0 MARIA TERESA MARTINS DISCURSO E CIDADE: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO BAIRRO São José do Rio Preto 2012 1 MARIA TERESA MARTINS DISCURSO E CIDADE: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO BAIRRO Tese apresentada para a obtenção do título de Doutora em Estudos Linguísticos, Área de Análise Linguística, Linha Estudos do Texto e do Discurso, junto ao Programa de Pós- Graduação do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Campus de São José do Rio Preto. Orientador: Prof. Dr. José Horta Nunes São José do Rio Preto 2012 2 OMISSÃO JULGADORA Titulares Prof. Dr. José Horta Nunes Unicamp – Campinas Orientador Profª Drª Claudia Castellanos Pfeiffer Unicamp – Campinas Profª Drª Fabiana Cristina Komesu Unesp – São José do Rio Preto Profª Drª Silmara Cristina Dela Silva UFF – Niterói Profª Drª Suzy-Maria Lagazzi Unicamp – Campinas Suplentes Profª Drª Carolina Rodríguez-Alcalá Unicamp – Campinas Prof. Dr. Maurizio Babini Unesp – São José do Rio Preto Profª Drª Dantielli Assumpção Garcia Unilago – São José do Rio Preto 3 À minha avó materna. Sem anos de escolaridade formal. Muitos anos de sabedoria. Peço licença a Adélia Prado: Minha avó cozinhava exatamente: Arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço ao Prof. Dr. José Horta, pelas conversas orientadoras, pelas dicussões, pelo apoio durante esses dez anos, que de repente passaram. Agradeço sobretudo pelo exemplo de pesquisador. Às Professoras Fabiana Cristina Komesu e Suzy Maria Lagazzi pelas contribuições por ocsião do Exame Geral de Qualificação. À Professora Cristina Parreira pelas orientações referentes ao Exame de Qualificação Especial. Aos professores: Carolina Rodríguez-Alcalá, Claudia Castellanos Pfeiffer, Fabiana Cristina Komesu, Maurizio Babini, Silmara Cristina Dela Silva, Suzy Maria Lagazzie Dantielli Assumpção Garcia que aceitaram o convite para avaliar este trabalho. À Professora Drª Eni Orlandi, pelas partilhas durante a disciplina “Discurso e Subjetividade”, em 2008. À Professora Drª Soila Maria Schreiber da Silva, pelas partilhas durante a disciplina “Argumentação e Enunciação”, em 2009. À direção e coordenação da E. M. Darcy Ribeiro. Ao setor de arquivos do Diário da Região e ao Arquivo Público Municipal de São José do Rio Preto. À FAPESP, pela bolsa de estudos concedida. Aos amigos: Jorge Henrique Faccipieri Junior, Livia Laís Femina Figueiredo, Magali Sanches Duran e todos os que se vão somando à minha história. Aos familiares: Maria do Rosário Gonzales Alves, Sérgio Martins de Souza, Sérgio Lenine Martins, Joyce Almagro Squinello Frota, Edna Almagro Squinello, Isabel Bençal Alves, Pedro Dias, José Francisco Alves e todos os que o sangue e o amor uniram. E à constante presença em espírito de minha mãe, Maria Aparecida Alves Martins. 5 E foste um difícil começo Afasto o que não conheço E quem vende outro sonho feliz de cidade Aprende depressa a chamar-te de realidade Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso 6 SUMÁRIO Página INTRODUÇÃO 11 1 ANÁLISE DE DISCURSO E CIDADE 17 1.1 Dispositivo teórico e dispositivo analítico 17 1.1.1 Sujeito e Sentido 21 1.1.2 Ordem e Organização 22 1.2 A cidade, o bairro e os sujeitos 23 1.3 Morar, habitar 29 1.4 Metodologia e constituição do corpus 31 1.4.1 Textos produzidos em contexto escolar 34 1.4.2 Textos jornalísticos 35 2 A CIDADE, OS SUJEITOS E OS SENTIDOS 37 2.1 Operadores argumentativos: os efeitos de sentido nas regularidades do mas e do só que 40 2.2 Discurso indireto: o outro, o fora 46 2.3 O espaço e os sujeitos: a casa, a escola, a rua e o centro esportivo 48 2.4 O não-verbal: autoria e resistência 51 2.5 Considerações conclusivas 55 3 O SUJEITO-MORADOR E O ESPAÇO URBANO NAS PÁGINAS DO JORNAL 57 3.1 O jornal local: discurso e mídia de proximidade 58 3.1.1 Títulos 61 3.1.2 Matérias 68 3.1.2.1 Educação 68 3.1.2.2 Moradia e Saneamento 76 7 3.1.3 Jornal Região Norte: sujeito-morador e administração pública 80 3.2 Projeto Diário nos Bairros: do púlpito ao palco 82 3.2.1 A série Diário nos Bairros 83 3.2.2 O jornalista e o jornalismo comunitário: a posição do mediador discursivo 84 3.2.3 Bairro Eldorado: entre a notícia e a crônica 90 3.3 O controle da polêmica: o político e o consenso 98 CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS 99 REFERÊNCIAS 102 ANEXOS DIGITAIS Grupo 1 de textos: textos produzidos por alunos moradores da Zona Norte Grupo 2 de textos: edições digitalizadas da série Diário nos Bairros Grupo 3 de textos: edições digitalizadas do jornal Região Norte Grupo 4 de textos: edições digitalizadas do jornal Região Norte Grupo 5 de textos: edições digitalizadas do jornal Região Norte Grupo 6 de textos: Lei complementar 224 de 06/10/2006 – Plano diretor do município de São José do Rio Preto 8 LISTA DE FIGURAS Página FIGURA 1: Constituição e Formulação 20 FIGURA 2: De-superficialização linguística e de-superficialização discursiva 32 FIGURA 3: Mapa da cidade de São José do Rio Preto 38 FIGURA 4: Detalhe da Zona Norte 39 FIGURA 5: Lugares sociais e lugares de dizer na cena enunciativa 43 FIGURA 6: Ilustração produzida por aluno 52 FIGURA 7. Títulos das matérias do Jornal Região Norte 63 FIGURA 8: Matérias relacionadas a Educação no Jornal Região Norte 68 FIGURA 9: Matérias relacionadas a moradia e saneamento no Jornal Região Norte 76 FIGURA 10: O jornalista como mediador 90 FIGURA 11: Discurso do Diário nos Bairros – Primeira fase 91 FIGURA 12: Bairro Eldorado – Primeira fase 92 FIGURA 13: Bairro Eldorado nas duas fases do Projeto Diário nos Bairros 97 9 RESUMO Este trabalho dedicou-se à compreensão da constituição dos sentidos de bairro e de sujeito- morador da Zona Norte de São José do Rio Preto, mobilizando para isso o dispositivo teórico e analítico da Análise de Discurso. O corpus foi composto a partir de redações produzidas por alunos moradores da Zona Norte e por recortes de dois jornais (Jornal Região Norte e Diário da Região). Verificamos como eixo organizador a tensão entre dentro e fora, periferia e centro, ordem e organização. Nas redações, os sujeitos-moradores salientam o conflito entre socius e hostis, contrapondo em vários momentos a imagem que os de fora têm do bairro, em geral negativa e criminalizante. Opõem-se a esses sentidos em movimentos de resistência, inclusive contra a polícia, num funcionamento que chamamos de virar do avesso as relações de sentido no espaço urbano. Já os jornais, assentam-se num desejo de controle da polêmica, com a figura do jornalista atuando na posição de mediador entre a populção e o poder público. Os sentidos negativos do espaço urbano vão sendo relativizados até que os problemas do bairro cedam espaço a particularidades. Há, pois, uma sobredeterminação da idealização da organização urbana sobre a ordem na Zona Norte. Palavras-chave: Análise de Discurso – Bairro – Espaço Urbano – Sujeito-Morador 10 ABSTRACT This work was dedicated to the understanding of the meaning constitution of neighborhood and occupant-subject of São José do Rio Preto north region, using the analytic and theoric aspects of Discourse Analysis. The corpus was composed from writings produced by students living in the north region and newspaper clippings (Jornal Região Norte e Diário da Região). It was verified as the organizer axis the tension between inside and outside, suburb and downtown, order and organization. In the writings, the occupant-subjects highlighted the conflict between socius and hostis, opposing the image that outsiders have of the neighborhood, in general negative and criminalizing. They oppose to these assumptions by means of resistance movements, even against the police, in a reaction the we called "turning inside out" the relationships meanings in the urban space. The newspapers demonstrate a desire to control the polemic, with the journalist acting in a mediator position between the population and the public power. The negative meanings of urban space are minimized until the problems of the neighborhood give space to particularities. There is thus a overdetermination of the idealization of the urban organization in the north region order. Keywords: Discourse Analysis – Urban Space – Resident Subject – Neighborhood 11 INTRODUÇÃO O estudo dos acontecimentos cotidianos, da cidade, em especial, ganhou um significativo espaço no âmbito da Análise de Discurso. Vários trabalhos têm se debruçado sobre a compreensão do espaço urbano do ponto de vista discursivo e os resultados se observam na formação de grupos de pesquisas, em colóquios científicos, em publicações e em projetos temáticos. Observa-se que não só os grandes centros urbanos têm motivado reflexões e investimentos analíticos, mas também cidades menores, como é o caso de São José do Rio Preto, interior de São Paulo. O Projeto Palavra, discurso e silêncio: no movimento dos sentidos urbanos (FAPESP 15205-1, 2009-2010), por exemplo, abriu espaço para discussões acerca da relação entre os sentidos urbanos e a palavra, tomada como palavra-silêncio, isto é, como “horizonte de significação da palavra no discurso” (NUNES, 2009, 2011). No âmbito desse projeto, o urbano, de modo amplo, e a cidade de São José do Rio Preto, de modo restrito, foram tomados como objeto de compreensão por trabalhos que se detiveram na questão da favela/desfavelização (GARCIA, 2010), do bairro (MARTINS, 20101) e da mendicância (NUNES, 2011), entre outros. De acordo com Orlandi (2004, p.11),“Para nossa época, a cidade é uma realidade que se impõe com toda sua força. Nada pode ser pensado sem a cidade como pano de fundo. Todas as determinações que definem um espaço, um sujeito, uma vida cruzam-se no espaço da cidade”. 1 Resultados na forma de : a. verbetes para a Enciclopédia da Cidade (ENDICI), “construída a partir de uma perspectiva que toma a linguagem como observatório do fenômeno urbano”; b. apresentações nas Jornadas de Trabalho do projeto entre 2009 e 2010, tais como “Os sentidos de bairro na escrita escolar”, “As relações sinonímicas na construção do bairro educador” e “O bairro e suas determinações: bairro educador e bairro- escola”. 12 E quando pensamos a questão do espaço urbano, não o tomamos “como um lugar administrativo, mas como uma configuração administrativa de sentidos sociais e políticos” (LAGAZZI-RODRIGUES; BRITO,2001, p.51). Além disso, como afirma Orlandi (2010, p. 5), é preciso considerar também os sujeitos que vivem no espaço urbano, os discursos em circulação que “atravessam e significam esses sujeitos e (n)esse espaço”. A especificidade desse ponto de vista teórico-metodológico, portanto, reside no fato de buscarmos compreender o espaço urbano remetendo-o ao político, ao simbólico, tendo como materialidade a linguagem. A esse respeito, Nunes (2011) afirma que A questão da linguagem muitas vezes é deixada de lado nas práticas de organização da cidade, com a predominância de um urbanismo tecnicista ou empirista. A introdução das pesquisas discursivas nesse campo faz com que a linguagem seja pensada em seu funcionamento na cidade, e com isso surgem certos objetos e questões de análise, diante da natureza das materialidades discursivas com as quais o analista se depara. Ir para a cidade, nesse sentido, significa estabelecer uma relação entre as ciências da linguagem e o real dacidade, colocando a Análise de Discurso como uma das ciências do urbano. Em nossas reflexões para este trabalho, tomamos como recorte do espaço urbano o bairro, que é por sua vez, um espaço em que o sujeito se constitui e no qual constitui sentidos, é portanto espaço discursivo. Tomamos também a escola, entendida como um dos lugares em que a “forma-sujeito-histórica que é a nossa (a capitalista, de um sujeito com direitos e deveres) se configura como forma sujeito urbana” (ORLANDI, 2004, p.152). Dito isso, com relação aos objetivos que norteiam esta tese, eles se concentram na questão da constituição do sujeito enquanto sujeito-morador de alguns bairros da Zona Norte da cidade de São José do Rio Preto, de um lado, e, de outro, nos sentidos produzidos para bairro, tendo em vista que “sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo” (PÊCHEUX, 1997b). 