UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO unesp PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ( Linguagem- Experiência- Memória- Formação) SER OU TORNAR-SE MULHER- POR ENTRE A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS- EJA, A VIDA, O NARRAR, E O REINVENTAR DE SI DÉBORA SARA FERREIRA SETEMBRO-2019 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO unesp PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ( Linguagem- Experiência- Memória- Formação) SER OU TORNAR-SE MULHER- POR ENTRE A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS-EJA, A VIDA, O NARRAR, E O REINVENTAR DE SI DÉBORA SARA FERREIRA Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação. RIO CLARO-SP SETEMBRO-2019 Orientador: Prof.ª Dr.ª Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo F383s Ferreira, Débora Sara Ser ou tornar-se mulher- Por entre a Educação de Jovens e Adultos-EJA, a vida, o narrar, e o reinventar de si / Débora Sara Ferreira. -- Rio Claro, 2019 151 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências, Rio Claro Orientadora: Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo 1. Educação. 2. Educação de Adultos. 3. Mulheres. 4. Mulheres e Literatura. 5. Narrativas. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Com grande alegria dedico esse trabalho à minha mãe Rute Batista, ao meu pai Natael de Jesus Ferreira (in memoriam) e ao meu irmão Rafael Esdras Batista (in memoriam). AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, às mulheres participantes deste estudo. Ao partilharem suas histórias na resistência poética, tornaram este trabalho possível. Franciele, Jhenifer, Ágata, Naná e Eliana: agradeço pelo empenho na participação das oficinas, e na alegria em partilhar vida e amizade. À Maria Rosa, por todo carinho demonstrado, pela amizade-alegria, olhar humano e sensível, e pela confiança depositada em mim, e no estudo que aqui se apresenta. À minha mãe Rute Batista, por ser um exemplo de mulher que luta e que resiste nas pluralidades do cotidiano. Agradeço ao meu pai, Natael de Jesus Ferreira (in memoriam), que nunca mediu esforços para que eu estudasse. Hoje realizo um de seus maiores sonhos: ver uma filha se formar na universidade. Agradeço às minhas irmãs: Daniele, Fabiana, Miriam, Lenita e Simone; e aos meus irmãos: João, Paulo, Daniel e Rafael (in memoriam), pelo incentivo e carinho. Agradeço ao meu amigo, companheiro e cúmplice, Gustavo Poletti, pelo apoio e incentivo contínuos para a concretização dos meus estudos. Agradeço à minha sogra Márcia Poletti, ao meu sogro Ivan Poletti e à minha cunhada Aline Poletti, pelo carinho e amizade. Agradeço à minha amiga Lara Jatkoske Lazo, pelas escritas-devaneios que partilhamos, a amizade-poesia, e toda a contribuição para o estudo que aqui se apresenta. À Bruna Cidade, minha grande amiga: muito obrigada por estar presente e nunca se esquecer da nossa amizade! À Professora Carolina Souza, agradeço pelo carinho, amizade e as contribuições para o estudo que aqui se apresenta. Gratidão à minha amiga Professora Eliane Bacocina, pelas escritas-devaneios, que partilhamos ao longo desses anos, pela (co-)orientação, em meu Trabalho de Conclusão de Curso, bem como pelas contribuições preciosas para este estudo. Agradeço à Professora Nima Imaculada Spigolon, pela partilha de saberes e pelas riquíssimas contribuições para o estudo que aqui se apresenta. Gratidão à minha colega de trabalho Professora Elaine Fahl, pelo carinho e partilha de saberes. Ao PEJA Rio Claro, pela amizade, encontros, leituras, movimentos-devaneios e aprendizagem. À D. Cleide, participante do meu Trabalho de Conclusão de Curso, agradeço pelo carinho, disposição e amizade! Ao grupo de estudos Escriarte, pelos encontros-devaneios e aprendizado, em especial: Ingrid, Murilo, Felipe, Rafael, Artur, Michele, Suzana, André, Marco, Flavia, Thaynara, Andréia, Milena, Marília e Ana Carolina. Agradeço aos amigos da pós-graduação: Edinéia, Meira, Aline Barbosa, João Marcos, Jaqueline, Marisa e Lisiane. À Secretaria Municipal de Rio Claro e à escola em que realizei o estudo, agradeço por terem concedido espaço para que este trabalho pudesse se concretizar. Agradeço às escolas: EMEIEF Prada, CI Vereador Walmidir Jose Schinor, e CEIEF Rafael Affonso Leite do município de Limeira-SP, pela oportunidade de trabalho, e, assim, pela possibilidade de experienciar o exercício da docência. Agradeço ao Ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, pelas políticas públicas de inclusão, dos anos de seu governo, que permitiram que pessoas como eu pudessem ingressar e permanecer na universidade pública. Aprendi que sonhar é possível! Ao grupo de Bolsistas CAPES, pelas conversas intelectuais, os memes interativos e pelo incentivo. Gratidão! Agradeço à CAPES, pelo auxílio financeiro na modalidade de bolsa de Mestrado. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. [...] Comida e roupas do lixo, tudo era compartilhado com os filhos; só o papel era para si guardado, para em futuros escritos ser depois aproveitado. Ler e escrever: tudo serve! Revista, aviso, embalagem, folheto de propaganda, bilhete, lista, passagem... Caderno jogado fora? Podia escrever na margem! Apesar do pouco estudo, tendo cursado somente as séries iniciais, Carolina persistente, registrava seus pensamentos E a vida de sua gente. Um cordel a Carolina, de Paulo Roxo Barja. RESUMO A pesquisa que aqui apresentamos tem como campo empírico de estudo a educação de jovens e adultos –EJA e projeta o foco para as mulheres que ali se encontram. Duas questões são centrais neste estudo: levantar e trazer à luz elementos que indiciam a condição da mulher, pensada por quem se encontra naquele lugar (sala de aula, na EJA), particularizando a condição da mulher pensada e dita por ela mesma; e assumir a narrativa de vida, particularizando a narrativa escrita e os relatos orais, como base material no registro de vida, e, nela, a possibilidade de (re-)invenção de si. O estudo foi realizado em uma escola pública do município de Rio Claro-SP, entre abril e outubro de 2018. A turma de EJA em que o estudo foi desenvolvido corresponde ao 5° ano do ensino fundamental II, do período noturno. Portanto o debate, no que concerne às políticas públicas para a EJA serem elaboradas com outras políticas de correção das desigualdades sociais, torna-se imprescindível, já que estamos tratando da realidade de pessoas brasileiras (RINALDI; PEREIRA, 2015). Esta pesquisa é de natureza qualitativa, tendo como proposta metodológica a pesquisa narrativa (CONNELY; CLANDININ, 1995) e a pesquisa autobiográfica (DELORY-MOMBERGER, 2011), pelas quais é possível focar as experiências humanas, bem como contar suas histórias, registrar e escrever relatos de experiência; entende-se o ato de narrar, escrito ou oral, como potência para o pensamento da própria condição. Para o aguçar de reflexões sobre a condição da mulher, este estudo perpassa a História da Mulher no Brasil do século XIX e a discussão, no que concerne à contribuição da História Cultural para a compreensão da complexidade das representações dos modos de ser da mulher, que ultrapassam gerações. (CHARTIER, 2002). Foram realizadas oficinas temáticas com as mulheres participantes, bem como a escrita em cadernos individuais. Ao final, realizamos uma entrevista aberta. As mulheres participantes responderam, no decorrer dos encontros, ao “Questionário organizado para uma turma de EJA”. As oficinas foram intituladas: Imagens que produzem sentidos, que produzem vida; Imagens que vazam: histórias contadas por mulheres; Um olhar-vida para o conto Uma galinha de Clarice Lispector; Desconstruindo Amélia, desconstruindo-me; Respeita as mina: uma reflexão sobre a música; Partilhando afetos: Quarto de despejo. Alguns disparadores foram utilizados para a realização dos encontros, tais quais: imagens de mulheres em diversos setores da sociedade; o conto Uma galinha da autora Clarice Lispector e alguns trechos da obra Quarto de despejo da autora Carolina Maria de Jesus; além desses recursos, utilizamos as músicas Desconstruindo Amélia da cantora Pitty e a música Respeita as mina da cantora Kell Smith. A partir do encontro com as narrativas das mulheres participantes, é possível nos aproximarmos dos sentidos e significados do tornar-se mulher em uma sociedade patriarcal, optando por não as desvendar, mas poetizar vida, leituras e encontros que potencializam experiências e tornam-se emancipatórios para a reflexão da própria condição. Palavras-chave: Narrativas. Mulher. Educação de Jovens e Adultos. ABSTRACT The present empirical research focuses on women participating in youth and adult education (YAE) projects. Two central issues were addressed: raise and bring to light elements that depict the women’s condition thought by those who are in that place (YAE classroom), particularizing the condition of the women, thought and expressed by themselves, and taking over the life narrative, particularizing the written narrative and taking the accounts as the material basis for the life record and the possibility of (re)inventing oneself. The study was conducted in a public school in the municipality of Rio Claro-SP, between April and October/2018 and the YAE evening group enrolled in this study corresponded to the 5th grade of Fundamental. Therefore, public policies regarding YAE must be elaborated in conjunction with social equality policies, once we are dealing with the Brazilian people reality (RINALDI; PEREIRA, 2015). This is a qualitative and narrative research (CONNELY; CLANDININ, 1995) with autobiographical approach (DELORY-MOMBERGER, 2011), focusing on human experiences and accounts, which were all registered, once the narrative, either written or spoken, instigates thoughts about one’s own condition. To foment reflections on the women’s condition, this study analyzes the History of Brazilian Women in the 19th century and discusses the contribution of the Cultural History to understand the complexity of women’s representations, which survive through generations. (CHARTIER, 2002). Thematic workshops were conducted with the participants and they made individual records. In the final stage, an open interview was carried out, and, throughout the study, the participants answered the “Questionnaire elaborated to a YAE group”. The workshops were entitled as follows: Images that produce senses and life; Leaking Images: stories told by women; A life-view on the story ‘A chicken’ by Clarice Lispector; Deconstructing Amélia, deconstructing myself; Respect the girls: a reflection on the song; Sharing Affection: Storage room. Some triggers were used in the meetings, such as: images of women from different sectors; the story ‘A Chicken’ by Clarice Lispector and some excerpts of ‘Storage Room’ by Carolina Maria de Jesus; the songs ‘Deconstructing Amélia’ by Pitty and . ‘Respect the Girls’ by Kell Smith. In touch with the participants’ narrative, it was possible to discover the senses and meanings of becoming a woman in a patriarchal society, opting to poetize the life, readings and gatherings rather than unveiling them, potentializing experiences for the reflection of such condition. Keywords: Narrative. Women. Youth and Adult Education LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURA 1: Taís Araújo ............................................................................................................ 103 FIGURA 2: Ellen Pompeo ......................................................................................................... 103 FIGURA 3: Thaísa Bergmann .................................................................................................. 104 FIGURA 4: Rosinéia Aparecida Maximiano ........................................................................... 