pai, e aos meus irmãos queridos Evandro e Ariane, e a minha amiga Silvia, muito importante em minha trajetória, obrigado. Agradeço muito a todos os meus grandes amigos desde a época da graduação, amigos das antigas, ao Marcel (X), Rodrigo, Larissa, Daniel, Paula, e Nayara, que muito me ensinaram sobre a amizade. Também devo aos novos amigos dos anos mais recentes, em especial aos amigos da banda de rock’n roll nacional “Quem não tem colírio”, ao qual eu tive a felicidade de participar e compartilhar de grandes alegrias, ao Tuquis, Rafael, Lico, Lahyr Neto e Guilherme. Grandes abraços também ao Marcel (Sapo), ao Sem Teto, ao Edinei, ao Clodô e até ao 100 Grama, pela companhia e lições de vida. Obrigados também ao pessoal do boxe e ao meu treinador Claudemir, esporte este que me ajudou muito. Tenho muito a agradecer ainda aos mais velhos amigos de Assis, desde antes da faculdade, ao qual eu cresci ao lado, e muito aprendi, em especial ao Tiago, Luizinho, Biano, Sal, Batata e Marcelo, saudades. E como ninguém é feito apenas de si mesmo, eu agradeço a todos os amigos que já se foram. Eu agradeço a todos aqueles ao qual eu aprendi coisas além das dos livros, ensinamentos e conhecimentos sobre o nosso “humanizar” que encontramos nas conversas de bar, nas festas de faculdade, nas pessoas que conhecemos. Agradeço a todas as mulheres que passaram pela minha vida nestes longos anos de Assis. Agradeço a toda força da natureza, com todos os seus elementos, uteis a evolução. A todos, muita saúde, tesão e Anarquia. Gratidão... “Em um nível mais acadêmico, historiadores (da ciência, da cultura) começaram a abordar o passado nos próprios termos deste. Em 1933, em sua aula inaugural no Collège de France, Lucien Febvre tinha ridicularizado os escritores que, ‘sentados a suas escrivaninhas, atrás de montanhas de papel, tendo fechado e coberto suas janelas’, emitiam juízos profundos sobre a vida de proprietários rurais, camponeses e trabalhadores agrícolas. (...)”. (Paul Feyerabend. Contra o Método, p. 11-12). “(...) A grande imprensa brasileira opera, na fase atual, uma tarefa que nunca antes desempenhou: a de deformar a realidade, ou a de escondê- la. (...) Tais jornais perderam aquilo que se conhece como credibilidade, o que eles informam não merece confiança. Existe profundo divórcio entre o que o público pensa e acredita e necessita e aquilo que a grande imprensa veicula. (...) (...) Trata-se de assegurar, por dispositivos legais, a situação existente, quando a grande imprensa detém o comando da informação e, com ele, estabelece as regras do jogo político. Batizar de democracia um quadro como o que é apresentado pela grande imprensa brasileira, atualmente, é, sem dúvida, levar muito longe uma farsa que, pelo seu uso e abuso, se transformou em norma. (...)”. (Nelson Werneck Sodré. História da Imprensa no Brasil, 1999). “Mas um dia se ha de fazer a historia da vileza imensa da imprensa deste tempo, e então o ferrete da ignominia marcará para sempre a testa dos miseraveis rufióis do pensamento, que são os jornalistas da burguezia...” (Astrojildo Pereira - Cronica Subversiva, “Barrajem de Patranhas”, ano 1, nº 06, 06/07/1918, p. 02). “Todas as coisas do mundo são de todos os homens, porque todos os homens delas necessitam, porque todos os homens colaboraram, na medida de suas forças, para produzi-las; porque não é possível avaliar a parte de cada um na produção das riquezas do mundo (...)” (Piotr Kropotkin. A Conquista do Pão, 1892). GOMES, Leandro Ribeiro. LIBERTÁRIOS E BOLCHEVIQUES: A repercussão da Revolução Russa na imprensa operária anarquista brasileira (1917-1922). 2012. 242 f. Dissertação (Mestrado em História). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012. Resumo No começo do século XX, a Revolução Russa abalou o mundo com as dimensões de suas experiências e a radicalidade de suas propostas. Por pressão das camadas populares russas insatisfeitas com as mazelas da primeira guerra mundial, o czarismo foi derrubado e em seguida o governo provisório, desencadeando uma revolução de forte caráter operário e camponês. Os sovietes (conselhos populares) espalharam-se por todo o território de um país de dimensões continentais (constituindo-se de início, uma grande experiência libertária). Com isso, a Rússia Soviética tornou-se uma referência para todos os movimentos revolucionários e socialistas ao redor do mundo, e o movimento operário brasileiro (que na época era predominantemente de tendência anarquista) não ficou imune aos impactos desse evento. Este trabalho é o resultado de uma pesquisa que analisa o entendimento e a compreensão que os militantes anarquistas brasileiros tiveram a respeito da revolução na Rússia, por meio de sua imprensa. Para tanto, utilizamos como fontes documentais os jornais A Plebe, A Vanguarda, A Obra, O Libertario, A Semana Social, A Luta, Cronica Subversiva, O Debate, O Cosmopolita, Spártacus, Voz do Povo e o Boletim da Aliança Anarquista do Rio de Janeiro. As formas como os anarquistas enxergaram e representaram este acontecimento em seus periódicos, nos revelam, e nos possibilitam investigar e compreender, os conflitos e mudanças internas no movimento operário brasileiro do período. Movimento operário este que ficou dividido entre “libertários e bolcheviques”, devido o caráter autoritário do regime russo, que não contemplava as expectativas do anarquismo, apesar dos elementos libertários da experiência revolucionária ocorrida na Rússia. Palavras-chave: Revolução Russa; Imprensa Operária brasileira; Anarquismo. GOMES, Leandro Ribeiro. Anarchists and the Bolsheviks: The impact of the Russian Revolution in Brazilian anarchist labor press (1917-1922). 2012. 242 f. Thesis (MA History). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012. Abstract In the early twentieth century the Russian Revolution shook the world with the dimensions of its experiences and the radicalism of its proposals. Under pressure from Russian grassroots popular classes dissatisfied with the ills of the First World War, the Tsarist regime and then the interim government were overthrown, sparking a revolution of strong proletarian and peasantry character. The Soviets (popular councils) have spread throughout the territory of a country of continental dimensions (constituting at the beginning, a great libertarian experience). Thus, Soviet Russia became a reference for all socialist and revolutionary movements around the world, and the Brazilian labor movement (which at that time was predominantly anarchist) was not immune to the impacts of this event. This work is part of a study that analyzes the understanding and the perception that the Brazilian anarchist militants had about the revolution in Russia, by the reading of their press. We used as documentary sources the following anarchist press: A Plebe, A Vanguarda, A Obra, O Libertario, A Semana Social, A Luta, Cronica Subversiva, O Debate, O Cosmopolita, Spártacus, Voz do Povo and the Boletim da Aliança Anarquista do Rio de Janeiro. The ways in which anarchists saw and represented this event in their journals reveal and enables us to investigate and understand the conflicts and changes within the Brazilian labor movement of the period which was split between "libertarians and Bolsheviks," because the authoritarian character of the Russian regime which did not include the expectations of anarchism, despite its revolutionary elements. Keywords: Russian Revolution; Brazilian Labor Press; Anarchism. Sumário Introdução...............................................................................................................................10 A Repercussão da Revolução Russa e a imprensa no Brasil....................................................12 Fontes de pesquisa: os jornais operários anarquistas................................................................18 Metodologia..............................................................................................................................27 A “tradição” da luta socialista...................................................................................................34 Os militantes e a cobertura jornalística.....................................................................................38 Capítulo 1: A Revolução Russa: “a grande vitória do proletariado rumo ao socialismo”...........................41 1.1 A velha Rússia e a experiência revolucionária dos Sovietes..............................................42 1.2 O anarquismo russo na revolução.......................................................................................57 1.3 A repercussão da Revolução Russa no movimento operário e anarquista mundial.................................................................................................................71 Capítulo 2: O Movimento Operário no Brasil: anarquismo e imprensa militante.......................................86 2.1. O movimento operário brasileiro na Primeira República..................................................87 2.2. O movimento anarquista e a sua imprensa.......................................................................105 2.3. A recepção da Revolução Russa no Brasil e sua repercussão entre os libertários...............................................................................................122 Capítulo 3: A repercussão da Revolução Russa na imprensa dos anarquistas brasileiros.........................136 3.1. Ecos de Outubro..............................................................................................................136 3.1.1. Publicação de documentos, relatos e entrevistas especiais...........................................137 3.1.2. Os Sovietes e as “visões” da revolução........................................................................157 3.1.3. As notícias da Rússia e as difamações contra a revolução...........................................175 3.2. Entre “camaleões” e “cristalizados”................................................................................188 3.2.1. Os anarquistas russos e a repressão bolchevique..........................................................189 3.2.2. A 3ª Internacional de Moscou.......................................................................................200 3.2.3. Reafirmando posições: os libertários brasileiros diante da nova Rússia Soviética.........................................................................................................205 Conclusão...............................................................................................................................215 Fontes e Referências Bibliográficas.....................................................................................221 Anexos....................................................................................................................................230 10 Introdução “Para mim é tão odioso seguir quanto guiar”. Nietzsche, A gaia ciência. Escrever a História é uma atividade tão árdua quanto delicada. Aos esforços de leitura, pesquisa e redação somam-se as dificuldades de se compreender uma época, pois julgar não é tarefa do historiador. E o que pode dificultar essa compreensão não são apenas os deslizes de nossas convicções pessoais, mas também as próprias experiências históricas que formaram estas convicções e as