13 Tal recorte do espaço urbano e dos objetivos deve-se ao fato de a cidade de São José do Rio Preto, assim como várias cidades brasileiras, ser dividida administrativamente, politicamente, simbolicamente em regiões, áreas ou zonas. Essa divisão acaba tendo como consequência uma separação entre as partes da cidade: o centro e a periferia, a zona sul e a norte, as áreas em que se verifica maior disponibilidade de infra-estrutura e investimento político-administrativo e as áreas em que isso falta ou falha. Assim como em outras cidades, a zona periférica “é pensada como a borda, o limite entre o fora e o dentro. Estar na periferia é estar distante, na coincidência entre a distância espacialmente considerada e a distância politicamente imposta.” (LAGAZZI-RODRIGUES; BRITO, 2001). No caso da Zona Norte de São José do Rio Preto, percebíamos por meio da mídia uma separação, um distanciamento com relação ao centro e à Zona Sul, reservando-se à Zona Norte a posição de reduto de criminalidade, de tráfico, de discriminação social. Isso nos remeteu à relação entre socius e hostis, à tensão entre o dentro e o fora e quais os efeitos desses sentidos atravessando os sujeitos-moradores. Um exemplo desses sentidos em circulação pode ser observado na edição de 13/09/2006 do jornal Diário da Região, que apresenta a Vila União, localizada na Zona Norte: VILA UNIÃO LUTA CONTRA O PRECONCEITO Moradores do bairro da zona norte têm dificuldade de arrumar emprego simplesmente por morar na Vila União; saída é mentir ou lutar por reconhecimento. A fama da Vila União a precede. Um dos menores bairros da zona norte, palco de alguns homicídios e prisões por tráfico de drogas, tenta atualmente reverter a imagem negativa deixada pela criminalidade. Moradores têm receio de dizer onde moram, principalmente se a ocasião da pergunta for uma entrevista para uma vaga de trabalho. A doméstica Marcela Aparecida Leopoldina de Carvalho, 30 anos, conta que é só falar que mora na Vila União para ouvir como resposta exclamações preconceituosas, como “Deus me livre morar naquele bairro”. O preconceito, segundo os moradores, acompanha o bairro desde a criação, em meados dos anos 1980. Em uma faixa de terra que divide o Solo Sagrado e o Eldorado foram construídas 111 casas para abrigar famílias que deixaram a favela Gogó do Sapo. A Vila União parece não existir aos olhos dos próprios moradores. Eles sabem da rejeição, sofrem com isso, mas preferem, mesmo assim, dizer que moram em bairros vizinhos. ‘Já ouvi gente daqui falar que mora no Eldorado, no Solo Sagrado’, afirma a dona de casa Amélia Luiza Amado, 43 anos. 14 Esse discurso foi produzido em um momento em que a prefeitura buscava a urbanização de toda a cidade, por meio de projetos que visam, em particular, a zona norte (a própria Vila União é resultado de um processo de urbanização de uma antiga favela da cidade). Ao mesmo tempo, a imprensa também tem falado bastante sobre os bairros que compõem a Zona Norte ao noticiar roubos, assassinatos, tráfico de entorpecentes, contribuindo para construir essa imagem identificada pelos próprios moradores como ruim, negativa. Quando se diz que a zona norte é violenta ou que a violência está na zona norte, se faz uma separação e uma higienização do restante da cidade: o que fica de fora da zona norte é o urbanizado, o não violento, o saneado. Da perspectiva em que nos situamos, questionamos os sentidos de urbanizado. Segundo Orlandi (2004, p.34), tem havido uma sobreposição do urbano sobre a cidade, de forma que “o discurso do urbano silencia o real da cidade (e o social que o acompanha)” por meio de um movimento de generalização do discurso urbanista. Podemos perceber por meio de algumas marcas (“Deus me livre morar naquele bairro”) que o sentido do referido bairro é construído pela formação imaginária do preconceito, da negação, da rejeição do espaço. Por conseguinte, os sujeitos moradores também passam a ser constituídos no interior dessa formação imaginária e sofrem rejeição da sociedade ao tentar conseguir um emprego. Ao mesmo tempo em que os sentidos desse bairro são assim constituídos, os sujeitos também o são. Também podemos notar os sujeitos se reinscreverem em uma outra discursividade ao dizerem que moram em outros bairros (“Já ouvi gente daqui falar que mora no Eldorado, no Solo Sagrado”), para apagar, silenciar a existência do próprio bairro (“A Vila União parece não existir aos olhos dos próprios moradores”). Esse bairro passou por um processo de urbanização, deixando de ser favela para ser bairro. Mas a memória de favela continua fazendo sentido, ressoando. Os de fora do 15 bairro continuam vendo-o como favela, a partir de uma posição que a identifica como ruim, negativa, violenta. Os de dentro do bairro silenciam a existência do bairro e da favela por estarem afetados por esse imaginário. Segundo Guimarães (2004, p.165), “Quando pensamos espaços na cidade, os nomes que os designam não só ocupam lugar neste espaço social, ou nele circulam, como lhe dão sentidos, identificam estes lugares. E nesta medida constroem de algum modo a geografia urbana. Identificam-na”. No recorte acima apresentado, vemos que o nome Vila União, embora acione toda uma memória positiva, identifica um bairro em que não há união dos moradores na luta contra a imagem negativa do bairro. A mesma contradição entre o nome do bairro e a identificação e constituição dos sujeitos e dos sentidos do bairro ocorre no Parque da Cidadania, em que há relatos de que os sujeitos também não conseguem emprego quando se apresentam como moradores desse bairro. Qual o sentido de cidadania ou de união? Afetados por essas questões, organizamos nosso corpus a partir de materiais coletados em uma escola municipal situada em um bairro da Zona Norte (E.M. Darcy Ribeiro, Jardim Santo Antônio) e reportagens. Os primeiros materiais consistem em textos produzidos em contexto escolar a partir de uma proposta pré-determinada que levou os sujeitos- moradores a discorrer sobre o bairro, a casa, a escola, a Zona Norte. Por meio do trabalho com o material, verificamos em que bairros vivem os alunos da escola Darcy Ribeiro. No caso, são todos bairros pertencentes à Zona Norte, como Santo Antônio, Jardim Nunes, Eldorado, Jardim São José do Rio Preto e Jardim Arroyo. Já as reportagens pertencem a dois jornais em circulação na cidade: i. Diário da Região, de circulação regional e que publicou entre 2005 e 2007 uma série de reportagens especiais intituladas Diário nos bairros; ii. Região Norte, de circulação municipal e que se propõe a tratar de assuntos de interesse da Zona Norte da cidade. 16 A diversidade do corpus procura abarcar a diversidade de discursos que atravessam a constituição dos sujeitos e dos sentidos para bairro, sem, contudo, vislumbrar a exaustividade. Ao final das análises, os resultados serão confrontados com o objetivo de compreender o referido processo de constituição. Seguem, na sequência, os pressupostos teóricos que embasam nosso trabalho de pesquisa. Nessa parte, visamos à apresentação dos pontos principais da teoria divididos em dispositivo teórico e dispositivo analítico, e das condições de produção. No capítulo II, apresentamos a análise do corpus de redações dos alunos em que destacamos o funcionamento da alteridade bem como o desejo dos sujeitos-moradores ressignificarem o espaço urbano em que habitam tendo em vista a memória que circula sobre os bairros da Zona Norte. Os jornais Região Norte e Diário da Região, ambos de São José do Rio Preto, são analisados no capítulo III deste trabalho. Enfatizamos o funcionamento da mídia apagando o político e dissipando tensões em função do discurso administrativo sobre o espaço urbano, construindo uma imagem consensual da Zona Norte, no Jornal Região Norte. Já no jornal Diário da Região, a imagem que se constrói do espaço urbano e dos sujeitos-moradores é afetada por uma contradição. Ora o espaço é problemático; ora ele é pitoresco. Ora os sujeitos são cidadãos que querem ser ouvidos, mas que não têm espaço simbólico para tal, até a intervenção do jornal; ora são os protagonistas de crônicas sobre o bairro. Ao final, os resultados são contrapostos e as regularidades ressaltadas. 17 1 ANÁLISE DE DISCURSO E CIDADE “Os sentidos não são sentidos fora da sociedade e da história” (ORLANDI, 2006). Neste capítulo, apresentamos brevemente os pressupostos teóricos nos quais nos baseamos na elaboração da tese. Nossas reflexões se inserem no arcabouço teórico- metodológico da Análise de Discurso, tal como trabalhada por Pêcheux (1990, 1993, 1997) e no Brasil por Orlandi (2001, 2002a, 2004, 2005), Nunes (1994, 1999, 2001, 2008, 2010, 2011), Lagazzi (1998, 1999), Payer (2006), Rodríguez-Alcalá (2002, 2004), Mariani (2003, 2007), Pfeiffer (1997, 2004), entre outros. Sendo assim, iniciaremos pela exposição do dispositivo teórico e do analítico, em seguida, nos deteremos na especificidade que constitui nosso trabalho: a relação cidade/bairro/sujeito, ou seja, a busca pela compreensão dos processos de constituição do sujeito-morador de alguns bairros da Zona Norte e do sentido de bairro. Por fim, passaremos à apresentação da metodologia e da constituição do corpus. 1.1 Dispositivo teórico e dispositivo analítico A partir dos apontamentos teórico-reflexivos de Orlandi (2001, 2002a, 2005), podem-se compreender os desenvolvimentos da Análise de Discurso no Brasil. De acordo com a autora, a despeito do que se poderia crer, não temos uma “Escola” de Análise de Discurso Brasileira, justamente porque, do seu ponto de vista, sobre a forma material “escola” incidem discursividades tais como “homogeneidade”, “estabilidade”, “conivência disciplinar” (ORLANDI, 2005, p.84) que não se aplicam necessariamente ao desenrolar científico da 18 Análise de Discurso no Brasil. Em detrimento do termo “escola”, portanto, a autora propõe “filiação”, “relações intelectuais”, “tradições localizadas” (idem, p.85). O que precede nos serve de apoio para reafirmarmos o caráter específico da Análise de Discurso Brasileira em relação à Análise de Discurso praticada no contexto europeu e à praticada em contexto norte-americano. Isso para então situarmos entre as contribuições teóricas de Orlandi a de dispositivo analítico. Em “A Análise de Discurso em suas diferentes tradições intelectuais: o Brasil” (2005), Orlandi pontua a posição da tradição brasileira de Análise de Discurso frente à americana e à européia. A autora ressalta que “aqui” (Brasil) a história da Análise de Discurso é marcada não por uma “recepção” de ideias de um autor fundador proveniente de “lá” (Europa), nem tampouco seria o caso de uma mera “influência”. O que há é uma relação entre interlocutores, pois há uma “leitura” e não uma “recepção” dos textos fundadores da disciplina. É preciso dizer que esse posicionamento é uma marca característica da autora de opor-se, reflexiva e teoricamente, a discursos que tendem ao colonialismo, colocando o Brasil à margem de qualquer produção intelectual, científica. Pois bem, essa “leitura” relaciona-se ao fato, e mesmo ao ato, de provocar deslocamentos significativos teoricamente que fazem com que a disciplina avance de modo próprio em condições de produção próprias. E uma marca desse movimento são alguns conceitos com os quais operamos em Análise de Discurso, tais como a distinção entre dispositivo teórico e dispositivo analítico (ORLANDI, 2001, p.39; 2002a, p.61; 2005, p.86). O dispositivo teórico corresponde à teoria específica da Análise de Discurso, enquanto que o dispositivo analítico corresponde a um gesto do sujeito, não mais na posição de mero leitor, mas de analista, de cientista, que particulariza a teoria a partir das questões que ele coloca de acordo com os materiais de análise que constituem seu corpus. Segundo a autora (2005, p.86), o dispositivo analítico “se abre para as