FACA E ARMAS BRANCAS: UM CAMPO LEXICAL EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS Maria Célia de Moraes LEONEL 1 • RESUMO: Estudo do campo lexical da palavra faca e de outros lexemas que se referem às armas brancas em Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, tendo-se em vista os significados dos vocábulos no universo de sentidos do romance. A orientação teórica centra-se, sobretudo, nas propostas de H. Ge- ckeler e ainda nas de J. Lyons. • PALAVRAS-CHAVE: Lexicologia; campo lexical; Guimarães Rosa; Grande sertão: veredas. Este trabalho é um dos frutos do estudo continuado do texto de Guimarães Rosa, em especial, da pesquisa para o Glossário da edição genético-crítica de Grande sertão: veredas da Coleção Arquivos , 2 reali­ zado por uma equipe de que participei juntamente com Edna M . F. S. Nascimento e Nilce Sant'Anna Martins. Os critérios gerais elaborados pelo grupo para a seleção dos termos componentes do Glossário determinaram o levantamento de toda pala­ vra cuja intelecção trouxesse dificuldade, bem como de todas as formas inusitadas. A realização desse levantamento levou ao interesse pelo estudo dos campos lexicais do romance. O exame de vocábulos, cujo entendimento é, muitas vezes, problemático e as repetidas seleções destes, para evi- 1 Departamento de Literatura - Faculdade de Ciências e Letras - UNESP - 14800-901 - Araraquara - SP - Brasil. 2 O volume, ainda inédito, é coordenado por Walnice Nogueira Galvão e conta com texto genético- critico e respectivo aparato preparado por uma equipe supervisionada por Cecília de Lara. Alfa, São Paulo, 44: 285-297, 2000 285 tar a entrada daqueles que podem ser traduzidos com alguma facilidade pelo leitor, e a ausência de outros que, contrariamente, causam-lhe d i f i ­ culdade, apontavam o que era visível desde o princípio das investiga­ ções: a predominância de certos universos semânticos. No processo de tradução dos termos para a elaboração dos verbetes e, particularmente, nas leituras finais para a composição de remissivas, tal aspecto tornou- se mais evidente. Trata-se, portanto, de um percurso que vai da lexicografia à lexico- logia. Além desse fato, o trabalho em questão examina o léxico sem nunca deixar de lado a orientação de uma estudiosa da literatura. Isso quer dizer que os lexemas e os campos lexicais são investigados tendo- se em vista os significados que assumem no interior do texto literário. Os grandes temas da obra, como a ambigüidade Bem/Mal, a exis­ tência de Deus e, particularmente, do demo, o sentido da vida humana e sua configuração como travessia, o papel do amor e das relações amo­ rosas, do encontro-desencontro e outros mais são criados em todos os planos do romance, incluindo-se, naturalmente, o do discurso. Portanto, também o léxico é responsável pela configuração desses temas. Alguns especialistas na teoria dos campos, sejam eles denominados lexicais ou semânticos, principiam pela noção, não desenvolvida por Saussure, mas por ele proposta, de que cada palavra constitui o centro de uma constelação associativa, de que há uma interanimação do léxico. As contribuições para a investigação dos campos lexicais, julgadas como fundamentais e, conseqüentemente, retomadas por determinados pesquisadores (Guiraud, 1980; Geckeler, 1976; Lyons, 1980), são as de Trier com os campos lingüísticos e as de Weisgerber. Guiraud (1980, p.87) lembra, por exemplo, que a lexicologia de Ma- toré e os campos nocionais são aparentados aos campos lingüísticos de Trier. Matoré seria um "sociólogo" com interesse no substrato material, econômico, técnico e político do léxico, enquanto Trier seria um "filóso­ fo". A seguinte afirmação de Matoré (apud Guiraud, 1980, p.87) ilustra tal fato: (o objeto) da lexicologia é particular; é partindo do estudo do vocabulário que tentaremos explicar uma sociedade. Assim é que podemos também definir a lexicologia como uma disciplina sociológica que utiliza o material lingüístico que são as palavras. As esferas de pensamento de Sperber - com clara vinculação psico­ lógica - e as encruzilhadas lingüísticas de Bellin-Milleron são também mencionadas por Guiraud (1980). 