ideias que se tem do passado. A presente Dissertação tem por objetivo investigar a repercussão que a Revolução Russa teve na imprensa operária brasileira anarquista – tendência que constituía a maior parte do movimento operário naquela época – tendo como recorte cronológico os anos de 1917 a 1922, para poder abarcar os eventos deste processo revolucionário. Os jornais anarquistas que iremos trabalhar são: A Plebe; A Vanguarda; A Obra e O Libertário – todos estes publicados na cidade de São Paulo –; A Semana Social – de Maceió, Alagoas –; A Luta – de Porto Alegre –; e O Cosmopolita; O Debate; Cronica Subversiva; Spártacus; Voz do Povo e o Boletim da Aliança Anarquista do Rio de Janeiro – estes últimos da então capital federal da época.1 A posição da imprensa na historiografia sofreu transformações mais precisamente a partir da década de 1970, quando além de uma História da imprensa – uma descrição e catalogação dos órgãos jornalísticos que existiram – e uma História por meio da imprensa – o estudo de temas que poderiam ser analisados nas folhas periódicas – o jornal passa a tornar-se o próprio “objeto” da pesquisa histórica. Dessa forma, enquanto “objeto”, o jornal passa a ser a única fonte de documentação de uma dada investigação, que entende o impresso estudado como um agente que interviu e participou na vida social e não apenas como um transmissor, uma “fonte” de informações sobre esta realidade social, convertendo-se no “objeto” em si do trabalho. Assim, podemos entender os jornais que iremos trabalhar como sendo, ao mesmo _________________________ 1 Sobre o fato do movimento anarquista ter sido a tendência hegemônica no movimento operário brasileiro nas primeiras décadas do século XX, podemos dizer que esta constatação sempre foi destacada nas obras historiográficas deste campo de pesquisa (assunto que trataremos em maior profundidade ao longo deste trabalho). Para esta oportunidade, podemos mencionar apenas dois exemplos significativos, que convergem na consideração da predominância do movimento libertário nas lutas dos trabalhadores e na influência decisiva da imigração européia para entender a importância do anarquismo nesta realidade, ou seja, Fausto: (1977, p. 32) e um mais recente, Viana (2006, p. 30). 11 tempo, fonte e objeto – de uma pesquisa que se debruça sobre como os anarquistas brasileiros receberam a Revolução Russa em suas publicações.2 Mas as convicções pessoais e as experiências históricas, também podem se tornar “prisões” para uma prática historiográfica mais livre, que lute contra preconceitos e que busque, o tanto quanto possível, compreender. A fé e a decepção no progresso humano, na razão, na ciência e na liberdade do indivíduo em que foi palco o último século, moldaram os valores do mundo contemporâneo em que o historiador se insere e não pode fugir. Fazer uso dos jornais como única fonte primária de um objeto histórico, ainda mais de uma imprensa militante numa época conturbada da história como é o caso, oferece dificuldades próprias. Uma delas são as posturas ideológicas dos produtores destes periódicos. Eram “jornalistas operários” na Primeira República do Brasil entre 1917 a 1922, que também acreditavam que era “tão odioso seguir quanto guiar”, pois estavam inseridos no espírito de uma época de passagem de um século ao outro marcado por uma grande fé na ciência, ao mesmo tempo em que continha uma revolta e um anseio por libertação.3 O posicionamento político destes militantes criou condições específicas, tanto da produção de seus impressos, quanto das ideias que tinham e poderiam desenvolver sobre eventos noticiados em suas páginas – características que influenciam nos cuidados da análise histórica. Trata-se, então, de um setor da sociedade, que com as posturas ideológicas da doutrina anarquista, entendeu e recebeu à sua maneira as notícias dos eventos russos. Ao selecionar estes jornais operários como o objeto privilegiado da pesquisa, o objetivo então é analisar a maneira como foram registrados e interpretados estes eventos. Comparando a produção impressa destes jornais e periódicos, para verificar os distanciamentos e semelhanças entre eles e, portanto, o discernimento da realidade que construíram, e com isso entender melhor as transformações internas do movimento operário do período com o advento desta revolução. Assim como também analisaremos as fontes que estes jornais libertários se utilizaram para falarem a respeito da Rússia. A Revolução Russa de 1917 foi um evento internacional que impactou o mundo da época. Por ter tido como protagonista o povo, o “proletariado”, e por ter realizado os seus esforços em nome da causa socialista e comunista, também defendida pelo movimento anarquista, a partir do seu próprio ponto de vista. A Rússia soviética tornou-se, então, um imã para todos os movimentos operários e revolucionários do mundo. No entanto, as divergências _________________________ 2 A respeito do jornal como objeto: Cf.: (LUCA, 2006, p. 118). 3 Este clima do início do século XX é comentado no famoso livro: (HOBSBAWM, 1995). 12 teóricas e doutrinárias entre o anarquismo e o marxismo – este último com forte influência sobre os bolcheviques vitoriosos na Rússia – fez com que o movimento anarquista internacional logo entendesse o caráter centralizador do novo regime, formulando críticas ao bolchevismo nos meios militantes e operários, o que conferiu um interesse particular ao tema. Esta dissertação se dedica, portanto, a reação do movimento operário anarquista brasileiro diante de uma revolução que defendia a causa operária e o socialismo, bem como o impacto desta revolução distante no seio deste movimento, e que é possível identificar em sua imprensa militante. Assim como as identificações e oposições do proletariado do Brasil para com os revolucionários russos, e em que nível. E o apoio internacionalista à insurgência do povo russo, que ocorreu e foi divulgado na imprensa do operariado nacional. A Repercussão da Revolução Russa e a imprensa no Brasil Como já foi mencionado, a Revolução Russa não ficou circunscrita dentro de seus limites territoriais, aliás, nenhuma revolução fica, pelo contrário, a dimensão dos impactos da experiência revolucionária russa foi muito grande, como atesta Hobsbawm: “(...) A Revolução de Outubro produziu de longe o mais formidável movimento revolucionário organizado na história moderna. Sua expansão global não tem paralelo (...)” (HOBSBAWM, 1995, p. 62). Portanto, esse evento ecoou, repercutiu e foi acompanhado em vários países por meio das informações divulgadas e telegrafadas pelas agências internacionais de notícias. E para pensarmos sobre a maneira como se deu a repercussão deste grande evento, inclusive pelas várias imprensas e jornais ao redor do mundo (que já participavam de um sistema global de comunicações), devemos levar em conta o grau de intensidade das expectativas e temores que ela suscitou; a importância que atingiu as suas polêmicas na sociedade, o que ajuda a entender a rapidez de sua “expansão global”. Para isso, o velho historiador inglês explica que para a geração que viveu nestes anos imediatos à Revolução Russa esta época foi vista como um momento decisivo da História, por exemplo, como o início da possibilidade da queda do capitalismo (HOBSBAWM, 1995, p. 79). O historiador francês René Rémond também escreveu sobre esta atmosfera de início do século passado oferecendo dados sobre as repercussões destes fatos no mundo. Ele comenta que a experiência russa tornou-se sinônimo de subversão, mostrando-se como uma ameaça aos regimes políticos e a ordem social dos outros países, assustando governos e 13 classes dirigentes, pois: “(...) A revolução russa apresenta-se à opinião pública democrática ou socialista do Ocidente como a herdeira das revoluções de 1789 e 1848. O mito da revolução soviética cristaliza as aspirações de renovação, de paz, de internacionalismo. (...)” (RÉMOND, 1976, p. 49). As agências internacionais de notícias mencionadas, no entanto, eram influenciadas pelos acordos e interesses geopolíticos das grandes economias imperiais européias e pela economia estadunidense. Assim, uma revolução radical na Rússia, que era aliada da Tríplice Entente na Primeira Guerra Mundial, acabou produzindo “notícias duvidosas” (do ponto de vista dos operários militantes) veiculadas por estas agências: a inglesa Reuter, a francesa Havas e a Associated Press e United Press, ambas dos Estados Unidos, que depois entrou para o lado da Entente na guerra. Agências estas que eram as mais usadas pela imprensa brasileira, em geral, para obter informações do exterior naquela época. E como todo órgão de imprensa (como será discutido adiante), elas noticiaram as informações segundo o seu ponto de vista, que eram distintas da imprensa do movimento operário.4 Devemos ter bem claro ao tratar deste tema que a imprensa escrita, os jornais e periódicos, constituíam os principais veículos de ampla comunicação e divulgação de informações nas primeiras décadas do século XX. Por isso, esta se tornou uma fonte rica de documentos e de pesquisas, inclusive para o estudo e a avaliação das repercussões e impactos da Revolução Russa no movimento operário brasileiro durante o seu período de acontecimento. Foi uma época de grandes inovações tecnológicas, que como já foi mencionado, a humanidade entusiasmava-se com os progressos da ciência. E estas mudanças afetaram a sociedade, daí a importância dos periódicos neste momento: Sobrepondo-se aos anacronismos de toda ordem, a chegada do século XX se impôs com seu cortejo sedutor de novidades prontamente trazidas para a criação da grande imprensa e a ampliação do parque gráfico. Luz elétrica, telefone, cinematógrafo, bondes elétricos, automóvel, máquina de escrever (...). O telégrafo submarino e sem fio aproximou-nos dos jornais europeus, pois passou a ocorrer uma simultaneidade na publicação de informações. Houve uma ampliação de títulos e os jornais diários – já conformando a grande imprensa – figuravam como conglomerados poderosos, definindo os rumos do país. Nesse momento, a profissionalização do setor se confirma. (MARTINS; LUCA, 2008, p. 11). _________________________ 4 Sobre a história das agências internacionais de notícias, inclusive durante a Primeira Guerra, e seus laços e interesses econômicos, ver o artigo: (MATTA, 1980). E quanto à presença destas agências na imprensa brasileira da época ver: (LUCA, 2008a, p. 152). E o telégrafo, com a ligação Brasil-Europa por cabo submarino, começou em 1877, com o Jornal do Comercio (RJ), com as primeiras notícias distribuídas pela Reuter-Havas: Cf.: (LUCA, 2006, p. 137). 