106 FIGURA 5: Simone de Beauvoir .............................................................................................. 106 FIGURA 6: Manuela D’Ávila ................................................................................................... 107 FIGURA 7: Clarice Lispector ................................................................................................... 107 FIGURA 8: Dilma Rousseff ...................................................................................................... 108 FIGURA 9: Anitta ...................................................................................................................... 108 FIGURA 10: Arte de Polyane Andrade ................................................................................... 116 FIGURA 11: Arte de Matheus Azolla ...................................................................................... 116 FIGURA 12: Arte de Matheus Azola ....................................................................................... 117 FIGURA 13: Arte de Aya Andrade sob fotografia de Derossy Araújo ................................. 120 FIGURA 14: Fotografia de Derossy Araújo ............................................................................ 120 FIGURA 15: Arte de Matheus Azola ....................................................................................... 121 FIGURA 16: Autor desconhecido ............................................................................................. 121 LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS Quadro I: Pesquisas de Mestrado organizadas por ano ............................................................ 50 Quadro II: Pesquisas de Doutorado organizadas por ano ......................................................... 58 Gráfico I: Pesquisas de Mestrado e Doutorado distribuídas nas grandes áreas do conhecimento .............................................................................................................................. 61 Gráfico II: Pesquisas de Mestrado e Doutorado subdivididas nas áreas do conhecimento ...... 61 Gráfico III: Quantidade de pesquisas de Mestrado e Doutorado .............................................. 62 Gráfico IV: Taxas de analfabetismo entre mulheres com recorte de idade e raça ..................... 85 Gráfico V: Taxas de analfabetismo entre homens, com recorte de idade e raça ....................... 85 Gráfico VI: Taxas de analfabetismo por região ......................................................................... 86 SUMÁRIO PREFÁCIO: CARTA ÀS MULHERES ................................................................................. 13 É PRECISO INICIAR! ............................................................................................................... 17 DEVANEIOS-CAMINHANTES* ........................................................................................... 27 1-SOBRE NOVOS MODOS DE (RE)EXISTIR: A METAMORFOSE DO [MEU] OLHAR .. 28 1.1- PEJA Unesp de Rio Claro: tecendo fios de amizade ........................................................... 34 DEVANEIOS-CAMINHANTES** ......................................................................................... 39 2- HISTÓRIAS DA MULHER: ADENTRANDO CAMINHOS .............................................. 40 2.1- A história da mulher: o que dizem as pesquisas? ................................................................ 49 DEVANEIOS-CAMINHANTES *** ...................................................................................... 64 3-NA TRILHA DA ESCRITA DA HISTÓRIA: POR ENTRE DIREITOS NEGADOS E ESPAÇOS CONQUISTADOS .................................................................................................. 65 3.1- Clarice e Carolina: escritas, subjetividade(-s), (re-)encontros ............................................ 74 DEVANEIOS-CAMINHANTES**** ..................................................................................... 79 4-DO MARCO LEGAL ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS: A CONDIÇÃO DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL ........................................................................................ 80 DEVANEIOS-CAMINHANTES ***** .................................................................................. 91 5- A EJA NA CIDADE DE RIO CLARO-SP: PRIMEIROS MOVIMENTOS ......................... 92 5.1- A escola ............................................................................................................................... 93 5.2- O planejamento das oficinas ............................................................................................... 93 5.3- As educandas e as observações ........................................................................................... 97 5.4- Os registros: fontes variáveis .............................................................................................. 99 5.5- As mulheres participantes da pesquisa ................................................................................ 99 DEVANEIOS-CAMINHANTES ****** ................................................................................ 101 6-NARRATIVAS (DE VIDA): A EXPERIÊNCIA DE OFICINAS COM MULHERES DA/ NA EJA ...................................................................................................................................... 102 6.1- Imagens que produzem sentidos, que produzem vida ......................................................... 102 6.2- Imagens que vazam: histórias contadas por mulheres ........................................................ 106 6.3- Um olhar-vida para o conto Uma galinha de Clarice Lispector ......................................... 110 6.4- Desconstruindo Amélia, desconstruindo-me ....................................................................... 114 6.5- Respeita as mina: uma reflexão sobre a música .................................................................. 118 6.6- Partilhando afetos: Quarto de despejo ................................................................................ 123 6.7- Oficinas poéticas na Educação de Jovens e Adultos: proposta metodológica .................... 126 DEVANEIOS-CAMINHANTES ******* .............................................................................. 130 7- LINHAS POÉTICAS DE VIDA: COSTURANDO NARRATIVAS ..................................... 131 7.1- "Só que ele nunca liberou eu para estudar, ele nunca me liberava para nada na vida!" ...... 132 7.2- "A mulher chega em casa, não dá tempo nem de tomar um banho, às vezes chega e já vai para a beira do fogão, já vai colocando roupa na máquina" ....................................................... 134 7.3- "Não é que ele não deixava eu estudar, mas ele também não ajudava, não ficava com o menino para eu vir para escola" .................................................................................................. 135 7.4- Adentrando caminhos: aproximando reflexões, sentidos e significados ............................. 137 DEVANEIOS-CAMINHANTES ******** ............................................................................ 143 (IN-)CONCLUSÕES: O CADERNO DE PAISAGEM, QUE TROUXE SONHOS, VIDA E POESIA ...................................................................................................................................... 144 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 151 13 PREFÁCIO: CARTA ÀS MULHERES Vejo, em teus olhos, a vontade incessante de ser livre. A vontade de libertar-se do que lhe prende e limita; Vejo a dor de um passado que queima... O fogo que queima a pele e a alma. O fogo do preconceito. O preconceito cristalizado. Um patriarcado que predomina, que domina, que assassina, que limita. Vejo em você, vejo em mim, a busca da liberdade com um preço alto a pagar. Nós pagamos com nossa vida, por nossa (re-)existência. Você é agredida pelo marido que chegou bêbado em casa, e você não tem pra onde ir. Não existe respaldo na lei. Não existe família pra lhe apoiar. Pra onde você vai, no meio da noite, com cinco filhos nos braços? Você só tem uma opção, e é esta que você escolhe: deitar-se em seu lado da cama e chorar. Mulher. Quantas histórias parecidas com essa ecoam em nossos diálogos? Pra onde iremos? Quem irá nos acolher? Dias se passam, e mulheres continuam a ser insultadas, maltratadas, agredidas, impedidas de realizar seus sonhos: o sonho de estudar, o sonho de trabalhar... Saímos à rua com medo! Quando essa sociedade perceberá que a nossa roupa não define quem nós somos? Até quando a sociedade nos julgará pela roupa que vestimos? Até quando teremos de seguir todas essas regras? 14 O preço por ser mulher é alto demais. O preço por ser livre é um preço alto. E no nosso interior, um grande sentimento ecoa, faz barulho, incomoda. Está no âmago do nosso ser... É a liberdade! A liberdade de ser o que quiser! Você é mulher, uma grande força! É você a mãe que chora, que se alegra, que sofre, que carrega uma fé inabalável na própria liberdade. É você bruxa. É você a mãe de toda humanidade, Que poder é esse que ecoa, que faz barulho? Que poder é esse que incomoda? É você, mulher! É única. Vejo mulheres no passado que lutaram, morreram, brigaram, foram assassinadas... Ouço suas vozes ecoando, gritando pela liberdade, pelo poder, pela vontade! Gritos de liberdade, gritos de resistência, gritos de insubmissão... Gritos que traspassam gerações; Gritos de vida, gritos de morte. Que poder é esse sobre a nossa vida? Que sistema é esse, que nos mata todos os dias? Que sistema é esse, que limita nosso vestir, nosso sentir? Que sistema é esse, que transpassa em nossos diálogos cotidianos, dizendo que nós não somos capazes de ser o que quisermos? Que, simbolicamente, nos queima todos os dias? 15 Que grita: Fora Dilma!, com a intenção capciosa de acreditarmos que ela não é capaz? Que sistema é esse, que agride professoras em luta por seus direitos? Que assassina Marielle(-s) todos os dias? Que limita nossos sonhos, nossos mundos, nossas subjetividades? Que poder é esse sobre a nossa vida? Mas, por meio da resistência e do despertar, nasce a luta, a capacidade ilimitada de sonhar, de realizar, de fazer, de lutar. A vontade incessante de ser livre, ser luta, ser bruxa. Ter vida. Ser o que quiser, como quiser... Morrem mulheres-bruxas, nascem outras. Mulheres-mães... Mulheres-trabalhadoras... Mulheres-pesquisadoras... Mulheres-professoras.... Mulheres-costureiras... Mulheres-presidentas... Mulheres-capazes... Mulheres-resistência... Devir-mulher... Nasce a denúncia. Nascem os movimentos... Ecoa o feminismo, ecoam os feminismos, 16 Ecoam as potências e o poder da vida. Os devires... Nasce a vida. Nasce a nossa (re-)invenção, Nasce um sonho a mais! (Débora Sara Ferreira) 17 Aviso da lua que menstrua Moço, cuidado com ela! Há que se ter cautela com esta gente que menstrua... Imagine uma cachoeira às avessas: Cada ato que faz, o corpo confessa. Cuidado, moço Às vezes parece erva, parece hera Cuidado com essa gente que gera Essa gente que se metamorfoseia Metade legível, metade sereia. Barriga cresce, explode humanidades E ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar Mas é outro lugar, aí é que está: Cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita.. (Composição: Elisa Lucinda) É preciso iniciar Quando iniciamos? O que pode a narrativa de mulheres que refletem sobre a própria condição? O que movimenta a vida de uma mulher que estuda sobre a história da mulher e se encontra com mulheres da/na EJA? O que podem os encontros emancipatórios em sala de aula? Podemos ir ao encontro do conhecimento? Como? Quando? No princípio, indagações. Tantas... Entre o pulsar da(-s) vida(-s), entre os movimentos do conhecimento e os movimentos de vida, poesia e ciência, apresento este estudo. Não é fácil dizer quando começa. Acredito que, neste momento, é importante refletir sobre a pergunta: que fios poéticos e políticos tecemos ao refletirmos sobre a condição de vida das mulheres da Educação de Jovens e Adultos? Na tentativa de expressar minhas indagações, pela escrita, tenho a sensação de que não consigo alcançar, nem representar tudo o que tenho a dizer por meio da palavra. Mas, como forma resistente de ler e escrever o mundo que habito, permaneço nesse caminho de escritas devaneios... Nessa direção, cabe novamente indagar: quando tudo se inicia? 