286 Alfa, São Paulo, 44: 285-297, 2000 Geckeler (1976), em Semântica estmcturaly teoria dei campo léxi­ co, prefere centrar-se nas reflexões de Coseriu ao tratar da questão, po­ rém não sem antes cuidar da teoria de Trier-Weisgerber e daquelas de outros especialistas na questão dos campos. Geckeler utiliza a expres­ são campo lexical para as estruturas lexemáticas que investiga. Para ele, o caráter paradigmático do campo lexical está anunciado em consi­ derações de Saussure como: Dans l'intérieur d'une même langue, tous les mots qui expriment des idées voisines se limitent réciproquement: des synonimes comme redouter, craindre, avoir peur n 'ont de valeur propre que par leur opposition: si redou­ ter n'existait pas, tout son contenu irait à ses concurrents, (apud Geckeler, 1976, p.104) Depois de Saussure, Geckeler (1976, p.213) cita Coseriu, cuja con­ cepção de campo lexical se baseia no princípio das oposições funcio­ nais e na análise do conteúdo em traços distintivos. Não se trata apenas da forma da estrutura do campo lexical, mas de uma investigação das estruturas lexemáticas em geral. Geckeler (1976, p.118-9) lembra ainda que Trier considera a articu­ lação como a característica essencial e mais profunda de toda língua. O vocabulário de u m estado lingüístico sincrônico é por ele entendido como totalidade semanticamente articulada, estruturada em campos le­ xicais que mantêm relação de coordenação ou de hierarquia. A concep­ ção de articulação baseia-se em determinadas considerações, como a de que o significado de cada palavra depende do significado das vizinhas conceptuais ou de que para o entendimento do signo léxico individual é necessário pensar no campo de signos léxicos como conjunto. Weisgerber, de acordo com Geckeler (1976, p.129), distingue estra­ tos de articulação, os quais ilustra com campos lexicais mais ou menos detalhados e menciona três tipos de campos, dependentes do domínio de que fazem parte: campos lexicais do domínio dos fenômenos natu­ rais, da cultura material e do espiritual. As considerações de Trier - que, para Lyons (1980), abrem nova fase na história semântica e que foram desenvolvidas por Weisgerber e por outros discípulos - são ainda importantes para o estudo do léxico. Apesar das críticas que as idéias de Trier e Weisgerber receberam em diversos momentos, o interesse pelos campos mantém-se ativo. Em nossos estudos de campos lexicais, tomamos como embasa­ mento teórico, principalmente, as propostas de Geckeler (1976), que, em última instância, reúnem as de Coseriu e ampliam o instrumental Alfa, São Paulo, 44: 285-297, 2000 287 lingüístico para a análise semântica de campos lexicais, utilizando-se de conceitos de Pottier e aproximando-se, ainda que de maneira lateral, de A.-J. Greimas. Para a definição de campo lexical, Geckeler (1976, p.295) retoma Coseriu: Un campo léxico es, desde elpunto de vista estrutural, un paradigma léxico que se origina por la distribución de un continuo de contenido léxico en diferentes unidades, dadas en la lengua como palabras, que están reci­ procamente en oposición inmediata mediante rasgos distintivos de conte­ nido simples. Geckeler (1976, p.297) acredita que o termo técnico campo é quase opaco e apropriado para a designação de u m sub ou microssistema le­ xical e define lexema também com Coseriu: Une unité de contenu lexi­ cal exprimée dans le système linguistique (par exemple le contenu "senex" en latin) est un lexème. São as unidades, portanto, que funcionam em um campo lexical. O arquilexema