diferentes teorias ligadas ao campo de 19 questões assumido pelo analista, seja ele lingüista, historiador, cientista social, fonoaudiólogo etc”. Com relação, especificamente ao dispositivo teórico, ressaltaremos o que se entende por discurso, por condições de produção e por constituição. A Análise de Discurso considera que a linguagem seja a mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. “Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana” (ORLANDI, 2002a, p.15). Ainda para a autora, “na Análise de Discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história” (idem, p.15). Com esse gesto, a Análise de Discurso distingue-se de teorias anteriores que postulavam uma comunicação linear que teria como objetivo a transmissão de informação. Propõe, ao contrário, que se pense não uma transmissão, mas efeitos de sentido entre locutores. Efeitos que resultam da relação de sujeitos simbólicos que participam do discurso, dentro de circunstâncias dadas. Os efeitos se dão porque são sujeitos dentro de certas circunstâncias e afetados pelas suas memórias discursivas. (ORLANDI, 2006, p.15). Outro deslocamento fundador da Análise de Discurso é recolocar em questão para a análise linguística a situação, que junto com o sujeito tinham sido postos de lado pelos fundamentos saussurianos. Porém, a situação é sempre pensada discursivamente, nunca como uma exterioridade que se sobrepõe ao discurso, ao sujeito, aos sentidos. Ela é pensada dentro das condições de produção. As condições de produção, portanto, dizem respeito aos sujeitos e à situação, e podem ser pensadas em sentido estrito e em sentido mais amplo. Quando pensamos as circunstâncias da enunciação, “o aqui e o agora do dizer” (idem, p.15), estamos nos 20 remetendo às condições de produção em sentido estrito. Já no seu sentido amplo, elas apontarão para o contexto sócio-histórico, ideológico. Com relação à noção de constituição, central em nosso trabalho, é definida por Orlandi (2001, 2002a) em termos da distinção entre os eixos da constituição (vertical) e da formulação (horizontal): Figura 1: Constituição e Formulação Assim, temos que todo dizer (formulação) se realiza num determinado ponto em que “(se) atravessa o (do) interdiscurso (constituição)” (ORLANDI, 2001, p.11). As formulações são consideradas uma “posição privilegiada como posto de escuta, de entrada no modo de constituição do sujeito, no sentido e na história” (ORLANDI, 2001, p.15). A constituição determina a formulação, pois só podemos dizer (formular) se nos colocamos na perspectiva do dizível (interdiscurso, memória). Todo dizer, na realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação). E é desse jogo que tiram seus sentidos. (ORLANDI, 2002a, p. 33) Sendo que o interdiscurso é “todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos”, enquanto que o intradiscurso é “aquilo que estamos dizendo naquele momento dado, em condições dadas” (ORLANDI, 2002a, p.33). O interdiscurso, a memória discursiva, torna possível cada tomada de palavra, “disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva Formulação (eixo da atualidade) Constituição (eixo da memória) 21 dada” (idem, p.31). Em nosso caso, os dizeres que afirmam a criminalidade, a violência e as drogas como pertencentes à Zona Norte da cidade de São José do Rio Preto significam, têm um efeito sobre os textos produzidos em contexto escolar, ou sobre as reportagens. Dito isso, gostaríamos de ressaltar os principais conceitos que compõem nosso dispositivo analítico. 1.1.1 Sujeito e Sentido Nas bases do que propôs Pêcheux (1997b, p.131), não consideramos o sujeito como um a priori, como um “sempre-já-dado”. Sendo que o mesmo se passa com o sentido. Eles se constituem no discurso. Dessa forma, ao trabalhar com a Análise de Discurso, nos distanciamos de posições teóricas para as quais o sujeito seria tomado como fonte, origem dos sentidos. Trabalhamos com um sujeito sendo determinado pela ideologia e pelo inconsciente. Essa forma de tratar o sujeito implica tomá-lo como resultado da interpelação do indivíduo em sujeito, do que resulta uma forma-sujeito histórica. Segundo Orlandi (2001, p.104), a forma-sujeito histórica sofre ainda um processo de individualização pelo Estado que constitui, assim, o Indivíduo Social (em detrimento do indivíduo bio e psico). Atualmente, temos uma forma-sujeito histórica diferente da medieval (produzida sob o domínio da instituição religiosa e por um sistema econômico-político feudal). Trabalhamos com a forma- sujeito histórica capitalista. O sujeito moderno é ao mesmo tempo livre e submisso, determinado pela exterioridade e determinador do que diz: essa é a condição de sua responsabilidade (sujeito jurídico, sujeito a direitos e deveres) e de sua coerência (não-contradição) que lhe garantem, em conjunto, sua impressão de unidade e controle de sua vontade, não só dos outros mas até de si mesmo, bastando para isso ter poder ou consciência. Essa é sua ilusão. O que chamamos ilusão subjetiva do sujeito e que se acompanha da ilusão referencial (sobre a evidência do sentido) (ORLANDI, 2006, p.20) 22 Dito isso, ressaltamos que tomaremos os sujeitos dos bairros pesquisados da Zona Norte enquanto individualizados pelo Estado através de suas instituições como alunos, como moradores e como cidadãos. Ainda sobre o papel do Estado, podemos notar que suas instituições (escola, família, igreja, associações, fábricas, etc.) constituem, entre outras coisas, as “comunidades de fato” (ORLANDI, 2006, p.22) dos sujeitos. Mas em alguns momentos essas comunidades de fato não são suficientes para que o sujeito tenha a sensação de pertencimento, de “corpo social sólido”, é então que se estabelecem as “comunidades segundas”: “grupos em que cada um pode desempenhar seu desejo de reconhecimento como o reconhecimento de seu desejo e de seu ser. As pessoas têm assim a impressão de fazer parte de um grupo, de um corpo compacto que possui a liturgia e seus rituais comoventes em que a morte não entra” (idem). Em nossa pesquisa, vemos uma marca desse processo em um enunciado típico da Zona Norte da cidade, que aparece inscrito em paredes, muros, viadutos, placas, bonés, redações e até mesmo em tatuagens: “sou Zona Norte”. Note-se que a própria formulação é significativa do modo de colocar-se como parte do corpo, não apenas como pertencente ao corpo social. Esse ponto será devidamente retomado ao longo das análises. 1.1.2 Ordem e Organização Em suas reflexões sobre o discurso do/sobre o urbano, Orlandi (2004, p.35) tem trabalhado a distinção entre ordem e organização. Discursos como os da imprensa e da administração pública tendem a organizar a cidade, por exemplo, em bairros, regiões, zonas e ao fazerem-no vão constituindo determinados sentidos não só para o espaço público, mas também para os sujeitos-moradores. Orlandi (idem, p.81) já alerta: “Observe-se como se significam e são significadas as pessoas segundo vivam em bairros ricos (com seus 23 equipamentos públicos de qualidade) e os bairros pobres (sem condições, com esgoto correndo a céu aberto etc)”. Para a autora (idem, p.35), a organização reflete uma verticalização das relações sociais na cidade, que por sua vez hierarquiza o espaço social, “urbaniza” a cidade “separando regiões, determinando fronteiras que nem sempre são da ordem do visível concreto mas funcionam no imaginário sensível. Segregação”. Compreender esse movimento entre ordem e organização passa por ultrapassar a organização do discurso urbano para atingir a compreensão da ordem do discurso urbano, isto é, procurar entender como o simbólico confrontando-se com o político configura sentidos para/na cidade e não ficar apenas na organização do discurso urbano que nos relega ao imaginário, às ilusões (eficazes) da urbanidade. (ORLANDI, 2004, p.35) Se, por um lado, há a construção de muros de tijolos e concreto que separam condomínios, bolsões, etc., por outro, há também muros simbólicos que podem igualmente separar regiões. Essa barreira imaginária deixa de um lado o socius e de outro o hostis. Veremos, por exemplo, que ao significar a Zona Norte como espaço de maior concentração de criminalidade da cidade, a mídia rotula, segrega, separa. 1.2 A cidade, o bairro e os sujeitos Como é sabido, várias áreas de conhecimento se interessam pela cidade: arquitetura, urbanismo, direito, história, engenharia, geografia, etc. Nosso recorte se dá, diferentemente, pela Análise de Discurso, ou seja, nossa escolha teórico-metodológica procura compreender a cidade discursivamente, refletindo sobre o sujeito e sobre os sentidos historicamente constituídos, considerando a memória, as condições de produção, a linguagem 24 como mediadora necessária entre o homem e a realidade natural e social. Orlandi (2004, p.81) já lança a questão, à qual ela mesma responde: Por que “cidade”? Porque, na modernidade, como temos afirmado, a noção de cidade é central, trazendo com ela um conjunto de reflexões que interrogam a própria noção de “humanidade” e de “sociabilidade”. Leva-os a refletir sobre o que somos enquanto seres simbólicos e histórico-sociais. No livro Cidade dos Sentidos, Orlandi (2004) busca construir uma definição para cidade. A autora recorre a outros estudiosos que empreenderam a mesma tarefa2, e a partir de suas reflexões, a autora aponta a cidade como “lugar não vazio mas em que sujeitos vivem, em quantidade e em concentração e divergência” (idem, p.14). Mais adiante, a autora complementa: “espaço material concreto funcionando como sítio de significação que requer gestos de interpretação particulares. Um espaço simbólico trabalhado na/pela história, um espaço de sujeitos e de significantes” (idem, p.32). Veja que estão em relação espaço/história/sujeitos/significantes, elementos básicos constitutivos do recorte teórico- metodológico operado pela Análise de Discurso. Pois bem, embora nosso recorte teórico-metodológico seja o da Análise de Discurso, não deixamos de observar as reflexões de outras áreas de saber quando elas podem trazer contribuições. É o caso, por exemplo, do trabalho de Raquel Rolnik (2004)3. A autora apresenta um estudo sobre a natureza, a origem e a transformação do fenômeno urbano. Primeiramente, ela trata de definir o que é cidade, para tanto lança mão das seguintes metáforas: cidade-ímã (“atrai, reúne e concentra os homens” (p.12)), cidade-escrita (“as formas e tipologias arquitetônicas, desde quando se definiram enquanto hábitat permanente, podem ser lidas e decifradas, como se lê e decifra um texto” (p.17)), cidade-política (em duas 2 L. Wirth, O urbanismo como forma de vida. In O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. M. Weber, Conceito e categorias de cidade. In O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 3 Arquiteta (USP), doutora em História Urbana (New York University), autora de O que é cidade (2004), uma das responsáveis pelo Estatuto da Cidade (lei 10.257 de 10/07/2001) e relatora especial da ONU para o direito à moradia (desde maio/2008). 