18 Um início: PEJA (Projeto de Educação de Jovens e Adultos) da Unesp de Rio Claro. Um pulsar de inquietações a partir da condição da mulher: vida e escritas de D. Cleide. Um projeto de Mestrado: a condição da mulher e a Educação de Jovens e Adultos. EJA: políticas públicas. Os devaneios inquietantes da minha vida; a metamorfose do meu olhar. Encontro com as autoras: Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus. História da mulher no Brasil: de mulheres que se lançaram nas malhas literárias, no século XIX. Escrita que caminha com a vida: devaneios caminhantes... Um estudo que caminha com a vida. Uma vida que pulsa sentidos e significados. O pulsar da vida, da potência, da experiência, da ciência, do conhecimento... Quando iniciei minhas atividades no PEJA (Projeto de Educação de Jovens e Adultos) da UNESP de Rio Claro, em 2013, ainda não entendia a importância da extensão universitária. Estar em um projeto que tem por objetivos promover a troca de saberes, a emancipação do pensamento, a partilha de vida, poesia e amizade, se faz primordial para alunos de graduação, na universidade pública. O PEJA é um projeto de extensão universitária da UNESP de Rio Claro, que tem por objetivos desenvolver atividades de ensino para pessoas com escolaridade incompleta; promover a formação de educadores entre alunos da graduação; e gerar conhecimentos no campo da educação de jovens e adultos, estreitando laços entre ensino, pesquisa e extensão, pilares fundamentais da universidade pública. Lá, no Peja, conheci e convivi com várias educandas. Através das histórias compartilhadas, rememorava a história das mulheres de minha família, que, por motivos diversos, não puderam estudar em período regular. Essas tensões inquietantes foram tornando-se indagações, um dos motivos da feitura poético-política do estudo que aqui se apresenta. Portanto, cabe a seguinte indagação: da Educação de Jovens e Adultos e das narrativas de vida de mulheres-educandas, quais fios poético-políticos podemos tecer e costurar? Em tempos sombrios, penso que é preciso resistir de uma forma poética e criativa. Penso também que a escrita-devaneio é um caminho para isso. Portanto, nutrir toda aquela inspiração que movimentou minha vida e acirrou tensões comigo mesma, ir ao encontro do conhecimento e refletir sobre a condição da mulher foram os movimentos-poéticos que encontrei em tempos sombrios. Os tempos se fazem sombrios para aquelas que acreditam na arte do encontro, do encontro com a educação que produz sentidos, narrativas, experiências e (re-)existências. 19 Nesse caminho de (re-)existências, penso que refletir sobre a condição da mulher é, de certo modo, refletir sobre a minha própria condição. Tensão cotidiana e inquietante. Quando iniciei as leituras para a feitura poética deste texto, não fazia ideia da amplitude dessa temática. Nesses momentos de encontros e leituras, era impossível não refletir sobre a minha condição enquanto mulher. Portanto, meu olhar foi se modificando e se transformando no decorrer das leituras-encontros. Tecer reflexões acerca das condições da mulher é, de fato, um exercício de resistência. Digo isso, pois os tempos se fazem sombrios para as sonhadoras como eu. E sonhar tem sido um exercício de resistência... Penso que talvez sejam os sonhos que façam com que me levante da cama todos os dias. Sonhos de um mundo mais humano, solidário, onde haja respeito para com as diversidades, e onde se reconheçam a história e a luta das mulheres como legítimas. Este texto-encontro é um olhar poético-resistência. É um texto-mulher. Pergunto-me, todos os dias, porque escolhi um tema de pesquisa sobre mulheres. Muitas respostas vêm quando pergunto ao universo os porquês. De fato, neste momento, em que este estudo entra em novas etapas, não seria interessante perguntar qual o motivo que me levou a este caminho? Talvez seja desconexo neste momento. Insano. Talvez esteja divagando nos mais profundos e obscuros dos meus pensamentos. Talvez... Com frequência, preciso (re-) descobrir-me em minha pesquisa. Preciso sentir e nutrir aquela inspiração que moveu minhas escolhas, que hoje se embaralham na vida do dia a dia e na vida acadêmica. Mas os tempos se fazem sombrios para as sonhadoras... E o silêncio retorna, e as palavras não surgem... No infinito dos meus pensamentos, o caos se instaura. Como ter fôlego? Como escrever sobre mulheres? Como escrever sobre mim? Fiz uma pausa! Lembrei-me de toda aquela alegria do dia em que passei no processo seletivo do mestrado em Educação. Lembrei-me de todas as mulheres que me cercam... Das mulheres-resistência. Rememorar os motivos que me levaram a esses caminhos me deram fôlego para prosseguir com minha escrita e também, com meus projetos de vida. Fizeram-me perceber a luta política, poética e ética, com que esta escrita se tece e se costura... Sou Débora, sou mulher, sou pesquisadora. Fui estudante, sou professora. 20 Sou resistência na luta pela (re-)escrita de minha história. As páginas que vocês lerão neste estudo são potências-poéticas. São escritas-mundo. Escritas do meu mundo. Narrativas de mulheres da EJA. Escritas que pulsam sentidos e significados. A escrita da vida... São formas disformes de olhar o mundo, de contemplá-lo, de criticá-lo, de vivenciá-lo. E continua... Este estudo tem por objetivo refletir sobre a condição da mulher, a partir das narrativas de mulheres que se encontraram em uma sala de aula da Educação de Jovens e Adultos, correspondente ao 5° ano do ensino fundamental II, em uma escola pública do município de Rio Claro-SP. Alguns caminhos neste estudo se fizeram potentes e pertinentes, tais quais: a discussão da História Cultural e sua contribuição para refletirmos acerca da História da Mulher; o diálogo com a História da Mulher no Brasil no século XIX, o (re-)encontro com Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus; o panorama da Educação de Jovens e Adultos e os desafios dessa modalidade de ensino, frente às políticas públicas de inclusão, no Brasil 21 contemporâneo; as narrativas das mulheres da EJA, participantes do estudo, e a possibilidade de encontrarmos sentidos e significados, a partir dos encontros emancipatórios em sala de aula. A História Cultural tem por objetivo pensar em como determinada sociedade é construída e dada a ler. Ao tomarmos, como ponto de partida, a História Cultural; compreendemos as práticas discursivas e apropriações realizadas pelos modos de como compreendemos o mundo, bem como as representações que foram cristalizadas no imaginário social, acerca dos modos de ser da mulher, que ultrapassam gerações. (CHARTIER, 2002). Para Chartier (2002), as percepções do mundo social são produzidas por discursos não neutros, sendo, portanto, mecanismos para imposições. Ao produzir estratégias e práticas, alguns grupos tendem a impor suas concepções, valores e domínio sobre outros grupos. Portanto, a investigação acerca das representações, de acordo com Chartier (2002, p. 17) “[...]supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições [...].” A partir disso, cabe salientar que as lutas pelas representações se fazem primordiais, assim como as lutas no campo econômico, para a compreensão acerca de como alguns grupos impõem concepções e valores a outros. Tedeschi (2012, p. 22), ao trazer a discussão acerca dos principais conceitos trabalhados por Chartier na História Cultural, afirma que “[...] é uma modalidade que procura entender a produção de sentido das palavras, das imagens e dos símbolos, e busca também a reconstrução das práticas culturais em termos de recepção, de invenção e de lutas de representações [...].” Ao trabalhar as diferentes formas de como se dá a apropriação dos discursos, no que concerne a textos (escritos ou não) e a produções de sentido, que cada indivíduo produz, de acordo com a posição que ocupa no mundo social, a história cultural procura entender os modos da construção dos sentidos, acerca do mundo em que vivemos. A construção do mundo social não é um dado com perfeita exatidão, mas se constitui nas práticas articuladas e historicamente produzidas. A história e a investigação do cotidiano são entendidas a partir do estudo dos processos e da construção dos sentidos. Cabe salientar que é por meio das práticas discursivas, que, contraditório e pluralmente, atribuímos significado ao mundo em que vivemos: “Daí a caracterização das práticas discursivas como produtoras de ordenamento, de afirmação de distâncias, de divisões; daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação.” (CHARTIER, 2002, p. 28). Portanto, as práticas discursivas se tornam um dispositivo, para que certos grupos criem discursos, em que afirmam divisões e ordenamento 22 do mundo social. As práticas de apropriação cultural se fazem por meio da interpretação dos indivíduos perante as questões do mundo social. Chartier (2002) ainda afirma que, ao compreender o enraizamento em que se dão essas práticas, faz-se indispensável considerar as particularidades e o espaço das práticas culturais. Portanto, considerando inicialmente tais perspectivas, delineamos, como objetivo geral para o presente estudo: levantar e trazer à luz elementos que indiciam a condição da mulher, pensada/narrada por ela mesma. Ao assumir a narrativa de vida, particularizando a narrativa escrita e a oralidade como bases materiais de registro de vida, e por elas abrir a possibilidade de (re-)invenção de si, temos, no horizonte, a possibilidade da mulher reconhecer-se sujeito de suas ações, por suas práticas, no tempo de hoje. Tais motivações nos levam a focar essa mulher em salas de Educação de Jovens e Adultos, o que traz algumas implicações para o objeto de estudo. Alguns desdobramentos teórico-metodológicos se fazem pertinentes ao desenvolvimento do estudo. Sejam eles: construir, com as participantes da pesquisa, conhecimentos, sentidos múltiplos e leitura de mundo, através de fragmentos de obras diversas e disparadores contemporâneos que retratam a imagem da mulher; observar, por meio das falas das participantes, a leitura de mundo acerca dos modos de ser mulher; analisar as práticas presentes nesses encontros, por meio das falas e escritas das participantes da pesquisa, e indicar elementos que contribuam para a reflexão da condição da mulher. De acordo com Delory-Momberger (2011), a narrativa se faz preponderante, não para que possamos ter uma história, porque a temos, mas para que possamos narrar a nossa vida. Certamente o relato da vida permite que estejamos em constante diálogo com nós mesmos. A narrativa, segundo a autora, é também um elemento de poder, no que concerne à formatação ou configuração narrativa. “[...] A narrativa narra histórias [...].” (MOMBERGER, 2011, p. 07). A narrativa existe para que a nossa história não se perca. Nessa direção, a autora afirma que, É a narrativa que faz de nós o próprio personagem de nossa vida e que dá uma história a nossa vida. Em outros termos, não fazemos a narrativa de nossa vida porque temos uma história; pelo contrário, temos uma história porque fazemos a narrativa de nossa vida. (DELORY-MOMBERGER, 2011, p. 7). Acrescentam-se a isso as ideias dos autores Connely e Clandinin (1995, p. 12), que afirmam que a investigação narrativa está focalizada na experiência humana. Os investigadores narrativos