representa, como denominador comum, a base semântica de todos os membros do campo. O conteúdo de u m componente do campo pode apresentar-se da seguinte maneira: base + significado d i ­ ferencial (arquilexema + semas + classemas) (Geckeler, 1976, p.297). Outras considerações interessantes para a concepção teórica de campos são as de Lyons (1980, p.206), como a que segue: Os campos são realidades vivas intermediárias entre as palavras indi­ viduais e a totalidade do vocabulário; como partes de um todo, partilham com as palavras a propriedade de estarem integrados numa estrutura mais vasta (sich ergliedern) e, com o vocabulário, a propriedade de se encontra­ rem estruturados em termos de unidades mais pequenas (sich ausgliedern). Arriscamos propor que a existência dessa relação entre cada pala­ vra, os campos lexicais e o vocabulário como u m todo seja paralela à existente, em Grande sertão: veredas, entre cada palavra, u m campo le­ xical e o vocabulário total do romance. Para pensarmos os lexemas da narrativa rosiana como componentes de u m determinado campo lexical, levamos também em consideração propostas de Lyons (1980, p.207), que recorre à terminologia da cor para explicitar as noções de área e campo conceptual e de campo lexical: Considerada como um continuum, a substância da cor é (na nossa dis­ tinção entre "área" e "campo") uma área conceptual (Sinnbezirk); torna-se 288 Alfa, São Paulo, 44: 285-297, 2000 campo conceptual {Sinnfeld) em virtude da sua organização estrutural, ou articulação, por este ou aquele sistema lingüístico. E completa: O conjunto de lexemas de qualquer sistema lingüístico que cubra a área conceptual e, por meio das relações de sentido existentes entre eles, a estrutura, é um campo lexical (Wortfeld); e cada lexema cobrirá uma de­ terminada área conceptual que, por sua vez, pode ser estruturada como um campo por outro conjunto de lexemas (tal como a área coberta por "verme­ lho" é estruturada por "escarlate", "carmesim", "vermelhão", etc). Lyons (1980, p.211) acredita ainda que os princípios determinantes da estrutura lexical se aplicam igualmente às palavras concretas e às abstratas. O ato de realizar o Glossário de Grande sertão: veredas evidenciou, como dissemos, que os termos inicialmente registrados e os que perma­ necem na constituição final apontam algumas concentrações em deter­ minados universos semânticos. Ademais, esses vocábulos, em geral, têm como especificidade léxica o fato de pertencerem a subcódigos - são bra­ sileirismos, regionalismos, estrangeirismos, arcaísmos, neologismos e, por isso mesmo, trazem, em grau variado, dificuldade de enterldimento. Agrupadas a palavras que não constam do Glossário, tais palavras com­ põem campos lexicais específicos do romance. Se considerarmos que o vocabulário total de Grande sertão: veredas corresponde ao vocabulário de uma dada língua, temos um léxico fecha­ do, com campos lexicais também fechados: todas as unidades estão contidas nas páginas da obra. Para tratar dos campos lexicais na narrativa rosiana, baseamo-nos, ainda, na já citada classificação do léxico de Weisgerber (apud Geckeler, 1976, p.129) em três domínios: o dos fenômenos naturais, o da cultura material e o do universo espiritual. Sugerimos a divisão do léxico do ro­ mance não em três grandes domínios, mas em dois, com as subdivisões necessárias: o da natureza e o da cultura. No primeiro domínio, cabe­ riam, por exemplo, campos lexicais referentes à vegetação - com sub- campos como o das árvores, o das gramíneas, o das flores etc. - ; ao universo da água, de que rios, veredas - no sentido regionalista de M i ­ nas Gerais, isto é, Cabeceira e curso de água orlados de buritis, especi­ almente na zona são-franciscana (Ferreira, s. d.) - , lagoas etc. formariam subcampos. Do segundo domínio, fariam parte os campos da cultura