25 dimensões distintas: “exercício de dominação da autoridade político-administrativa sobre o conjunto dos moradores” e “luta cotidiana pela apropriação do espaço urbano” (p.24)) e cidade-mercado (“a cidade, ao aglomerar num espaço limitado uma numerosa população, cria o mercado. E assim se estabelece não apenas a divisão de trabalho entre campo e cidade [...] mas também uma especialização do trabalho no interior da cidade” (p.26)). Na sequência, a autora passa a discorrer sobre a cidade capitalista traçando um paralelo com a medieval a partir de suas formas político-econônicas e de organização. Em linhas gerais, ela conclui que marcam a cidade capitalista as relações de mercado e a arquitetura de isolamento4. Analisando o papel do Estado, ela afirma que sua forma de atuação dá-se através de planos e intervenções projetadas e calculadas, ou seja, planejamento urbano. Esse ideal remonta, segundo Rolnik (p.55), dos planos racionais de Thomas Morus (séc. XVI) e de pensadores utópicos, cujos temas podem ser encontrados atualmente em planejamentos urbanos: 1. leitura mecânica da cidade (circulação de fluxos); 2. ordenação matemática da cidade (regularidade e repetição); 3. uma cidade planejada é uma cidade sem males; 4. o Estado pode controlar a cidade através do esquadrinhamento dos espaços urbanos. Podemos perceber nesses ideais a presença do desejo pela organização do espaço urbano, inclusive como garantia de segurança e higienização na construção mesma da cidade utópica. Orlandi (2004, p.14-15) menciona, no caso do Brasil, a organização que o espaço público sofreu após a República na tentativa de “civilizar o país” frente à desordem causada pela abolição e pelas migrações e imigrações, a exemplo do que já se havia operado na Europa com vistas à “aeração, circulação, lazer, monumentalidade e controle sócio- político”. Atualmente, esse movimento pode ser verificado, por exemplo, nos planos diretores das cidades, principalmente após o Estatuto da Cidade (2001), que em alguns casos objetivam 4 “a vida social burguesa se retira da rua para se organizar à parte, em um meio homogêneo de famílias iguais a ela. (...) o espaço público deixa de ser a rua – lugar das festas religiosas e cortejos que engloba a maior variedade possível de cidades e condições sociais – e passa a ser a sala de visitas, ou o sala”. (ROLNIK, 2004, p.49) 26 o desfavelamento, a reurbanização, a revitalização de espaços públicos5. É o que ocorre com certos bairros da Zona Norte da cidade São José do Rio Preto, tais como a Vila União e o Parque da Cidadania. A questão do esquadrinhamento dos espaços nos remete às observações de Lippe (2005) sobre a geometrização do homem. O autor aponta a geometrização como mais uma marca do séc. XVI na Europa. Esclarece que o termo “é empregado com referência não aos elementos, mas à organização das estruturas. No plano das estruturas, é atribuído às formas geométricas o estatuto e a função universal de um modelo organizador” (idem, p.129). Segundo ele, ela implicou mudanças nas atitudes, nos movimentos, na percepção do mundo e de si. E certamente está presente nos planos organizadores dos espaços urbanos ao se pensar, por exemplo, em grandes avenidas (Champs Elisés (Paris), Central (Rio de Janeiro) ou Paulista (São Paulo)), em cidades projetadas (Brasília), na estruturação de bairros, zonas, regiões, condomínios e de residências. O fato é que ao dividir, esquadrinhar, geometrizar o espaço atinge-se os sujeitos que passam a organizar suas práticas de acordo com a organização que se sobrepõe à ordem da cidade. Voltando às palavras de Rolnik (2004) sobre a dominância do mercado e a arquitetura de isolamento, isso nos interessa à medida que faz eco ao que dizem Lewkowicz, I.; Cantarelli, M.; Grupo Doze (2006) e Orlandi (2004, 2007) sobre o papel do Estado e sobre os bolsões e fechamentos, ligando-os também ao acontecimento do capitalismo. Lembrando que enquanto forma-sujeito histórica trabalhamos com o sujeito capitalista, de direitos e deveres. Lewkowicz, I.; Cantarelli, M.; Grupo Doze (2006, p. 48) refletem sobre o esgotamento do Estado enquanto pan-instituição doadora de sentido dando lugar ao Mercado. Como consequência, há o desvanecimento dos laços sociais e o Estado passa a funcionar aos 5 Em Garcia (2010) encontra-se uma análise discursiva do processo de desfavelamento em São José do Rio Preto. 27 moldes de uma máquina técnico-administrativa. Diante de um novo modelo de relação simbólica, pautado pelo imediatismo, o sujeito necessita construir espaços para se inscrever. Precisa habitar. Precisa “transformar um fragmento uma situação”. E situação é a “produção de um espaço e de um tempo em um meio sem marcas socialmente instituídas”, bem como a “criação da subjetividade capaz de habitar esse espaço e esse tempo.” Essas reflexões apontam para uma fragmentação dos sentidos, das relações, das instituições que deve ser transformada em uma subjetividade situacional. Contudo, Orlandi (2004) argumenta que, no caso do Brasil, o Estado funciona sim, mas pela falta e afetado pelas sociedades de mercado. Em decorrência, há a produção do sem-sentido. E na falta do Estado, e consequentemente na insuficiência de poder simbolizar- se em suas instituições (escola, família, nação, etc.), o sujeito escolhe fazer parte das comunidades segundas, das quais já falamos por ocasião da alusão ao enunciado “Sou Zona Norte” e suas implicações. Sobre os bolsões e fechamentos, que têm relação com a segregação e com a arquitetura do isolamento, Orlandi (2004, p.91) é direta: O fechamento de espaços recortando a cidade, retraçando seus percursos, redesenhando divisões, refazendo limites entre o público e o privado, separando de forma acintosa pobres e ricos, produzindo, de um lado, nichos, e, de outro, corredores, se faz de modo irrefletido oscilando entre modismo, paranóia e especulação imobiliária. Nada com que se espantar: o capitalismo só está aí se significando como “sabe” significar. Desde que se configure a menor possibilidade, as diferenças sociais e econômicas se manifestam violentamente e a divisão social se sobrepõe ostensivamente à materialidade da divisão do espaço urbano, espaço público. E, como já dissemos: 1. as divisões e esquadrinhamentos do espaço urbano afetam o sujeito-morador; 2. os divisores simbólicos segregam tanto quanto os de concreto. Isso pode ser observado em nosso caso quando nos detemos nos textos produzidos pelos alunos em que salientam a visão do outro sobre eles e sobre seus bairros e no movimento constante desses sujeitos de tentarem ressignificar seus bairros e, por extensão, a si próprios. 28 Com relação à conceituação de bairro, discursivamente, é um espaço em que o sujeito se constitui e constitui sentidos, é espaço discursivo. Lembrando que nessa perspectiva teórica o sujeito não ocupa a posição de origem dos sentidos, mas que ele, sujeito, e sentido se constituem ao mesmo tempo. Isso vem reforçar o efeito dos sentidos de bairro para seus moradores, no sentido de que o laço social estabelecido no/com o bairro é fortemente constitutivo das identidades dos sujeitos, de modo que falar do bairro é também falar do sujeito. Mayol6 (2000, p.40) também se interessou pelo bairro, do ponto de vista da antropologia: A prática do bairro é desde a infância uma técnica do reconhecimento do espaço enquanto social. (...) Assinatura que atesta uma origem, o bairro se inscreve na história do sujeito como a marca de uma pertença indelével na medida em que é a configuração primeira, o arquétipo de todo processo de apropriação do espaço como lugar da vida cotidiana pública. Além disso, segundo o mesmo autor, o bairro é “o lugar onde se manifesta um ‘engajamento’ social ou, noutros termos: uma arte de conviver com parceiros (vizinhos, comerciantes) que estão ligados a você pelo fato concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição” (idem, p.39). Embora em Análise de Discurso não trabalhemos com o “indelével” nem tampouco com os “arquétipos”, e sim com as singularidades, com os esquecimentos, o trabalho de Mayol é relevante por olhar para a história do sujeito relacionado ao espaço e aos demais sujeitos. 6 Pierre Mayol é especializado em antropologia urbana e sociologia da cultura, autor do capítulo “O Bairro” da obra A invenção do cotidiano. 2.Morar, cozinhar; Michel de Certeau; Luce Giard; Pierre Mayol. Petrópolis: Vozes, 2000. 29 1.3 Morar, habitar A expressão “sujeito-morador” tem sido empregada ao longo deste trabalho. Mas, o que seria esse “sujeito-morador”? A construção da expressão é atravessada pelo questionamento dos sentidos de morar e de habitar, no sentido de definir esse sujeito que é individualizado pela sua condição de morador de um espaço no espaço da cidade. Discursivamente, o espaço é entendido como “lugar atravessado pela memória, atravessado por um conjunto de gestos de interpretação, é onde o sujeito se inscreve historicamente, tomando sentidos” (PFEIFFER, 2004, p.173). Recorrendo a áreas afins, como a antropologia, temos que no tomo 2 de A invenção do cotidiano, Mayol, De Certeau e Giard concentram-se nas questões do morar. Mayol detém-se no contexto do bairro Croix-Rousse (Lyon, França). Em seu texto, o autor trata do morar tocando as questões da convivência, do consumo, da postura do corpo, da inserção no ambiente social e dos benefícios simbólicos: Aquilo que o usuário ganha quando sabe “possuir” direito o seu bairro não é contabilizável, nem se pode jogar numa troca necessariamente de uma relação de forças: o adquirido trazido pelo costume não é senão a melhoria da “maneira de fazer”, de passear, de fazer compras, pela qual o usuário pode verificar sem cessar a intensidade da sua inserção no ambiente social (MAYOL, 2000, p. 45) Veja que o autor emprega a forma “usuário” para referir-se aos sujeitos que “possuem” o bairro, numa interpretação do bairro como objeto de consumo simbólico, cuja prática é determinada por posturas e costumes, regrada pelos benefícios simbólicos.Ainda nas palavras de Mayol: “O bairro é, por conseguinte, no sentido forte do termo, um objeto de consumo do qual se apropria o usuário no modo da privatização do espaço público”. De nosso ponto de vista teórico, consideramos que o sujeito se constitua enquanto sujeito no espaço e que ao fazê-lo também constitui esse espaço de determinada 30 forma. Essa forma de realização da dupla constituição se dá determinada por um conjunto de memórias discursivas que atuam sobre as práticas, sobre as formulações dos sujeitos. De uma outra perspectiva, Lewkowicz; Cantarelli; Grupo Doze (2006), em suas reflexões sobre o esgotamento do Estado como pan-instituição doadora de sentidos, propõem o habitar como uma nova estratégia de subjetivação da contemporaneidade, como dito acima. Sua tese é que esse esgotamento tem como produto a fragmentação e que ela deve ser transformada em situação: “a produção de uma demarcação.”, (idem, p. 48) através de práticas de subjetivação, entre elas, o habitar: o habitar não consiste na ocupação de um lugar em um sistema de lugares – o que seria próprio da meta-instituição estatal. Ao contrário, consiste na determinação desse espaço e desse tempo. Nesse sentido, o ponto de partida de um habitante não são os lugares instituídos e sim os fragmentos destituídos. Justamente por isso, habitar um espaço se faz determinando-o. E para determiná-lo é preciso construí-lo. Deste modo, habitar – em condições de fluidez – é sinônimo de construir (idem, p.50). Ser habitante, portanto, ultrapassa o nível da ocupação de um espaço entre outros. Está no nível simbólico da apropriação e construção subjetiva de um espaço entre outros. Diante disso e da posição defendida por Orlandi (2007), segundo a qual no caso do Brasil temos um Estado funcionando pela falta e não em esgotamento total sendo substituído pelo Mercado, questionamo-nos se temos um exemplo de habitar, no sentido definido por Lewkowics; Cantarelli; Grupo Doze (2006). Ou seja, se há a construção de uma situação em meio a uma fragmentação. Como índice, podemos lembrar o fato dos sujeitos de identificarem de tal modo com seus pares moradores do mesmo bairro a ponto de inscreverem no próprio corpo a marca “ZN” (para Zona Norte) e com isso se destacarem nos demais espaços da cidade. Destacarem-se em meio à segregação. 