14 Dada a posição que a imprensa escrita tinha nas sociedades daquela época – inclusive na brasileira –, devido também às inovações tecnológicas que ocorriam neste espaço de comunicação, as notícias e consequentes interpretações do que acontecia na Rússia também podem ser entendidas como parte dos impactos e repercussões do evento revolucionário. Mais uma vez recorrendo a Hobsbawm, devemos lembrar que a Revolução Russa não inspirou apenas revolucionários, mas também outras revoluções, movimentos insurgentes e uma intensificação da rebeldia de operários e camponeses em vários países da Europa e Américas, ou seja, uma revolta que também foi uma revolta contra a guerra mundial que estava ocorrendo. Portanto, tal repercussão teve um caráter bem amplo nas experiências das lutas sociais mundo afora (HOBSBAWM, 1995, p. 73). Assim, nesta conjuntura, a guerra de informações, deturpações e disputas pela verdade dos fatos e, as controvérsias em torno da Revolução Russa, foram fenômenos presentes que são encontrados em nossas fontes e que serão explicadas no decorrer deste trabalho. Correlatos a todos estes aspectos, esta “repercussão” também se expressou em vários “mitos”, criados a respeito de acontecimentos e fatos distantes: Nada se sabia do regime instituído na Rússia. Quanto mais a direita multiplicava as informações inquietantes sobre o regime dos sovietes, tanto menos a opinião militante de esquerda estava disposta a escutá-las. Ela havia sido excessivamente manipulada. Para os trabalhadores, para seus dirigentes, para os que estavam acostumados a falar em nome do povo, o período imediatamente seguinte ao final da guerra comportava muitas desilusões, muitos fracassos, com a vitória da direita na Câmara francesa, a ascensão do fascismo na Itália; e isso impedia que o mito da Revolução fosse abalado. Ele era ainda mais necessário para os que tinham esperanças. Em face das informações negativas provenientes da Rússia, e que só podiam ser emitidas “pelos inimigos da democracia”, constituiu-se uma espécie de frente da recusa contra todos os emissores de más notícias (...). (FERRO, 1984, p. 58). Um dos principais livros desta pesquisa, e que será fonte primordial de nosso estudo, lembra o fato do quanto as notícias da imprensa refletem posições de classe, fazendo propagandas políticas por trás de sua aparente objetividade, confundindo fatos com ficção e, transmitindo informações formadas e deformadas, ainda mais num momento de extrema guerra psicológica devido a Revolução Russa, como é o caso do período que observamos (BANDEIRA, 1980). Nesta obra constatamos o quanto o assunto “Rússia” foi envolvido por uma série de dificuldades, no que tange às informações a seu respeito, a ponto de até mesmo o jornalista Gilberto Amado – considerado uma personalidade da história política e intelectual 15 do Brasil –, que escrevia na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, o que podemos considerar um dos jornais da grande imprensa da época, ter se manifestado com protestos: O Brasil acompanhou a queda do Czar e a deposição de Kerenski [chefe do governo provisório na Rússia] com a retina de Havas, United Press e outras agências internacionais. A imagem da revolução russa, que projetavam, era a imagem que as altas finanças de New York, Londres e Paris dela faziam. O volume de mentiras era de tal monta que Gilberto Amado escreveu na Gazeta de Notícias: “A United Press e a Havas continuam a nos julgar indignos da verdade, pobres bugres que convém manter no alheamento completo do que se passa no mundo”. (BANDEIRA, 1980, p. 73).5 Esta “grande imprensa” de que falamos, e que se configuraram como “conglomerados poderosos”, ao qual a Gazeta de Notícias pode ser classificada, foi um tipo de imprensa diferente da imprensa operária que iremos trabalhar. Esta Dissertação trabalha apenas com a imprensa do movimento operário de tendência anarquista, e não iremos nos debruçar sobre nenhum título da chamada grande imprensa. Contudo, esta diferenciação é necessária, não só para entendermos as particularidades de nosso objeto como também as relações que havia entre estes dois tipos distintos de imprensa, principalmente quanto à questão das fontes de informações sobre a Revolução Russa e as discussões suscitadas em torno deste assunto. A chamada “grande imprensa” é um conceito corrente para definir genericamente o que seria a porção mais significativa dos jornais num dado momento histórico, em termos de circulação, perenidade, aparelhamento técnico, organizacional e financeiro (LUCA, 2008a, p. 149). Esta diferenciação, em termos de grande imprensa, se deu entre os estudiosos, devido a certas características que diferenciavam estes jornais no cenário político e social, por muitas vezes, defenderem posições políticas, sejam em nome da república, do liberalismo, ou da democracia, que legitimavam forças e interesses sociais consoantes aos grandes industriais, classes dominantes, grupos dirigentes, partidos políticos e governos, mesmo quando estes “grandes” impressos se posicionavam contra uma determinada política oficial. Tal estatuto de “grande imprensa” se deu, então, pelas condições que estes jornais tiveram de manter, muitas vezes, uma periodicidade diária com grandes tiragens, condições estas que foram possíveis devido a um grande apelo aos recursos publicitários e subsídios públicos e privados. A _________________________ 5 A respeito do jornal Gazeta de Notícias e sobre a queixa de Gilberto Amado contra a falta de informações confiáveis sobre a Rússia, também averiguamos na obra clássica: (SODRÉ, 1983, p. 224 e 320). Nesta época, como veremos, chamavam os bolcheviques de “maximalistas”: (BANDEIRA, 1980, p. 145). 16 publicidade tonou-se a principal fonte de recursos destes periódicos que assumiram os fundamentos da economia de mercado, com aprimoramentos técnicos e racionalização da estrutura administrativa, mas sem deixar de constituir num espaço de luta simbólica em que diferentes segmentos se digladiavam em defesa de seus benefícios e interpretações sobre o mundo (LUCA, 2008a, p. 150-158). O historiador Nelson Werneck Sodré – pioneiro na história da imprensa no Brasil – foi um dos primeiros a usar este conceito quando a imprensa começou a ganhar mais atenção na historiografia brasileira, o seu trabalho estabeleceu os vínculos entre capitalismo e os meios de comunicação. Sodré discorre sobre o surgimento da grande imprensa, ocorrendo na passagem dos séculos XIX para o XX. Salienta que pequenos jornais foram sufocados por empresas jornalísticas dotadas de equipamento gráfico necessário e com estruturas específicas. Isso afetou o plano da produção e circulação, alterando também as relações do jornal com a política, os anunciantes e os leitores. O jornal, assim, tornou-se uma empresa capitalista, onde é mais prático comprar a opinião de um jornal do que comprar o jornal (SODRÉ, 1983, p. 275-276). Assim, eram estes os jornais que compravam as notícias das agências internacionais, que representavam grandes interesses econômicos no Brasil e que, portanto, devido aos seus vínculos, apresentaram notícias contraditórias e que eram vistas com grande desconfiança por parte dos operários e militantes anarquistas a respeito dos acontecimentos na Rússia, ainda mais se considerando as intensas lutas sociais no período no Brasil, entre os operários organizados e o patronato, estes últimos, muitas vezes, apoiados pelos grandes jornais. Exemplos conhecidos desta imprensa na época também foram O Estado de S. Paulo e o carioca Correio da Manhã. Contudo, o movimento operário também possuiu e desenvolveu o seu próprio meio de comunicação e as suas tentativas de acessar informações a respeito dos eventos do mundo. Meio de comunicação este que também constituía um mecanismo de luta e resistência de seus ideais e reivindicações, ou seja, o jornal operário fazia parte do próprio movimento operário. O operário gráfico, o operário alfabetizado, intelectualizado, muitas vezes tipógrafo e que possuía experiência em oficinas jornalísticas foi o “agente comunicador dentro da formação da classe operária brasileira”, como atesta a autora Maria Nazareth Ferreira que foi a primeira a estudar a imprensa operária no Brasil: 17 Dentro dessa perspectiva tentou-se verificar os reflexos, no Brasil, dos principais acontecimentos mundiais que marcaram a virada do século: as novas idéias políticas que levantaram a questão social e que aqui penetraram com o elemento imigrante, as condições internas que proporcionaram a urbanização e o início do processo de industrialização – onde se insere a I Grande Guerra – além dos reflexos da Revolução Russa de 1917. Estes acontecimentos e as idéias que os acompanharam encontraram no Brasil terreno fértil para desenvolver-se. (FERREIRA, 1978, p. 16). As principais diferenças entre a grande imprensa e a imprensa operária que iremos estudar pode ser medida, portanto, na questão do “lugar social” e das “funções sociais” que uma folha periódica ocupa, condição esta que afeta a “materialidade” dos impressos (LUCA, 2006, p. 131-132). A imprensa operária enfrentou muitas dificuldades (que será mais enfaticamente discutida adiante) justamente pelo lugar social que ela ocupava e pela função que desempenhava, pois eram publicações de circulação reduzida e de pequenos recursos materiais, mantendo uma posição de combate à ordem vigente. Por conseguinte, podemos dizer que estes eram tipos diferentes de imprensa: Historicizar a fonte requer ter em conta, portanto, as condições técnicas de produção vigentes e a averiguação, dentre tudo que se dispunha, do que foi escolhido e por quê. É obvio que as máquinas velozes que rodavam os grandes jornais diários do início do século XX não eram as mesmas utilizadas pela militância operária, o que conduz a outro aspecto do problema: as funções sociais desses impressos. (LUCA, 2006, p. 132). Esta cobertura anarquista aqui no Brasil da Revolução Russa, passou por duas fases, ou seja, num primeiro momento, em que os anarquistas brasileiros se empolgaram com a revolução (mais ou menos de 1917 a 1919), enxergando nela uma revolução libertária, de negação não só do capitalismo como do Estado. E um segundo momento (mais ou menos de 1920 a 1922) em que os anarquistas, cuja doutrina é antiautoritária, perceberam seus enganos, acusando a burocratização do regime russo, a centralização e as perseguições políticas. A análise inicia-se em março de 1917 – com a queda do czar Nicolau II – e se estende até dezembro de 1922 – ano da fundação do PCB –, e que representa uma grande cisão no movimento operário brasileiro, pois até então este movimento era majoritariamente de tendência anarquista, sendo que este partido foi formado principalmente por antigos militantes anarquistas; e também porque é no fim deste ano que se proclama oficialmente a URSS 18 (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Até então nenhum trabalho havia se dedicado a esta repercussão, observando exclusivamente o ponto de vista dos periódicos libertários. Fontes de pesquisa: os jornais operários anarquistas O objetivo, dessa forma, é analisar esta imprensa, jornais que não tinham uma natureza empresarial capaz de influenciar – ou pressionar, de imediato – os rumos da vida política do país e da maior parte da opinião pública, pelo menos não na mesma proporção da grande imprensa. Jornais militantes que se interessaram especialmente pela questão da revolução na Rússia – já que esta revolução contemplava e divulgava muitas das ideias de sua militância cotidiana – eram folhas com ou sem periodicidade e números de páginas definidas, que dificilmente possuíam condições de manterem publicações diárias e uma avultosa tiragem. Eram feitas por militantes, não por profissionais, impressas em pequenas oficinas com as máquinas que eram disponíveis e que precisavam da contribuição financeira dos próprios operários leitores e jornalistas para sobreviver, já que muitos destes jornais, porém não todos, recusavam as receitas advindas do espaço publicitário (LUCA, 2006, p. 119).6 O maior problema ao se trabalhar com periódicos daquela época da Imprensa Operária, como fonte principal de pesquisa, são o grande número de títulos e folhas e, a irregularidade em sua produção. Havia uma grande quantidade de publicações e, que muitas vezes, não passavam do primeiro número, devido as dificuldades das condições desta imprensa. Poucos deles conseguiam ser diários, e por curto tempo de publicação. As dificuldades de sobrevivência de uma folha operária, por aqueles anos, já foi mencionada, essas condições também foram apontadas, inicialmente, por Maria Nazareth Ferreira e são dificuldades de dois tipos: as dificuldades financeiras, pois havia pouca publicidade e o público leitor era composto por trabalhadores; e as perseguições por parte da ordem estabelecida (FERREIRA, 1978, p. 104-105). Dessa forma, a seleção dos jornais operários anarquistas, para escrever a história da _________________________ 6 Quanto à questão das tiragens destes jornais, para inclusive comparar com a grande imprensa, observamos pelas leituras da bibliografia que as informações a este respeito são bem escassas. Contudo, podemos informar que jornais diários da grande imprensa podiam atingir marcas bem significativas para a época, como o Jornal do Brasil (RJ) – uma das folhas com o melhor equipamento gráfico do tempo – que no início do século, por volta de 1902-1903, chegou a uma tiragem de 62.000 exemplares diários: (SODRÉ, 1983, p. 284-285). Já o periódico libertário Spártacus (RJ), um dos títulos que iremos trabalhar, em 1919-1920, tinha uma tiragem de 4.000 a 6.000 exemplares, entretanto este título era semanal: (BANDEIRA, 1980, p. 158). 