material e também aqueles que Weisgerber prefere colocar no domínio do espiritual. Nesse domínio, Grande sertão: veredas comporta u m bom Alfa, São Paulo, 44: 285-297, 2000 289 número de campos lexicais como o das crenças e religiões específicas, como é o caso da católica ou da espírita. Esse campo é tão demarcado que, no âmbito da sinonímia, as denominações do diabo já têm instiga­ do vários trabalhos. Além desses, outros campos podem ser arrolados, como aqueles constituídos pelos alimentos, pelas doenças, pelos remé­ dios e pelas mezinhas, pelos meios de locomoção etc. A q u i apresentamos uma parte de nossa investigação, destacando, no domínio cultural, o campo formado por palavras que designam ins­ trumentos de corte como a faca. As muitas leituras da narrativa rosiana mantêm nossa aproximação dos lexemas de Grande sertão: veredas (1965) não apenas sempre reme­ tida ao contexto, como também associada a seus possíveis sentidos no romance como u m todo, o que também ocorre, como não poderia deixar de ser, na concretização do Glossário. O Novo dicionário da língua portuguesa (s. d.) traz para o lexema mais repetido - faca - o seguinte significado inicial : Instrumento cor­ tante, constituído de lâmina e cabo. A primeira informação /instrumento/ insere o objeto referido na classe genérica dos artefatos. A segunda indica o atributo /cortante/, que embute uma função também genérica - /cortar/. A terceira infor­ mação retrata a morfologia do objeto: /constituído de lâmina e cabo/. Os semas nucleares do objeto recoberto pela palavra faca repetem- se, evidentemente, nos lexemas que pertencem ao mesmo campo lexi­ cal como facão, faca-de-arrasto ou faca de arrasto, foice, parnaíba, pu­ nhal, quicé, entre outros. O mesmo dicionário traduz cada uma das palavras que nos interes­ sam nesta oportunidade - já que não pretendemos esgotar o levanta­ mento dos componentes desse campo, mas apenas tratar dos que têm maior importância para nosso estudo - , da seguinte maneira: facão. 1. V. faca. 2. Sabre, espada ... faca de arrastro. (Bras.) Faca de rasto; grande faca ou facão, usada para abrir caminho no mato, cortar cipó, etc. foice. 1. Instrumento curvo para ceifar. parnaíba. 1. Lambedeira. [Bras. Pop. Faca estreita e comprida; faca de pon­ ta] 2. Facão usado por açougueiro. punhal. 1. Pequena arma branca de lâmina curta e penetrante. 2. Fig. Tudo o que ofende ou fere gravemente. quicé. Bras., N.E. V. caxirenguengue ... [Faca velha e imprestável e/ou sem cabo.] 290 Alfa, São Paulo, 44: 285-297,2000 Da definição de lambedeira, por meio de parnaíba - Faca estreita e comprida; faca de ponta - e da descrição de punhal - Pequena arma branca de lâmina curta e penetrante - recolhemos outros traços. O fato de serem artefatos de lâmina /estreita/, /de ponta/ e /penetrante/ traz outro sema nuclear: /que perfura/. Trata-se, por conseguinte, de instru­ mento perfurocortante constituído de lâmina. Em Grande sertão: veredas, tal traço é claramente incorporado ao lexema faca: A faca a faca, eles se cortaram até os suspensórios. ...O diabo na rua, no meio do redemunho... Assim, ah - mirei e vi - o claro claramente: aí Dia- dorim cravar e sangrar o Hermógenes... (Rosa, 1965, p.450-1) (Grifos nossos nos verbos) Os semas citados compõem o significado de faca, arquilexema do campo escolhido. Constam, portanto, dos lexemas que a palavra faca re­ presenta. No universo do texto rosiano, há a sobreposição, a sobredetermina- ção de u m ou outro sema nas diferentes atualizações dos lexemas, como não poderia deixar de ser. Assim, ao atributo /cortante/, na palavra, faca, sobrepõem-se outros nas diversas ocorrências, como /perfurante/. O campo lexical de faca tem um uso que diríamos pertencente à di­ mensão prática, na agricultura, na culinária e em áreas afins, com sua simbologia própria, vinculada aos