UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO" INSTITUTO DE ARTES – CAMPUS SÃO PAULO LUCA FERREIRA BUSSAMRA ILUSTRADORES SONHAM COM OVELHAS ILUSTRADAS? Uma proposta de ilustração de "Andróides Sonham Com Ovelhas Elétricas?" de Philip K. Dick São Paulo 2022 LUCA FERREIRA BUSSAMRA ILUSTRADORES SONHAM COM OVELHAS ILUSTRADAS? Uma proposta de ilustração de "Andróides Sonham Com Ovelhas Elétricas?" de Philip K. Dick Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciada e Bacharel em Artes Visuais. Orientadora: Profª. Drª. Rejane Galvão Coutinho Orientadora: Profª. Drª. Rita Luciana Berti Bredariolli São Paulo 2022 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. B981i Bussamra, Luca Ferreira, 1996- Ilustradores sonham com ovelhas ilustradas: uma proposta de ilustração de "Andróides Sonham Com Ovelhas Elétricas?" de Philip K. Dick / Luca Ferreira Bussamra. – São Paulo, 2022. 141 f. : il. color. Orientadora: Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho Coorientadora: Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Ilustração de livros. 2. Ficção científica. 3. Imaginação. I. Coutinho, Rejane Galvão . II. Bredariolli, Rita Luciana Berti. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título. CDD 741.64 Bibliotecária responsável: Mariana Borges Gasparino - CRB/8 7762 Para Mel, minha eterna companheira, Neob e David. AGRADECIMENTOS Aos meus pais, por sempre me apoiaram em minha jornada artística e acadêmica. Aos meus avós Neob e David, por ensinarem o prazer de aprender e ensinar. À minha família felina; Cássia, Van e Caíque, por me acompanhar durante todo o processo. À Kelly, pelas revisões, puxões de orelha, parceria e por me ajudar a enxergar minha potência. À Rita e Rejane, por acreditarem em meu trabalho. À Agnus, Giovanna, Luiz e Luiz, pela sorte de cruzar seus caminhos. Aos amigos e professores que direta ou indiretamente contribuíram com a pesquisa, por expandirem meus horizontes e me apresentarem à arte-educação. RESUMO Este trabalho é a pesquisa teórica e prática do meu projeto de ilustrar um de meus livros favoritos. A partir de pesquisas de Anita Novaes Prades, Nilce Maria Pereira, Ailton Krenak, e Gabriela Barbosa de Souto, este trabalho tem como objetivo argumentar como, em um presente comparável a uma distopia de ficção- científica, na qual a imagem é banalizada, e a imaginação, desgastada, a formação de leitores de imagem com autonomia é urgente - e o livro ilustrado não necessariamente é a solução, mas é certamente uma opção. Palavras-chave: ilustração; imaginação; livro ilustrado; ficção-científica. ABSTRACT This work is the theoretical and practical research of my project to illustrate one of my favorite books. Based on the researches of Anita Novaes Prades, Nilce Maria Pereira, Ailton Krenak and Gabriela Barbosa de Souto, this work aims to argue how, in a present comparable to a science-fiction dystopia, in which the image is trivialized, and the imagination, worn out, the formation of autonomous image readers is urgent - and the illustrated book is not necessarily the solution, but it is certainly an option. Keywords: illustration; imagination; picture book; science-fiction. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS FC Ficção-científica PKD Philip K. Dick SUMÁRIO Introdução 8 Parte I - Reimaginando o futuro 12 1 NO FUTURE 13 1.1 A crise também é estética 19 1.2 A imagem como conteúdo 23 1.3 Quem tem medo de livro ilustrado? 26 Parte II - O ilustrar 33 2 Meramente ilustrativa 34 2.1 Texto, imagem, leitor e ilustrador 36 Parte III - Sonhando com ovelhas elétricas 38 3 O futuro do pretérito: os elementos narrativos em "Androides Sonham?" 39 3.1 A estética 40 3.2 A cidade 43 3.3 Os animais 49 3.4 O humano-máquina, a máquina-humana e os "outros" 53 Parte IV - Ceci n'est pas un mouton: expandindo universos 59 4 Do processo 60 4.1 Das referências 108 4.2 Do cobre 110 Considerações finais 117 Referências Bibliográficas 118 Filmografia 122 Apêndice 123 Introdução Meu gosto por ficção-científica nasceu através dos livros, quando ainda criança minha mãe acompanhou minha leitura de "20.000 Léguas Submarinas", de Júlio Verne, durante algumas noites antes de dormir. As ilustrações detalhadas do fundo do mar, do submarino e da lula gigante me encantaram. Minha pré-adolescência e adolescência foram regadas de literaturas fantásticas e de ficção policial, criando um repertório e um gosto pelo mistério e pelo mundo da imaginação, onde o impossível se torna concreto. Lembro-me até hoje do filme que me introduziu a outro de meus gêneros favoritos, o suspense: "Jumanji" . Fiquei tão apavorada que dei uma bronca em 1 minha mãe por sugerir o filme, mas, no dia seguinte, acordei-a animada para revê-lo. O mistério, a adrenalina da perseguição, o impossível e o imaginário tomavam outro formato na tela, diferente daquele na página. Apesar dos livros continuarem por muitos anos como meu meio principal de contato com arte, o cinema passou a ter mais relevância. Mais tarde, na minha adolescência, os videogames reacenderam meu gosto pela ficção-científica. Jogos como "Bioshock" me remeteram ao universo 2 steampunk de Verne que conheci tão cedo, e as narrativas, que nunca me abandonaram, tomaram outra forma quando me sentia verdadeiramente parte da história, controlando os movimentos, diálogos e decisões do protagonista. Esta nova possibilidade narrativa, assim como os estudos de Filosofia na escola sobre a Banalidade do Mal de Arendt, o Existencialismo de Sartre e Fenomenologia de Heidegger me direcionaram para interesses como a condição humana e nossos Filme de 1995, baseado no livro homônimo de 1981 de Chris Van Allsburg, que 1 conta a história de um jogo de tabuleiro que tem ações e consequências no mundo real. Recebeu continuações em 2017 e 2019, nas quais o jogo é um videogame que transporta os jogadores para dentro de seu universo. Jogo de 2007 com estética retrofuturista com elementos que enfatizam escolhas do 2 jogador ao longo do enredo, causando consequências na história. O primeiro jogo da franquia se passa em 1960 em uma cidade submarina, Rapture, construída com o objetivo de se tornar uma utopia. Um dos seus atrativos são injeções que alteram o DNA de seus moradores, dando-lhes super poderes; estas causaram o caótico declínio da cidade. 8 relacionamentos interpessoais - que, por um tempo, até segui erroneamente como uma possibilidade de carreira. Figura 1 - edição de 20.000 Léguas Submarinas, com ilustrações de Paul Wright Figura 2 - panorama da cidade Rapture, em Bioshock Assim, quando vi "Blade Runner" pela primeira vez, já era certo um caso de amor. Este é a adaptação cinematográfica de 1982 de "Androides sonham com ovelhas elétricas?", livro de ficção científica escrito por Philip K. Dick em 1968 que retrata um futuro distópico da humanidade e do planeta Terra. 9 A história conta um trecho da vida de Rick Deckard, funcionário público com a função de "aposentar" andróides que vagam ilegalmente na Terra, abandonada por muitos após uma última Guerra Mundial ("Guerra Mundial Terminus"). O enredo explora o conflito, "o problema em diferenciar um humano autêntico de uma máquina reflexiva, que eu chamo de andróide" (PKD apud SAMMON, 2007, p. 244), como coloca o autor, e outras temáticas como empatia, moral, e relações entre o humano, máquina e natureza. Em anos recentes, revisitei o filme e me interessei por conhecer o livro; comprei uma opção barata de "Do androids dream of electric sheep?", uma edição em paperback. Os cenários e personagens, já tão marcantes na adaptação ao cinema, se destacam ainda mais nas palavras de PKD, e os temas que são minimizados na narrativa do cinema deixam a história e suas metáforas mais densas e complexas. Decidi buscar uma edição mais bonita para ter como residente permanente na minha seleta estante - e, de preferência, uma ilustrada com os cenários cobertos de poeira radioativa, semelhantes em sentido narrativo mas tão visualmente destoantes da ininterrupta chuva de Blade Runner, cujo poster estampa a capa da minha edição paperback. Figura 3 - capa da edição Blade Runner 10 Foi minha busca por essa versão que me motivou a escrever e produzir este Trabalho de Conclusão de Curso. Encontrei apenas uma edição ilustrada, da Editora Aleph, celebrando 50 anos da publicação do livro, com 10 ilustrações de diferentes artistas, e, ao folhear o livro, percebi que o meu desejo era, na verdade, explorar meu imaginário e produzir minha própria versão. Este trabalho é a pesquisa teórica e prática do meu projeto de ilustrar um de meus livros favoritos. De forma irônica e assombrosa, o futuro retratado em "Andróides Sonham?" e "Blade Runner" se passa, respectivamente, em 2021 (em edições mais recentes) e em 2019. Este "futuro do pretérito" mescla-se com a distopia da realidade atual. Durante a primeira parte deste trabalho, procuro entender o papel da imagem neste presente - tendo em vista o contexto atual de des-governo em meio a uma crise social, em meio a uma crise econômica, em meio a uma crise sanitária, em meio a uma crise política. Na segunda parte, o assunto se volta para a ilustração e sua relação entre texto e leitor; procuro entender a relação entre o livro ilustrado e a imaginação e seu potencial transformador. Na terceira parte, procuro descrever e analisar alguns dos elementos narrativos que compõem o universo de "Andróides Sonham?", explorando tanto suas representações no livro quanto em outros exemplos da cultura visual, buscando formas de representá-los na linguagem da ilustração. Por fim, a quarta parte acompanha meu processo criativo das ilustrações desenvolvidas. Todas as ilustrações, em seus variados estágios de finalização, encontram-se em ordem no apêndice. Espero que o texto seja tão instigante e inspirador durante a leitura quanto foi durante a escrita. 