buscam descrever as vidas, contar histórias sobre elas e escrever 23 relatos de experiência. Por meio de relatos orais e algumas escritas produzidas nos encontros, foi possível aproximar sentidos e significados presentes nas narrativas das mulheres participantes do estudo, sobretudo, em aspectos que concernem à condição das mulheres. De acordo com Lima, Geraldi e Geraldi (2015, p. 09) “[...] a narrativa como construção de sentidos de um evento [...]” é uma das possibilidades de realizarmos uma investigação pautada na história dos sujeitos, pois, através da narrativa, é possível rememorar o passado, construindo uma reflexão do presente. É possível vislumbrar, por meio das narrativas, a possibilidade de reflexão da própria vida, através da memória. Os autores afirmam que a pesquisa narrativa é a possibilidade de construir compreensões entre os sujeitos, em vez de falar sobre eles. Ficamos sabendo que, A aproximação entre pesquisador e pesquisado, longe de ser um mecanismo de “contaminação” da pesquisa, significa a possibilidade de construção de outras compreensões acerca das nossas experiências. Entre os modos de enfrentar o desafio das pesquisas com envolvimento do pesquisador está a investigação narrativa. As narrativas das histórias do vivido constituem material importante na investigação das práticas docentes. De certo modo, resguardam sujeitos e práticas de terem seus sentidos corrompidos por pesquisas formatadas que enquadram a experiência ao olhar ou ao objeto do investigador. (GERALDI, C; GERALDI, W; LIMA, 2015, p. 19). Para os autores, a pesquisa em ciências humanas é a “ciência do singular”, pois, em vez de oferecer regras gerais, como em um modelo de pesquisa positivista, possibilita conhecer a história particular dos sujeitos. Da aproximação do pesquisador e dos participantes da pesquisa, é possível, por meio do diálogo, a construção e desconstrução de paradigmas, bem como a possibilidade de compreensões outras acerca de nossas experiências. Portanto, a pesquisa narrativa é a possibilidade de falar com a escola e não sobre a escola, sendo, portanto, um instrumento precioso para as pesquisas no contexto escolar. Geraldi C, Geraldi W e Lima (2015), também caracterizam as narrativas biográficas e autobiográficas como a possibilidade de escrever de si e sobre si. Os autores salientam que Na autobiografia, os dados empíricos são coletados por pesquisadores que se tornam os próprios objetos do estudo e fazem uma escrita de si e sobre si no processo de formação. Essas pesquisas permitem produzir uma compreensão do sujeito e de sua formação por meio das narrativas de vida. (GERALDI, C; GERALDI, W; LIMA, 2015, p. 25). As pesquisas autobiográficas apresentam semelhanças com os depoimentos de história oral, pois não elucidam fatos ou eventos, mas fazem emergir os sujeitos que contam suas 24 histórias e partilham afetos. Nesse caminho, cabe a indagação: o que pode uma partilha da vida? Na primeira etapa do estudo, realizei observações e fiz o registro por anotações. Na segunda etapa, realizei oficinas temáticas, com o objetivo principal de refletir sobre a condição da mulher. Por fim, realizei entrevistas abertas, para dialogar sobre as oficinas, bem como sobre a avaliação dos encontros pelas mulheres participantes. A primeira oficina, intitulada “Imagens que produzem sentidos, que produzem vida”, foi organizada com imagens de mulheres ocupando diversos papéis na sociedade. A oficina teve por objetivo: discutir sobre os diversos papéis que as mulheres ocupam na sociedade atual, e refletir sobre a condição de vida das mulheres. Na segunda oficina “Imagens que vazam: histórias contadas por mulheres”, o objetivo foi: compreender a luta cotidiana de mulheres, por meio de imagens de mulheres ocupando diversos papéis na sociedade, bem como a possibilidade em refletir sobre a própria condição. A terceira oficina, intitulada “Um olhar-vida para o conto Uma Galinha", de Clarice Lispector, teve por objetivo: ler o conto de forma autônoma, com a possibilidade de partilhar vida, poesia e leitura de mundo; conhecer a autora Clarice Lispector, bem como sua importância na literatura brasileira. A quarta oficina, intitulada “Desconstruindo Amélia, desconstruindo-me...”, teve por objetivo: dialogar sobre a condição da mulher, a partir da música Desconstruindo Amélia da cantora Pitty; partilhar vida e amizade, por meio de imagens de Sê-los (imagens-poesias confeccionadas por Daniel Leão, Derossy Araújo, Glauber Júlio, Isadora Gomes, Maíra Sampaio e Márcio José). Na quinta oficina, “Respeita as mina: uma reflexão sobre a música”, a partir da referida música, tivemos por objetivo: dialogar sobre a condição da mulher a partir da música; partilhar vida e amizade, por meio de imagens de Sê-los (imagens-poesias confeccionadas por Daniel Leão, Derossy Araújo, Glauber Júlio, Isadora Gomes, Maíra Sampaio e Márcio José). Por fim, a sexta oficina, intitulada “Partilhando afetos: Quarto de despejo”, teve por objetivos: ler os trechos do livro de forma autônoma, com a possibilidade de partilhar vida, poesia e leitura de mundo; conhecer a autora Carolina Maria de Jesus, bem como a sua contribuição para a literatura brasileira. O registro das oficinas foi realizado com o uso de gravador, bem como anotações foram realizadas no decorrer dos encontros. Vale ressaltar que as gravações foram transcritas posteriormente. 25 Apresento este estudo com as indagações que permanecem, que pulsam, que movimentam vida e poesia. Narrativas que são potências de vida e resistência. Sendo assim, o trabalho se apresenta com introdução, e organizado em sete capítulos intermediados por devaneios caminhantes. No primeiro capítulo, intitulado Sobre novos modos de (re-)existir: a metamorfose do [meu] olhar, trago a minha narrativa de vida e os processos da metamorfose, que fui detectando em meu próprio olhar para algumas questões da vida, bem como a minha experiência enquanto educadora no PEJA da Unesp Rio Claro, ressaltando, a partir de minha experiência e formação, a importância da universidade pública brasileira. O segundo capítulo, intitulado História da Mulher: adentrando caminhos, trago discussões acerca da historiografia da mulher, algumas aproximações com a vertente da História Cultural, bem como algumas reflexões acerca dos modos de ser mulher, a partir da contribuição de Simone de Beauvoir (1970). Registro também, nesse capítulo, a busca de produções já realizadas, concernentes ao objeto de estudo, no Banco de Teses e Dissertações da CAPES. No terceiro capítulo, intitulado Na trilha da escrita da história: por entre direitos negados e espaços conquistados, trago as primeiras mulheres que se lançaram nas malhas literárias no Brasil, no século XIX. Registro também, nesse capítulo, a discussão acerca das especificidades da escrita de Carolina Maria de Jesus e de Clarice Lispector, bem como questões acerca da escrita enquanto movimento do pensamento e da possibilidade da (re- )invenção de si. No quarto capítulo, intitulado: A condição da Educação de Jovens e Adultos no Brasil: caminhos trilhados, trago as conquistas no âmbito da legislação ao longo da história para essa modalidade de ensino, bem como a discussão acerca das políticas públicas elaboradas no decorrer dos anos. Registro também, nesse capítulo, alguns dados sobre o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O levantamento do referido censo, no que concerne às pessoas pouco escolarizadas, com recorte de gênero, raça e regiões do país, permitiu que pudéssemos tecer reflexões das especificidades e desafios da EJA no Brasil contemporâneo. No quinto capítulo, intitulado A EJA na cidade de Rio Claro-SP: primeiros movimentos, trago breve descrição sobre a escola e o planejamento das oficinas; registro também algumas informações sobre as educandas e as observações realizadas nos dois primeiros encontros e das formas de registros realizadas no estudo. Por fim, trago informações sobre as mulheres participantes da pesquisa, levantadas através de um questionário 26 organizado com essa finalidade: conhecer um pouco mais acerca do público em uma turma de EJA. No sexto capítulo, intitulado Narrativas (de vida): mulheres que contam suas histórias, apresento as descrições de como aconteceram as oficinas, bem como alguns apontamentos, para refletirmos sobre as oficinas realizadas, enquanto proposta metodológica e caminhos para o ensino na EJA. No sétimo capítulo, intitulado Linhas poéticas de vida: costurando narrativas, ao aproximarmos sentidos e significados presentes nas narrativas das mulheres participantes do estudo, observamos que essas mulheres se reconhecem sujeitos de suas práticas e compreendem a própria condição. Portanto, nesse capítulo, a reflexão sobre a condição feminina se faz complexa, e as indagações permanecem... Por fim, as (in-)conclusões apontam caminhos, trazem reflexões sobre a condição feminina, bem como sobre a Educação de Jovens e Adultos e os desafios das políticas públicas para essa modalidade de ensino no Brasil contemporâneo. 27 DEVANEIOS CAMINHANTES * Sociedade brasileira: lutas. Caminhos pela história do Brasil: o transitar pela dor, colonização, sofrimento, resistência... Lutas travadas, conquistas históricas. Conquistas femininas ao longo da história: Lei Maria da Penha, criação das DEAMs, voto feminino, cotas para mulheres na política, acesso à educação e ao mercado de trabalho etc... Desafios feministas em nosso país: pensar sobre a realidade local. O reivindicar pelo direito de viver: Brasil, povo que clama pela democracia! (Débora Sara Ferreira) História pra ninar gente grande: Brasil, o teu nome é Dandara E a tua cara é de cariri, não veio do céu [...] Brasil, meu nego Nem das mãos de Isabel Deixa eu te contar A liberdade é um dragão no mar de Aracati A história que a história não conta Salve os caboclos de julho O avesso do mesmo lugar Quem foi de aço nos anos de chumbo Na luta é que a gente se encontra Brasil, chegou a vez Brasil, meu dengo De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês A Mangueira chegou (Trecho do Samba Enredo da Mangueira, 2019) Com versos que o livro apagou Desde 1500 Tem mais invasão do que descobrimento Tem sangue retinto pisado Atrás do herói emoldurado Mulheres, tamoios, mulatos Eu quero um país que não está no retrato 28 MUDANÇA SEM RITMO, NEM DANÇA1 Eu sou a mudança. Mudo o ritmo do canto e o ritmo da dança; Eu mudo, E o mundo não fica mudo; Em cima do muro Eu vejo tudo. (Isadora Gomes) 1 SOBRE NOVOS MODOS DE (RE-)EXISTIR: A METAMORFOSE DO [MEU] OLHAR Deste texto fluem palavras, com o infinito do meu pensamento; que fluem inacabadas, com as ideias que pipocam a todo instante em minha vida, e também em minha pesquisa. Um texto que diz sobre mim, diz sobre a experiência de escrita com mulheres; diz sobre a morte, mas também diz sobre a vida, sobre o poder da vida; diz sobre a potência da escrita e das suas possibilidades; da escrita como possibilidade de (re-)inventar-se... Meu interesse por esse tema de pesquisa não foi aleatório. Foi através de minha experiência no PEJA, em Rio Claro, que surgiram indagações múltiplas, no que concerne à condição da mulher e, consequentemente, fiquei instigada pela temática da história das mulheres. Afinal, o que pode uma mulher-resistência? Ingressei no mestrado no mês de março de 2017. Indagações múltiplas acerca da temática do meu estudo fizeram-se presentes. O que me impulsionava e instigava? Após várias conversas com minha orientadora, a Prof.ª Dr.ª Maria Rosa, decidimos que faríamos um trabalho com mulheres da EJA (Educação de Jovens e Adultos). E o objetivo inicial seria o de pensar sobre a condição das mulheres, a partir das histórias de vida daquelas que se encontrassem na sala de aula. Entre as disciplinas obrigatórias, que deveria cursar para a obtenção de créditos; entre as reuniões de orientação e a correria toda da pós-graduação, com muita paixão, tecia as linhas poéticas do projeto. 