trabalhos do homem relativos à produ­ ção e ao preparo de alimento, à manutenção da vida. A essa simbologia, opõe-se a da morte, vinculada às armas brancas, como oportunamente mostraremos. Seria a dimensão belicosa do uso da faca e dos artefatos assemelhados. A possibilidade do emprego prático e pacífico do instrumento, re­ vela-se em Grande sertão: veredas em alguns momentos como os que seguem: [Vupes] ia desempenhando seu negócio dele no sertão - que era o de trazer e vender de tudo para os fazendeiros: arados, enxadas, debulhadora, facão de aço ... (ibidem, p.56-7) (Grifo nosso) Pois, esses passaram com as facas-de-anasto, mas porque iam ajudar a retalhar o porco, porção que se levava, dali, em carne e toucinhos, (p.185) (Grifo nosso) No entanto, como é sabido, nas páginas de Grande sertão: veredas, os episódios de guerra são muitos, amplos e densos. Neles, o protagonis­ ta debate-se, no tempo do narrado e no tempo da narração, em múltiplos Alfa, São Paulo, 44: 285-297,2000 291 questionamentos, todos recobrindo a questão básica: os (des)limites en­ tre o Bem e o Mal . N u m ataque do grupo jagunço aos zebebelos, por exemplo, Riobaldo envolve-se em, pelo menos, três fontes de dúvidas que remetem a essa questão principal: o fato de ter como inimigo Zé Bebelo, de quem fora mestre-escola e com quem muito aprendera; a presença de Hermógenes, em quem, desde o princípio, vislumbra a configuração do demo, e a dor de amar Diadorim - jagunço que supõe ser homem como ele. Os momentos de guerra exterior, portanto, agu­ çam as escaramuças e as grandes guerras interiores dos questionamen­ tos metafísicos e psicológicos. Em tais circunstâncias, as palavras que fazem parte do campo lexi­ cal da faca configuram instrumentos denominados armas brancas que, de um lado, compõem o campo mais amplo das armas e, de outro, dis- tinguem-se das armas de fogo. Nesse sentido, talvez o campo de que tratamos seja um subcampo. Todavia, sua separação é fundamental, justamente porque traz as duas dimensões - a do uso apenas prático e a do emprego guerreiro do artefato faca - o que não ocorre com as ar­ mas de fogo. Além de diferenciarem-se dessas últimas, as armas brancas, que incluem a faca, separam-se, na morfologia e na função, do uso que cha­ mamos de prático do objeto. Vejamos os atributos contidos nas palavras que veiculam instrumentos desse t ipo: Gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para diante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo, (p.12) (Grifo nosso) Na comparação, as funções reunidas no enunciado referentes ao bico das aves /talhar/, /rasgar/ e /estraçalhar/ e o traço /muito afiada/ são remetidos a çujcé num sentido que não condiz com o do dicionário que utilizamos: Faca velha e imprestável e/ou sem cabo. O lexema quicé, por conseguinte, associa-se, nesse fragmento, à disputa, à violência, à morte. Desse modo, há uma mudança no signifi­ cado original: os semas da descrição do dicionário são substituídos por outros que constituem os atributos que a nova função do artefato exige. A foice, que o dicionário descreve como instrumento curvo para ceifar, é, ainda, símbolo da morte. Como tal, também se concretiza na narrativa: num dos muitos episódios que criam a vida diversificada do bando sob a chefia de Zé Bebelo, os jagunços deparam com dois irmãos que t inham matado o pai, o qual obrigara u m dos filhos a buscar, para matarem, u m outro filho que roubara o sacrário de ouro da igreja da 292 M a , São Paulo, 44: 285-297,2000 Abadia. Todavia, o irmão combinou com o irmão e mataram o pai, dis­ tribuído de foiçadas. Mas primeiro enfeitaram as foices, urdindo com cordões de embira e várias flores ... em padroeiragem à Virgem, para a Nossa Senhora em adi­ antado remitir o pecado que iam obrar... (p.60) (Grifo nosso) Não se trata, portanto, de u m novo instrumento, mas