11 Parte I - Reimaginando o futuro 12 1 NO FUTURE Uma frase atribuída ao roteirista Rod Serling define poeticamente a FC como "o improvável tornado possível" . Isso é o que mais me encanta na FC; um convite à 3 suspensão de descrença e um exercício daquilo que é plausível. Isaac Asimov, criador das leis da robótica e considerado um dos mestres da FC, diz que esta trata de uma sociedade fictícia com desenvolvimento tecnológico predominante (OTERO, 1987, apud SOUTO, 2014, p. 95), o que explica o aparecimento do gênero após a Revolução Industrial: Mary Shelley inaugura o gênero com Frankenstein (1818), e Júlio Verne, escritor também do século XIX, consolida o mesmo na história da literatura. Como a criatura de Shelley, a possibilidade de uma criação consciente, emancipada do criador, quebraria a "hierarquia" compreendida por nós, criadores, e nos tornaria, assim, obsoletos. A FC explora o medo do humano de sua criação sair de controle, como explica Tadeu (2009, apud SOUTO, 2014, p. 8): "Existe no imaginário cultural um medo aparentemente inexplicável de que as máquinas se tornem inteligentes e, portanto, autossuficientes." Como aponta Souto (2014), existem dois aspectos importantes na literatura de ficção científica: a relação entre humano e máquina, e a intertextualidade, o megatexto; como uma teia, o imaginário da ficção-científica é interligado, no qual conceitos e temáticas inaugurados no Século XIX foram reforçados e reimaginados por artistas posteriores. Asimov, em 1987, disse que “a imaginação dos autores está presa ao tempo e à sociedade em que eles vivem” (AMARAL, 2006, apud SOUTO, 2014, p. 95), de forma que as crises tecnológicas exploradas pelos autores se transformam segundo seu contexto histórico. O período da Nova Onda (New Wave), seguindo a classificação de subgêneros de Amaral (apud SOUTO, 2014) dos períodos da FC, se inicia na década de 1960, durante os quais as produções da mesma não estão mais preocupadas com uma descrição de uma tecnociência próxima da realidade, sendo muito mais criativas, metafóricas e experimentais. Com a Guerra do Vietnã sendo televisionada na década de 1960 e os consequentes protestos durante o Verão do Amor (Summer of Love), em 1967, as urgências da ficção-científica se Fala do narrador no episódio "The Fugitive" (1962), da série "The Twilight Zone", 3 escrito por Serling. 13 expandiram para além das ciências exatas; os New Wavers (escritores da Nova Onda) passaram a introduzir problemáticas das ciências sociais como ecologia e conflitos raciais e sexuais. (SOUTO, 2014). O livro "Andróides sonham?" nasce neste contexto, em 1968, durante o qual PKD acreditava que "nos tornamos tão maus quanto o inimigo" (PKD apud SAMMON, 2007, p. 243), em referência à Guerra do Vietnã, e aborda questões sociais além das tecnológicas. Junto com Blade Runner, inaugura outro subgênero, o Cyberpunk (décadas de 1980 e 1990), que, como diz Fernandes (2006, apud SOUTO, 2014), desconstrói a narrativa especulativa tradicional e a substitui por uma combinação entre a atitude punk e a integração tecnológica. Filho dos anos 1980, o Cyberpunk tem como características "a) a convergência de dois universos convivendo simultaneamente; b) o charme das tecnologias de ponta convivendo em simbiose com o obsoleto; c) a revolta contra o sistema." (SOUTO, 2014, p. 96). Souto (2014) também lembra de um dos slogans do movimento punk, que contribuiu com o gênero: "No Future". Desde o anteriormente citado Verão do Amor, existe uma necessidade de reimaginar, reinventar o futuro, pois se percebeu que o futuro advindo daquele presente seria insustentável. A ficção-científica Cyberpunk explora não só o futuro reinventado, como também as possibilidades do futuro distópico que se via no horizonte - que não está mais tão distante. PKD, em "My Definition of Science Fiction" Just: SF em 1981, (apud SOUTO, 2014), defende que não basta uma história se passar no futuro para ser caracterizada como FC, pois esta pode se passar no presente, em um mundo alternativo. Segundo Bruce Sterling, um dos fundadores do movimento Cyberpunk, [...] os cyberpunks talvez sejam a primeira geração a crescer não somente dentro da tradição literária da FC, mas em um MUNDO VERDADEIRAMENTE DE FC. Para eles, as técnicas da “FC hard” clássica – extrapolação, alfabetização tecnológica – não são só ferramentas literárias, mas um auxílio para a vida cotidiana. (STERLING apud FERNANDES, 2006, apud SOUTO, 2014, p. 97, grifo de Souto). Mais do que um presente alternativo, a ficção-científica pode evidenciar questões do presente real. O próprio PKD, em uma carta a um dos produtores de Blade Runner, escreveu sobre o trecho do filme que viu antes de sua morte; 14 Isso não é escapismo; é super realismo, tão energético e detalhado e autêntico e convincente pra caramba que, bem, depois do segmento [televisionado] eu achei minha atual, normal 'realidade' pálida em comparação. (PKD, 1982, apud SAMMON, 2007, pg 264, grifo nosso, tradução nossa ). 4 Pensar no nosso presente como uma distopia Cyberpunk é algo que não saiu de minha cabeça durante essa pesquisa. Com os videogames e computadores, a tecnologia adentrou cada vez mais nas casas. Em 1990, as casas começaram a se conectar via internet. O Gameboy (1989) - um de meus consoles favoritos - foi revolucionário na história do videogame, sendo até hoje o terceiro console mais vendido da história, com mais de 118 milhões de unidades vendidas . Vendido em 5 conjunto com Tetris, o Gameboy foi sucesso entre jovens, adultos e idosos; uma febre que cabia no bolso. Hoje, a alfabetização tecnológica, como nomeia Sterling, está cada vez mais presente, e desde cedo; em 2022, nos Estados Unidos, cerca de 25% dos usuários do aplicativo TikTok têm entre 10 e 19 anos de idade . Ana Mae 6 Barbosa, em entrevista, comenta como os novos alunos "já nasceram digitais"; "Minhas netas de seis anos, cada uma com um celular na mão, não sabem ler e me mandam imagens. (...) Elas se comunicam comigo por imagens." (BARBOSA, 2020, 25 min 13 s). De qualquer forma, a realidade como ficção-científica não se determina apenas por dados, mas sim por como se dá nossa relação com a tecnologia - aspecto que será detalhado mais à frente no texto. Do original: "This is not escapism; it is super realism, so gritty and detailed and 4 authentic and goddam convincing that, well, after the [Hooray for Hollywood] segment I found my normal present-day "reality" pallid by comparison." Dados disponíveis em: https://www.nintendo.co.jp/ir/en/finance/hard_soft/index.html 5 e: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Lista_de_consoles_de_jogos_eletrônicos_mais_vendidos Acesso em: 28 set. 2022 Dados disponíveis em: https://backlinko.com/tiktok-users#tiktok-user-demographics 6 e: https://www.statista.com/statistics/1095186/tiktok-us-users-age/ Acesso em: 28 set. 2022 15 https://www.nintendo.co.jp/ir/en/finance/hard_soft/index.html https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_consoles_de_jogos_eletr%25C3%25B4nicos_mais_vendidos https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_consoles_de_jogos_eletr%25C3%25B4nicos_mais_vendidos https://backlinko.com/tiktok-users%23tiktok-user-demographics https://www.statista.com/statistics/1095186/tiktok-us-users-age/ Figura 4 - mãe ajuda seus filhos a passarem de um nível de "Super Mario Land" no Gameboy, 1989 Fonte: postagem no fórum /r/gaming 7 Disponível em: https://www.reddit.com/r/gaming/comments/vno6n/7 my_mom_helping_me_through_a_hard_level_in_super/ Acesso em: 2 fev. 2023 16 https://www.reddit.com/r/gaming/comments/vno6n/my_mom_helping_me_through_a_hard_level_in_super/ https://www.reddit.com/r/gaming/comments/vno6n/my_mom_helping_me_through_a_hard_level_in_super/ https://www.reddit.com/r/gaming/comments/vno6n/my_mom_helping_me_through_a_hard_level_in_super/ Figura 5 - eu mesma em meu quarto de infância, já em profundo letramento digital, início da década de 2000 Ao reconhecer que vivemos em uma sociedade profundamente conectada pela e à tecnologia, nossa realidade social somente foge da definição de Asimov e PKD de FC por não ser fictícia, pois é caótica e distópica também; e acredito que essa percepção seja facilmente compartilhada por outros corpos dissidentes. Em "Idéias para adiar o fim do mundo", Ailton Krenak aponta como o nosso conceito de "humanidade" é construído e mantido por uma cultura colonial, que justifica o uso da violência e dominação hierárquica baseado em uma "noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra" (KRENAK, 2019, p. 8). Essencialmente excludente, o modo certo de habitar o mundo arranca de seu coletivo de origem toda e qualquer forma de existência destoante, deixa-a despida de referências para sua subjetividade e a empurra para as beiradas, tanto físicas quanto subjetivas. 