1 Trecho extraído da obra Sê-los confeccionada por Daniel Leão, Derossy Araújo, Glauber Júlio, Isadora Gomes, Maíra Sampaio e Márcio José, que se identificam como remetentes. 29 O que seria da escrita sem a inventividade? A intenção poético-política estava ali, bem ali, naquelas vinte páginas... Um projeto de pesquisa ganhava contornos, ganhava vida. Era preciso submeter o projeto ao Comitê de Ética, então a atenção com as questões burocráticas eram redobradas, para que fosse aprovado. Surge uma primeira leitura: a história das mulheres na Idade Média. Realizei a leitura do livro todo, afinal, era um tema novo, e precisava inteirar-me do assunto. Li artigos acadêmicos e comecei a seguir páginas do Facebook, sobre mulheres, militância e movimentos feministas. E algo inesperado acontecia nesses momentos de leituras-encontros, e tem relação com a vontade de saber mais, de buscar pistas e vestígios do que seria a tal da História da Mulher. Li um livro em uma noite, e isso nunca acontecera antes em minha vida! Apesar de gostar muito de leitura, nunca fui uma superleitora, daquelas de passar uma noite lendo um livro. O livro chama-se Epistemologia feminista, gênero e história: descobrindo historicamente o gênero, da autora Margareth Rago (2012), e traz questões históricas acerca da categoria de gênero, bem como da epistemologia feminista, na discussão acerca da historiografia das mulheres. Um questionamento chegava em meus devaneios: como fica a nossa vida depois do conhecimento? Comecei a atentar-me em injustiças que sofrem as minorias: índios, negros, mulheres negras, mulheres indígenas, crianças indígenas, comunidades LGBTs e outros grupos, que posso não ter mencionado. Penso que a resistência se faz poética. Penso que lutar pelo essencial inventivo de nossas vidas é uma maneira de sobreviver neste mundo marcado, muitas vezes, pela crueldade e desigualdade postas nas relações sociais, no entorno dos acontecimentos que nos envolvem. Surge a resistência-poética... Nesse período, participei de uma disciplina, como aluna regular de Pós-Graduação, ministrada pela minha orientadora, a Prof.ª Dr.ª Maria Rosa, intitulada: Tópicos especiais em escritos (auto)biográficos - pesquisa – formação, e foram os encontros teóricos, e de partilha, que ajudaram na feitura-poética do meu projeto. Essa disciplina se fez marcante em meus devaneios-encontros. As discussões teóricas e poéticas foram riquíssimas, e as novas amizades foram um presente-encontro do universo. A tal da troca de saberes é realmente encantadora... Participei de uma outra disciplina, como aluna regular do Programa de Pós- Graduação, que me marcou grandiosamente. Intitulada Epistemologia, História e Educação, a 30 docente responsável abordou questões que envolvem a sensibilidade do pesquisador para com o seu trabalho, e questões de outras ordens, no que concerne à proposta da disciplina. Essa disciplina foi muito fértil, pois comecei a questionar sobre os modelos de pesquisa realizados na academia, e como nós, pesquisadores, devemos olhar para o nosso estudo. Sensibilidade e ética são importantes! E as linhas do meu projeto iam se tecendo nas inventividades, nas margens, na poética... Nesse mesmo ano, fui à cidade de Natal-RN, em um evento intitulado: Diálogos com Paulo Freire. Na graduação, realizei diversas leituras de seus escritos, e também acerca desse autor, e, de fato, (re-)encontrar-me com discussões freirianas, em tempos sombrios de sucateamento da educação pública, foi gratificante, inspirador e de um conhecimento riquíssimo. Dentre todas as discussões que permearam o evento, uma se fez marcante a mim. Tem relação com a esperança, que é um ato político. Já estávamos vivendo tempos políticos difíceis para os sonhadores, e reavivar politicamente nossa esperança e compromisso com a educação foi, de fato, uma das leituras-encontros mais preciosas nesse evento. Nestes devaneios, prosseguia com as leituras sobre a história da mulher. Um misto de sentimentos me permeava: indignação, vontade de aprender mais, raiva do patriarcado. Mas, até o pior dos sentimentos passa. Era preciso somar boas energias para a minha escrita- resistência. A cada dia me interessava por eixos temáticos diferentes, e cada leitura, cada encontro, fez com que compreendesse questões, em que até então não havia parado para refletir. Uma primeira questão é perceber que a nossa história sempre foi contada por homens, portanto, sob a perspectiva patriarcal. As mulheres do passado não puderam narrar suas histórias. Ou, pelo menos, quase nada deixaram registrado. Confesso que não acreditava que as mulheres pudessem ter passado por todos os embates que nossas ancestrais enfrentaram. Desconhecia as “bruxas” da Idade Média e as sufragistas do século XIX. Desconhecia o nosso passado de torturas, de apagamentos e, por outro lado, de revoluções! Dia após dia, entre leituras, tantas fontes de informação e pensamento, entre movimentos poéticos e éticos, em que esta escrita foi se constituindo, e entre o olhar atento para a condição das mulheres, a começar pela história de vida de minha querida mãe, Dona Rute, e de tantas outras histórias de muitas mulheres, é que pude perceber/refletir/indagar 31 acerca da condição das mulheres, o que acirrou movimentos comigo mesma. Uma condição imposta pelo patriarcado, mas que tem uma história de (re-)existências e de lutas. Com o passar deste estudo, observando novos horizontes, pude perceber que o seu elemento “vivo”, se assim posso dizer, são as mulheres-resistência. Trata da luta, da poesia, da poética, dos movimentos de vida-poesia, de uma escrita que caminha com a vida. Afinal, o que pode uma escrita-vida? A transformação, a mudança, nunca é um processo confortável. Uma mulher que transforma seu olhar, que muda sua forma de ser e ver o mundo, nem sempre é uma mulher “bem-vista”, mesmo vivendo na contemporaneidade. Mudar, portanto, é uma ruptura “dolorosa”, todavia é um processo que nos faz sair de um lugar (de prisão simbólica) e nos move a lugares-outros, que possibilitam, que abrem caminhos para a nossa emancipação intelectual. Portanto, iniciar um texto com reflexões acerca da minha história de vida é, de certo e de todo modo, refletir sobre a condição de todas as mulheres: as mulheres de minha família, as mulheres próximas a mim, e as mulheres que não conheço, mas com a história das quais me sensibilizo, quando me deparo com notícias na mídia e nas redes sociais. Essa temática sempre me envolve em múltiplos sentimentos. Por um momento, sinto felicidade e alegria por ter a luz, que é o conhecimento. Em outro momento, sinto-me injustiçada pelas nossas ancestrais, que foram torturadas, assassinadas, mas resistiram nas pluralidades do cotidiano, e, por resistirem, estamos aqui hoje, escrevendo, estudando, poetizando e criando novos modos de (re-)existência. É com um misto de sentimentos que me envolvem, que trago esta narrativa. Por meio de minhas indagações cotidianas, no que tange à condição da mulher, é impossível neste estudo, como salientado anteriormente, não rememorar a história de minha mãe, D. Rute, que, por motivos diversos, não pôde estudar em período regular. Ela concluiu o Ensino Fundamental II na EJA, quando eu ainda era criança. Recentemente uma de minhas irmãs, Fabiana, terminou o ensino médio na Educação de Jovens e Adultos. Atualmente ela faz graduação em Pedagogia. As questões que me foram passadas na igreja sobre a submissão que nós, mulheres, deveríamos aceitar, já haviam sido passadas em casa. Uma moça deveria sair de casa somente casada, minha família dizia. Fui criada num lar evangélico, termo que minha família sempre utilizou. Questões como a história da mulher e o movimento feminista nunca chegaram, ou chegariam até mim, pois meu destino certamente já estava traçado pela submissão. 32 Minha família sempre me ensinou que o homem era “a cabeça do lar”, mas nunca concordei com essa ideia, nem com o que era imposto pela igreja, nem com o que era ensinado em casa. Atualmente acredito que o feminismo, enquanto um movimento social de resistência, de posicionamento, frente a questões vitais para os modos de ser mulher, mais do que uma “tendência a elevar a situação da mulher na sociedade, a aumentar seus direitos” (KOOGAN LAROUSSE, 1980, p. 370), ou como “movimento ideológico que preconiza a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher, ou a igualdade dos direitos dela aos do homem” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa 2008-2013)2, não é só importante, mas é essencial para a transformação das subjetividades e libertação dos corpos femininos. Uma curiosidade: em ambos os dicionários consultados, a palavra ‘feminismo’ é substantivo masculino. No ano de 2007, frequentava assiduamente uma igreja protestante. Era presidente dos adolescentes, ministrava aulas na escola dominical para as crianças, tocava teclado no grupo de louvor, enfim, gostava muito de participar da comunidade cristã. Prossigo com meu afeto e respeito para com algumas pessoas dessa comunidade, que foram significativas em minha caminhada. Ao exercer meu mandato como presidente dos adolescentes, sentia-me desconfortável com a maneira como meus colegas, na maioria dos casos, meninos, tratavam-me. Era alvo de piadas e deboches. Era tratada com desrespeito nas reuniões, e quando cantava e tocava instrumentos no grupo de louvor, era alvo de deboches e apelidos, como “cuíca”, termo do qual só fui saber o significado, quando dancei carnaval pela primeira vez em minha vida. Apesar de todos os embates, continuava desenvolvendo minhas atividades na comunidade cristã. Penso que minha resistência falou mais alto. Afinal, esses (novos) modos de existir e (re-) existir estão no âmago do nosso ser... Nos dias atuais, algumas questões que enfrentara, por ter sido presidente dos adolescentes, pipocam a todo instante, quando coloco em discussão a condição da mulher. Afinal, nesses espaços, a condição de submissão é imposta, pois devemos seguir as regras bíblicas. A mulher, na bíblia, foi a Eva pecadora, instigadora de todo mal. Quando analisamos a condição das mulheres na Idade Média, por exemplo, e no contexto em que se davam as 2 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. "feminismo", in [em linha], 2008-2013. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/feminismo. Acesso em: 12 fev. 2019. https://dicionario.priberam.org/feminismo 33 relações de poder nesse período, compreendemos as representações dos modos de ser da mulher, que têm forte influência da bíblia e se cristalizaram no imaginário das sociedades. Ao refletir em minha própria condição, reflito sobre alguns casos de mulheres brasileiras que me comoveram por questões diversas, mulheres que, assim como eu, enfrentam o machismo estrutural na sociedade brasileira. Era para ser apenas um caso jurídico-midiático de uma Presidenta eleita democraticamente, que foi impedida de exercer seu mandato. Por que isso me afetaria de maneira significativa? Ou por que esse caso aguçaria a discussão acerca da condição da mulher, elemento propulsor de minha dissertação? Passando longe da intenção de discutir aspectos jurídicos e midiáticos do golpe parlamentar de 2016, termo referido por Nobre (2017)3, questiono se ele foi consolidado apenas por aspectos jurídicos e político-partidários. Será que a sociedade brasileira estava preparada para ter uma mulher no comando? Será que os comentários ofensivos e sexistas referentes à Presidenta não tinham relação com as representações que se cristalizam no imaginário das pessoas? Essa é uma primeira situação. Houve o caso da vereadora assassinada brutalmente no Rio de Janeiro, que deixou pessoas em estado de choque, outras, nem tanto, mas que diz sobre a condição das mulheres no Brasil contemporâneo que são vítimas de violência física, simbólica e, em casos extremos, porém comuns, de feminicídio. Nos limites deste trabalho, não será abordada a questão do feminicídio, que tanto move nossa indignação. Seria um outro estudo, envolveria outras áreas de pesquisa que escapam ao nosso objeto. No entanto, matéria empírica sobra. Quanto à Marielle, a vereadora, segue com sua voz, interpenetrando os diálogos e discussões. Uma voz que não se cala... Essa é uma segunda situação. Houve ainda uma professora agredida brutalmente em São Paulo, militante do movimento dos grevistas que lutavam por melhores condições de trabalho e salário. Esse é um caso que me marcou sobremaneira, afinal, sou professora. Tratou-se apenas de uma agressão contra grevistas, ato com que já estamos infelizmente acostumados, ou se tratou de uma situação da qual emerge novamente a discussão sobre a condição da mulher? Essa é uma terceira situação. 