de uma deter­ minada utilização de um objeto, cuja função, em estado de dicionário, diz respeito ao trabalho com a terra. Não observamos, nesse caso, u m deslizamento de sentido, em que a palavra passaria a constituir u m neo­ logismo semântico, mas uma modificação no emprego do artefato. No emprego não-pacífico, belicoso, quando a faca é instrumento para eliminar o inimigo, o que, na ética do universo guerreiro, é consi­ derado como prático, com as implicações, digamos, técnicas, há, em certas situações, a sobredeterminação de uma simbologia específica que o exemplo i lumina: "Só logo no primeiro entremear com os bebelos, nós quatro havíamos de restar mortos, cosidos nas parnaíbas" (Rosa, 1965, p.161) (Grifo nosso). Trata-se, nesse caso, de uma oposição simbólica entre os.dois gru­ pos de armas - brancas e de fogo: em momentos decisivos, homens em guerra ou apenas inimigos de longa ou recentíssima data chamam-se na faca. É parte do código de luta coletiva e particular - no final, o corpo a corpo, como no amor. Os segmentos em que tal fato se dá na obra em questão não são raros. N u m dos episódios cruciais do romance - o do julgamento de Zé Bebelo - Sô Candelário, que pouco entende a novida­ de do julgamento em relação a um inimigo dos jagunços, propõe que tudo se resolva entre ele e Zé Bebelo: na faca. Voltando ao lexema em questão, parnaiba é traduzido no JVovo di­ cionário da língua portuguesa (s. d.), como sinônimo de lambedeira: Faca estreita e comprida; faca de ponta. Para o uso guerreiro, às espe­ cificações quanto à morfologia do instrumento /estreita/, /de ponta/, nova função - /coser/, que significa dar facadas em, esfaquear, costurar, conforme o dicionário que citamos - é acrescentada. Logo, com a função de matar, os mesmos lexemas empregados, quando se trata do uso pacífico, apresentam novos traços que remetem a diferenças na aplicação. Ademais, o ato de eliminar o inimigo, em Grande sertão: veredas, como vimos, adquire outra dimensão simbóli­ ca, reflexo de uma postura cultural: só a arma branca serve ao combate decisivo, que exige a proximidade dos envolvidos e a coragem necessá­ ria para tanto. Alfa, São Paulo, 44: 285-297, 2000 293 No universo das simbologias do romance, a relação com uma ou ou­ tra arma distingue Riobaldo de Diadorim. Não à toa, os dois primeiros apelidos de Riobaldo correspondem ao respeito pelo modo como se u t i ­ liza da arma de fogo: Cerzidor e Tatarana, lagarta de fogo. A pontaria certeira é mesmo u m dos atributos fundamentais que, com a valentia e o dom da palavra, capacitam-no para a chefia. J á no primeiro encontro entre o protagonista e Diadorim, então apresentado unicamente como o Menino, episódio que tem, na narrati­ va, como veremos, não apenas uma nova simbologia, mas uma dimen­ são mítica, o filho de Joca Ramiro usa a faca como instrumento de luta. Trata-se da travessia do Rio São Francisco na canoa, episódio que divide a vida de Riobaldo em duas partes. Numa das manifestações de coragem que assombram e perturbam o protagonista, o Menino que o acompanha - reaparecendo depois como o jagunço Reinaldo-Diadorim - mostra grande destreza na utilização da faca. O mulato que sugere es­ tarem eles fazendo sujice é convidado pelo Menino a aproximar-se: Ah, tem lances, esses - se riscam tão depressa, olhar da gente não acompanha. Urutu dá e já deu o bote? Só foi assim. Mulato pulou para trás, ô de um grito, gemido urro O menino abanava a faquinha nua na mão, e nem se ria. Tinha embebido ferro na coxa do mulato, a ponta rasgando fundo. A lâmina estava escorrida de sangue ruim. Mas o menino não se aluía do lugar. E limpou a faca no capim, com todo capricho. - "Quicé que corta..." - foi só o que disse, a si dizendo. Tornou a pôr na bainha, (p.85) (Grifos nossos) E conhecido dos leitores do romance rosiano esse momento em que