19 repercussão da Revolução Russa, teve que seguir alguns imperativos A escolha de diversos títulos foi inevitável, pois devido as irregularidades das publicações, vários jornais tiveram que ser usados para dar conta da cobertura dos eventos russos, sem deixar grandes lacunas e buracos de tempo. A opção pelos jornais que foram listados também segue as indicações das leituras das referências bibliográficas, livros, textos e artigos que mencionam os jornais e números destes em que foram divulgadas notas a respeito da Rússia. Assim como a disponibilidade dos títulos e edições que estão acessíveis nos centros de pesquisas. O acesso a fontes digitalizadas destes jornais também nos permitiu visualizar textos sobre a Revolução Russa que não foram comentados na bibliografia consultada. Houve periódicos que não foram mencionados nas primeiras listagens dos projetos desta pesquisa, e que foram visualizados com as leituras da bibliografia ao longo do tempo. Enquanto outros títulos ainda saíram da lista original, para dar lugar a jornais cuja coleção estava mais completa, por serem mais “importantes” dentro do movimento operário do período e, portanto, mais “interessantes” do ponto de vista historiográfico, já que são jornais que foram estudados, catalogados e digitalizados. Mas não são todos os números destes jornais que contém textos sobre a Revolução Russa, e eles podem estar na forma de manchetes, artigos, editoriais, noticiários, entrevistas, publicações de cartas e documentos, relatos, análises, comentários e debates. Desde pequenas notas de poucas linhas, até extensas matérias que ocupam uma página inteira, todas as notícias e referências, interpretações e “visões” da Rússia revolucionária de 1917 a 1922 foram lidas, analisadas e catalogadas. Não analisamos nenhuma fonte iconográfica, e não entramos em questões referentes à recepção do leitor – era uma fonte, nem sempre, mas muitas vezes, clandestina, que circulava no subterrâneo da sociedade. A única análise será a referente aos textos que mencionam a Revolução Russa e seus assuntos nos jornais anarquistas, sendo estes observados enquanto grupos “representantes” do movimento operário e espaço de divulgação das idéias, discussões e problemas que circulavam neste meio operário. A localização dos periódicos começou a ser realizada em diversos arquivos e acervos, utilizando-se da internet como instrumento veicular.7 Os jornais que foram analisados e que serão comentados nesta Dissertação foram copiados de arquivos digitalizados que se encontram no Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista, _________________________ 7 CEDAP (Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa – UNESP/Assis) – http://sgcd.assis.unesp.br CEDEM (Centro de Documentação e Memória da UNESP) – http://www.cedem.unesp.br Arquivo Edgar Leuenroth (AEL-UNICAMP) – http://segall.ifch.unicamp.br/site_ael/ Arquivo da Biblioteca Nacional (RJ) – http://www.bn.br 20 (CEDEM-UNESP), que está localizado na cidade de São Paulo, ao qual foi visitado durante o ano de 2009, no início do programa de mestrado. Cópias desta documentação já foram doadas ao acervo do Centro de Apoio à Documentação e Pesquisa (CEDAP), localizado na Universidade Estadual Paulista, UNESP, Faculdade de Ciências e Letras, campus de Assis. O CEDAP de Assis não dispunha das fontes necessárias – apenas um título que constava no projeto inicial – e que foi retirado devido às péssimas condições de leitura e de dispor de apenas um número. Todo o material analisado dentro de nosso recorte de tempo agora está com sua coleção completa, já que os números que faltavam – dos jornais A Plebe; A Obra e O Libertário – foram encontradas em cópias microfilmadas no Arquivo Edgar Leuenroth (AEL) – no Centro de Pesquisa e Documentação Social, pertencente e localizado na Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP. Estas cópias microfilmadas foram digitalizadas no ano de 2011, também sendo doadas reproduções deste material ao Centro de Documentação de Assis (CEDAP). A conhecida e citada autora deste campo de pesquisa, Maria N. Ferreira, foi a organizadora do AEL, em inícios da década de 70, quando a imprensa operária ainda era uma fonte pouco usada e negligenciada. Ferreira indica, em seu estudo, que de toda a imprensa operária no período, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro correspondem respectivamente a 42% e 30% do total, a grande maioria nas capitais destes Estados. Assim, segundo a autora, mais de 70% da imprensa operária estava concentrada no eixo Rio de Janeiro - São Paulo, em boa parte nas duas maiores cidades do Brasil na época, sendo o Rio ainda capital do país (FERREIRA, 1978, p. 87-91). A maioria dos jornais anarquistas selecionados para esta pesquisa, pertence a estas duas cidades. Isso pode provocar algumas críticas ao título “Imprensa Operária Anarquista Brasileira” dado a esta Dissertação. A concentração das massas operárias daquele período em São Paulo e Rio de Janeiro, não justifica uma escolha arbitrária das fontes, e muito menos regional, apesar de influenciar esta questão. Isto se deve a quantidade e disponibilidade de jornais destas duas cidades levantados, preliminarmente, nos arquivos e acervos que foram utilizados. A disponibilidade destas fontes e a visualização de cópias digitalizadas também permitiram confirmar a presença de textos a respeito da Revolução Russa. A predominância de fontes do eixo Rio-São Paulo não se dá apenas por causa da distribuição geográfica do movimento operário, mas também pelo fato da maioria dos trabalhos e estudos sobre os militantes anarquistas brasileiros, inclusive aqueles que eram os mais conhecidos na época no movimento operário, até em outros países, pertencerem a este eixo. 21 Entretanto, estamos cientes de que o movimento operário brasileiro de inícios do século XX, inclusive e no caso anarquista, também existia em menor escala em outros centros urbanos do país, e que a Revolução Russa também repercutiu nestes espaços. Como exemplo, citamos o trabalho de Adelaide Gonçalves sobre esta imprensa operária no Ceará.8 Por isso, acreditamos que seja interessante incluir jornais de fora do eixo Rio-São Paulo, não só para ampliar a representatividade regional desta pesquisa, mas também porque eles são importantes para entender o “movimento operário brasileiro” de uma forma mais rica e plural, levando-se em consideração, as particularidades culturais entre as regiões do Brasil. No entanto, entre os arquivos visitados durante este programa de mestrado, não encontramos muitos jornais libertários de fora deste eixo do sudeste, ainda mais com séries de números e edições consecutivas, com um mínimo de material a ser estudado. Por isso, apenas dois jornais dentre os que serão comentados adiante estão fora do sudeste, porém suas coleções estão completas. Edgar Leuenroth foi um famoso militante anarquista e sindicalista, um dos principais responsáveis pela edição do jornal operário-libertário paulistano A Plebe, escolhido para esta pesquisa por ser um dos mais representativos da imprensa anarquista brasileira, devido à sua longevidade. Semanário inaugurado em 9 de junho 1917, apesar das dificuldades, percorre até o fim do período recortado – sendo que conseguiu funcionar brevemente como um diário em 1919 –, terminamos a sua análise em 30 de dezembro de 1922, em seu número 199. Foi a partir de seu arquivo pessoal que foi organizado na UNICAMP, o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL). Este periódico libertário ficou fora de circulação apenas em 1918, devido a repressões políticas.9 O jornal A Plebe também foi escolhido por ter sido uma das folhas operárias anarquistas mais conhecidas naquele período, portanto possuía uma “representatividade” no movimento, e por isso, o jornal e seu principal redator foram muito referenciados nas obras sobre o movimento operário do início do século XX. Todo o material de A Plebe de nosso recorte de tempo foi, agora, reunido, totalizando nesta pesquisa 187 edições verificadas (algumas edições se perderam), com 144 fontes catalogadas sobre a Revolução Russa. O periódico A Obra, também de São Paulo, foi muito importante e é listado aqui, pois teve como redator e dirigente o anarquista Florentino de Carvalho, um dos primeiros a denunciar a ditadura do partido bolchevique na Rússia – militante que teve um papel importantíssimo para a organização dos trabalhadores em nosso país, para a intelectualidade _________________________ 8 Cf.: (GONÇALVES; SILVA, 2000). 9 A história de Edgar Leuenroth e do jornal A Plebe é trabalhada em uma tese muito importante para a nossa dissertação ver: (KHOURY, 1988). 