3 NOBRE, M. C. de Q. Herança familiar na política: retrato dos limites da democracia no Brasil contemporâneo. Revista Katálysis. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414- 49802017000300430&lang=pt. Acesso em: 20 fev. 2019. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-49802017000300430&lang=pt http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-49802017000300430&lang=pt 34 Sentir-me-ia traída por meu próprio texto, se não compartilhasse esses meus afetos e desafetos cotidianos que dizem sobre a condição da mulher na sociedade brasileira, e que, com intensidades diversas, transbordam de um misto de sentimentos. Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da brisa na relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim e sombras que invento já e agora e que são o meio concreto de falar neste meu instante de vida. Meu estado é o de jardim com água correndo. Descrevendo-o tento misturar as palavras para que o tempo se faça. O que te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha. Clarice Lispector. (1998, p. 17). 1.1 PEJA Unesp de Rio Claro: tecendo fios de amizade Todas estas minhas reflexões e indagações potente-pulsantes, no que concerne à condição da mulher, começaram no PEJA da UNESP de Rio Claro. Talvez processos “invisíveis” de (re-)existência já tivessem acontecido em minha vida, em outros momentos, mas meu envolvimento com a história e luta das mulheres começou no projeto de extensão universitária e hoje se consolida com este estudo, como forma de resistência, insubordinação, insubmissão e (quase) revolução. Escrevo num estado de quase revolta e com o coração quase transbordante de sentimentos desencontrados, mas marcantes, e meu envolvimento com esse tema permite que eu me (re-) invente sempre. No ano de 2010, mudei-me para a cidade de Rio Claro-SP. Para o ingresso em uma faculdade, nos anos de 2010 e 2011, fui aluna do cursinho comunitário pré-vestibular, ATHO (Ação transformadora do homem), da Unesp de Rio Claro, um projeto de extensão da nossa universidade. Decidi prestar o vestibular para o curso de Pedagogia, por influência de um amigo da Geografia. No ano de 2012, aprovada no vestibular, iniciei o curso de graduação. No início, não compreendia o sentido de cursar a Licenciatura em Pedagogia. Os textos eram muito difíceis, e não faziam sentido todas aquelas discussões de autores e da educação. Confesso que prestei o vestibular, porque achei a grade curricular muito interessante, mas a vontade de desistir do curso era grande. 35 Até achava interessantes as discussões, mas não faziam muito sentido para mim. Talvez fosse preciso vivenciar a escola. No cursinho ATHO, os alunos da universidade diziam que era importante o nosso envolvimento com os outros espaços da universidade. Vale ressaltar que a formação política que tínhamos no cursinho foi muito importante para construir minha militância, nos dias atuais. No primeiro ano da graduação, trabalhava o dia todo, logo, os outros espaços da universidade eram de difícil acesso para mim. Porém, no segundo ano da graduação, comecei a trabalhar apenas meio período e logo fui à busca de projetos de extensão, seguindo as orientações dos professores do cursinho. Por intermédio de uma rede social, vi que o PEJA (Projeto de Educação de Jovens e Adultos) estava com inscrições abertas para o processo seletivo de bolsistas. Fui no dia da seleção, fiz uma escrita a respeito da EJA e realizei uma entrevista com a Prof.ª Dr.ª Maria Rosa. Na entrevista, eu disse que me interessava por participar da extensão, mas tinha limitação de horário, devido o meu trabalho. Dias depois, os bolsistas do projeto me enviaram um e-mail com a minha aprovação. Minha luta pela educação começa no PEJA! Disso não tenho dúvida alguma... Comecei a participar das discussões nas disciplinas da graduação e a compreender questões em que, até então, não havia parado para pensar. Que motivos teriam levado as educandas participantes do projeto a deixarem de estudar na idade regular? Qual seria o motivo dessa exclusão, levando-se em consideração que a educação é um direito social? Entre questões que pipocavam a todo instante em minha leitura de mundo, encontro- me com um teórico que transformou meu olhar para a educação: Paulo Freire! A primeira leitura-encontro foi o livro A importância do ato de ler (1989), e confesso que me encantei por essa educação-outra que nos move a outros horizontes de possibilidades... O que pode um encontro-olhar? Quantos olhares para a nossa história podem compor um encontro? Quantos saberes compartilhamos e quanto conhecimento produzimos em cada encontro? Essas são as questões que se fazem potência, quando rememoro minhas experiências no PEJA. No PEJA, descobri-me poeta e educadora. Descobri que a educação é um possível e fértil caminho para a transformação da nossa sociedade. Nessa época, nós tínhamos três turmas no projeto: a turma da informática, a turma do bairro Bonsucesso, e a turma de leitura e escrita. Para a organização do cronograma dos 36 bolsistas, cada um ficou responsável por duas turmas, com encontros semanais. Fiquei responsável por frequentar as turmas do Bonsucesso e da informática. Nesse caminhar-vida, que fez todo sentido à minha formação, conheci uma educanda em processo de aquisição de leitura e escrita. Encontrei D. Cleide, e ela me encontrou. Mais que depressa, fizemos amizade! Após alguns meses, ao elaborar o projeto de Trabalho de Conclusão de Curso 4, convidei-a para participar do meu estudo. D. Cleide aceitou o convite, pois o objetivo do projeto era refletir sobre as diversas formas e táticas (CERTEAU, 1994) cotidianas de ler e escrever por pessoas pouco escolarizadas, no contexto do SUS. Por esse estudo, foi possível ter a experiência de trabalho com uma mulher idosa que se dizia e se via como “analfabeta” e que voltou aos estudos na idade adulta, procurando o PEJA de Rio Claro. Vítima de exclusão social, D. Cleide, que foi proibida por seu pai de ir para a escola no período regular, afirmava que tinha uma vontade imensa de voltar a estudar. Com o objetivo de produção de dados, a pesquisa foi desenvolvida por meio de um diário – um caderno “quase” escolar –, em que D. Cleide escrevia cotidianamente; também tabulamos conversas – em uma entrevista aberta –, que nos proporcionaram conhecer a sua história e seus embates cotidianos. Por meio das atividades, durante os encontros, D. Cleide escrevia cotidianamente sobre questões que lhe saltavam aos olhos, desde os motivos de estar no PEJA até atividades do dia a dia, que considerava importante registrar. Apesar das dificuldades em ler e escrever, D. Cleide não se calou e, num ato de resistência, escreveu a "sua vida" no caderno. A entrevista para a produção dos dados possibilitou conhecer um pouco mais da história de D. Cleide. Ao ser perguntada sobre o por quê de não frequentar a escola em período regular, D. Cleide afirmou que seu pai dizia que escola era para homem e que “‘menina-moça’ cresce, aprende a escrever e faz cartas para namorado". Portanto, em suma, este foi o motivo expresso por D. Cleide: não tinha permissão do pai para estudar. D. Cleide, que frequenta o PEJA há alguns anos, e assiduamente, pôde rememorar seu passado, refletir sobre a sua condição e as imposições que sofrera por ser ‘menina-moça’: Naquela época eu não estudei, Débora, porque meu pai falava, né, que escola ficou foi para homem, não foi pra mulher; mulher cresce, depois vai escrever 4 O Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado Ler e escrever entre pessoas pouco escolarizadas no contexto do SUS: uma análise de suas práticas cotidianas, foi apresentado ao Instituto de Biociências da Unesp de Rio Claro, para obtenção do grau de licenciada em Pedagogia, em 2016, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo e coorientação da Prof.ª. Dr.ª Eliane Bacocina. Pode ser conferido em https://repositorio.unesp.br/handle/11449/155743. https://repositorio.unesp.br/handle/11449/155743 37 cartinha pro namorado, pra rapaz. Então nosso estudo foi na roça, foi muito na roça nosso estudo, nós nunca teve estudo. (D. Cleide, 25/07/2016). Em grande parte, minha perspectiva acerca da vida da mulher ainda não avaliava exatamente como a condição da mulher mudara depois dessa fala específica de D. Cleide... Comecei a atentar nessas injustiças sofridas pelas mulheres do meu cotidiano, e por mulheres que já morreram. Trabalhar com D. Cleide foi, certamente, o elemento propulsor de toda esta narrativa e de toda a minha forma resistente de ler o mundo e vivê-lo. Uma experiência enriquecedora, não apenas por ser um Trabalho de Conclusão de Curso, mas por ser uma experiência de formação e que me possibilitou ter um olhar (outro) para a história, a condição e a luta das mulheres. A experiência de acompanhar o trabalho com uma mulher idosa, vítima e exemplo do que se denomina exclusão, e que traz uma forma resistente de ler e (re-)escrever o mundo que habita... E toda essa experiência, que me constitui e me faz “parar para pensar” e “cultivar a arte do encontro” (LARROSA, 2002, p. 24), seduziu-me. Afinal, é a experiência-sedução que nos instiga a criar uma poética do cotidiano. Criar as nossas linhas de fuga pela escrita nos encoraja a (re-)existir nas pluralidades do cotidiano... A partir deste trabalho, a questão da condição da mulher, revelada por meio da narrativa e do caderno de escritas de D. Cleide, tornou-se potente-pulsante. Afinal, o que pode a escrita? O que pode a escrita de mulheres? O que pode a escrita de si? O que a escrita pode revelar? A escrita é potente, é pulsante. É um devir, está sempre inacabada, está em processo de fazer-se; é poética, é encontro, e, de acordo com Rago (2013, p. 50), pode ser considerada uma atividade constitutiva das “artes da existência”: É no contexto dessas reflexões que a “escrita de si” dos antigos gregos ganha destaque como uma das atividades constitutivas das “artes da existência”, isto é, como uma das tecnologias pelas quais o indivíduo se elabora nos marcos de uma atividade que é essencialmente ética, experimentada como prática de liberdade, e não como sujeição às práticas disciplinares. A “escrita de si” é entendida como um cuidado de si e também como abertura para o outro, como trabalho sobre o próprio eu num contexto relacional, tendo em vista reconstruir uma ética do eu. (RAGO, 2013, p. 50). De acordo com Foucault (2004b, p. 306 apud RAGO, 2013, p. 43), ao discutir o conceito de “estéticas da existência” no estudo da experiência de subjetivação dos antigos, 38 afirma que as estéticas da existência dos gregos e romanos eram constituídas por “técnicas de si”, que eram a meditação, a escrita de si, a dieta, e os exercícios físicos e espirituais. A escrita de si, nesse contexto, aparece como uma “técnica de si”, portanto um trabalho ético-político. Vemos que a escrita, assim, assume um aspecto político e consequentemente criador: escrever é uma forma de diálogo consigo mesmo. Escrever sobre si é escrever aquilo que marca, transforma, afeta, instiga. A escrita, portanto, é poética, porque transpassa sensibilidades na esteira de um fazer de invenção cultural e política, é um movimentar-se, é (des-)contínua, é (re-)invenção de si... Espaço prenhe de subjetivações. Escrever, para mim, além de uma obrigatoriedade, é vida! É potência da vida! E continua... 