17 Essa forma de experienciar a realidade é explorada há décadas, por exemplo, pelo afrofuturismo . Em "O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus 8 Afropessimismo - as distopias do presente", Kênia Freitas e José Messias apontam como entrar em contato com o universo narrativo afrofuturista é lidar com sua dupla natureza: "a da criação artística que une a discussão racial ao universo do sci-fi e a da própria experiência da população negra como uma ficção absurda do cotidiano: uma distopia do presente" (2018, pg 7). O reimaginar o futuro - "inspirar novas visões do amanhã" (Yaszek, 2013 apud FREITAS; MESSIAS, 2018, p. 5) - é um dos três objetivos principais nas obras afrofuturistas, segundo a pesquisadora Lisa Yaszek “[...] não apenas relembrar um passado ruim, mas usar as histórias sobre o passado e o presente para reivindicar a história do futuro” (apud FREITAS; MESSIAS, 2018, p. 5). Reivindicar a própria história e vislumbrar a possibilidade de habitar o presente e o futuro com dignidade e liberdade se apresenta como necessidade para aqueles que vivenciam o despencar, como descreve Krenak (2019). Freitas e Messias trazem a afropessimista Hortense Spillers e sua concepção de tempo cumulativo, uma quebra da concepção do tempo linear. “O futuro não é liberado das restrições de ontem, mas sim é o lugar onde o naufrágio do ontem e do agora continua.” (DILLON, 2013 apud FREITAS; MESSIAS, 2018, p. 16). O tempo seria então um circuito fechado, em constante reverberação e ampliação. Desta forma, seriam dois possíveis desdobramentos de futuro; o cumulativo, em um ciclo interminável, e o não linear, que planeja uma desorganização social - o fim do mundo. Os autores propõem, então, um terceiro caminho de fim; não o de finitude, apocalíptico, mas de recomeço: abrir os portões do impossível. Termo - mas não fenômeno - que surge em paralelo/em resposta ao Cyberpunk na 8 década de 1990, quando Mark Dery se questiona aonde estariam os autores negros de ficção especulativa em meio a ascensão do gênero na literatura. Dery (apud FREITAS; MESSIAS, 2018, p. 3) definiu o afrofuturismo como “Ficções especulativas que tratem de temas afro-americanos e que abordam preocupações afro-americanas no contexto da tecnocultura do século XX [...]”, e desde então o termo passou a contemplar não só a população afro-americana, "mas também um pensamento negro africano e diaspórico mundial" (FREITAS; MESSIAS, 2018, p. 3). 18 1.1 A crise também é estética Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim. (KRENAK, 2019, p. 13) Lembro-me até hoje que, quando criança, prometi a mim mesma que jamais deixaria minha "criança interior" morrer; para mim, era ela que alimentava minha imaginação, necessária para manter meu gosto pela leitura e pelo desenho. Não estou sozinha nesse raciocínio: a imaginação costuma ser associada a um mecanismo de de alienação reservado “aos artistas, aos loucos e às crianças” (MACHADO apud BARBOSA, 2012, apud PRADES, 2019, p. 33), em oposição ao raciocínio lógico, associado, em contraste, aos não-artistas, aos não-loucos, e aos adultos. Esta visão dualista é limitadora e insuficiente, além de antiquada. Aqui, me debruçarei no lindo trabalho de Anita Prades, "Trajetórias de um fio de rio: Narrar por imagens no contexto do livro ilustrado". Prades (2019) afirma que, atualmente, no discurso educacional, psicológico e artístico, já é consolidada a perspectiva de que a imaginação é uma parte essencial no processo de construção de conhecimento. Prades cita Machado (2012), que se apoia em relatos de grandes cientistas, como Poincaré e Einstein, que explicitam como a investigação científica se baseia também na intuição e na imaginação: para se chegar ao novo, é necessário a pergunta, o risco, a transgressão do que se dá como certo. Não reservada também aos cientistas, o pensamento lógico e a imaginação estão essencialmente vinculadas; como aponta Johnson Lakoff (1980, apud 19 PRADES, 2019), nossos pensamentos e raciocínios cotidianos envolvem relações e inferências amplamente metafóricas, o que torna a racionalidade imaginativa por natureza. Desta forma, a imaginação não pertenceria à parcelas da população e tampouco se limitaria à um mecanismo de alienação: é “potencialidade humana fundamental para qualquer idade ou atividade; não existe pensamento genuíno sem imaginação” (MACHADO, 2012, apud PRADES, 2019, p. 33). No entanto, enquanto o discurso no meio educacional, psicológico e artístico caminha nessa direção, a cultura de mercado e de massa vem na contramão; estas não somente reforçam a falsa noção de que a imaginação pertence a poucos como também a poda. Se ainda em 1993, como aponta Prades (2019), o filósofo Jacques Aumont considerava a difusão de imagens acelerada e diversificada como nunca antes, a sobrecarga mental dos "mil estilhaços de imagens" que se sedimentam em nossa memória feito depósito de lixo, como descreve Calvino (2001, apud PRADES, 2019, p. 70), só aumentou. Em meio aos estilhaços, encontram-se nossas pequenas vitrines virtuais nas redes sociais, que refletem e aspiram aos outdoors de influenciadores digitais, grandes marcas e canais de comunicação midiática, como a televisão e a internet, que, como descreve Prades (2019), exploram reduzidas possibilidades de representação através de repetições de estereótipos e clichês. "Trata-se de um repertório homogeneizante, muitas vezes absorvido de maneira involuntária" (PRADES, 2019, pg 71). Este processo de homogeneização, planificação e limitação das possibilidades é uma ferramenta e consequência do conceito de Guy Debord de "sociedade do espetáculo", abordada também por Krenak em "Idéias para adiar o fim do mundo", que Giorgio Agamben revisita para descrever a transformação, nas mãos da política e economia capitalista, da mercadoria e do capital em imagem midiática, em uma imensa acumulação de espetáculos; Nessa época de ditadura industrial e consumista em que cada um acaba se exibindo como se fosse uma mercadoria em sua vitrine, uma forma justamente de não aparecer. Uma forma de trocar a d ign idade c iv i l por um espetácu lo inde f in idamente comercializável. (DIDI-HUBERMAN, 2011, apud PRADES, 2019, p. 74). 20 Didi-Huberman (apud PRADES, 2019, p. 73) descreve a cultura de mercado de massa como “ferozes projetores [...], projetores dos mirantes, dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão”, que ofuscam qualquer "lampejo de imaginação", como descreve Prades, o que Didi-Huberman chama de vaga-lumes: sinais humanos de poesia que persistem até mesmo em condições catastróficas. Antes de discorrer sobre os vaga-lumes, a nova situação no Brasil que Krenak (2019) cita para exemplificar o processo de universalização da catástrofe - ou aumento do público que ela atinge - nos apresenta exemplos exacerbados, quase hiperbólicos da "visão profundamente apocalíptica", "da urgência política e estética, em período de 'catástrofe'" (DIDI-HUBERMAN, 2011, apud PRADES, 2019, p. 61); a distopia política, econômica, social e sanitária se expande e se perpetua através de uma crise estética. Este tema tem me assombrado, admito, por anos. Por mais que tenha tentado fugir de escrever sobre ele - talvez por desgaste -, é um importante pilar para essa pesquisa. Surgiu pelas brechas, quase de forma inconsciente, até marcar presença com tamanha veemência que caracterizou este texto como também dedicado à arte-educação. Figura 6 - "Vamos vencer na elegância" Fonte: twitter da então candidata a Deputada Federal Joice Hasselmann 9 Disponível em: https://twitter.com/joicehasselmann/status/1051774951940923392?9 s=20 Acesso em: 30 de jan. 2023 21 https://twitter.com/joicehasselmann/status/1051774951940923392?s=20 https://twitter.com/joicehasselmann/status/1051774951940923392?s=20 "Em Giorgio Agamben, a imagem não passa de pura função do poder e o povo é reduzido à massa de opinião e crença – ou seja, é apresentado apenas como instância negativa, tal qual desprovido de singularidade e complexidade." (PRADES, 2019, p. 75). Essa descrição grita ao analisarmos as afirmações sobre como a crise política atual "também é estética"; a