22 operária e para o pensamento libertário brasileiro.10 A Obra foi uma publicação operária diferente, pois a maioria dos jornais aqui estudados possuem um formato de tablóide, com quatro páginas, e A Obra contém cerca de doze páginas ou mais, assemelhando-se a uma revista, como alguns a qualificaram. Este periódico era quinzenal, começando em 1º de maio de 1920; estudamos as suas páginas até o número 14, edição de 1º de outubro de 1920; somando-se 13 edições verificadas, pois uma se perdeu, com 7 fontes catalogadas. Também trabalharemos com o jornal A Vanguarda de São Paulo, de 1921, o único entre os selecionados que era um diário, e que funcionou assim por vários meses antes de ser obrigado a se converter em semanário por dificuldades financeiras. Assim, este jornal apresentava-se como “diário do povo trabalhador”, de tendência anarco-sindicalista, estava ligado a organizações operárias e era impressa na oficina da “Cooperativa Gráfica Popular”, fundada pelo militante João da Costa Pimenta, também teve Afonso Schmidt, outro famoso militante anarquista, e o já citado Edgard Leuenroth como sócios, administradores e diretores. A Vanguarda publicava anúncios de pequenos estabelecimentos nas últimas páginas, surgiu em 23 de fevereiro de 1921, e percorremos até o número 47, última edição de 16 de julho de 1921. De sua coleção verificamos 45 edições, pois duas se perderam, e 57 fontes catalogadas.11 Para terminar os periódicos de São Paulo, também arrolamos O Libertario, que circulou em 1922, órgão pertencente a “Aliança Anarquista”. O Libertario foi uma publicação operária mais secundária naquele momento, porém importante para a nossa pesquisa por ajudar a cobrir o último ano do nosso trabalho. O Libertario foi quinzenal e funcionou por pouco tempo, iniciou em 1º de janeiro de 1922, e com apenas cinco números, sendo a última edição de 11 de março de 1922; de 5 edições contabilizamos 10 fontes a respeito de assuntos relacionados a Rússia.12 Entre os poucos de fora do eixo do sudeste escolhemos o jornal A Luta de Porto Alegre (Rio Grande do Sul) editado em 1918 pelos anarquistas da União Operária Internacional (UOI). Este jornal é estudado e citado no trabalho recente de Frederico Duarte Bartz sobre as repercussões da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul.13 Publicação que – assim como O Libertario – é um típico exemplo de uma folha _________________________ 10 Sobre a vida de Florentino de Carvalho e informações sobre A Obra: Cf.: (NASCIMENTO, 2000). 11 Quanto ao diário anarquista A Vanguarda ver: (DULLES, 1977, p. 123-124). E também um pequeno trabalho de grande relevância: (RODRIGUES, 1997, p. 47). 12 O pouco que sabemos a respeito de O Libertario encontramos em: (DULLES, 1977, p. 161). E também: (RODRIGUES, 1997, p. 109). 13 Cf.: (BARTZ, 2008). 23 anarquista de curto período de vida devido as suas dificuldades, pois A Luta teve apenas três números com periodicidade irregular. Foi um impresso refundado em fevereiro de 1918 – ele teve uma fase anterior – e seu primeiro número saiu em 28 de março e o último em 14 de outubro de 1918, com o objetivo de defender a Revolução Russa, em que Bartz afirma que esta foi uma tática militante destes anarquistas para se diferenciarem de tendências mais moderadas no interior da Federação Operária do Rio Grande do Sul (BARTZ, 2008, p. 70- 71). Em A Luta contamos então 3 edições e 7 fontes localizadas. Outro jornal de fora do sudeste foi selecionado, A Semana Social, de Maceió (Alagoas), editado em 1917. Este periódico é importante e representativo, pois nele colaborou Antonio Bernardo Canellas como principal redator, sendo este um grande militante de origem anarquista que ajudou a fundar o PCB. Foi o primeiro brasileiro a conhecer a Rússia soviética, em setembro de 1922, como delegado representante do PCB no IV Congresso da Internacional Comunista, foi expulso do partido logo depois por ter discordado dos russos devido a sua formação libertária. Este jornal terminou de circular devido as pressões patrióticas contrárias às suas manifestações de reprovação à entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial. A Semana Social foi semanal, começou a ser publicada em 30 de março de 1917, indo até o número 26, mesmo número de edições registradas, de 3 de novembro de 1917, catalogamos apenas 4 fontes mencionando a revolução na Rússia.14 Passando aos impressos do Rio de Janeiro, também listamos O Debate, semanal de 1917, e Cronica Subversiva, semanal de 1918 – ambos editados por Astrojildo Pereira, que foi um dos diretores do primeiro e redator único do segundo. Ex-anarquista, que depois se converteu ao comunismo, sendo um dos principais articuladores da fundação do PCB em 1922, Astrojildo Pereira é um nome bem presente em nossas fontes e no movimento operário do período, portanto, na bibliografia consultada.15 A importância destes dois periódicos não está só no fato de terem sido editados por Astrojildo Pereira, mas por ter apresentado textos sobre a Revolução Russa que também teceram comentários sobre a imprensa brasileira a respeito do mesmo assunto. O Debate também é considerado uma revista de propaganda anarquista, outros militantes anarquistas importantes como Fábio Luz e o escritor Lima Barreto colaboraram com ele, possuía mais de dez páginas e publicava alguns anúncios, começou em 12 de julho de 1917 e terminou no número 15, de 27 de outubro – sendo catalogadas 6 fontes – O Debate foi proibido de circular com o estado de sítio decretado pelo _________________________ 14 A trajetória de Antonio Bernardo Canellas e a história do jornal A Semana Social é apresentada na obra: (SALLES, 2005). 15 Sobre a vida de Astrojildo Pereira ver: (FEIJÓ, 2001). 24 governo com a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial.16 Já a Cronica Subversiva tinha um formato tablóide de quatro páginas, sem anúncios, e era impresso nas oficinas gráficas do Jornal do Brasil, iniciando em 1º de junho de 1918 e terminando no número 16, de 12 de outubro de 1918.17 De 16 edições também foram encontradas 6 fontes. Ainda selecionamos o semanário Spártacus, de 1919-1920, porta voz do núcleo carioca dos anarquistas que se identificaram com a Revolução Russa. No Spártacus colaborou José Oiticica, outro famoso militante anarquista daquela época, e que é amplamente citado na bibliografia sobre o movimento operário. O jornal Spártacus é uma das folhas mais significativas dentre as doze escolhidas neste trabalho. Tablóide de quatro páginas, o formato típico e mais comum da imprensa operária deste período, este jornal mescla a propaganda e a divulgação da cultura anarquista com textos políticos direcionados a vários setores profissionais e organizações de trabalhadores, como também a divulgação da situação do movimento operário no Brasil e no mundo. Planejado para ser um diário, Spártacus se constituiu como um semanário, surgindo em 2 de agosto de 1919 e, sofrendo perseguição policial, indo até o número 24, de 10 de janeiro de 1920. José Oiticica chefiava o grupo editorial do periódico e Astrojildo Pereira era o administrador e chefe da redação.18 Desta folha identificamos 62 fontes. O periódico O Cosmopolita, do Rio de Janeiro, foi publicado entre 1916 a 1918 e, diferencia-se dos outros jornais operários anarquistas, pois representava uma categoria de trabalhadores ligados não ao setor produtivo, mas sim ao setor terciário de serviços. O Cosmopolita apresentava-se como “Órgão dos empregados em hotéis, restaurantes, cafés, bares e classes congêneres”. Não sabemos por qual razão, mas este jornal foi o único entre os estudados que se manteve em circulação com o estado de sítio em 1917, cobrindo o período correspondente a revolução de outubro na Rússia. Após a fundação do PCB em 1922, este periódico retornou com o título de Voz Cosmopolita, contudo, trabalhamos apenas com a sua primeira fase, onde se apresenta explicitamente o seu conteúdo anarquista.19 Começamos a sua análise a partir do número 9 – edição de 1º de maio de 1917 –, pois os números anteriores não abarcavam o nosso período, e estendemos até o número 39, de 10 de agosto de 1918. Contabilizamos 31 edições verificadas com 25 fontes sobre os eventos russos. _________________________ 16 Sobre O Debate ver: (DULLES, 1977, p. 63). E quanto a este estado de sítio decretado pelo governo em 26 de outubro de 1917 confirmar em: (CARONE, 1974, p. 314). 17 Estas informações sobre Cronica Subversiva Cf.: (FEIJÓ, 2001, p. 71). 18 Sobre os dados a respeito de o jornal Spártacus consultar: (DULLES, 1977, p. 92). 19 Sobre a circulação deste jornal durante o estado de sítio ver: (BANDEIRA, 1980, p. 105). E dados sobre este periódico ver: (RODRIGUES, 1997, p. 104). 25 Iremos, ainda, utilizar o Boletim da Aliança Anarquista do Rio de Janeiro, mensário que teve apenas dois números no início de 1918. Esta folha teve uma vida muito curta, e apenas uma fonte foi identificada, mas ela é significativa porque ajuda a cobrir um período de nossa pesquisa que muitos dos outros jornais não abarcam, sem dizer que ela apresenta informações e considerações sobre a grande imprensa, os telegramas e as agências de notícias no que condiz sobre a Rússia. Este impresso teve distribuição gratuita e se apresenta apenas como um órgão da aliança dos libertários da capital.20 Por último, analisamos um jornal que foi muito importante para o movimento operário daqueles anos, e que ao estudarmos esse tema na vasta bibliografia disponível, constatamos que materiais valiosos sobre a Revolução Russa foram publicadas nesta folha: trata-se de Voz do Povo, “Órgão da Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro e do Proletariado em Geral” como ele se apresentava. Este jornal foi criado com fim do semanário Spártacus, para substitui-lo, em princípios de 1920, e com a contribuição financeira de milhares de operários, Voz do Povo se constituiu como um diário anarquista e funcionou de fevereiro até por volta de dezembro de 1920 (DULLES, 1977, p. 106). Contudo, esta coleção de Voz do Povo de 1920, não foi encontrada disponível nos arquivos de São Paulo (CEDEM e AEL), mas apenas na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, onde existem cópias microfilmadas. O serviço de digitalização deste material fornecido pela Biblioteca Nacional iria exigir muito tempo, devido à vastidão desta coleção (cerca de 294 edições), portanto, optamos por reserva-lo a estudos futuros, já que não estava previsto no cronograma deste programa de mestrado, visto que já é farta a quantidade de fontes reunidas. Porém, no CEDEM, encontramos cópias digitalizadas deste jornal, de edições especiais que foram publicadas em 1921, num esforço do jornal de voltar à ativa. Neste ano de 1921, Voz do Povo, além de mencionar a Federação dos Trabalhadores do Rio como parte da organização, também indica na direção da administração, os “trabalhadores marítimos, os trabalhadores em transportes terrestres e o operariado do Estado do Rio de Janeiro”. Desta curta fase do ano de 1921, analisamos 8 edições – entre fevereiro a julho – com 6 fontes encontradas. No contato direto com estas fontes, confirmou-se as descrições sobre o movimento operário discutidas na ampla bibliografia existente. A idéia do internacionalismo operário está sempre presente, concepções que já vinham sendo cultivadas no movimento operário mundial desde o século XIX. Tanto o marxismo, que era então uma corrente deste movimento operário e socialista, tendência esta, que por sua vez, se tornou dominante na Revolução Russa, e o _________________________ 20 Sobre esta curta publicação temos muito pouco na bibliografia estudada, ver: (RODRIGUES, 1997, p. 60). 