Riobaldo, aos catorze anos, encontra o Menino que tanto modifica sua vida. O fato transcorre em espaço sacralizado e, num ritual de passa­ gem, Riobaldo defronta-se, pela primeira vez, com o próprio medo e a coragem do Menino, com o prazer do Outro pela natureza - provocado pelas flores e pelas aves que o protagonista, até então, não podia enxer­ gar - , com a liberdade de ser do Menino e ainda com o esboço do senti­ mento amoroso e do pulsar da sexualidade. O limiar da manifestação sexual reveste-se também da malícia trazida, justamente, pelo aconte­ cimento que citamos. A partir daí, a vida do protagonista toma novo ru­ mo, em todos os sentidos. Estamos ante u m fato que transforma Riobaldo e que constitui, ao mesmo tempo, um rito de passagem e u m momento mítico. É fundamental lembrar que se trata do primeiro acon­ tecimento da história principal e que tem relações com o último, sendo o uso da faca um dos componentes do término dela, como mostraremos. 294 Alfa, São Paulo, 44: 285-297, 2000 No fragmento mencionado, salientamos, entre os traços fundamen­ tais relativos ao uso da faca, a /instantaneidade/, mais que a rapidez. Mas outros semas enformadores dos atributos de faca permitem supor funções por eles atualizadas: /que corta/, /que rasga fundo/, /que embe­ be/, /que se põe na bainha/. Quanto à morfologia do objeto, os traços que se destacam são /lâmina/, /ferro/, /com ponta/, /de pequena dimen­ são (faquinha)/. Alguns semas vinculam-se ao modo específico de usar a faca para ferir: /rasgar fundo/, /embeber/, /com ponta/, /perfurante/. Tais traços permitem o rasgo profundo que tira sangue. Com a descri­ ção de instrumento com lâmina perfurocortante, aqui com o revesti­ mento de quicé, temos a configuração de punhal. É a essa configuração que retornamos para ilustrar a dimensão mítica que se oferece no cam­ po lexical em questão. Diadorim aparece, no romance e na vida de Riobaldo, usando arma branca. No desenrolar da obra, ele também emprega arma de fogo; to­ davia, no momento decisivo, o do enfrentamento final com Hermóge­ nes, como parte do código guerreiro, a arma que lhe serve é branca. Junto a tal constatação, interessa-nos examinar a especificidade da faca escolhida no que diz respeito à função e à morfologia., Para tal embate, a faca toma também a forma de punhalT "Diadorim a vir - do topo da rua, punhal em mão, avançar - correndo amouco..." (Rosa, 1965, p.450) (grifo nosso). Embora tenhamos aqui a palavra p u ­ nha/, as demais menções, no episódio, a esse objeto realizam-se com a palavra faca, de que, aliás, são apresentadas as funções já menciona­ das: Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco sapecado e rapado... (Rosa, 1965, p.450) (Gri­ fos nossos) A essas funções acrescentam-se outras, próprias da configuração que o lexema assume nesse momento. O importante não é tratar-se es­ pecialmente do lexema punhal, mas do uso que se faz da faca, que é próprio de punhal: Assim, ah - mirei e vi - o claro claramente: aí Diadorim cravar e san­ grar o Hermógenes... Ah, cravou - no vão - e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar! (p.451) (Grifos nossos) Novos semas adicionam-se: /que crava/ /que sangra/. Tais atribu­ tos correspondem à particular morfologia do objeto. No dizer do dicio- Alfa, São Paulo, 44: 285-297, 2000 295 nário (Ferreira, s.d.), punhal é: Pequena arma branca de lâmina curta e penetrante. Trata-se, especificamente, de arma branca. Outra função, além da de cortar, está registrada: /uso em luta/ /penetrante/. Quanto à morfolo­ gia, temos /lâmina curta/ e, ainda, /com ponta aguçada/, que a atribui­ ção / penetrante/ permite adicionar. O discurso insiste no efeito do punhal - a morte produzida com es­ gotamento do sangue - no corpo do chefe inimigo: Havia nenhum Hermógenes mais. Assim de certo resumido - do jeito de quem cravado com um rombo esfaqueante se sangra todo, no vão-do- pescoço: já ficou amarelo completo, oca de terra, semblante puxado escar- necente, como quem da gente se quer rir - cara sepultada... (Rosa, 1965, p.452) (Grifo nosso) Ao traço /cravar/, já assinalado, junta-se o de /fazer rombo/. O vo­ cábulo rombo, no dicionário aqui utilizado, significa: 1. Furo, abertura, buraco de grandes proporções. 