presença política bolsonarista nas redes sociais é composta por montagens bizarras, formatações lamentáveis e imagens de baixa qualidade. Como aponta o semioticista e professor da ECA-USP Vinicius Romanini (2018), o kistch é usado como ferramenta, do ponto de vista semiótico, uma vez que nega uma estética pré-estabelecida como alta cultura pelos artistas e cultos, a intelectualidade do campo artístico. A arte não está descolada das relações de poder da sociedade, ela faz parte delas. O elemento estético é importante, mas a gente tem que contextualizar isso no momento histórico. O que vimos nessa eleição foi a emergência de um novo campo hegemônico na sociedade, e isso implica numa nova estética. (ROMANINI, 2018, apud CAVALCANTI, 2018, online). Antes que me aprofunde demais em uma análise estética da propaganda política bolsonarista, observemos-na como um potente exemplo de "holofote". A influência das redes sociais, em especial o Whatsapp, mas também o Facebook e o Instagram, tiveram influência especialmente alta nas últimas eleições presidenciais, e continuam servindo como fonte de informação . Os "santinhos" políticos se 10 digitalizaram, e acompanham, por vezes, notícias e opiniões; o meme está para o bolsonarismo como os posters estavam para o nazi-fascismo - que também era um projeto estético - e a união soviética em período de guerra. Manter a imagem do homem simples e temente a Deus que evoca empatia do povo é tão essencial quanto a constante referência às forças armadas (ZEFERINO, 2021). Os santinhos digitais alimentam o discurso político, e vice-versa. Dados disponíveis em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/12/12/10 redes-sociais-influenciam-voto-de-45-da-populacao-indica-pesquisa-do-datasenado Acesso em: 1 out. 2022 22 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/12/12/redes-sociais-influenciam-voto-de-45-da-populacao-indica-pesquisa-do-datasenado https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/12/12/redes-sociais-influenciam-voto-de-45-da-populacao-indica-pesquisa-do-datasenado 1.2 A imagem como conteúdo Não somente de um ponto de vista político em um exemplo radical, o poder de influência da imagem na era digital é mais palpável em exemplos cotidianos e (nem sempre) sutis; o surgimento do termo "influenciador digital" e "criador de conteúdo" não são coincidência. O novo modo de habitar o mundo digital eclodiu como consequência da popularização do Youtube; o Youtuber se tornou um meio de comunicação com identidade, nome e salário, apresentando-se também como aspiração de futuro para jovens e crianças. Conforme as redes sociais se expandiram e se conectaram entre si, este título se metamorfoseou para incluir essas outras linguagens, e esta figura se tornou o "influenciador". O mundo criativo também foi fagocitado pelo fenômeno dos influenciadores digitais, e toda e qualquer forma de arte - das mais variadas mídias, não só no universo gráfico da imagem como também a música - foi incluída ao crescente universo das redes sociais em um termo despido de personalidade, genérico e seco: "conteúdo" (STRUTHLESS, 2022). O artista é, em rede, "criador de conteúdo". A banalização da imagem em rede vem em nome, em descrédito do autor e também na velocidade em que é consumida. Vídeos cada vez mais velozes nos são oferecidos em quantidade inesgotável e frenética, sem tempo para real leitura e profunda compreensão. Nosso contato com a imagem tem se tornado progressivamente quantitativo em detrimento do qualitativo. Aguirre (2009, apud Prades, 2019) propõe flexibilizar, ampliar as fronteiras do campo de estudo de arte, e desenvolve sua reflexão sobre a "cultura visual", na qual habitaria o repertório imagético que circula pelos meios de comunicação. Este, como aponta Prades, passou a ocupar um lugar de destaque em nossa experiência visual devido ao crescimento vertiginoso da internet e redes sociais nas últimas décadas, e cita Jacques Aumont (apud NOGUEIRA, 2011, apud PRADES, 2019, p. 69), que constata que muitos “hoje em dia conduzem uma parte da sua vida sob a forma de imagem”. Reconhecer a relevância deste imaginário cada vez mais predominante, seu impacto e influência em nossas vidas é essencial para torná-lo objeto de estudo e ressaltar, novamente, a importância de poder interpretá-lo. Didi-Huberman aponta como, apesar das tentativas dos "reinos" em reduzir os povos, 23 [...] ainda que fosse extrema como nas decisões de genocídio, quase sempre deixa restos, e os restos quase sempre se movimentam: fugir, esconder-se, enterrar um testemunho, ir para outro lugar, encontrar a tangente... (DIDI-HUBERMAN, 2011, apud PRADES, 2019, p. 76-77, grifo nosso). Em uma analogia na ficção-científica, o video-game "The Last of Us" (2013) retrata uma crise sanitária causada por um fungo que transforma seus hospedeiros humanos em carcaças canibais, os Infectados, que resulta em um estado de sítio opressor mantido pelas forças armadas. Os protagonistas, sobrevivendo em meio ao caos, encontram um grupo de guerrilha dedicado a encontrar uma cura através de uma vacina - os Vaga-Lumes, cujo bordão é "procure pela luz". Tal qual grupo de guerrilha, os lampejos de imaginação são os restos em movimento, e, quando organizados, formam constelações. Se nos submetermos a uma tendência apocalíptica que pressupõe a total aniquilação de nossas faculdades imaginativas, estaremos desconsiderando o nosso próprio potencial de imaginação, que nos permite transitar por outros horizontes de interação com o mundo que não somente aquele que nos parece imediatamente imposto. Ora, as “infinitas possibilidades” que constituem a imaginação não seriam justamente razões para a compreendermos não como a vítima fatal do sistema, mas como a alternativa? (PRADES, 2019, p. 77). Didi-Huberman, os Vaga-Lumes, Prades, Krenak e o afrofuturismo nos convidam a olhar para além dos holofotes, "nos instigando a buscar em nós mesmos a nossa humanidade que nos faz vislumbrar as imagens e povos apesar de tudo" (PRADES, 2019, p. 75), pois, independente da potência da "sociedade do espetáculo", tornando-nos vaga-lumes, seria possível formar novamente uma comunidade de desejos. "Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o não da luz que nos ofusca" (DIDI-HUBERMAN, 2011, apud PRADES, 2019, p. 77). Assim como a cultura do mercado de massa se movimentou e se transformou, é necessário também que os vaga-lumes se transformem. Sartre (2013, apud PRADES, 2019, p. 78) observa que a “imagem é um ato e não uma coisa” em 24 oposição ao costume de vê-la como “receptáculo de informações” (DIDI- HUBERMAN, 2012, apud PRADES, 2019, p. 78), não encerrando um significado fixo, mas carregando possibilidades que se constróem através do diálogo com o sujeito, podendo pode se desdobrar para além da assimilação involuntária e inconsciente: Nesse sentido, o trabalho da imaginação pode nos levar a ressurgir, como ligeiros e inapagáveis vaga-lumes, na expansão das brechas desse horizonte dominante, justamente como forma de resistência à tão criticada tendência homogeneizante da atualidade. (PRADES, 2019, pg 78). 25 1.3 Quem tem medo de livro ilustrado? Uma das possibilidades do exercício da imaginação está nas narrativas. A educadora colombiana Yolanda Reyes (2013, apud PRADES, 2019, p. 64) identifica a importância do ensino da literatura como oportunidade para desenvolver a imaginação e a fantasia como ferramentas para decifrar, reinterpretar e transformar o mundo. Esta possibilidade mora, como aponta Prades, no ato da leitura como transcendência do tempo cronológico: uma viagem temporal e espacial "para outra possibil idade de sua existência que não a prescrita pela realidade imediata." (PRADES, 2019, p. 33). A íntima relação entre imaginação e a narrativa nos apresenta um verdadeiro exercício de empatia, da análise de potenciais, de vivência do outro - tanto de si como dos "outros", tanto no presente como em seus possíveis desdobramentos de futuro. A infinitude de possibilidades me remete à ficção-científica e sua exploração de viagens de tempo e/ou espaço, não de forma fantástica mas dentro daquilo que é plausível, como descrito no primeiro capítulo. A imaginação propicia o rearranjo do já conhecido, do já realizado, pelo exercício de relações, que motivam a ativação de nosso repertório imagético, em um movimento de montagens e remontagens, impulsionado – e também impulso, pelas correspondências, analogias, choques. O exercício de imaginação é o de mobilização de nossas relações sensíveis e inteligíveis com o mundo. Cria aberturas ao possível, em desobediência ao artifício de uma linha reta. (BREDARIOLLI, 2014, apud PRADES, 2019, p. 46). Bredariolli aponta o "artifício da linha reta'', se referindo à uma característica fundamental da narrativa, como identifica Jerome Bruner (1997, apud PRADES, 2019); a sequência. Contudo, este encadeamento de elementos e os significados que geram em