31 1.4 Metodologia e constituição do corpus Expostos os dispositivos teórico e analítico, passemos à explicitação da constituição do corpus discursivo e da metodologia empregada, ambas em consonância com o aparato teórico-analítico da Análise de Discurso. Diferentemente de outras áreas de pesquisa, em Análise de Discurso a delimitação do corpus apenas se dá com a própria análise, por uma característica do próprio método, ou seja, o trabalho com o material de análise, com as condições de produção, com a teoria é que delimita o corpus. Trabalhamos com uma análise em espiral: da teoria ao corpus, dele à teoria, e assim sucessivamente. Decorre do que precede, que o corpus, em Análise de Discurso, é entendido como “um recorte dos dados, determinado pelas condições de produção, considerando-se um certo objetivo e os princípios teóricos e metodológicos que, orientando toda a análise, possibilitarão uma leitura não-subjetiva dos dados” (LAGAZZI, 1988, p.59). Trabalhamos, portanto, com a noção de recorte. Segundo Orlandi (2002, p. 62), “todo discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro. Não há discurso fechado em si mesmo, mas um processo discursivo do qual se podem recortar e analisar estados diferentes”. Em suma, a Análise de Discurso busca colocar em evidência os traços dos processos discursivos, já que esses processos estão na origem da produção dos efeitos de sentido, constituindo-se a língua como o lugar material onde se realizam esses efeitos de sentido (PÊCHEUX; FUCHS, 1975). Pêcheux e Fuchs (1975, p.180-181) apontam que o trabalho de análise se inicia pela superfície linguística, passa pelo objeto discursivo e visa alcançar o processo discursivo 32 através de operações de dessuperficialização linguística e de dessuperficialização discursiva. Dessa forma, temos: Figura 2: Dessuperficialização linguística e dessuperficialização discursiva Lagazzi (1988, p.53) explica esses passos da seguinte maneira: Pela desintagmatização linguística, trabalhamos com as famílias parafrásticas, explicitando relações entre o dito e o não-dito, lidando com as relações de intertextualidade, enunciação e outras, tudo ao nível do formulável. A desintagmatização discursiva permite-nos chegar à formação discursiva (F.D.), que domina o texto e à relação dessa formação discursiva dominante com outras formações discursivas que aí se entrecruzam. Através da(s) formação(ões) discursiva(s) atingimos a(s) formação(ões) ideológica(s), uma vez que esta(s) é(são) representada(s), no discurso, pela(s) formação(ões) discusiva(s) que lhe(s) corresponde(m). Vale ressaltar que essa separação entre dessintagmatização/ dessuperficialização discursiva e linguística não são estanques e discretas. No processo analítico elas se dão conjuntamente. Quando analisamos as paráfrases “já tocamos, indiretamente, nas formações discursivas” (idem, p.54). Ressaltamos também que, pelo quadro, observa-se que as etapas metodológicas envolvem o trabalho com os esquecimentos. Para compreendermos a noção de esquecimento, recorremos a Pêcheux (1997b). O autor define, apoiado em suas leituras de Freud, dois esquecimentos “inerentes ao discurso” (idem, p. 173). De acordo com o esquecimento n. 2, Superfície lingüística: Sequência oral ou escrita, de dimensão variável, e em geral maior que a frase; “discurso concreto, isto é, objeto empírico afetado pelos esquecimentos 1 e 2”. Objeto discursivo: “resultado da transformação da superfície lingüística de um discurso concreto, em um objeto teórico, isto é, em um objeto lingüisticamente de- superficializado, produzido por uma análise lingüística que visa a anular a ilusão nº 2”. Processo discursivo: resultado de um trabalho sobre o objeto discursivo com vistas à de-superficialização discursiva, ou seja, à anulação do esquecimento nº1. 33 todo sujeito falante “seleciona” no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou seqüência, e não um outro,que, no entanto, está no campo daquilo que poderia reformulá-lo na formação discursiva considerada. Segundo Orlandi (2002a, p. 35), esse esquecimento é da ordem da enunciação e responsável por uma “ilusão referencial” de que haveria uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo. Consideramos, dessa perspectiva discursiva, que essa relação é sempre mediada pelo discurso, atravessada pelo simbólico. Com relação ao esquecimento n. 1, Pêcheux (1997b, p. 173) afirma que ele “dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina”. Para Orlandi (2002a, p.35), esse esquecimento é ideológico e “reflete o sonho adâmico de estar na inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem a dizer as primeiras palavras que significariam apenas e exatamente o que queremos”. Segundo esses esquecimentos, sentido e sujeito se constituem ao mesmo tempo no interior de uma dada formação discursiva; nem sentido, nem sujeito existem por si. Além disso, os sentidos sempre podem ser outros, visto que estão relacionados a formações discursivas e uma vez alterada a formação discursiva altera-se também o sentido. Assim, por trabalharmos com o funcionamento da linguagem, do discurso, e não com conteúdos, o objetivo do analista de discurso é compreender os sentidos, as interpretações, e não dizer qual é o sentido verdadeiro ou certo de um texto, como faria a hermenêutica, por exemplo. Os procedimentos da Análise de Discurso têm a noção de funcionamento como central, levando o analista a compreendê-lo pela observação dos processos e mecanismos de constituição de sentidos e de sujeitos, lançando mão da paráfrase e da metáfora como elementos que permitem um certo grau de operacionalização dos conceitos. (ORLANDI, 2002a, p.77). 34 Por paráfrase, entendemos o retorno ao mesmo, a estabilização dos sentidos, a produção de diferentes formulações do mesmo dizer. Segundo Orlandi (2002a, p.36) “os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória”. É um conceito geralmente oposto ao de polissemia, que representa o deslocamento, a ruptura de processos de significação. Já a metáfora “é constitutiva do processo mesmo de produção de sentido e da constituição do sujeito. Falamos da metáfora não vista como desvio mas como transferência” (idem, p.79). Transferência, deslize de sentidos, o efeito metafórico é o lugar possível da interpretação, da historicidade. Sendo que a historicidade é concebida como “aquilo que faz com que os sentidos sejam os mesmos e também que eles se transformem” (idem, p.80). Considerando a questão central, qual seja, a da constituição, nosso percurso consiste em, a partir das formulações e das formas materiais, compreender como a atuação da memória discursiva, dos já-ditos operam na constituição, observando o funcionamento da metáfora, da paráfrase. Sendo que as formas materiais reúnem a um só tempo forma e conteúdo, permitindo compreender as propriedades discursivas, que remetem a língua à história para significar. Sendo assim, gostaríamos de salientar que nosso trabalho assenta-se na análise discursiva de um corpus heterogêneo que busca fazer um recorte dos discursos que atravessam a constituição dos sujeitos-moradores e dos bairros. Nossos materiais são: textos produzidos em contexto escolar e textos jornalísticos. 1.4.1 Textos produzidos em contexto escolar A partir de pesquisa de campo na E.M. Darcy Ribeiro, no Jardim Santo Antônio, Zona Norte da cidade de São José do Rio Preto, foram produzidas as redações. 35 Estiveram envolvidos na pesquisa uma turma de 8ª série do Ensino Fundamental e quatro turmas da 6ª série do Ensino Fundamental, totalizando cerca de 120 alunos. A cada um foram oferecidas três folhas. Na primeira, constava a proposta para a produção do texto: “Como você apresentaria, para alguém que não conhece, o lugar em que você mora em São José do Rio Preto, num texto de mais ou menos 20 linhas? Você pode escolher falar de sua rua, de seu bairro, da cidade ou da região. Procure apresentar diferentes características desse lugar: as pessoas, o que elas costumam fazer lá, como são as casas, como são as ruas, e o que mais você achar interessante sobre o lugar onde você vive”. Nas duas seguintes, havia um termo de consentimento em duas vias que deveria ser lido e assinado pelos pais ou responsáveis, já que todos eram menores de idade. Os textos que formam o corpus são apenas aqueles acompanhados de autorização e estão organizados em função disso e das séries. Nenhum texto apresenta a identificação do aluno-autor, somente um número que utilizamos como código para remetê-lo à autorização. Ao todo, temos 30 textos de alunos da 6ª série com autorização (de um total de 68 que aceitaram fazer o texto) e 8 textos de alunos da 8ª série com autorização (de um total de 26 que aceitaram fazer o texto). 1.4.2 Textos jornalísticos Coletamos material de dois jornais: i. Jornal Diário da Região; ii. Jornal Região Norte. O primeiro tem circulação não só municipal, mas também regional. Escolhemos esse jornal porque ao longo de 2005 e 2007 publicou semanalmente uma série de reportagens especiais sob o título: “Diário nos Bairros”,no interior do caderno Cidades. A cada semana um bairro era visitado e os moradores eram entrevistados. Segundo o próprio jornal, o objetivo do projeto foi “mostrar os problemas que incomodam o cotidiano dos moradores e 36 cobrar soluções dos órgãos responsáveis”. Já se parte do imaginário de que os problemas estão localizados nos bairros e de que o jornal é a instituição que tem o poder de “cobrar soluções”. Organizamos um corpus com esses jornais e separamos aqueles que dizem respeito à Zona Norte. Já com relação ao Jornal Região Norte, ele é uma publicação mensal que circula na cidade e tem tiragem média de 5.000 exemplares. Originalmente, o jornal chamava- se “Jornal Zona Norte”, mas a edição de junho de 2007 traz a seguinte nota: “Nova concepção – A partir da edição do mês de junho o Jornal Zona Norte passa a se chamar Jornal Região Norte. A mudança atende a reivindicação dos setores social, cultural, produtivo e político dos habitantes de mais de 150 bairros existentes nesta região” (grifos nossos). Os jornais de bairro são o foco do livro Os Jornais de bairro na cidade de São Paulo.(ALBUQUERQUE, 1985). Segundo a obra, eles existem em São Paulo desde o século XIX, motivados pelas publicações das colônias alemãs, espanholas e italianas. Mas seu auge deu-se no século XX. Segundo Camargo (2006), a imprensa de bairro é capaz de mobilizar os moradores em torno de questões locais, pois a proximidade com o leitor e com o assunto permite ao jornal revelar melhor a história, o modo de vida, as necessidades e as modificações daquele núcleo urbano, fatores estes que geram uma identificação por parte dos leitores. Todo esse material será analisado na continuidade dos trabalhos. 37 2 A CIDADE, OS SUJEITOS E OS SENTIDOS “No território urbano, o corpo dos sujeitos e o corpo da cidade formam um, estando o corpo do sujeito atado ao corpo da cidade, de tal modo que o destino de um não se separa do destino do outro. Em suas inúmeras e variadas dimensões: material, cultural, econômica, histórica etc. o corpo social e o corpo urbano formam um só.” (ORLANDI, 2004) No capítulo anterior, expusemos as bases teórico-metodológicas do nosso trabalho, bem como nossos objetivos: i. Compreender a constituição do sujeito enquanto sujeito-morador de alguns bairros da Zona Norte da cidade de São José do Rio Preto; ii. Compreender os sentidos produzidos para bairro, tendo em vista que “sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo” (PÊCHEUX, 1997b). Apresentamos neste capítulo uma análise do discurso de alunos de uma escola da Zona Norte, tendo em vista os objetivos supracitados. O material de análise são textos produzidos em contexto escolar a partir de uma proposta, semelhante à feita por Rodriguez- Alcalá (2004) e Fournier (2004): os alunos do7° e do9°anos do E.F. da Escola Municipal Darcy Ribeiro, localizada no bairro Jardim Santo Antonio – Zona Norte da cidade de São José do Rio Preto, foram convidados a escrever um texto a partir da seguinte instrução: “Como você apresentaria, para alguém que não conhece, o lugar em que você mora em São José do Rio Preto, num texto de mais ou menos 20 linhas? Você pode escolher falar de sua rua, de seu bairro, da cidade ou da região. Procure apresentar diferentes características desse lugar: as pessoas, o que elas costumam fazer lá, como são as casas, como são as ruas, e o que mais você achar interessante sobre o lugar onde você vive”. Todos os alunos residem nas imediações da escola, seja no bairro Jardim Santo Antonio, seja em outros bairros próximos. Restringimos os textos levando em consideração 38 aqueles que continham