26 anarquismo – a chamada vertente libertária do comunismo, polêmica para com o marxismo – eram pensamentos que entendiam a necessidade e desejavam a união de todos os trabalhadores do mundo na luta contra o capitalismo. Compartilhavam da idéia de que o proletariado iria adquirir uma gradual consciência de sua força e que a sua união deveria derrubar as fronteiras do Estado-nacional burguês. Por isso, esses militantes operários não se viam apenas como paulistas, cariocas, alagoanos ou gaúchos; eles buscavam desfazer as divisões regionais ao se identificarem entre si. Eles se consideravam como “irmãos”, “companheiros”, que defendiam a visão de uma sociedade igualitária, livre e sem fronteiras entre os povos. Uma identidade militante que também baseavam as relações entre os jornais operários, uma vez que eles trocavam correspondências entre si, intercambiando exemplares e fontes de informações. Assim, era comum um jornal operário fazer propaganda de outra folha congênere – até de outro estado – e informar sobre a luta dos trabalhadores em outros lugares do Brasil e até fora do país.21 Assim, neste sentido e com estas características, acreditamos que as fontes que trabalhamos, mesmo estando concentrados principalmente nos dois maiores polos urbanos do país, possuem discursos e ideias no qual o proletariado militante nacional certamente se identificou, em maior ou menor grau, identificação esta que ultrapassa as fronteiras dos Estados. Dessa forma, estes periódicos, mesmo dentro de suas limitações regionais, podem ser considerados representativos do movimento operário nacional. No caso do anarquismo especificamente, o internacionalismo era entendido partindo de bases federalistas, ou seja, a associação de organizações livres com a construção da sociedade de baixo para cima a partir da autogestão social. É que o princípio de uma sociedade sem fronteiras era o mesmo, mas talvez seja mais adequado qualificar os anarquistas não como internacionalistas – pois eles são contra o Estado – e sim como antinacionalistas, anacionalistas, cosmopolitas, enfim, “cidadãos do mundo”.22 _________________________ 21 Um básico resumo da contribuição do marxismo e do anarquismo quanto à questão do internacionalismo operário encontramos no texto: (COSTA, 1985, p. 66-84). E numa análise das páginas destes jornais podemos facilmente identificar os laços de solidariedade que haviam. O jornal A Plebe, por exemplo, tinha uma seção chamada “Mundo Operário”, em sua terceira página, que discutia e noticiava o andamento do movimento operário e das greves pelo Brasil. 22 Estas considerações sobre o pensamento político do anarquismo podem ser confirmadas na importante obra: (GUÉRIN, 1968, p. 72-74). 27 Metodologia A imprensa operária anarquista daqueles tempos, possuiu características próprias, tanto por causa das dificuldades econômicas – eram jornais que sofriam problemas financeiros, por serem conduzidos por operários e voltados para os operários –, como também pelas perseguições policiais – pois estes foram periódicos que se posicionaram radicalmente contra a ordem estabelecida. Mas também devido as suas ideias políticas, como a questão do internacionalismo, que fazia com que houvesse certa solidariedade entre os trabalhadores, já que eles viam a sua luta e o seu movimento como fazendo parte de uma mesma causa internacional, a do “proletariado”. E o jornal operário se tornou um meio alternativo de informação e comunicação produzida pelo operariado militante, até mesmo para confrontar as notícias veiculadas pelo que eles chamavam de “imprensa burguesa”, o que podemos identificar como a “grande imprensa”. Esta “imprensa operária” não possuía condições de sustentar uma grande oficina gráfica e de imprimir avultosas tiragens, como os grandes jornais. É importante se considerar essas características para trabalhar com estas fontes. Sendo jornais conduzidos por militantes operários, temos que pensar estas fontes dentro daquele “mundo operário”. No Brasil daquele tempo, o trabalhador pobre estava relegado ao total abandono, desinformado, destituído dos direitos mais elementares e, em geral, excluído do precário sistema educacional, aspectos que condicionaram a produção desta imprensa anarquista.23 Contudo, estas são as dificuldades que os trabalhadores organizados nestes jornais tiveram que enfrentar para tentar “esclarecer” e informar os trabalhadores em geral, na luta por seus direitos e reivindicações. Os militantes que produziam estes jornais – periódicos que muitas vezes representavam ou tentavam se dirigir a categorias profissionais, sindicatos e várias organizações operárias – eram bem organizados, e como demonstra a análise das fontes, muito bem informados, mantendo correspondências com o movimento operário de outros países e lendo os periódicos e revistas de maior circulação. Escrever sobre um tema que envolve as lutas políticas e sociais, a Revolução Russa e o anarquismo, é também se relacionar com uma historiografia que possui às suas polêmicas. Muitas vezes, a experiência anarquista não é incorporada à bagagem cultural e política da esquerda por autores, que simpáticos ao marxismo, estigmatizaram os anarquistas como _________________________ 23 As peculiaridades da situação da folha anarquista são apresentadas no artigo: (PRADO, 2008, p. 132-133). 28 “românticos” e “pré-políticos”, devido, principalmente, a sua recusa a ação partidária, por exemplo. Estes preconceitos historiográficos são apontados pela historiadora Margareth Rago, com considerações importantes se almejamos compreender essas fontes sem grandes interferências arbitrárias de convicções e ideologias – inclusive as nossas – para o exercício de uma historiografia mais livre (RAGO, 2001, p. 24). Estas considerações, segundo Rago, são direcionadas inclusive numa crítica à própria historiografia do anarquismo. De acordo com a autora, estamos em uma época de grandes transformações da própria atividade do historiador, mudanças de paradigmas, dos procedimentos historiográficos e concepções da disciplina, ou seja, citando influências do pensamento contemporâneo como o pós-modernismo e a psicanálise, que para ela, convergem com as críticas construídas pelo pensamento libertário: (...) A defesa da descentralização do sujeito e dês-hierarquização nas formas do conhecimento; o descentramento do sujeito e a crítica à figura do sujeito universal; a crítica à noção de representação tanto política quanto teórica; o questionamento da lógica da identidade e dos conceitos aprisionadores que se pretendem espelhantes de um suposto “real” organizado e estruturado, científicos e objetivos convergem na busca de novas formas de produção do conhecimento histórico. (RAGO, 2001, p. 26-27). Ela lembra que o anarquismo é um pensamento questionador do poder em suas manifestações moleculares, desmistificador da “razão disciplinadora e classificatória”, um pensamento que defende a renovação do próprio pensar. As críticas formuladas pela tradição libertária convergem com as transformações dos procedimentos historiográficos das últimas décadas. Contudo, denuncia que a historiografia contemporânea do próprio anarquismo tem sido tradicional, uma vez que ela tem se voltado mais para a recuperação dos fatos e atores excluídos da história, e muitas vezes mantendo os mesmos enquadramentos disciplinares hoje altamente questionados. (RAGO, 2001, p. 27). Um importante teórico da ciência defende que as únicas explicações viáveis para os sucessos científicos são explicações históricas, pois a ciência é produto de uma época. E que a própria ciência tem de ser protegida da ideologia, sendo ensinada como uma concepção entre muitas e não como o único caminho para a verdade e a realidade.24 Para Feyerabend, as ciências não possuem uma estrutura comum e, o progresso epistemológico depende das _________________________ 24 Essas idéias sobre a ciência e a teoria do conhecimento são apresentadas na obra: (FEYERABEND, 2007). 29 violações de regras, não há um único método. Essas considerações são importantes para nos lembrarmos de que o método também depende do objeto analisado, que modelos são emprestados, mas aperfeiçoados para cada caso. E ao analisarmos as fontes, percebemos que o seu conteúdo é muito rico, revelando os limites da historiografia, até agora, sobre o tema. A construção de caminhos, para não nos limitarmos nos “enquadramentos disciplinares” da historiografia, para não nos prendermos demasiadamente em “conceitos aprisionadores de um suposto real”, deve ser buscada. Ainda mais porque estamos lidando com uma época revolucionária, que mergulhou numa crise devido às suas transformações profundas, que por sua vez, influenciou o surgimento de novos imaginários políticos. Portanto, o que marca estas fontes, são as múltiplas “visões da Revolução Russa”, que são apresentadas, assim como “posicionamentos” e “notícias veiculadas”, que surpreendem as tradicionais análises sobre o assunto. A complexidade do tema então nos impõe cautela, como aponta o filósofo da ciência, habituado à críticas sobre a hegemonia da ciência, e parafraseando Lênin: “A história, de modo geral, e a história da revolução, em particular, é sempre mais rica em conteúdo, mais variada, mais multiforme, mais viva e sutil do que mesmo” o melhor historiador e o melhor metodólogo podem imaginar. A história está cheia de “acidentes e conjunturas e curiosas justaposições de eventos” e demonstra-nos a “complexidade da mudança humana e o caráter imprevisível das conseqüências últimas de qualquer ato ou decisão dos homens”. (...) (FEYERABEND, 2007, p. 31- 32). Estes caminhos podem ser profícuos para enriquecer a bagagem metodológica do ofício da História, e a ajudar a entender melhor a produção jornalística dos anarquistas brasileiros, que hostis a autoridades, mas empenhados na luta por justiça social, não deixaram de se encantar pela revolta dos russos, assim como, se revoltaram contra a sua ditadura. As transformações historiográficas das últimas décadas, que conferiram grande importância ao uso dos jornais como fontes, foram muito influenciadas pelo contato com as outras ciências sociais, o que acabou dando origem a uma nova história cultural, que se dedica em parte ao estudo das “práticas” e “representações” sociais. História cultural esta que influenciou uma “renovação” da história política, pois a esfera política também participa da difusão da cultura, e os meios de comunicação (incluindo os jornais) também podem se tornar objetos e veículos da política (RÉMOND, 1996). 30 Estas “representações” seriam a maneira como os militantes anarquistas brasileiros – com suas especificidades culturais – enxergaram, assimilaram e apresentaram os eventos russos em seus periódicos. Estas especificidades referem-se à sociedade brasileira da Primeira República, tema de um dos capítulos de nosso trabalho e que será comentado adiante. As reações que eles tiveram, fazem parte das “repercussões” da Revolução Russa: são as “representações” que construíram sobre o evento, as visões que se teve dele. Representações, que por sua vez, fundamentaram e inspiraram novas “práticas” políticas e sociais – e militantes – a partir de então. Novas “práticas” estas, que influenciadas pelas notícias da Rússia, é o que vai “distinguir”, ou não, um militante, um jornal operário, um sindicato ou ainda a “prática” ou postura editorial de um periódico anarquista dos demais. E, dessa maneira, podemos identificar alguns conflitos no interior do próprio movimento operário anarquista brasileiro da época. A leitura que os militantes anarquistas brasileiros fizeram do processo revolucionário russo, por meio de seus jornais, é uma questão que nos conduz aos conceitos de “prática”, “representação” e “apropriação”. Conceitos formulados pelo historiador francês Roger Chartier ao definir algumas características desta nova história cultural e seus métodos de pesquisa das práticas de leitura, que foram muito importantes para entender, em maior profundidade, as notícias da Rússia revolucionária lidas e repassadas às folhas operárias brasileiras pelos militantes ácratas.25 Com isso, trata-se de investigarmos a “prática” de “leituras” e “apropriações” pelo movimento operário anarquista brasileiro das informações que lhes chegavam sobre a Rússia revolucionária, para entender melhor como a Revolução Russa foi “representada” nesta imprensa libertária e como esta reagiu a estes eventos: As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas (...). As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio (...). (CHARTIER, 1988, p. 17). _________________________ 25 Estes conceitos são trabalhados no livro: (CHARTIER, 1988). 