suas relações - no qual também necessariamente ocorrem mudanças, metamorfoses, como identifica Paul Ricoeur (1981, apud PRADES, 2019) - não pode ser confundido com linearidade. A autora recorre à imagem de uma constelação, remetendo ao movimento da memória, da imaginação, e dos vaga- 26 lumes; analogias e associações em continuidades e rupturas, uma teia com infinitas conexões a serem exploradas. Existiria, assim, na imaginação e na literatura, como desenvolvido pelo afropessimismo, uma infinitude de possibilidades alternativas ao que viria como consequência obrigatória de uma linha reta de continuidade de acontecimentos, pré determinada pela realidade do presente. Prades defende a narrativa como uma das responsáveis para incitar nossa imaginação ao nos mostrar a multiplicidade caminhos nela presentes, "abrindo frestas para as vias inesperadas que até então nunca havíamos considerado" (PRADES, 2019, p. 46). A arte de narrar, no entanto, não se resume à palavra escrita. Da mesma forma que Walter Benjamin (1994, apud PRADES, 2019) explica que esta nasce no diálogo, na palavra falada - e que a mesma, neste formato, estaria em vias de extinção devido ao surgimento do romance, essencialmente vinculado ao livro - a narrativa não só provoca mudanças em seus ouvintes como está sujeita às particularidades de quem a conta; é orgânica, "jamais se enrijece em termos de forma e significação, mas transforma-se continuamente." (PRADES, 2019, p. 54). Desta forma, a arte de narrar não pertence somente à linguagem verbal - seja falada ou escrita - e também pode ser encontrada em outras, como a visual. Da mesma forma que a narrativa escrita explora possíveis configurações metafóricas sequenciais, inventivas e poéticas, a narrativa visual proporciona ao espectador - que também pode ser leitor - o mesmo exercício de interpretações imaginativas. Prades recorre à pesquisadora Sophie Van der Linden a respeito da idéia de "leitura de imagens", termo que podemos utilizar ao reconhecer que, da mesma forma que o texto, "a imagem requer atenção, conhecimento de seus respectivos códigos e uma verdadeira interpretação” (LINDEN, 2011, apud PRADES, 2019, p. 99). Nilce Maria Pereira (2008) exemplifica este potencial na história de "José na casa de Potifar", Livro de Gênesis de Viena, do século VI, que é narrada através de ilustrações com tamanha vivacidade que o leitor poderia compreendê-la sem a necessidade de um texto explicativo, como descreve Kurt Weitzmann (1975, apud PEREIRA, 2008, p. 45). Isto porque o princípio adotado nestas ilustrações "visava que a imagem adquirisse um caráter textual." (PEREIRA, 2008, p. 46). Dentre esses, Pereira (2008) destaca a simulação da passagem de tempo, movimento contínuo e também a sugestão de intervalos entre as passagens 27 representadas, que é própria da linguagem textual, na qual é possível identificar ações dentre as descritas que não aparecem no texto, mas que são inferidas pela sequência lógica dos acontecimentos. A ilustradora Ciça Fittipaldi (2008) elabora a respeito das mesmas características, denominando-as "imagens narrativas": Toda imagem tem uma história para contar. Essa é a natureza narrativa da imagem. Suas figurações e até mesmo formas abstratas abrem espaço para o pensamento elaborar, fabular e fantasiar. A menor presença formal num determinado espaço já é capaz de produzir fabulação e, portanto, narração. […] Se a essa presença formal é conferida uma dimensão temporal, a dimensão de um acontecimento, então a narratividade já está em andamento. Se ao olharmos uma imagem podemos perceber o acontecimento em ação, o estado representado, uma ou mais personagens em “devir”, podemos imaginar também um (ou mais) “antes" e um (ou mais) “depois”. E isso é uma narração. (FITTIPALDI, 2008, apud PRADES, 2019, p. 50, grifo nosso). Estas características são facilmente identificadas em exemplos tão cotidianos quanto as tirinhas de jornais, que hoje também habitam as redes sociais. Estes cartuns são capazes de sintetizar acontecimentos em poucas imagens e, embora muitas vezes acompanhadas por texto, é possível inferir ações dos personagens entre os quadros que não necessariamente contam com um narrador; podem apresentar passagem de tempo - inclusive na continuidade entre tirinhas diferentes, com os mesmos personagens; e movimento. 28 Figura 7 - ilustração de Paulo Moreira Fonte: página do artista no Instagram 11 No exemplo acima, Paulo Moreira, cartunista e ilustrador, narra uma sequência de dança na qual identificamos o movimento do personagem, a passagem do tempo entre os passos, assim como os movimentos que acontecem entre os mesmos. Como o personagem é o conhecido Zé Gotinha, também é possível imaginar o contexto (uma unidade de saúde ou um hospital, acompanhado de outras pessoas, onde possivelmente está tocando música), o que aconteceu antes do momento retratado (uma pessoa se vestindo de Zé Gotinha) e o após (alguém se vacinando) - tudo isso sem a presença de texto. Quando presentes em um livro, acompanhadas de texto, os espaços entre as ilustrações evocam os acontecimentos entre elas, atribuindo às imagens sequencialidade narrativa. Assim como o leitor move seu olho pelas palavras para processar seus significados e identificar o que dizem, o espectador move os olhos Disponível em: https://www.instagram.com/p/CKMC6AiHBYY/ 11 Acesso em: 28 set. 2022 29 https://www.instagram.com/p/CKMC6AiHBYY/ pelas imagens e por entre elas, lendo-as, podendo imaginar o que acontece entre seus intervalos. "Esses recursos levam a imagem a equiparar-se ao próprio texto em termos de capacidade descritiva." (PEREIRA, 2008, pg 48). Como descreve Prades (2019), o livro ilustrado narra também por imagens, sejam elas acompanhadas ou não de texto, extrapolando o âmbito verbal do que se entende como narrativa. Sendo estas possibilidades do exercício de imaginação - imprescindível para nossa vivência e na expectativa de reorganização de futuro e presente -, as ilustrações e o livro ilustrado se apresentam como opção narrativa. Mesmo que sozinhas sejam capazes de exercer a função de narrar, quando acompanhadas de texto podem potencializar o exercício imaginativo de construir relações nas constelações de significados, consequências e possibilidades dos acontecimentos ao expor relações que podem ter passado despercebidas pelo leitor; tal qual vaga-lumes, formando pequenas sugestões de constelações em detalhes que poderiam, em outras circunstâncias, nos ter escapado. Da mesma forma que nos escapam, por vezes, relações outrora ocultas, também fugazes nos parecem os livros ilustrados. Acredito que exista um equívoco no imaginário popular acerca destes; de que são "coisa de criança" - ou melhor, exclusivamente infantis - da mesma forma que a imaginação. A literatura de ficção- científica ou fantástica também sofre este recorte, sendo geralmente associada também à parcelas, por sua vez, os jovens ou adultos seletos, denominados nerds ou geeks - um grupo, segundo minha experiência pessoal, majoritariamente masculino, que ocupa um universo muitas vezes também machista e excludente. Estas crenças, assim como vimos a respeito da imaginação, são limitadoras e antiquadas. Sendo o ato de imaginar algo universal, a narrativa um modo de praticá- la e a imagem uma forma de narrativa, é possível inferir que, por consequência, o livro ilustrado é um objeto passível de habitar todas as esferas humanas, independente de idade ou interesse . 12 Prades identifica um movimento que começa a extrapolar o livro ilustrado no campo da literatura infantil, apoiando-se nas autoras Maria Nikolajeva e Carole Scott quando afirmam que certos escritores contemporâneos de livros infantis não escrevem para crianças, transgredindo estes limites arbitrários. "Esse fenômeno tem Julgo importante frisar como esta é uma possibilidade; há de se pensar, por 12 exemplo, quais seriam as ferramentas de acessibilidade para pessoas portadoras de deficiência visual em um livro ilustrado. 