um “Termo de Consentimento” devidamente assinado pelos pais ou responsáveis, já que se trata de menores de idade. Buscamos assim contribuir com a compreensão do bairro enquanto espaço urbano de constituição de sujeitos e de sentidos. A cidade de São José do Rio Preto situa-se no interior do Estado de São Paulo e tem 402.770 habitantes (senso IBGE 2007). Como muitas cidades de seu porte, tem conflitos sociais, zonas de distribuição de riquezas, zonas periféricas, entre outras coisas. Verifica-se que a cidade é dividida, pelo discurso da mídia, da segurança pública e dos próprios habitantes, em zonas, sendo que a sul é conhecida como a da classe alta, onde se encontram condomínios residenciais de alto padrão, shoppings, clínicas, parques, etc.; e a zona norte é conhecida pelos bairros residenciais, desfavelamentos, altos índices de criminalidade, tráfico, etc. Um lado da cidade conta com aparelhos públicos de qualidade, enquanto o outro sofre com a falta deles. Um lado é remetido a problemas nos noticiários e o outro a altos padrões de vida e consumo. Figura 3: Mapa da cidade de São José do Rio Preto 39 Orlandi (2007), citando Touraine (“Face à l’exclusion”, 1991), afirma que atualmente não se verificam mais as divisões de classes verticais (as pirâmides sociais) em que os sujeitos seriam incluídos ou excluídos. O que existiria hoje seria uma relação não de classes, mas de lugares, horizontalmente, em que os sujeitos não seriam incluídos/excluídos, mas segregados. Ainda segundo Orlandi, em seu livro Cidade dos Sentidos (2004, p. 81), para um analista de discurso, o espaço significa, e a relação dos sujeitos com o espaço é determinante para sua forma de vida. Observe-se como se significam as pessoas segundo vivam em bairros ricos (com seus equipamentos públicos de qualidade) e os bairros pobres (sem condições (...)). Que sentidos de vida pública social estão aí funcionando? A segregação, como temos observado pela leitura do corpus, se faz por meio de discursos em circulação que vão criando, no ambiente da cidade, uma relação tensa entre o Figura 4: Detalhe da Zona Norte 40 socius e o hostis (Orlandi, 2004). Sendo que o hostis é o que deve ficar de fora, é o inimigo a ser evitado. E nossa questão é: como vai se constituindo o sujeito-morador desses espaços da cidade, ou seja, de alguns bairros da Zona Norte, tendo em vista esses discursos. Pelas análises dos textos dos alunos, percebemos as marcas dessa separação entre socius e hostis, de como “os de dentro” veem e são vistos pelos “de fora”. Note-se como não se trata mais apenas de classes sociais separadas verticalmente, mas de sujeitos separados também horizontalmente por zonas/ regiões espaciais e, por que não, de sentido? Na sequência, apresentaremos as análises das redações divididas em quatro seções: 2.1. Operadores argumentativos: os efeitos de sentido nas regularidades do mas e do só que; 2.2. Discurso indireto: o outro, o fora; 2.3. O espaço e os sujeitos: a escola, a rua e o centro esportivo; 2.4. O não-verbal: autoria e resistência. Essas seções de análise visam a compreensão do funcionamento da alteridade, da fragmentação e da resistência enquanto possibilidade da superação da fragmentação. Em todas essas seções observaremos como se dá o jogo entre o eu/o outro, o dentro/o fora, ou seja, como a alteridade funciona na constituição da imagem que os alunos sujeitos-moradores do bairro têm de si e do bairro. Para tanto, procuramos trabalhar sempre a relação constituição/ formulação (ORLANDI, 2001; 2002a), exposta anteriormente (p.16). 2.1 Operadores argumentativos: os efeitos de sentido nas regularidades do mas e do só que Orlandi (1998) discute a questão da argumentação na Análise de Discurso. Para a autora, é preciso pensar a argumentação em relação aos sujeitos, ao político, à história e à ideologia. Esclarecendo que, pela noção de político, entende-se que o sentido é sempre 41 dividido, “sendo que essa divisão tem uma direção que não é indiferente às injunções das relações de força que derivam da forma da sociedade na história” (p. 74). A autora distingue duas posições diferentes sobre a argumentação na linguagem: uma que defende que a argumentação é constitutiva e outra que diz que ela é um ornamento do dizer. Posicionamo-nos contrários ao ponto de vista retórico clássico, segundo o qual a argumentação é ornamental, e nos colocamos ao lado de posições que veem a argumentação como um funcionamento da língua, constituída pelo interdiscurso e analisável por meio do intradiscurso, em suas marcas linguísticas. Distanciamo-nos assim também de posições teóricas que veem a argumentação como uma função da língua, a função persuasiva “produto da evolução da humanidade e das sociedades” (ZOPPI-FONTANA, 2006, p.194). Orlandi (1998,p.80) propõe que a argumentação seja analisada como parte da materialidade do texto, como sendo trabalho sobre o domínio da organização (empírico- formal) do dizer e não da ordem (linguístico-discursiva), portanto, não afetando a posição discursiva do sujeito. Para que a posição do sujeito fosse alterada, seria necessário um deslocamento no nível da constituição, mas segundo a autora, o jogo da argumentação se dá no nível da formulação. Guimarães (1987), em um estudo argumentativo das conjunções da língua portuguesa, analisa, entre outras, o mas. O autor desenvolve suas ideias baseado nas propostas de Ducrot e da Análise de Discurso pechetiana e coloca-se a partir da Semântica da Enunciação, considerando que o enunciado “produz efeitos de sentido, segundo as condições histórico-enunciativas em que ele aparece” (p.18). Os efeitos de sentido são observados pelo “cruzamento das regularidades semânticas e gramaticais e dos traços situacionais mobilizados pelas regularidades” (p.18). 42 Ao longo das análises dos recortes em que funciona o operador “mas”, Guimarães (1987) salienta a representação do sujeito da enunciação e o caráter polifônico da enunciação. O autor trabalha com as noções de Locutor (L) e de Enunciador (E), sendo que: - Locutor: “é aquele que se apresenta com eu na enunciação, representando- se, internamente ao discurso, como o responsável pela enunciação em que ocorre o enunciado. O locutor é uma figura constituída internamente ao discurso e marcada no texto pelas formas do paradigma do eu.” (p.21); - Enunciador: “é a posição do sujeito que estabelece a perspectiva da enunciação.” (p.22). A partir dessas duas categorias e baseado no conceito de polifonia de Bakhtin, Guimarães (1987, p.22-23) afirma que uma enunciação pode ser considerada como polifônica sob dois aspectos: i. quando o recorte7 representa mais de um locutor para o enunciado (p.ex.: discurso relatado); ii. quando a enunciação representa mais de um enunciador no enunciado, mais de uma perspectiva enunciativa (p.ex.: negação). Em trabalho posterior, Guimarães (2005) extende a reflexão expondo a diferença entre os tipos de enunciadores. O autor destaca: i. o enunciador individual, como “a representação de um lugar como aquele que está acima de todos, como aquele, que retira o dizer de sua circunstancialidade” (p. 25); ii. o enunciador genérico, em que “um todos que se apresenta como diluído numa indefinição de fronteiras para o conjunto desse todos” (p. 25); iii. o enunciador universal, ou seja, ‘um lugar que significa o Locutor como submetido ao regime do verdadeiro ou falso” (p. 26). 7 Apóia-se em Orlandi (1983, 1984) para afirmar que o recorte é “uma unidade discursiva”, “um fragmento da situação discursiva”. 43 O quadro abaixo, organiza a relação entre os lugares sociais (locutor) e os lugares de dizer (enunciador) colocados em jogo na cena enunciativa8, baseado nas reflexões de Guimarães (2005): Lugares sociais do L, papéis enunciativos: locutor-brasileiro, locutor-presidente, locutor-jornalista, locutor-professor, locutor-índio, etc. Locutor Lugares de dizer, lugares de enunciação, enunciadores: enuncidor-individual, enunciador-genérico, enunciador-universal Díspar a si mesmo Não empírico Figura 5: Lugares sociais e lugares de dizer na cena enunciativa Na análise das redações que compõem o corpus, destacamos o funcionamento do “mas” e, em alguns casos, do “só que” em que esta expressão funciona de modo semelhante ao “mas”. Essas conjunções funcionam opondo discursos sobre o bairro, sendo que um é sustentado pelos alunos-moradores da Zona Norte e o outro pela antecipação do senso comum e estão em relação polêmica, em disputa pelos sentidos. De acordo com Orlandi (2002, p. 39), segundo o mecanismo da antecipação, todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor “ouve” suas palavras. Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte. Este espectro varia amplamente desde a previsão de um interlocutor que é seu cúmplice até aquele que, no outro extremo, ele prevê como adversário absoluto. Dessa maneira, esse mecanismo dirige o processo de argumentação visando seus efeitos sobre o interlocutor. 8 Guimarães (2005, p. 23) afirma que a cena enunciativa “se caracteriza por constituir modos específicos de acesso à palavra dadas as relações entre as figuras da enunciação e as formas linguísticas”. 44 Desse modo, o “mas” e o “só que” marcam a complexidade enunciativa do corpus, como pista da alteridade que compõe o discurso do aluno-morador sobre seu bairro em relação ao discurso do outro que é antecipado e introduzido pelas referidas conjunções. Vejamos9: 1. As casas não [são] as de um condomínio de luxo, mas o importante é que cada um tem a sua. (10) À esquerda do “mas” temos um enunciador que fala de fora, a partir do senso comum que se construiu sobre a Zona Norte, ou seja, de acordo com o discurso do outro nenhuma casa do bairro supracitado pode ser comparada “as de um condomínio de luxo”. Percebemos, à direita do “mas”, o enunciador-morador que traz para dentro de sua discursividade a voz do outro. O enunciado mostra-se polifônico, então, pela presença de mais de um enunciador na mesma enunciação. No momento em que o morador fala do discurso de dentro, ele observa que os moradores da Zona Norte têm casas, sem especificá-las, como pode ser observado em: “o importante é que cada um tem a sua”. Com isso, o operador argumentativo “mas” tem a função de trazer para o discurso as características dadas pelo outro às casas do bairro, ou seja, a antecipação do imaginário do interlocutor que está de fora. Semelhante ao que ocorre em: 2. minha escola é um pouco pirigoso só que é muito legal (62) 3. O bairro onde eu moro é muito legal, gostoso e divertido só que as vezes nos deixa desepisionado com o que fazem (88) 9 As redações foram aqui reproduzidas ipsis litteris e a numeração ao final de cada trecho refere-se ao número da redação, tal qual foi classificada no conjunto do corpus. Os textos digitalizados podem ser consultados na íntegra no CD que segue em anexo. 45 Nesses casos também há a voz do outro atravessando o dizer do sujeito- morador e os enunciados são ligados pelo “só que” que funciona aqui de modo semelhante ao “mas”. Observamos que no enunciado 2, o morador-enunciador do bairro dá à escola o sentido de “muito legal”, enquanto que, a voz do outro, que está a esquerda do operador enunciativo “só que” antecipa, por meio do locutor, o senso comum do outro que significa a escola como “um pouco pirigoso”. Já no enunciado 3, o morador-enunciador significa o seu bairro como “muito legal, gostoso e divertido”, enquanto que o hostis, a voz do outro, que aparece do lado direito do operador argumentativo “só que”, aparece no discurso, também por meio da antecipação do locutor, como aquele que faz algo que “nos deixa decepcionado”. Os sentidos para “bairro” nesses casos estão em disputa. O discurso dos alunos é, como mostrado acima, atravessado pelo do outro, por aquele que olha de fora, pelo sentido do senso comum. Constitui-se na relação de negação do dizer do outro, que intervém como pré-construído. Percebemos que há efeitos de sentido estabelecidos pela antecipação do senso comum em oposição aos sentidos estabelecidos pelo enunciador-morador por meio de regularidades de traços semânticos que são sustentados pelos operadores argumentativos “mas” e “só que”. Já, nestas outras sequências abaixo, percebemos casos em que, usando o “mas”, o aluno-morador da Zona Norte vai construindo a imagem do que ele gostaria que fosse o bairro. Essa imagem condicional feita do bairro pode ser observada por meio do emprego de verbos no modo/tempo que expressam esse desejo: i. no imperfeito do indicativo (eu queria que); ii. no imperfeito do subjuntivo (parace, liberace, fosse); futuro do pretérito do indicativo (poderia ter). 