2. Abertura forçada por um rompimento violento; arrombamento. O novo sema /fazer rombo/ é adicionado aos anteriores que reme­ tem para o uso guerreiro da faca, com um sentido muito específico: / que provoca rompimento violento/. Tal atributo - o de romper com vio­ lência - insiste na inserção do vocábulo faca no universo da guerra. Na expressão rombo esfaqueante, o arquilexema faca embute-se no neolo­ gismo advindo do verbo esfaquear. Ocultar e, ao mesmo tempo, desven­ dar são artifícios próprios do discurso literário. Na morte de Hermógenes, o Bem vence o Mal e é vencido por ele: Diadorim também é morto. No final mítico dos embates de Riobaldo, de que ele não participa diretamente, a morte é maior, é a que esgota a sei­ va, a água-sangue - emblema da vida. Para tanto, a atualização de uma arma branca, o punhal, que crava. Temos a dimensão mítica, pois, mor­ tos, transformados, em campo sagrado da batalha, Diadorim é sacrifica­ do, enquanto, em relação a Hermógenes, cumpre-se a vingança ou a justiça. E Riobaldo depara - tragicamente, porque o amigo está morto - com a revelação de que o jagunço é mulher. Parece-nos possível observar, à guisa de conclusão, que, nos exem­ plos destacados, o emprego de diferentes lexemas, na dimensão práti­ ca, tem uma especificidade. Os vocábulos faca, facão, faca de arrasto são intercambiáveis. Mas a permuta dá-se de modo limitado; nesses le­ xemas não se configuram os traços mais específicos de punhal, por exemplo. Na dimensão da simbologia de última luta e, sobretudo, na d i - 296 Alfa, São Paulo, 44: 285-297, 2000 mensão mítica, faca, quicé e punhal intercambiam-se, com semas de u m sendo transportados para outro. É o caso de gurcé no episódio do primeiro encontro na travessia do São Francisco, que tem traços de pu­ nhal. E de faca, no embate final entre Hermógenes e Diadorim, também com semas próprios de punhal. Esta é apenas uma proposta para o estudo desse campo lexical em Giande sertão: veredas, em que procuramos nos orientar pela relação entre o arquilexema e as unidades que constituem o campo, tendo em vista a multiplicidade de significados que adquirem no texto rosiano em razão dos variados sentidos da obra e não apenas o contexto part i ­ cular em que o lexema se insere. LEONEL, M. C. de M. Knife and cold steel: a lexical field in Grande sertão: vere­ das. Alfa (São Paulo), v.44, p.285-297, 2000. • ABSTRACT: Applying H. Geckeler's and J. Lyons's ideas to an analysis of Grande sertão: veredas (The Devil to Pay in the Backlands) by Guimarães Ro­ sa, this essay examines the lexical field of the word knife and of other lex­ emes connected to cold steel, focusing on their meaning in the fictional world of the novel. • KEYWORDS: Lexicology; lexical field; Guimarães Rosa; Grande sertão: vere­ das (The Devil to Pay in the Backlands). Referências bibliográficas FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2.ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d. GECKELER, H. Semântica estrutural y teoria dei campo léxico. Madrid: Gredos, 1976. (Bibi. Românica Hispânica; Estúdios y ensaios, 241). GUIRAUD, P. A semântica. 3.ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Difel, 1980. LYONS, J. Campos semânticos. In: . Semântica I. Lisboa: Presença, Mar­ tins Fontes, 1980. p.204-18. ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 4.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1965. Alfa, São Paulo, 44:285-297, 2000 297