30 chamado constantemente a atenção dos críticos para a questão do público para o qual esses livros são criados" (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, apud PRADES, 2019, p. 102). Um exemplo que me vem à mente são os trabalhos de Shel Silverstein - escritor, poeta, cartunista, compositor e roteirista norte-americano - cujas produções literárias eram direcionadas à crianças, mas que não se limitavam a este público. Dentre estes, "A parte que falta", livro infantil de 1976, recebeu um repentino aumento de interesse no Brasil em 2018, 42 anos depois de seu lançamento, quando Julia Tolezano da Veiga Faria, vlogueira, jornalista e escritora conhecida como JoutJout, publicou em seu canal no Youtube um vídeo compartilhando da 13 experiência positiva que teve com o livro. O público alvo de seu canal são jovens adultos - e, mesmo assim, segundo o G1 , o livro alcançou o primeiro lugar de mais 14 vendidos na Amazon, e o aumento de pedidos às livrarias em mais de cem vezes movimentou a editora Cia das Letras a solicitar a reimpressão do mesmo. Figura 8 - print do vídeo de JoutJout Os "vaga-lumes" da ilustração impressa no universo adulto se encontram tímidos em charges de jornais, revistas, desenhos animados, quadrinhos e graphic Disponível em: https://youtu.be/GFuNTV-hi9M 13 Acesso em: 28 set. 2022 Dados disponíveis em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/jout-jout-faz-o-livro-14 infantil-a-parte-que-falta-ficar-em-primeiro-entre-os-mais-vendidos-no-brasil.ghtml Acesso em: 28 set. 2022 31 https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/jout-jout-faz-o-livro-infantil-a-parte-que-falta-ficar-em-primeiro-entre-os-mais-vendidos-no-brasil.ghtml https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/jout-jout-faz-o-livro-infantil-a-parte-que-falta-ficar-em-primeiro-entre-os-mais-vendidos-no-brasil.ghtml https://youtu.be/GFuNTV-hi9M novels. Há uma rejeição do livro ilustrado em um meio já recheado de imagens, apesar do aparente interesse por parte do público caso lhes fosse apresentado como opção, como podemos inferir pelo exemplo acima. Não posso deixar de especular que o desinteresse na formação de leitores de imagem - ou o interesse na manutenção de uma ignorância, um analfabetismo imagético - esteja ligado ao que foi discutido acerca da cultura de mercado de massa. Quanto menos compreendermos imagens como objeto que comunica, sendo passíveis de leitura e interpretação, mais eficiente a absorção involuntária do repertório propagado. Desta forma, ao mesmo tempo que ler imagens permite o exercício da imaginação e reconhecê-la como fator indispensável para a mudança, a formação de leitores de imagem proporciona uma visão crítica ao que nos é - ou não - oferecido. O livro ilustrado seria então um objeto detentor de um infinidade de possibilidades narrativas, para todos os públicos, que incentivam em nós aquilo que nos é mais humano, - nossa subjetividade, nossa capacidade de imaginar, nossa empatia - não apenas na linguagem escrita, mas também na imagética, cuja relevância em nossa sociedade cresce de forma vertiginosa, comandada por poucos através de algoritmos que visam detenção da nossa atenção, sem a necessidade de compreendê-las de forma profunda ou pensamento crítico, em um processo de banalização e planificação da imagem através de seu esgotamento pela repetição e demérito como objeto de estudo ao chamá-la de "conteúdo". A formação de leitores de imagem com autonomia é urgente - e o livro ilustrado não necessariamente é a solução, mas é certamente uma opção. 32 Parte II - O ilustrar 33 2 Meramente ilustrativa Assim como os livros ilustrados, há uma tendência em desvalorizar a ilustração como forma de arte. A visão pejorativa sobre a ilustração, o design e outras artes gráficas como artes "menores", ou simples "adornos", predomina em decorrência do que o pesquisador Imanol Aguirre (2009, apud PRADES, 2019) descreve como a "velha ideia de arte", concebida como tesouro intocável que pertence atrás de um vidro em um museu. A História da Arte direciona seu olhar para “as produções visuais ditas ‘eruditas’, como a pintura e a escultura, em detrimento de uma expressiva gama de trabalhos que não se ‘enquadraria’ nesses valores” (RAMOS, 2007, apud PRADES, 2019, p. 91). Como vimos anteriormente, reconhecer a relevância do imaginário da cultura visual, cada vez mais predominante, seu impacto e influência em nossas vidas é essencial para torná-lo objeto de estudo e ressaltar, novamente, a importância de poder interpretá-lo. Parte deste preconceito quanto à ilustração vem da perspectiva de que seria complementar em sua essência. Categorizá-la como algo secundário ou supérfluo é limitador, planificando e diminuindo a sua função. Prades (2019) aponta como as duas primeiras definições do dicionário contribuem para a concepção da ilustração como dependente de outra linguagem, especialmente a textual. Esta dependência colocaria a ilustração em um lugar de "esclarecer, explicar ou adornar" (PRADES, 2019, p. 89) algo já existente, em um ato redundante de descrição. "Por que escolher um episódio dramático que já é descrito em todos os detalhes e refazê-lo? Ao invés disso, eu crio algo que irá adicionar à história". (N. C. Whyet apud A. Whyet apud PEREIRA, p. 61, grifo do autor, tradução nossa ). 15 Como discutirei com mais detalhes em breve, a ilustração é um processo interpretativo, que agrega significados e potencializa as narrativas textuais, ao contrário do que se entende como reafirmação do óbvio, que a colocaria na posição de supérflua. Behrendt (1997, apud PEREIRA, 2008, p.50) atribui às ilustrações as possibilidades de expandir, contradizer, ridicularizar, repudiar ou refutar o texto, expandindo o leque de funções que esta pode exercer, sempre em um trabalho conjunto ao texto em desenvolvimento de significados, contribuindo para a Do original: "Why take a dramatic episode that is described in every detail 15 and redo it? Instead I create something that will add to the story” 34 composição. A respeito da função decorativa de adornar o texto, Prades cita a ilustradora Ciça Fittipaldi, que nos lembra de que "decoração" não se refere apenas à beleza; [...] é derivada da palavra decoro, que compreende funções de “formalização” e “adequação” (...) E a decoração é expressiva: não se restringe a agradar a percepção, mas sim a impregná-la e transformá-la, promovendo também um processo de educação da imaginação plástica. (FITTIPALDI, 2008, apud PRADES, 2019, p.96). Este olhar crítico em relação ao que a ilustração - ou o ilustrador - opta por representar do texto também ajuda a desconstruir a ideia comum - a qual, admito, já fui cúmplice - de que estas poderiam limitar a imaginação do leitor, restringindo outras interpretações, impondo um ponto de vista, como aponta Prades (2019). Uma ilustração representa uma possibilidade; que pode impregnar e transformar as interpretações do leitor, trabalhando em conjunto com elas, em soma, assim como a própria ilustração ao texto, construindo outras possibilidades interpretativas - ou expondo ao leitor que existe, ao menos, outra possibilidade de interpretação. A ilustração não se apresenta sozinha no livro; está em constante diálogo com o texto e com o leitor, e, portanto, não se fecha em si. Para a ilustradora coreana Suzy Lee, um critério pessoal para um livro ilustrado bem sucedido é que este deixe espaço para a imaginação do leitor, capaz de “abrir todas as possibilidades de diversas experiências de leitura” (LEE, 2012, apud PRADES, 2019, p. 98). Feito o universo constelar da imaginação e da narrativa, o livro ilustrado não se resume em uma possibilidade. A apresentação de uma opção interpretativa evoca a existência de uma pluralidade, provocando o olhar atento e crítico do leitor às escolhas do ilustrador e às entrelinhas do texto, "uma narrativa que se dá no lugar dos “entres”, nos espaços abertos pela dinâmica estabelecida entre palavras e imagens." (PRADES, 2019, p. 104). Ilustrar é expandir universos. 35 2.1 Texto, imagem, leitor e ilustrador Tratando-se deste projeto, as ilustrações têm, necessariamente, uma relação com o texto literário que as antecedem. Julgo importante explorar como se dá esta relação para que lembremos que a ilustração não está em relação ao texto, mas sim em relação com o texto. É comum a percepção de que a ilustração reproduz o texto, ou seria um equivalente, o que implicaria em uma semelhança entre as linguagens. Apesar da imagem poder apresentar efeitos textuais, como já identificamos com sua capacidade de narrar, Pereira enfatiza que não é o caso; "[...] cada uma possui os seus próprios meios representativos [...] e, principalmente, que não existem limites representacionais entre elas, uma vez que seus significados não são fixos ou estáveis" (THOMAS, 2004, apud PEREIRA, 2008, p. 54). A respeito disso, também, o autor Kibédi-Varga (1999) observa como todo o texto evoca uma imagem, mas nem toda imagem evoca um texto (GUARALDO, 2007, apud SANTOS, 2017, p. 16). Há também uma óbvia relação que se estabelece nesta dinâmica: entre o ilustrador e o texto. Fittipaldi ressalta que, antes de ilustrar, o trabalho do ilustrador é de um leitor atento - aos vaga-lumes, aos significados entre, ao "máximo de seus 'possíveis'" (FITTIPALDI, 2008, apud PRADES, 2019, p. 121); questionar os textos, "andar ao redor deles para ver o que guardam nos bolsos, para nos conectar com o que escondem e usá-los como trampolim e causa para nos atirar na piscina de nossa imaginação" (ISOL apud SOBRINO, 2013, apud PRADES, 2019, p. 124). O ilustrador, seria, assim, um primeiro intérprete do texto; a ilustração seria, portanto, uma forma de interpretação - e, como aponta Prades, não se limita como elemento secundário, mas se apresenta como discurso ativo. A ilustração como interpretação transparece se observarmos