4. Mas eu queria que na minha rua parace de enpenar de moto e parace de maconha. Mas eu queria que o prefeito liberace a vacina contra a miningite para toda a zona norte, mas eu queria que a zona norte fosse melhor não aquelas 46 pessoa que fica reparando os outros (...) Ah, poderia ter mais delegacia e mais comercio, mas eu acho que se tivesse esses comercio seria tudo roubado né. Fim. (93) Através de projeções imaginárias, o sujeito define o bairro pela falta. As faltas mostram como o bairro é e como o sujeito gostaria que fosse, de acordo com o seu imaginário de bairro, embora a sequência termine com a reflexão do sujeito sobre as consequências, como se ele confrontasse o imaginário que ele tem de bairro à imagem do outro sobre o bairro que se lhe apresenta. Percebemos, então, que, nessa sequência, o operador “mas” traz para o discurso tudo o que não é formulado pelo morador-enunciador, ou seja, enquanto exprime o seu desejo, traz para o discurso o imaginário que, nesse caso, ele e o outro fazem do bairro em questão. Isso pode ser observado, por exemplo, em “Mas eu queria que o prefeito liberace a vacina contra miningite”. Ao usar o operador “mas” para significar um desejo, o morador- enunciador traz para o discurso o senso comum de que, nos bairros da Zona Norte, a saúde é precária e não há vacinação para a prevenção da meningite. Na seção a seguir, outra marca de alteridade será analisada em busca da compreensão da constituição do sujeito-morador e dos sentidos para bairro: o discurso indireto. 2.2 Discurso indireto: o outro, o fora Na sequência das análises notamos que, além de trazer a voz do outro para o fio de seu discurso por meio do operador “mas” (“só que”, eventualmente), o outro também aparece em algumas expressões que introduzem o discurso indireto. O morador-enunciador traz, para o seu discurso, a presença do hostis no eixo da formulação por marcas linguísticas 47 como eles falam, quem é de fora fala que, gente de fora, muita gente que não mora na Zona Norte fala que. Vejamos os trechos abaixo: 5. Quando meus parentes vem aqui eles acha legal acho ruim quando eles falam mau da Zona Norte porque é um lugar muito bom eu acho a Zona Norte muito bom para si morar emfim acho tudo legal. (55) 6. Meu bairro é muito legal mas quem é de fora falaque ele é pirigoso e cheio de pirigo mas só que as drogas tem em qualquer lugar (62) 7. Meu bairro é muito calmo, não vê ninguem fumando droga e muito difícil sair briga e tem um pasto lindo, mas só que vieram gente de fora e queimaram tudo. Eu moro na avenida, tenho muitas amizade etc...muita gente que não mora na Zona Norte, falaque é muito ruim que só vê gente fumando, mais meu bairro é diferente. (63) Percebemos, no enunciado 5, que os sentidos dados ao bairro pelo morador- enunciador vão contra os sentidos dados pelo outro, pelo que está de fora. Para o morador do bairro, o lugar Zona Norte é significado como “um lugar muito bom” onde ele acha “tudo legal”. É interessante destacarmos o uso do termo “tudo”, uma vez que, no referido discurso, os sentidos negativos para o bairro estão apenas na significação dada pelo outro, como vemos em “acho ruim quando eles falam mal”. No enunciado 6, temos, assim como no enunciado 5, marcas linguísticas que trazem sentidos negativos à Zona Norte somente por quem está de fora. Para o morador- enunciador, o bairro “é muito legal” e “quem é de fora fala que ele é pirigoso”. Além disso, o morador usa o operador argumentativo “mas só que” para mostrar que os sentidos negativos dados, pelo senso comum, à Zona Norte também são encontrados em outros lugares, como vemos em “mas só que as drogas tem em qualquer lugar”. O morador da Zona Norte, nesse caso, tenta trazer para dentro de seu bairro os sentidos positivos que o senso comum dá aos bairros da Zona Sul como “muito legal” e leva o sentido negativo “das drogas” para “qualquer lugar”, inclusive para a Zona Sul. 48 Já o enunciado 7, além de mostrar sentidos positivos para a Zona Norte, traz quem está de fora como aquele que faz do bairro um lugar ruim. Podemos perceber isso em “vieram gente de fora e queimaram tudo”. Para esse morador-enunciador, o seu bairro “é muito calmo, não vê ninguem fumando droga e muito difícil sair briga e tem um pasto lindo”. Na sequência, esse mesmo morador traz novamente o outro como o que faz do bairro um lugar ruim: “muita gente que não mora na Zona Norte, falaque é muito ruim que só vê gente fumando, mais meu bairro é diferente.” As argumentações dos alunos-moradores da Zona Norte seguem no sentido de se oporem às do outro, daquele que não pertence à Zona Norte. Esse outro vai se manifestando no fio do discurso desses sujeitos através da incorporação de já-ditos sobre a Zona Norte. Vão constituindo a imagem que esses sujeitos têm da Zona Norte pela própria refutação desses já-ditos que lhe atravessam o discurso. Na seção a seguir, continuaremos trabalhando a alteridade do corpus como ponto de observação da constituição dos sujeitos moradores e dos sentidos de bairro. O enfoque, entretanto, recairá sobre questões relativas ao espaço. 2.3 O espaço e os sujeitos: a casa, a escola, a rua e o centro esportivo Pensar a cidade discursivamente passa por pensar o espaço como significante, não como pano de fundo das análises. Orlandi (2004), ao pensar sobre a materialidade significativa da cidade, reflete sobre algumas noções de espaço, numa tentativa de deslocá-las do campo da geometria e da matemática, do empírico e do abstrato em favor do discursivo. A autora propõe, assim, uma definição de espaço urbano:“Esse espaço material concreto funcionando como sítio de significação que requer gestos de interpretação particulares. Um espaço simbólico trabalhado na/pela história, um espaço de sujeitos e de significantes.” (p.32) 49 Em trabalho anterior (MARTINS, 2007) sobre dicionários infantis de língua portuguesa, apontamos, apoiados nos estudos de Smolka (2002), que a família e a escola se colocam como os loci específicos onde a infância se dá, produz sentidos, como lugares de cuidado, educação e ensino. Nas redações, pudemos perceber que a família não aparece destacadamente, mas sim a escola, a rua e o centro esportivo. Notamos que esses são os espaços onde os alunos-moradores se apóiam para falar de si e do bairro. Em alguns casos, a família e a igreja aparecem, mas a escola, a rua e o centro esportivo são os espaços de apoio, onde se dão as relações de sentido para esses sujeitos.Embora a família, bem como a escola ou centro esportivo, não estivesse mencionada na proposta motivadora à produção, chamou- nos a atenção sua presença de forma tão discreta. 8.Mas por outro lado é aqui que eu tenho amigos, bons vizinhos. E agora construíram um centro poli-esportivo, que é uma boa opção de lazer.(10) 9. Na manhã, logo cedo, já se encontram pais ou irmãos levando as crianças à escolas e creches. (28) 10. Meu bairro é munto violento mas eu gosto daqui o sentro esportivo e muito legal não tem maloquero só vem gente legal. Quando eu venho para escola em ceguro. Quando eu saio tabem fico em ceguro por que tem um monte de maloquero. Naminha rua é legal não tem munto maloquero. (54) Podemos notar então, por meio de marcas linguísticas, na formulação dos discursos, que os lugares em que os moradores se significam com o socius são “centro poli- esportivo”, “escolas e creches” e a “rua”. São espaços públicos onde os sujeitos se identificam e significam como percebemos na última sequência discursiva em que o sujeito grafa “naminha rua”: a escrita equívoca marca o grau de relação de pertencimento do sujeito com o espaço. Ao levarmos em consideração o conceito de lugar comum em relação ao de senso comum proposto por E. Orlandi (2004) em que o lugar é “comum não porque é banal, 50 mas porque é público e se faz na quantidade, que se instala em um espaço de convivência, de experiência pública. De opinião”, pensamos os lugares “centro poli-esportivo”, “escolas e creches” e a “rua” como lugares específicos a que esses sujeitos pertencem. A relação entre a imagem que se constrói do bairro e a constituição dos alunos tomados enquanto sujeitos-moradores da Zona Norte é tão forte que na redação 90, após falar sobre o bairro, o aluno diz “Essa é a minha história”. Percebe-se que a história do bairro e a do próprio sujeito de fato se fundem simbolicamente ao ponto de ele relatar como sua a história do espaço onde vive, do seu bairro com letras maiúsculas “Meu Bairro”: 11. Eu vou começar falar do Meu Bairro o Bairro onde eu moro é bonito, mas algumas pessoas são tão porcas que jogam lixo na rua, a minha rua tem gente bom e ruim, mesmo assim minha rua é movimentado, eu e meus colegas jogam bolas. A nossa região é sempre a Zona Norte é muito movimentada tem gente que roba, tem maconheiro etc..., Vou falar de algumas casas, essas casas são bonitas daqui do Santo Antonio. Vou falar um pouco de mim eu e meu irmão gosta de brincar aqui no centro esportivo, porque ali tem quadra, campo, vôlei na areia, baskete e ginástica. O lugar mais interesante onde eu vivo é minha casa junto com minha mãe e meu padastro, as pessoas com quem eu vivo são legais eles compram coisas para mim e meus irmãos o nome deles é D., l. e eu as pessoas com quem eu moro tem respeito, são educadas e cinceras. Essa é minha história. (90) Ainda pensando na relação entre o lugar comum podemos perceber, na redação a seguir, algumas relações com espaços públicos específicos onde os sujeitos significam: Na manhã, logo cedo, já se encontram pais ou irmãos levando as crianças à escolas e creches. Aqui no bairro, para você ter informações, vá a rua 50, que lá é bem movimentada e você pode saber onde é que você quer ir. As pessoas não são tão hospitaleiras, mas aqui há comunhão. O grande passatempo dos jovens é a lan-house, mas, também há outros onde pode se divertir, como o ECO* (se você gosta de esportes), mas se você gosta de percussão entre para a fanfarra Darcy Ribeiro, que também é uma grande diversão dos jovens. É um lugar bom de se viver mas, ás vezes acontecem coisas ruins, que são comentadas em toda a cidade. * Um centro esportivo onde há projetos e internet. (28) 51 Apesar de vários lugares serem citados, há uma enumeração mostrando ao interlocutor os lugares comuns a serem frequentados: escolas, creches, lan house, Eco, Fanfarra, rua 50. Há apenas descrição de coisas boas quando se fala dos “lugares”. No entanto, quando o morador-enunciador demonstra as coisas ruins do bairro, ele fala de pessoas “pessoas não são hospitaleiras”, “coisas ruins são comentadas” [por pessoas]. Há, também, uma relação espacial interessante quando se coloca a cidade em relação ao bairro. A cidade, como um todo, está no imaginário do senso comum e significa a Zona Norte, a partir da antecipação do interlocutor, como lugar onde existem coisas ruins, como percebemos no trecho “É um lugar bom de se viver mas, ás vezes acontecem coisas ruins, que são comentadas [por pessoas] em toda a cidade.” A seguir, enfocaremos a relação entre o verbal e o não-verbal, observando o modo de estar presente da polícia, enfocando a a resistência que atravessa o discurso dos alunos tanto no desenho, que veremos abaixo, como em alguns recortes verbais das redações. 