31 Tratar destes conflitos e afrontamentos de representações do mundo social, construídas sob um determinado ponto de vista, nos remete a “distinção” que esta apreciação, no caso um jornal operário anarquista e suas opiniões, poderiam ter em relação aos demais e aqueles que eram considerados seus adversários. O conceito de “distinção” está intimamente relacionado ao de “poder simbólico”, conceitos estes que também são trabalhados por Chartier para explicar as representações sociais e, que por sua vez, ele trás do sociólogo Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 1989). Como eram impressos que veiculavam e mantinham convicções político-ideológicas, acabavam por formar também “posições simbólicas que os distinguiam socialmente”. Estes apontamentos teóricos são importantes para ajudar a desvendar as relações de poder que havia na produção desta imprensa e entender as lutas ideológicas em sua relação complexa e permanente com os conflitos que atravessam a sociedade em seus diferentes níveis. Assim, “a ideologia surgirá como um instrumento permanente dos poderes e como o ponto simbólico onde os poderes são incessantemente legitimados ou contestados, reforçados ou enfraquecidos.” (ANSART, 1978, p. 11). Portanto, o que Pierre Ansart expressa – e ele também se utilizou das noções de Bourdieu – é que conflitos sociais ou políticos não param de transformar-se em conflitos ideológicos, e de formular-se no campo das posições simbólicas. Com isso, a imprensa é um lugar em que se expressa representações do real, e a sua produção torna-se um ato de poder onde há relações subentendidas, sendo esta produção resultado de práticas sociais. A historiadora Maria Helena Capelato teceu indicações sobre o estudo da imprensa que são fundamentais ao nosso estudo (CAPELATO, 1988). Destacando que a imprensa não está isenta dos acontecimentos de seu tempo, e que ela registra, mas também comenta e participa da história, ela explica que podemos encontrar nas suas páginas uma constante batalha pela conquista dos corações e mentes dos leitores: A imprensa, ao invés de espelho da realidade passou a ser concebida como espaço de representação do real, ou melhor, de momentos particulares da realidade. Sua existência é fruto de determinadas práticas sociais de uma época. A produção desse documento pressupõe um ato de poder no qual estão implícitas relações a serem desvendadas (...). (CAPELATO, 1988, p. 24-25). Esta pesquisa também envolve a questão das ideias políticas, pois dissertar sobre a repercussão da Revolução Russa nestes impressos, remete a história do pensamento político dos mesmos, e as ideias políticas que eles desenvolveram ao pensar sobre a Rússia e sua 32 experiência revolucionária. E uma história das ideias políticas – dentro da perspectiva de “renovação” da história política – também trabalha com a relação íntima das ideias políticas com a imprensa escrita, que é explicado pelo autor Michel Winock ao mencionar que a finalidade da história das ideias políticas é: “(...) conhecer melhor os sistemas de representações das sociedades, o estudo desses sistemas tornou-se inseparável do dos aparelhos de produção e de mediação: não é apenas a idéia que age, é também o lugar de onde ela vem (...)” (WINOCK, 1996, p. 285). E o lugar de onde ela vem no caso são os jornais operários ácratas. O autor enfatiza então que, dedicar-se às mediações e aos mediadores, resulta de uma necessidade metodológica do historiador, para tentar avaliar a ação das ideias na sociedade, assim como o reflexo dos problemas sociais do momento na expressão jornalística (WINOCK, 1996, p. 282). Assim, ele enfatiza que no jornal estão as inflexões de uma época, que ele reflete as relações na sociedade, e que em suas páginas expressa-se as tentativas da sociedade de se atingir uma coerência entre as “doutrinas” e os “fatos” (WINOCK, 1996, p. 282). Portanto, como estamos falando de “fatos” olhados sob o prisma de uma determinada “doutrina”, a história das ideias políticas é inseparável da história da difusão destas ideias (meios de difusão como os jornais), e de sua repercussão (WINOCK, 1996, p. 284). Para Jean-Noël Jeanneney é importante desvendar a influência dos grupos de pressão e poderes sobre a mídia, e para isso, é relevante descrever a instituição do jornal: suas finanças; suas ligações cotidianas com os vários poderes; seus métodos de recrutamento; o nascimento, vida e morte do impresso; nomeação e afastamento dos diretores e membros e as decisões tomadas pelo jornal (JEANNENEY, 1996, p. 219-220). E também, em José Luiz Braga, uma metodologia para uma leitura analítica de um jornal, tem que levar em consideração aspectos contidos no “discurso” do impresso, ou seja, as estruturas que dão forma ao mesmo, como se organizam os artigos, os tipos de matéria, como eles se distribuem pelas páginas e; também, aspectos do “contexto”: os acontecimentos que influenciaram a história do jornal, a relação de uma folha com a imprensa em geral e o contexto social. O autor defende uma perspectiva “ampliada”: “(...) Além das posições ideológicas, deve-se levar em conta também as condições materiais da produção; os processos de cooperação (pois um jornal é obra composta); as relações concretas entre as forças em presença; as relações entre os interlocutores. (...)” (BRAGA, 2002, p. 328). Levando-se em consideração assim todas estas contribuições que apontam para a necessidade de compreendermos o jornal como um espaço de “representações do real” e de luta entre “representações”, um espaço em que temos que atentar às relações internas entre os 33 membros que o compõem, e as externas que envolve as relações com a sociedade e grupos políticos e econômicos. Fica explícito, então, que o jornal é um empreendimento coletivo, daí a pertinência de saber os responsáveis pela linha editorial e seus colaboradores, e assim, este estudo converte a imprensa anarquista em objeto e fonte de nossa pesquisa: As considerações apontam, portanto, para um tipo de utilização da imprensa periódica que não se limita a extrair um ou outro texto de autores isolados, por mais representativos que sejam, mas antes prescreve a análise circunstanciada do seu lugar de inserção e delinea uma abordagem que faz dos impressos, a um só tempo, fonte e objeto de pesquisa historiográfica, rigorosamente inseridos na crítica competente. (LUCA, 2006, p. 141). Com tudo isso, fica claro então que para usar jornais como fonte histórica, além de traçar as características de cada periódico, precisamos estar cientes de que a imprensa também participa da história, seja selecionando, ordenando, estruturando ou narrando “de uma determinada forma, aquilo que se elegeu como digno de chegar até o público” (LUCA, 2006, p. 139). Assim, estudar o tema das representações de um evento em jornais de posições político-ideológicas semelhantes ou diferentes, é um campo, que segundo o artigo de Renée Zicman, que sempre é muito referenciado no estudo desta área, é chamado de “História através da imprensa”, em que se toma a imprensa como fonte primária para a pesquisa histórica. É por isso que segundo este autor, este tipo de pesquisa é enriquecedor para a história das mentalidades e ideologias (ZICMAN, 1985, p. 89). Estas referências nos fazem ficar atentos ao quanto que a apresentação das notícias de um evento nas páginas de um jornal também é uma consequência direta dos acontecimentos: (...) Partimos da hipótese geral que a Imprensa age sempre no campo político- ideológico e portanto toda pesquisa realizada a partir da análise de jornais e periódicos deve necessariamente traçar as principais características dos órgãos de imprensa consultados. Mesmo quando não se faz História da Imprensa propriamente dita – mas antes o que chamamos História Através da Imprensa – está-se sempre “esbarrando” nela, pela necessidade de historicizar os jornais. Por outro lado devemos lembrar que na Imprensa a apresentação de notícias não é uma mera repetição de ocorrências e registros mas antes uma causa direta dos acontecimentos, onde as informações não são dadas ao azar mas ao contrário denotam as atitudes próprias de cada veículo de informação, todo jornal organiza os acontecimentos e informações segundo seu próprio “filtro”. (ZICMAN, 1985, p. 90). 34 Historicizar estas fontes, portanto, envolve entender, tanto a parte material do jornal, como o lugar em que ele está inserido. Entender nesta profundidade cada periódico, irá nos possibilitar compreender melhor como cada uma das folhas anarquistas reagiu às notícias vindas da Rússia, ou seja, uma “história por meio dos periódicos”. E por meio destas folhas anarquistas, investigamos a evolução do pensamento político libertário e do imaginário operário com as novas “possibilidades” que vinham da Rússia e como isto foi usado para legitimar grupos e discursos dentro deste círculo anarquista e operário. A “tradição” da luta socialista Definindo o corpo geral deste trabalho e expondo certos detalhes pertinentes, o primeiro capítulo – A Revolução Russa: “a grande vitória do proletariado rumo ao socialismo” –, dedicar-se-á a uma pequena síntese da história da revolução proletária na Rússia de 1917 e, portanto, a participação, contribuição e posicionamento do anarquismo russo e internacional neste evento, já que nossas fontes julgavam essas notícias do ponto de vista do anarquismo. A experiência dos sovietes também será destacada (devido a sua importância nas fontes), assim como a repercussão desta revolução no movimento operário e anarquista mundial. Capítulo que trata de um dos temas mais polêmicos e estudados do século XX, e que por isso possui uma ampla bibliografia. Contudo, segundo Eric Hobsbawm, a Revolução Russa possui duas histórias entrelaçadas: o seu impacto sobre a Rússia e o seu impacto sobre o resto do mundo e, esta segunda parte, que inclusive é a área em que esta pesquisa se enquadra, ainda oferece, segundo ele, muitas possibilidades de investigação (HOBSBAWM, 2000, p. 266). De certa forma, a Revolução Russa foi uma experiência que foi influenciada por toda a “tradição” teórica e práticas revolucionárias que vinha desde meados do século XIX. Ela foi a tentativa concreta de uma época de grandes projetos e utopias sociais. Foi uma experiência, então, que convenceu boa parte do mundo das possibilidades de mudança com sua análise “cientifica da sociedade”, e com isso, ela possuiu alguns traços de um “milenarismo” secular: E embora se possa dizer que o programa marxista apresente alguns traços de milenarismo (com sua crença no paraíso terrestre, que seria o comunismo, esse reino do Homem posterior às fases capitalista e socialista), a realidade é que Marx e Engels sempre procuraram distanciar suas propostas daquelas por eles chamadas de 35 utópicas. (...) tratava-se de pôr de lado as análises e concepções subjetivistas do problema social e adotar os princípios daquilo que se