como diferentes ilustradores podem escolher momentos diferentes do mesmo livro para ilustrar, e como estas escolhas - não somente estilísticas - variam também de época para época, sendo também fruto de seu tempo. Benjamin propõe a idéia de que a ilustração é, além de uma interpretação, uma tradução inter-semiótica, na qual as rupturas entre as linguagens são assumidas - e celebradas; como descreve Bredariolli, a tradução se daria como uma "conformação amorosa, que deixa à vista os atritos de encaixe, assumindo-os como parte de sua 36 história” (BREDARIOLLI, 2017, apud PRADES, 2019, p. 93). Esta tradução cria novos entres, evocando novos significados, sendo uma co-criação autônoma e recíproca (Campos, 2010, apud PRADES, 2019, p.95), e o ilustrador, "um autor que escreve com imagens." (VILELA apud MOLINERO, 2016, apud PRADES, 2019, p.103). Sendo assim, a ilustração seria fundamentalmente incapaz de reproduzir o texto, pois nasce de um processo de leitura, interpretação e tradução, sujeita a processos no micro, individuais do ilustrador, e no macro, da sociedade. A partir disso, Pereira (2008) traz a ideia de paralelismo; literal, na qual texto e imagem são visualizados lado a lado na página, e subjetivo. Não vejo esta relação como paralela, pois implicaria em duas linhas que não se cruzam, sendo que, neste caso, texto e imagem vivem em constante conversa, num emaranhado de significados em troca. Gosto de pensar neste diálogo como uma profunda relação simbiótica que, por definição, se trata de uma relação a longo prazo entre dois organismos de diferentes espécies - no caso, as linguagens artísticas verbal e visual - que, sendo neste caso essencialmente positiva, é benéfica para ambas as partes. Seguindo a metáfora biológica, o livro ilustrado se apresenta como um terceiro organismo, no qual o resultado "é superior à soma das partes", como descreve Teixeira (2010, apud PRADES, 2019, p. 90). Prades define esta relação como um jogo com diversas dinâmicas e combinações, "da independência à interdependência. Um jogo que dissolve a ideia de uma simples subordinação de uma força à outra, para dar lugar a uma rede de relações potenciais." (PRADES, 2019, p. 90). Prades, por fim, apresenta uma diferenciação entre "livro com ilustrações" e "livro ilustrado", e este projeto se encaixaria na primeira definição, na qual “o texto não depende de ilustrações para transmitir sua mensagem essencial” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, apud PRADES, 2019, p. 105). Nesta definição, as imagens ainda encontrariam-se subordinadas ao texto. O texto não depende das imagens, de fato, mas tendo em vista todo o caminho percorrido - a leitura, interpretação, tradução - e a leitura do texto (no caso, pelo leitor) no contexto atual, acredito inevitável criar este terceiro organismo - pois o livro sem as ilustrações não é o mesmo que o livro com elas. 37 Parte III - Sonhando com ovelhas elétricas 38 3 O futuro do pretérito: os elementos narrativos em "Androides Sonham?" “Um dia, teremos milhões de entidades híbridas que terão um pé em ambos os mundos” (DICK apud SUTIN, 1995, apud SOUTO, 2014, p.92). Finalmente, voltemo-nos ao livro em questão. Minha pretensão - que rapidamente se provou exagerada - era produzir uma ilustração para cada capítulo, mas, antes de adentrar cada pequeno universo da narrativa, é necessário analisar alguns de seus elementos, temas e discussões recorrentes; suas origens, por vez, e como elas são representadas em outras formas de mídia para que ocorra um diálogo tanto com o contexto atual e o imaginário coletivo quanto com minha interpretação. Parte de mim deseja que eu tivesse mais tempo para aprofundar essas discussões, enquanto outra agradece as restrições de tempo e energia para que o texto flua com o foco adequado para a produção das ilustrações; caso contrário, poderia se expandir para uma pesquisa de cunho exclusivamente filosófico a respeito da condição humana. Alguns elementos narrativos como a religião do universo de "Andróides sonham?" (o Mercerismo), mesmo sendo um tema recorrente, são consequências e/ ou parte de um tema maior, e serão exploradas de forma imagética em minha aventura ilustrativa apenas em alguns capítulos. Desta forma, neste primeiro mergulho, tentarei decupar os aspectos que julgo principais e/ou determinantes acerca da forma a representar o universo do livro: a estética (e/ou o contexto), a cidade, os animais, os humanos e os andróides. 39 3.1 A estética Acredito que o contexto, a estética seria o lugar ideal para iniciar, assim os seguintes temas poderiam ser situados de forma consistente e convergente, especialmente no que se diz respeito às escolhas estilísticas; o Cyberpunk, na minha proposta, faz sentido? Para responder esta pergunta, retomei as características que Souto descreveu a respeito desta era. Para mim, foi fácil reconhecer o retorno da estética dos anos 1980: no cinema, nas séries de televisão - principalmente nas produções da Netflix -, músicas - principalmente no Pop internacional, mas não exclusivamente -, popularização de "filtros" fotográficos em redes sociais que simulam granulado de fotos analógicas - tendência iniciada ainda no embrião do Instagram, em 2010, que nunca se dissipou e também chegou à videoclipes. A moda também também foi tocada pelo retorno dos anos 1980 com as pochetes, mas teve sua memória expandida para os anos 1990 e também 2000, não se limitando à década em questão. Este saudosismo estético-cultural também se destaca na própria definição de Souto sobre o Cyberpunk, na simbiose entre a tecnologia nova e a obsoleta e principalmente nos universos que convivem simultaneamente. Na música, artistas como The Weeknd, Dua Lipa, Carly Rae Jepsen e, mais recentemente, Beyoncé retomam ritmos, samples e tendências dos anos 1980, se inspiram e, ao mesmo tempo que emulam, criam algo novo; uma outra leitura da música desta década, produzida com novas tecnologias e para um público jovem . Uma nova trilogia de 16 Star Wars foi produzida, sem abandonar o charme das produções iniciais, mantendo não apenas escolhas estéticas como também atores - os galãs Harrison Ford, Mark Hamill e a galoa [sic] Carrie Fisher, símbolos dos anos 1980, também foram repescados pela mídia. O exemplo mais palpável, no entanto, acredito ser a série Stranger Things; sucesso arrebatador de ficção científica, não apenas se passa nos anos 1980 (com uma caracterização excelente), como lida com conflitos Dos exemplos citados, o álbum Blinding Lights de The Weeknd, Future Nostalgia 16 de Dua Lipa, Emotion de Carly Rae Jepsen e Renaissance de Beyoncé utilizam baterias, baixos e sintetizadores que remetem às tendências musicais dos anos 1980. Vários outros artistas, principalmente do pop internacional, embarcaram no revival da década, explorando a "baixa fidelidade" (lo-fi) musical dos limites da tecnologia da época. 40 tecnológicos nas duas pontas do espectro (walkie-talkies e laboratórios "modernos"), resgatou símbolos dos anos 1980 como Winona Ryder, os posters publicitários da série (que fazem uma clara referência aos de Star Wars), e músicas - como "Running Up That Hill", de Kate Bush, que retornou ao top 100 da Billboard depois de 36 anos , superando a própria colocação no ano de lançamento. 17 De forma generalizada, a estética saudosa, que aborda tecnologias obsoletas convivendo com atuais, já ocupa espaço no imaginário coletivo, estabelecendo aqui mesmo - na nossa realidade - a convivência entre dois universos. Para mim, incorporar a estética Cyberpunk em minha produção das ilustrações é quase óbvio. A questão, no entanto, é como incorporá-la, sem que seja apenas um reflexo do estilo; meu desejo é abraçar a origem e atualizá-la ao contexto em que vivemos atualmente. Um bom exemplo do que procuro fazer é de uma descrição de PKD acerca de Blade Runner, já citada; não de uma ficção, mas de uma realidade aumentada, um hiper realismo. O filme "Não olhe para cima" (2021) fez isso com maestria; uma hipérbole de uma catástrofe real amplificada ao supra sumo do absurdo, que, consequentemente, expõe como o nosso período de catástrofe é vigente. Souto descreve a Los Angeles de Blade Runner como "bipartida não só pela diferença social, [...] mas também por trazer em seu espaço essa fusão de passado e futuro para falar ao espectador no seu tempo presente." (SOUTO, 2014, p. 68). É essa sensação que desejo trazer ao leitor. De forma ampla, a estética Cyberpunk se constrói a partir de uma cidade grande, na qual há "baixa qualidade de vida e alta tecnologia" . A vida em um centro 18 urbano desorganizado e com alta tecnologia é refletida, em várias representações Cyberpunk, em luzes neon, baixa luminosidade, fumaça, lixo e grande concentração de pessoas. Falando-se de específicos - incluindo a cidade -, veremos a seguir os elementos em detalhes, o que acredito que ajudará a trazer clareza à idéia do que quero construir. Para tal, é importante manter em mente esta visão ampla do que Dados disponíveis em: https://www.billboard.com/music/chart-beat/harry-styles-sixth-17 week-hot-100-kate-bush-top-five-1235086411/ Acesso em: 28 set. 2022 Do original: "High tech, Low life". Ketterer, David (1992). Canadian Science Fiction 18 and Fantasy. Indiana University Press. 