2.4 O não-verbal: autoria e resistência Diante da proposta de redação, um dos alunos produziu uma ilustração, ou seja, um texto não-verbal, com características de grafites. Acompanhando esse texto não-verbal, o aluno escreveu: “Polícia civil abusa da autoridade, todo lugar que chega quer enquadrar”. Indagado sobre o seu texto, o aluno apenas respondeu: “É porque é isso que acontece aqui todo dia”. Segue abaixo a ilustração: 52 A partir das questões teórico-metodológicas colocadas no âmbito da Análise de Discurso, considera-se o texto não como produto acabado de um certo gesto, mas como processo. “Não pode ser visto como uma unidade fechada pois ele tem relação com outros textos (existentes, possíveis ou imaginados), com suas condições de produção (os sujeitos e a situação) e com o que chamamos exterioridade constitutiva, ou seja, o interdiscurso, a memória do dizer (o que fala antes, em outro lugar, independentemente)” (ORLANDI, 2001, p.87). Ainda segundo a autora, o texto é visto como “unidade feita de som, letras, imagens, seqüências, com uma extensão dada, com (imaginariamente) um começo, meio e fim, tendo um autor que se representa em sua origem com sua unidade lhe propiciando coerência, não-contradição, progressão e finalidade” (p.90). Recentemente, vários estudos têm-se dedicado a refletir sobre o não-verbal, entre eles: Orlandi, E. 1992,1995; Souza, T. 2001; Neckel, N. 2004; Souza, P., 2001a, 2001b. Figura 6: Ilustração produzida por aluno 53 Importante ressaltar nesse percurso o trabalho de Orlandi (1992) sobre o silêncio, pela abertura que ele produz para os estudos do não-verbal propondo pensar o silêncio traçando “um limite à redução da significação ao paradigma da linguagem verbal. Isto significa propor uma decentração do verbal” (p.52). Essa reflexão advém da crítica que a autora faz a tratamentos dados ao não-verbal por teóricos como Barthes e Benveniste, cujas visões produziriam um certo efeito de transparência do não-verbal, seja colocando a linguagem verbal humana como interpretante por excelência, seja afirmando que todo sistema de signos repassa-se de linguagem verbal humana. Sendo assim, busca-se trabalhar em Análise de Discurso com o não-verbal tomado como processo discursivo, analisando suas condições de produção, empregando-se um dispositivo de análise próprio, não recobrindo-o pelas mesmas metáforas que empregaríamos na análise do verbal, que por sua vez é um processo discursivo diferente, com condições de produção diferentes. Queremos relacionar, nesse caso específico, a questão do não-verbal à autoria. Avançando a partir do que já havia sido elaborado teoricamente por Foucault (noção de autoria ligada à obra), Orlandi (2001) propõe que a autoria seja pensada em relação ao texto, e este em relação ao discurso.“Há função-autor desde que haja um sujeito que se coloca na origem do dizer, produzindo o efeito de coerência, não contradição, progressão e fim. Para mim, a autoria é uma injunção do dizer assim como o é a interpretação: face ao sujeito, todo objeto simbólico deve produzir sentido.” (idem, p.91). Interpelado pela função-autor, o sujeito é posto na origem do dizer e é exposto às injunções sociais e histórias, à normatividade institucional (idem, p.91). E a escola, enquanto instituição sustentada pela escrita/leitura impõe sua própria forma de escrita/leitura, silenciando o que escapa a suas normas, como por exemplo, os grafites e as pichações, assim como desvios ortográficos e gramaticais. 54 Assim, quanto às condições de produção, temos: o contexto da Escola, especificamente a sala de aula, com a presença de duas professoras de língua portuguesa (a responsável pela sala e a professora pesquisadora), um conjunto de alunos e um pedido de produção textual em papel pautado. Dentro dessa situação, a “norma escolar” a que os alunos estão habituados produz uma injunção a que se faça um texto em linguagem verbal, com correção gramatical, coerência, coesão, título, boa caligrafia, etc. Preocupações que alguns alunos expressaram diretamente nos textos. Mas um em particular, num gesto de resistência, produz em texto não verbal, na estética do grafite, simbolizando a relação entre os policiais e os civis. O aluno em questão assume uma posição de autoria frente àquela injunção à significação tal que foge à “norma” escolar. Ele materializa no papel pautado com instruções (na Escola) aquilo que pela “norma” da escrita urbana está nos muros. O papel passa a ser o “seu” muro. Ele assume uma posição no interior de uma formação discursiva tal que a partir dela denuncia/declara o que pensa do lugar onde mora, do bairro onde vive. Quando a injunção diz “escreva” ele resiste e grafita. Há uma transferência10, um trabalho de deslocamento do discurso do grafite dos muros da cidade para a materialidade do espaço institucional escolar. Sendo o grafite tomado como gesto político, artístico e de individualização do sujeito. Há um movimento da escrita urbana para a escrita escolar, com os traços e materialidades daquela sendo empregados no lugar desta. Os traços do grafite produzido pelo aluno inscrevem o policial (representante de um Estado que falta, ou que funciona não pela proteção, mas pela opressão) numa discursividade monstruosa. Seu coturno é quase maior que o sujeito que é segurado. Esse sujeito, por sua vez, é representado pequeno, sem força, sem voz, talvez até sem “escrita” no 10 Orlandi (1997), no artigo “Gramática, gramatização e a emergência dos primeiros gramáticos brasileiros”, define o processo de transferência como sendo marcado pela historicização, por um trabalho de deslocamento; enquanto que o processo de transporte é marcado pela imposição de uma memória sobre outra. 55 sentido institucional. Ao usar a linguagem verbal, o aluno conclui, sem ponto final, sobre os abusos da polícia. Ao levarmos em conta alguns textos verbais, na sequência das análises, podemos relacionar a esse gesto de resistência o processo discursivo que “vira do avesso” a relação polícia-traficante. Ou seja, em algumas sequências percebe-se que há uma inversão, considerando-se a organização da sociedade, entre a polícia e os traficantes, de modo que os primeiros são considerados em alguns momentos a ameaça e os segundos fazem parte do universo dos sujeitos. Vejamos alguns recortes: 12. pra baixo da minha escola tem varios pontos de: cocaína, craqui, farinha e pedra todos são maconheiros mas são pessoas boas. O nosso bairro Santo Antonio é muito mal falado por causa dos ponto de droga, eu reclamo por causa daqueles puliciais filha da puta, arrombado, tem que ter mais segurança. (75) 14. tem alguns maloqueros, mais eles não faiz nada pra ninguém (87) Podemos destacar que os moradores têm uma relação de falta com os sentidos de polícia e segurança pública. Há mais confiança nos traficantes e usuários de drogas que nos policias, como mostramos, especificamente, nos seguintes enunciados: “todos são maconheiros mas são pessoas boas.” e “eu reclamo por causa daqueles puliciais filha da puta, arrombado, tem que ter mais segurança.”. Há uma relação entre o gesto de resistência do texto não verbal com as sequências verbais. 2.5 Considerações conclusivas Os elementos de análise disponíveis nos permitem dizer que o sentido de sujeito para os alunos que são sujeitos-moradores da Zona Norte, bem como os sentidos de bairro para eles, está imbricado ao funcionamento da alteridade. Os discursos outros/ dos 56 outros atravessam, constituindo, como vozes que ressoam de fora, os discursos desses sujeitos. Ao falarem de si ou de seus espaços, seus loci específicos, se baseiam em pré- construídos (violência, tráfico, criminalidade) que eles vão tentando re-significar (“todos são maconheiros mas são pessoas boas”). Ou seja, ao ressignificar a memória, sobre si e sobre o bairro, buscam construir outros sentidos, outros lugares de significação que por vezes não fazem sentido para os que estão de fora, virando, assim, do avesso algumas relações (“eu reclamo por causa daqueles puliciais filha da puta, arrombado, tem que ter mais segurança”). Chamamos a atenção aqui para as relações que eles mantêm com a polícia e com os traficantes, tratada mais acima. 57 3 O SUJEITO-MORADOR E O ESPAÇO URBANO NAS PÁGINAS DO JORNAL O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. (ORLANDI, 2002) No capítulo anterior, nos detivemos na análise das redações produzidas pelos alunos moradores da Zona Norte de São José do Rio Preto. Naquele material do corpus, destacamos o funcionamento da alteridade enquanto marca do discurso desses sujeitos que se vêem significados por discursos outros e na posição de retomar por meio da negação e do operador argumentativo “mas”, esses discursos de fora. Dessa forma, buscam ressignificar o espaço onde vivem, ressignificando, assim, a imagem de si próprios. Criam um espaço de dizer, de onde também é possível significar a Zona Norte da cidade como lugar bom para se viver, onde se estabelecem laços sociais. Neste capítulo, trataremos das análises dos jornais que constam em nosso corpus: Jornal Região Norte e Jornal Diário da Região. Nosso objetivo é compreender como esses materiais constroem sentidos para alguns bairros da Zona Norte da cidade e para os sujeitos-moradores desses bairros. Para refletir sobre o discurso jornalístico, recorremos aos estudos de Mariani (2003, 2006, 2007). Em seus trabalhos, a pesquisadora tem analisado a imprensa no Brasil a partir do ponto de vista teórico e metodológico da Análise de Discurso. Mariani (2006, p.33- 34) propõe considerar o discurso jornalístico como prática discursiva realizada a partir de um efeito ilusório da função do jornal como responsável apenas por uma transmissão objetiva de informações. O discurso jornalístico constrói-se, dessa forma, com base em um pretenso domínio da referencialidade, pois baseia-se em uma concepção de linguagem que considera a língua como instrumento de comunicação de informações. 58 Decorrem daí vários efeitos constitutivos dos sentidos veiculados como informações jornalísticas: objetividade, neutralidade, imparcialidade e veracidade. Operamos com uma visão de língua como lugar material em que se realizam os efeitos de sentido. Aliando-se a relação constitutiva que a Análise de Discurso mantém com a Psicanálise, compreendem-se como possíveis os deslizamentos, as falhas e os equívocos. Dessa forma, o discurso jornalístico também está sujeito ao funcionamento da língua, do imaginário e da memória. Na sequência, analisaremos o Jornal Região Norte, ressaltando seu caráter de jornal local bem como o modo como põe em funcionamento uma dada imagem dos bairros e dos moradores da Zona Norte. O periódico é mensal e tem tiragem média de 5 mil exemplares. Para nossa análise, selecionamos três edições do jornal a que conseguimos ter acesso, dada sua restrita circulação: junho, outubro e dezembro de 2007. 3.1 O jornal local: discurso e mídia de proximidade Ao lado de jornais de grande circulação estadual ou regional, há aqueles que circulam em determinada cidade ou bairro e pretendem representar as necessidades de um grupo específico de moradores. Podem ser jornais de bairro ou jornais comunitários. Discursivamente, entendemos que esses jornais recortam um imaginário de público leitor a partir do qual trabalham na escolha dos fatos a serem noticiados, bem como na formulação das notícias. Ou seja, selecionam as “coisas-a-saber” (PÊCHEUX, 2008, p. 34) que julgam relevantes para os sujeitos leitores. Em seus trabalhos, Orlandi (2006) tem observado os laços sociais que os sujeitos estabelecem entre si, bem como o sentimento de pertencimento. Para a compreensão desses fatos, a autora alude à noção de “esprit de corps”: “ele exige não apenas a expressão de 59 um sentimento de pertencimento a uma comunidade, mas ainda a manifestação de um reconhecimento desse pertencimento” (p.21-22). Dessa forma, podemos dizer que os jornais locais representam, em certa medida, o desejo de pertencimento de sujeitos de uma dada comunidade. Unidos, pela materialidade do jornal, estabelecem laços sociais. Em estudo que contou com o apoio da Prefeitura Municipal