39 DEVANEIOS CAMINHANTES ** Caminhos devaneantes, Sonhos estonteantes, Utopias do meu mundo. Preciso costurar as minhas narrativas! Narrar a minha história... E como me constituo no mundo em que vivo! Falar das experiências, dos encontros, dos devaneios; (Re-)invento-me neste processo: O processo da escrita-encontro. Escritas, vidas, poesias, narrativas, Uma esteira da inventividade; Um pulsar... Um toque... Um encontro... Um (ponto) de encontro... Uma escrita. Uma escrita (outra); Um encontro com a vida; O (re-)encontro com nossa história. Narrativas... (Débora Sara Ferreira) Quanto mais ignorante é um povo tanto mais fácil é a um governo absoluto exercer sobre ele o seu poder. É partindo desses princípios, tão contrário à marcha progressista da civilização, que a maior parte dos homens se opõe a que se facilite à mulher os meios de cultivar o seu espírito. A esperança de que, nas gerações futuras do Brasil, ela [a mulher] assumirá a posição que lhe compete nos pode somente consolar de sua sorte presente. Nísia Floresta, em Opúsculo humanitário. (1853) 40 Eu não sou indolente. Há tempos que eu pretendia escrever o meu diário. Mas eu pensava que não tinha valor e achei que era perder tempo. Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar as pessoas que eu conheço com mais atenção. Quero enviar um sorriso amável as crianças e os operários. Carolina Maria de Jesus (2014, p. 28). 2 HISTÓRIAS DA MULHER: ADENTRANDO CAMINHOS Conhecer a história da mulher é, de fato, depararmo-nos com as incertezas que assombraram o feminino durante séculos. No percurso de leitura e estudo dos caminhos pelos quais iríamos seguir, optamos, enquanto caminho teórico, pela vertente da História Cultural. Nessa direção, uma breve reflexão histórica e teórica é um caminho-convite para a ampliação do nosso olhar, adentrando algumas contribuições no campo da História Cultural. Enquanto disciplina científica, a história firmou-se no século XIX. A temática da mulher foi mirada, a priori, sob a perspectiva masculina. Através de um olhar masculino, demarcado por representações patriarcais, algumas obras trouxeram discussões acerca do feminino. De acordo com Priore (1994), a primeira obra escrita acerca dessa temática, intitulada La Femme, oblíqua e moralista, do historiador Michelet, trazia discussões acerca dos movimentos da história e (re-)afirmava os papéis construídos socialmente, no que concerne ao universo feminino/masculino: O conhecido historiador francês compreendia o movimento da história como uma resultante da relação dos sexos, modulado pelo conflito latente entre a mulher/natureza e o homem/cultura. A mulher, ressalva Michelet, só teria papel benéfico neste processo se dentro do casamento e enquanto cumprindo o papel de mãe. Ao fugir da benfazeja esfera da vida privada ou, ao usurpar o poder político como faziam as adúlteras e as feiticeiras, elas tornavam-se um mal. (PRIORE, 1994, p. 12). O sexo individual, masculino ou feminino, torna-se uma questão relativa aos historiadores, na segunda metade do século XIX, em que os teóricos não discutiam as diferenças de gênero, mas traziam a discussão acerca do sexo individual. O matriarcado atinge o debate antropológico, e Engels, na obra A origem da família da propriedade privada e do 41 estado (1984), discutia Morgan e Bachofen. Engels (1984, apud PRIORE, 1994, p. 12) considerava que a libertação feminina se tornaria possível a partir de uma revolução da propriedade privada. Essa obra é de tradição marxista, portanto uma leitura acerca do universo e da libertação feminina se faz através das lutas de classe. Morgan foi um antropólogo e jurista americano, contemporâneo de Marx, cuja obra maior, A sociedade arcaica, foi publicada em 1877. Bachofen foi um jurista suíço que publicou a obra O direito materno, em 1861. Segundo Darmangeat (2016, p. 06), Morgan, influenciado por Bachofen, esquematizou uma teoria evolucionista, na qual a sociedade era organizada em grupos de parentesco, aos quais o pertencimento se transmitiria exclusivamente de mãe para filha (matrilinearidade). Cabe salientar, de acordo com Priore (1994), que na construção da discussão acerca da demografia histórica, o debate acerca das mulheres permeava as questões referentes à reprodução e não levava em conta as mulheres sós, apenas os casais, reafirmando uma visão patrilinear da história. Em 1970, há uma abertura para o debate acerca do papel da família e da sexualidade, e discussões acerca do universo feminino foram elucidadas com duas preocupações iniciais: pensar sobre a mulher, no cenário da história que não se preocupava com as diferenças sexuais, e demonstrar a opressão e dominação que passavam as mulheres: Foi sem dúvida a partir de 1970, com a “Nouvelle Histoire” favorecendo a expansão da Antropologia Histórica, que se colocou em debate o papel da família e da sexualidade, e com a História das Mentalidades, voltada para pesquisas sobre o popular, que se inaugurou uma conjuntura mais aberta para se ouvir falar da mulher. (PRIORE, 1994, p. 13). De acordo com Priore (1994), esses trabalhos levaram a temática das mulheres a um isolamento intelectual, sem grandes influências na disciplina histórica. A autora alerta para o fato de sempre ser posta em destaque a dialética neles utilizada, em que se observa a dominação masculina versus a opressão feminina. Portanto, é possível vislumbrar, na perspectiva de Priore, novas formas de abordagem e análise, no que concerne à história da mulher. Priore afirma que, A dialética, sempre utilizada, da dominação masculina versus opressão feminina, deve ser evitada por sua circularidade, e substituída pela análise das mediações, no tempo e no espaço, através das quais qualquer dominação se exerce. Deve-se fugir da história que faz da mulher uma vítima, ou o seu inverso. As zonas de análise mais produtivas para a história da mulher são as nebulosas, onde encontramos as mulheres anônimas, ou como diria Duby, 42 “os murmúrios femininos que se perdem num coro tonitruante de homens que os sufocam”. (PRIORE, 1994, p. 13. Grifos da autora.). Trazer a mulher para o centro do debate, quando tratamos dessa temática, é uma forma de não cairmos em equívocos, recorrentes em trabalhos sobre o universo feminino: quais formas de resistência, articuladas por mulheres, podemos vislumbrar, quando nos deparamos com a história das mulheres? No que tange à proposta deste estudo, quem são as mulheres da EJA (Educação de Jovens e Adultos), e quais formas de resistência que foram por elas articuladas, no que concerne a sua própria condição? Por fim, Priore (1994) alerta para o fato de que a história da mulher nunca foi um lugar tranquilo, em que a mulher se move sem riscos. A sua história se constitui nas tensões e na poética da resistência, em que as práticas sociais, discursos e representações podem ser elementos propulsores para reflexão. Outra questão que se faz preponderante, quando tratamos da história da mulher, é a compreensão das nuances acerca da inclusão da mulher na historiografia. De acordo com Gomes (2011, p.06), é inegável a inclusão das mulheres no campo historiográfico, nas décadas de 1970 e 1980, ao se colocar "[..] a visão monolítica do Homem Universal [...]”, porém, essa abordagem não dá conta de suprir a invisibilidade das mulheres. Portanto, foi preciso buscar outros caminhos que superassem a lógica binária, homem versus mulher, e debatessem a questão de gênero a partir das construções históricas e sociais. A História Cultural, com seus novos métodos e abordagens, ao ganhar força a partir da interdisciplinaridade com a literatura, a antropologia e a psicanálise, buscou investigar os modos de ser da mulher a partir de vários aspectos. Para o historiador francês Roger Chartier (2002, p.16), “[...] a história cultural, tal como entendemos, tem por principal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler [...].” Portanto, é possível conhecer as características de uma determinada sociedade pelos relatos escritos ou orais dos sujeitos. Inclui-se a possibilidade de aproximação da história da mulher. Acrescenta-se a isso o que Tedeschi (2012, p. 21) define por História Cultural e que nos abre um leque de possibilidades, partindo da premissa de que “ [...]tem uma especial afeição pelo informal, pelo popular, pelo resgate do papel de grupos sociais invisíveis na história, por uma abordagem plural na investigação histórica [...].” Os trabalhos, no campo da História Cultural, procuram evidenciar as relações entre a cultura e o universo social, estando 43 a cultura presente nas relações sociais. Portanto, a cultura é uma construção social e, de acordo com Tedeschi, A cultura é sempre uma construção social e constituída pelo conjunto de práticas e valores que podem ser passados por várias gerações e é perpassada pelas variações que dependem da temporalidade e dos grupos sociais que a produzem. A cultura não se transmite de uma forma imutável e é, portanto, uma produção histórica. (TEDESCHI, 2012, p. 23). Cabe salientar que a História Tradicional tinha, como maior preocupação, as atividades do homem na política ou os grandes eventos da humanidade, porém, com o advento da École des Annales, a Nova História começou a preocupar-se com aspectos da vida humana, ligados à “história dos de baixo”, ou seja, dos que não tinham história. Nesse contexto, podemos compreender que são abertos caminhos para estudos referentes às mulheres. Para Tedeschi (2012), uma das dificuldades que encontram os historiadores, quando se debruçam sob essa temática, decorre do que chamamos de “natureza masculina”, ou Androcentrismo da História, que gera a invisibilidade das mulheres. Os discursos produzidos desde o início do patriarcado vão ao encontro do que chamamos desigualdade entre os gêneros, legitimando formas de poder e opressão. O corpo feminino é visto sob o olhar masculino, em que a docilidade, o cuidado com os filhos, o amor de mãe e os afetos são características inerentes às mulheres, portanto, naturalizados e constitutivos de uma “natureza feminina”. A fim de garantir sua permanência no espaço privado do lar, passam a ser construídas as representações sobre as características e capacidades especificamente femininas, entre elas, a relação de afeto com a criança, o amor inato da mãe, o sentimento materno, unindo todas as mulheres em torno dessa única função. É assim que as características biológicas a maternidade inscrita no corpo feminino - passam a assumir um significado social. (TEDESCHI, 2012, p. 18). A partir do discurso de uma “natureza feminina”, a sociedade patriarcal delimitou os espaços das mulheres com atribuições específicas na esfera doméstica. Discursos como esses, cristalizados por uma moral católica, chegam através de diálogos cotidianos e são mecanismos de poder que disciplinam os corpos e as subjetividades femininas. Fica registrado que, Esses papéis, oriundos de representações, contidas ao longo do tempo, foram determinados pelo olhar masculino, e consequentemente, as representações 44 sociais e sua relação com o poder, contribuíram para produzir a alteridade e a identidade feminina. Esse espaço de “naturalização” do privado, do doméstico, confinou a mulher no lar, outorgou a ela uma nova forma de poder, não sobre o público, o econômico, mas sobre “o simbólico” do reprodutivo, dos filhos. (TEDESCHI, 2012, p. 18). Essa “identidade feminina” culminou