apresentava como uma “ciência” do social: o materialismo histórico. Tratava-se, isto é, de encerrar o capítulo do socialismo utópico – e, por extensão, da utopia – e começar o do socialismo científico (...). (COELHO, 1985, p. 62-63). O sonho de uma sociedade onde todos os homens fossem iguais e livres, persegue a humanidade desde a Antiguidade, onde este sistema era conhecido como sociedade comunista. Mas é a partir do século XIX que o termo “socialista” passou a designar essa possível organização. Assim, várias correntes elaboraram meios diferentes de tentar atingir este objetivo. E num processo contínuo de influências mútuas e amadurecimentos, fizeram avançar a ideia da nova sociedade e dos métodos para se chegar até ela (SPINDEL, 1985b, p. 08-09). É importante salientar esta origem heterogênea do socialismo porque com o marxismo e a Revolução Russa, os termos “socialismo” e “comunismo” ficaram muito associados a eles, sendo que a própria teoria marxista, que também fundamentou a Revolução Russa, recebeu contribuições das discussões de outros pensadores e escritores socialistas que Marx leu e teve contato. O socialismo de Marx também é fruto de toda uma discussão de uma época: Quando em 1827 a palavra “socialismo” é utilizada pela primeira vez, num artigo da Cooperative Magazine, ela já designava, de maneira global, toda uma forte corrente do pensamento político que acreditava ser necessário radicalizar o modelo de democracia que a burguesia pregava como ideal para substituir o regime monárquico despótico. Além de socialistas, os partidários desta corrente também eram conhecidos como democratas radicais, cooperativistas ou comunistas. (SPINDEL, 1985b, p. 15-16). Na primeira metade do século XIX, não houve um movimento socialista com unidade e enfoque central. É só após as revoluções européias de 1848, e mais ainda, com a fundação da 1ª Associação Internacional dos Trabalhadores em 1864, é que o socialismo surge como uma força internacional dos trabalhadores organizados do mundo. E os conflitos e lutas no interior desta primeira Internacional, entre marxistas e anarquistas, ajudou a desenvolver o socialismo como movimento.26 Por isso, devido a natureza de nossas fontes, é necessário deixar claro que os anarquistas também eram considerados interlocutores do movimento operário e socialista. A proposta marxista, estigmatizada muitas vezes pelos libertários como _________________________ 26 Os conflitos do anarquismo com o marxismo na primeira Internacional, e o entendimento do anarquismo como também uma corrente do movimento socialista internacional é discutida em: (COLE, 1958, p. 116-118). 36 o “socialismo autoritário”, contrário ao que seria o “socialismo libertário” do anarquismo, conflitava e polemizava com os anarquistas dentro do movimento operário internacional, desde meados do século XIX. Portanto, os anarquistas também se reconheciam como fazendo parte desta luta mundial pela causa proletária e socialista. Assim, o estudo desta repercussão nos jornais ácratas, do movimento operário brasileiro, possui as suas singularidades. As relações entre o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), que tinha ajudado a fundar a primeira Internacional, e o anarquista russo Michael Bakunin (1814-1876), que representava a ala dos socialistas libertários na Associação dos Trabalhadores, deterioraram- se a partir de 1870. Culminando, assim, com a exclusão dos anarquistas da Internacional, no congresso de Haia de 1872, que marcaria o fim desta primeira Internacional, Marx então fazia parte do conselho geral (BAKUNIN, 2006, p. 118). É interessante destacar que os dois representavam tendências e visões distintas do socialismo. Marx propunha que o proletariado utilizasse o domínio político para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado – que para ele seria o proletariado organizado como classe dominante – para construir o comunismo.27 Bakunin, por sua vez, argumentava que a escravidão política, o Estado, reproduz e conserva a miséria, como uma condição de sua existência, assim, para destruir a miséria, era preciso destruir o Estado por meio de uma revolução (BAKUNIN, s.d., p. 97). Identificando, assim, o anarquismo à um comunismo libertário. Contudo, o advento da Comuna de Paris em 1871, aproximou certas concepções entre os dois pensadores da revolução. Para ambos, a Comuna foi uma negação do Estado e um exemplo concreto de um “governo dos produtores”. Bakunin viu nela um sistema que negou a organização pela força – ainda que tenha se organizado em governo para se defender – uma tentativa de autogestão social como ele tanto pregava. E Marx viu na Comuna uma experiência em que a autoridade e as funções governamentais foram “devolvidas” aos servidores responsáveis da sociedade, o povo. Portanto, para ele, a Comuna deveria ser um organismo agente e de trabalho, executiva e legislativa ao mesmo tempo.28 A experiência histórica do século XIX, demonstrou que a ideia de progresso que foi difundida, era uma realidade apenas no domínio científico, mas não no domínio político e social. Desta maneira, o marxismo, ao apresentar um socialismo “científico”, numa época de grande desenvolvimento da ciência, restaurou o ideal revolucionário desenvolvido a partir da Revolução Francesa, de uma sociedade que acabasse com as injustiças e contradições sociais. _________________________ 27 O que seria a chamada “ditadura do proletariado” Cf.:( MARX; ENGELS, 2007, p. 66-67). 28 A respeito da análise e os textos de Marx e Bakunin sobre a Comuna de Paris: (BAKUNIN, 2006, p. 132-153). 37 Com isso, surgiu o projeto de uma sociedade fundada no Saber, instituída pelos “engenheiros das almas”, os socialistas científicos. Confundiu-se o futuro da ciência com o progresso da justiça e da “verdade” (pravda em russo). A instrução pública deveria introduzir esta mudança, e assim, os intelectuais ganharam grande prestígio (FERRO, 1984, p. 10-11). Marx e Engels formularam as bases do “materialismo histórico” que fundamentam o seu “socialismo científico”, e essas foram às sustentações ideológicas do movimento comunista. A análise materialista da história de Marx, pressupõe a idéia de que as “condições da produção da vida material” dos homens, condicionam a sua existência social. Por isso, as classes sociais que detêm o poder sob os meios de produção, a classe dominante, são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes: “(...) A classe que dispõe dos meios da produção material dispõe também dos meios da produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles aos quais são negados os meios de produção intelectual está submetido também à classe dominante. (...)” (MARX; ENGELS, 1989, p. 47). Portanto, para Marx e Engels, o primeiro pressuposto de toda a existência humana e de toda a história, é de que primeiro os homens necessitam ter condições de viver, para “fazer a história”, ou seja, beber, comer, morar, vestir-se. O primeiro fato histórico, então, seria a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, ou seja, a “produção da vida material”. E com estes pressupostos, eles baseiam o conceito de “luta de classes”.29 Bakunin revelou uma grande admiração pela capacidade intelectual de Marx, e aderiu plenamente à concepção materialista da história. Porém, Bakunin não admitia a superioridade intelectual como algo que confere um direito de direção do movimento operário (GUÉRIN, 1968, p. 31). O pensamento anarquista, assim, entrava em profundas contradições com o “socialismo científico” de Marx dentro das discussões no campo socialista: (...) “Pretender que um grupo de indivíduos, mesmo os mais inteligentes e melhor intencionados, sejam capazes de encarnar o pensamento, a alma, a vontade dirigente e unificadora do movimento revolucionário e da organização econômica do proletariado de todos os países, representa uma tal heresia contra o bom-senso e contra a experiência histórica, que se pode perguntar, com espanto, como é que um homem tão inteligente como o Sr. Marx a concebeu” (...). (GUÉRIN, 1968, p. 31- 32). _________________________ 29 Sobre este “fato histórico”: (MARX; ENGELS, 1989, p. 22-23). A “luta de classes” é afirmada pelos autores como sendo uma realidade em todas as sociedades que já existiram e que existem. Assim, o socialismo seria construído pela “classe dos operários modernos”, os “proletários” das fábricas, os protagonistas da luta contra a burguesia, justamente por ser a classe mais explorada. Ver respectivamente nas páginas: (MARX; ENGELS, 2007, p. 45 e 51-52). 38 Para o anarquismo, o governo é o fator da desordem, e só uma sociedade sem governo poderia restaurar a harmonia social, a ordem natural, baseada sobre a liberdade e a solidariedade: a Anarquia (GUÉRIN, 1968, p. 20). Por isso, o anarquista não crê na emancipação pelo voto, que para ele é um ato de fraqueza, de cumplicidade com a corrupção do regime da “democracia burguesa”. Com isso, os libertários foram acusados pelos marxistas, que propõem a tomada do poder pelo proletariado com revolução ou vitórias parlamentares, de serem “abstencionistas”, de se abstraírem da política, enquanto os libertários sempre afirmaram negar a “política burguesa”, propondo outra forma de se fazer política (GUÉRIN, 1968, p. 25 e 26). De certa forma, estas experiências e discussões repercutiram no movimento operário. Décadas depois, na Rússia de 1917, os sovietes chocaram e entusiasmaram o mundo, como um órgão de poder popular – executivo, legislativo e administrativo –, como uma experiência de autogestão social, assim como a tomada de poder e a criação de um “Estado operário”. Lembremos que no ano de 1917, a revolução na Rússia teve dois momentos decisivos: a queda do czar em fevereiro e, a derrubada do governo provisório em outubro, legitimada inclusive pelos sovietes. A bolchevização destes conselhos populares, que se espalhou por todo o país, e o autoritarismo institucional, são fatos posteriores que manifestaram seus efeitos mais tarde, mas de início, os sovietes constituíram um poder de fato na Rússia (FERRO, 1984, p. 62). Os militantes e a cobertura jornalística Esta Dissertação trabalha com o impacto da Revolução Russa no movimento operário anarquista do Brasil, usando como fonte exclusiva a sua imprensa militante, portanto, o segundo capítulo – O Movimento Operário no Brasil: anarquismo e imprensa militante –, tem por objetivo historicizar os jornais, no sentido de inseri-los dentro da sociedade, da cultura e dos acontecimentos que o cercaram. Neste espaço, discorremos sobre a experiência do movimento operário no Brasil da Primeira República; o anarquismo neste movimento e o funcionamento de sua imprensa. Também trataremos aqui a respeito de como a Revolução Russa foi recebida na sociedade brasileira como um todo, inclusive no movimento operário e entre os libertários. Outras figuras deste meio militante, além das que foram citadas e que ajudaram a produzir esta 39 imprensa, também serão mencionadas, assim como outras explicações a respeito dos jornais pesquisados. É um momento que também aproveitamos para fazer um balanço do que a historiografia já contribuiu sobre o nosso objeto de pesquisa. A escolha deste tema, nos apresentou vários universos de ordem teórico-metodológica, ligadas à questão de se tomar os impressos periódicos como fonte e objeto. Quanto a isso, já enfatizamos a importância de n