no que chamamos de desigualdade de gênero, que, por mecanismos de poder e opressão, limitou as mulheres nos intramuros da domesticidade. Acrescenta-se a isso o que Bourdieu (2016) afirma sobre a divisão dos sexos. As mulheres, ao seguirem certos padrões de submissão, parecem estar na “ordem das coisas”: A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas” como se diz por vezes falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado das coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação. (BOURDIEU, 2016, p. 21. Grifos do autor.). São naturalizados discursos que ditam regras, e imposições nos chegam como inerentes ao feminino, portanto essa lógica de dominação dispensa uma justificação. Por meio dessa relação de dominação, é possível alcançar essa lógica, que é reconhecida tanto pelo dominante, como pelo dominado, e que se dá a partir da maneira de falar e das formas de pensar e agir. As mulheres, ao ficarem confinadas na esfera doméstica, deixaram poucos registros na história. Nessa direção, Almeida (2007) afirma que a invisibilidade das mulheres na história permite que procuremos as pistas e vestígios, inseridos em uma cultura em que o patriarcado se instaurou, e os sigamos na busca da sua interpretação e reinterpretação, para eliminar a invisibilidade que nos assombrou durante séculos. A autora afirma que A histórica ausência feminina da instrução e das esferas de poder impediu testemunhos mais vastos. Portanto, para escrever sobre mulheres em qualquer campo do conhecimento, há de se valer de sinais, vestígios, de fontes pouco ortodoxas em um risco assumido de desconsiderar que apenas o que é objetivo dá conta da existência humana, sejam seus atores homens ou mulheres. (ALMEIDA, 2007, p. 18). Cabe salientar que Rocha (2009) afirma que os homens tiveram grandes feitos destacados na História Tradicional. O prestígio recorrente na literatura, na filosofia e em tantas outras áreas do conhecimento, somente foi possível por meio da opressão às mulheres. 45 Portanto, conhecemos grandes filósofos da Antiguidade, ouvimos falar de homens que fizeram grandes descobertas nas ciências naturais e em tantas outras áreas do conhecimento. O que restou às mulheres foi a invisibilidade. Como destaca Rocha, O papel desempenhado pelo homem na sociedade patriarcal sempre foi agraciado com uma variedade de prêmios, tais como dinheiro, status, reconhecimento público e posses. Por outro lado, as mulheres, que tanto fizeram, praticamente não foram mencionadas na história. São seres anônimos que serviram à sociedade, ao marido e aos filhos, realizando funções tão desafiadoras quanto as creditadas exclusivamente ao sexo masculino. (ROCHA, 2009, p. 51). Nesse aspecto, cabe salientar que as mulheres são vítimas de verdades parciais, e as interpretações sempre favorecem alguns grupos em detrimento de outros. Nessa direção, Simone de Beauvoir (1970) nos traz reflexões preponderantes, para refletirmos sobre a condição feminina. A autora afirma que as mulheres tiveram a destinação de serem o Outro, pois os homens, ao compilarem as leis, favoreceram o próprio sexo. Ficamos sabendo que, Essas questões estão longe de ser novas; já lhes foram dadas numerosas respostas, mas o simples fato de ser a mulher o Outro contesta todas as justificações que os homens lhe puderam dar: eram-lhes evidentemente ditadas pelo interesse. "Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte", escreveu, no século XVII, Poulain de Ia Barre, feminista pouco conhecido. (BEAUVOIR, 1970, p. 15). Ao questionar sobre as imposições sofridas pelas mulheres durante séculos, Beauvoir (1970, p. 11) afirma que: “[...] Nenhuma coletividade se define nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si [...].” Portanto os sujeitos, ao se colocarem na sociedade a partir de uma oposição, e ao se fazerem essenciais, definem o Outro como inessencial. A autora ainda questiona os motivos das mulheres serem o Outro na sociedade, visto que, em se tratando de uma questão numérica, no mundo existe basicamente a mesma quantidade de homens e mulheres, e, por serem o Outro, as mulheres nunca se colocaram enquanto sujeito coletivo na sociedade. Beauvoir afirma que, Se a mulher se enxerga como o inessencial que nunca retorna ao essencial é porque não opera, ela própria, esse retorno. Os proletários dizem "nós". Os negros também. Apresentando-se como sujeitos, eles transformam em "outros" os burgueses, os brancos. As mulheres — salvo em certos congressos que permanecem manifestações abstratas — não dizem "nós". Os homens dizem "as mulheres" e elas usam essas palavras para se designarem 46 a si mesmas: mas não se põem autenticamente como Sujeito. (BEAUVOIR, 1970, p. 13). É possível vislumbrar, nas reflexões da autora, o que concerne às reflexões da condição feminina como sendo uma condição social, e à possibilidade de tais apontamentos serem marcantes para refletirmos sobre a condição da mulher. Beauvoir aponta que as construções históricas e sociais cristalizaram o destino de submissão das mulheres. Ao ditar regras e criar leis, os homens, durante o decorrer da história, beneficiaram-se, corroborando para a supremacia masculina. “Os que fizeram e compilaram as leis, por serem homens, favoreceram seu próprio sexo, e os jurisconsultos transformaram as leis em princípios", diz ainda Poulain de Ia Barre. Legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios empenharam-se em demonstrar que a condição subordinada da mulher era desejada no céu e proveitosa à terra. (BEAUVOIR, 1970, p. 16). A autora afirma que os homens nunca deixaram essas pretensões aparecerem explicitamente. Em qualquer época e lugar, os homens mostraram a satisfação de serem os reis da criação. Ao indagar sobre “o que é ser mulher?”, Beauvoir (1970) nos traz importantes reflexões para considerarmos as limitações impostas e a submissão do sexo feminino. Ao refletir sobre a condição feminina e o destino de submissão das mulheres, a autora indica caminhos para a igualdade entre os seres humanos. E cabe a nós continuarmos com essas indagações. Indagações que permanecem e se reinventam no cotidiano, na poética da resistência, e no refletir sobre a potência do feminino. Nesse caminho, a autora Lílian Lima (2017) salienta que as indagações acerca da condição feminina foram postas em destaque na sociedade, quando mulheres se puseram à frente conseguindo, não sem esforço, quebrar paradigmas e abrir fissuras nas faces rígidas dos padrões hegemônicos. No século XIX, as mulheres começam a refletir sobre a própria condição e realizam várias mobilizações, reivindicando os seus direitos. Lima afirma que A presença das mulheres nas sociedades, suas condições de vida, as representações sobre elas, as lutas travadas e as vitórias alcançadas constituem objeto de interesse dos estudos feministas. Ainda no século XIX, teve início, sobretudo, o despertar de uma consciência feminista ou de gênero, promovido por mulheres, ora por meio de manifestos, mobilizações e declarações reivindicativas, ora por representações e análises artísticas ou sociológicas, ousadamente publicadas nos poucos veículos que lhes abriam as portas. (LIMA, 2017, p. 18). 47 Nesse contexto, são dados os primeiros passos reivindicatórios das mulheres, em todo o mundo. No Brasil, temos exemplos de diversas mulheres que se levantaram e desafiaram o status quo e o poder hegemônico da época, e que serão apresentadas com mais aprofundamento no capítulo seguinte. Uma das preocupações que permeiam as reflexões sobre os movimentos feministas no Brasil é o discurso universalizante do movimento. Em nosso país, a história se faz complexa. Portanto, a reflexão dos movimentos feministas deve ser realizada com reflexões sobre a realidade local. É preciso que a teoria feminista possa estabelecer diálogo com as outras desigualdades presentes em nosso país. As questões de gênero, raça e classe social devem ser pensadas interseccionalmente, portanto, as políticas públicas para mulheres podem ser elaboradas intersetorialmente com outras políticas de correção das desigualdades sociais. Nessa direção, a autora Bila Sorj (2002), ao trazer alguns apontamentos acerca dos desafios feministas no Brasil contemporâneo, afirma que o processo do desenvolvimento político no Brasil não acompanha o de países desenvolvidos, principalmente no que concerne aos direitos civis e sociais. Sendo assim, um dos desafios do movimento feminista no Brasil é olhar para a realidade local e (re-)pensar seu discurso universalizante. Em um país marcado por desigualdades diversas, pensar nas ideias feministas se faz um desafio complexo. Para a autora, as ideias do movimento feminista nascem junto dos princípios da democracia liberal. Ficamos sabendo que O processo de desenvolvimento político do Brasil, entretanto, não seguiu o mesmo caminho e ainda está muito distante de praticar uma democracia que corresponda aos padrões dos países desenvolvidos, sobretudo no que diz respeito à garantia dos direitos civis e sociais. O deslocamento entre o contexto liberal e democrático, que deu origem ao ideário feminista, e a recepção e assimilação deste à realidade social e política brasileira impõem importantes desafios às práticas feministas no Brasil. (SORJ, 2002, p. 99). Sabendo-se que as práticas sociais locais se renovam e se transformam, pensar sobre as práticas feministas no Brasil é compreender que, mesmo que tais ideias sejam universalizantes, no contexto brasileiro se faz necessária a (re-)elaboração do discurso, com vistas ao diálogo articulador com a nossa realidade local. Sorj (2002) afirma que o discurso feminista tem um longo desafio pela frente no contexto da sociedade brasileira. Nesse caminho cabe a indagação: como pensar no debate feminista no Brasil, de modo que as desigualdades sociais locais façam parte do diálogo? 48 De todo modo, visibilizar as conquistas das mulheres durante o decorrer da história de nosso país se faz preponderante, para (re-)pensarmos alguns discursos e refletirmos sobre os desafios que temos pela frente. De acordo com Meneghel et al. (2011), os movimentos feministas, na década de 1970, deram visibilidade para a violência contra a mulher no Brasil, considerada, nesse período, como um problema da vida privada. A criação de uma lei específica que atendesse às mulheres, no que tange à violência, foi possível por meio da mobilização dos movimentos de mulheres e da criação da SEPM (Secretaria Especial de Políticas para Mulheres), no governo de Luís Inácio Lula da Silva. Ficamos sabendo que A Lei 11.340/2006, denominada de Lei Maria da Penha fundamenta-se em normas e diretivas consagradas na Constituição Federal, na Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e na Convenção Interamericana para Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. A Lei afirma que toda mulher, independentemente, de classe, raça, etnia ou orientação sexual goza dos direitos fundamentais e pretende assegurar a todas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar a saúde física e mental e o aperfeiçoamento moral, intelectual e social, assim como as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança e à saúde. (MENEGUEL et al., 2011, p. 692). Considerando a condição de vida das mulheres no Brasil, podemos observar que tal lei é uma conquista histórica e de extrema importância para as mulheres brasileiras, mas há limites que devem ser estudados para futuras melhorias. As autoras acima citadas afirmam que as mulheres vítimas de violência doméstica apontam limites na efetivação da lei, como “[...]O descumprimento das medidas protetivas pelos agressores e a dificuldade dos serviços de segurança pública efetivamente protegê-las[...].” (MENEGUEL et al., 2011, p.698). Mas a importância da legislação para casos de violência doméstica contra a mulher, bem como as profundas mudanças propostas p