41 https://www.billboard.com/music/chart-beat/harry-styles-sixth-week-hot-100-kate-bush-top-five-1235086411/ https://www.billboard.com/music/chart-beat/harry-styles-sixth-week-hot-100-kate-bush-top-five-1235086411/ https://www.billboard.com/music/chart-beat/harry-styles-sixth-week-hot-100-kate-bush-top-five-1235086411/ define o Cyberpunk, que trago como exemplo uma imagem do vídeo game Cyberpunk 2077 (2020). Figura 9 - Cyberpunk 2077 42 3.2 A cidade A Los Angeles de "Andróides sonham?" passou por três principais versões: de PKD, no livro; de Ridley Scott, em Blade Runner; e de Denis Villeneuve, em Blade Runner 2049 (2017), continuação do filme original. A LA de PKD é assolada por um êxodo em massa da população após a Guerra Mundial Terminus, que deixou a Terra destruída e praticamente inabitável, coberta em poeira radioativa. A forma como a cidade é descrita e posteriormente interpretada e representada nos filmes levanta uma grande oportunidade para discutir como representá-la nas ilustrações. A imagem de LA em Blade Runner é extremamente marcante, inspirando futuros desdobramentos da cidade Cyberpunk, como vimos no exemplo do vídeo game Cyberpunk 2077. Souto cita Adriana Amaral (2005), que argumenta como a estética tem heranças do sobrenatural gótico, caracterizada pelo confronto entre o sujeito e o espaço arquitetônico. "O ar sombrio, o estranhamento, o sobrenatural e o etéreo fazem parte tanto da arquitetura gótica quanto das cidades decadentes do cyberpunk." (SOUTO, 2014, p. 68). No filme, há um destaque para planos gerais, que ajudam a criar a imensidão da metrópole. Estes cabem em filme, mas talvez não em uma representação numericamente reduzida nas ilustrações deste projeto. A verticalidade, o contraste entre a magnitude da cidade e a pequeneza do humano podem ser incorporados de uma forma mais adequada para a linguagem da ilustração. Souto cita como Scott utilizou referências como Metropolis (1929) e trabalhos do artista Moebius, entre outros, para construir uma cidade vertical como alegoria à fragmentação social, uma "Babel pós-moderna" (SOUTO, 2014, p. 56). É curioso, pra mim, pensar na escolha de Los Angeles como uma cidade verticalizada, dado que, se observarmos vistas panorâmicas da cidade, há uma pequena concentração de prédios; no mais, é uma cidade relativamente horizontal, inclusive com baixa densidade populacional. Claro que o contraste entre presente e futuro ajuda a criar a ilusão de uma cidade futurística e bagunçada, o crescimento desenfreado da população e tecnologia que culminam em uma falta de planejamento urbano. Este estranhamento vem, talvez, pela minha vida toda em São Paulo, cidade que já é muito vertical e com alta densidade populacional. Usar como referência a sensação de viver, ver e circular por São Paulo para construir a LA de PKD me parece uma 43 boa escolha, especialmente se pensarmos na descrição de Souto; "Blade Runner evoca a paisagem do medo. É o lugar do desenraizamento, dos perigos, da perda da identidade, da alienação, de acúmulo e de excessos." (SOUTO, 2014, p. 70). Além disso, adiciono também a solidão. Uma cidade que é frequentemente utilizada para exemplificar a estética Cyberpunk é Tóquio, especialmente a região de Shibuya, com alta circulação de pessoas e luzes neon. Esta e Nova Iorque, com a Times Square, também me parecem bons pontos de partida. A cidade de LA no filme Blade Runner 2049 é construída de forma diferente, sem deixar de evocar as mesmas sensações; paisagens de poeira, baixa visibilidade, e destroços abandonados. A solidão, aqui, é diferente; o espaço é realmente desolado, vazio, desértico. Ao invés da cidade ser personagem, é o vazio; se despe da estética gótica, atualizando essa sensação para uma nova cultura visual, pois o vazio é o equivalente à multidão, hoje; o isolamento, principalmente depois da experiência de quarentena, é mais universalmente reconhecida como solidão do que o acúmulo de pessoas. Figura 10 - Los Angeles em Blade Runner 44 Figura 11 - cruzamento em Shibuya, Tokyo Figura 12 - Times Square, Nova Iorque 45 Figura 13 - vista panorâmica de São Paulo Figura 14 - vista panorâmica Los Angeles em Blade Runner 46 Figura 15 - arredores de Los Angeles em Blade Runner 2049 Figura 16 - Champs Elysees, Paris, em Março de 2020 Fonte: Pascal Le Segretain 19 E a partir disso, como construir essa atmosfera? Uma mistura entre os dois filmes, de uma cidade vertical, luminosa e descuidada, e o vazio abandonado me parece caber em minha interpretação, que é sensível à descrição do livro e às adaptações ao cinema. Pensando na descrição do livro, como vimos, a cidade e a ambientação vivem em constante ameaça de uma poeira radioativa - ameaça Disponível em: https://www.cnbc.com/2020/03/28/scenes-of-cities-shut-down-by-19 the-coronavirus-pandemic.html Acesso em: 30 set. 2022 47 https://www.cnbc.com/2020/03/28/scenes-of-cities-shut-down-by-the-coronavirus-pandemic.html https://www.cnbc.com/2020/03/28/scenes-of-cities-shut-down-by-the-coronavirus-pandemic.html https://www.cnbc.com/2020/03/28/scenes-of-cities-shut-down-by-the-coronavirus-pandemic.html condizente com o período no qual o livro foi escrito, dialogando com a Guerra do Vietnã. Hoje, esta ameaça também se encontra no ar, não como poeira, mas sim como o Covid-19. No livro, as pessoas se protegem da poeira com protetores genitais de chumbo - o que, hoje, poderia ser traduzido para as máscaras. Uma cidade vertical, relativamente abandonada por uma população em êxodo, marcada por uma solidão vazia e com uma ameaça iminente e invisível no ar, que expulsa as pessoas da Terra, nos dias de hoje, está fresca em nossas memórias. 48 3.3 Os animais Os animais, infelizmente, são representados de forma muito breve em Blade Runner, mesmo sendo um tema central na trama de "Andróides Sonham?", aparecendo como cerne do conflito interno de Rick Deckard, o protagonista. A posse de um animal é um dever cívico e símbolo de status social; animais verdadeiros são caros e variam de valor dependendo da espécie e sua escassez. Quem não possui capital para adquirir um animal verdadeiro pode comprar um animal mecânico, projetado para emular com fidelidade o comportamento e visual de um animal orgânico. A busca por um animal verdadeiro é o que motiva Rick a aceitar a missão retratada no enredo. As escolhas sobre como retratar os animais devem ser feitas com atenção e cuidado para transparecer este conflito. Em Blade Runner, a figura central dos animais mecânicos é a coruja presente no prédio da Corporação Tyrell, criadora dos andróides, que também aparece em um momento crítico do enredo do livro. Com mais detalhes no livro, sabemos que a coruja é um animal extinto, um dos primeiros a deixar de existir após a contaminação após a Guerra. A coruja impressiona Deckard em ambas as versões, que pergunta se é um animal real. No filme, a confirmação é imediata; é um animal mecânico - e caro. No livro, há uma construção maior sobre sua dubiedade; o chefe da Corporação tenta subornar Rick com a coruja, alegando ser verdadeira, e só quando Rick nega nos é revelado que é, de fato, um animal mecânico. Essa ambiguidade é, claro, uma alegoria para o próprio conflito entre humanos e andróides. Por esse motivo, as escolhas de representação visual dos animais devem conversar com as escolhas para humanos e andróides. Ridley Scott escolhe o reflexo nos olhos muito específico para denotar andróides, que também utiliza na coruja do filme, sendo esta a única diferença visual de antemão. 49 Figura 17 - o reflexo nos olhos da coruja em Blade Runner Procurei buscar outras referências de representações de animais mecânicos na cultura visual, o que foi particularmente difícil. Atribuí esta escassez, especialmente comparada à quantidade de representações de humanóides, por, talvez, uma descrença na ameaça iminente. Enquanto os andróides se apresentam como possível ameaça, os animais ocupam um lugar de serventia, subordinação, equivalente ao de um robô sem consciência - diferença que será aprofundada no capítulo seguinte. Dos exemplos que pude encontrar, nenhum apresenta um animal mecânico que procure enganar o olhar, mas o contrário; são nitidamente máquinas, com aparências vagamente animalescas. Dentre os mais recentes, Horizon: Zero Dawn (2017) apresenta robôs com mecanismos aparentes e vaga semelhança a animais verdadeiros, embora criados para emular comportamento orgânico. O episódio de Black Mirror "Metalhead" (2017) se inspira no robô BigDog - um robô real criado pela empresa Boston Dynamics que tem um andar e porte surpreendentemente familiares, mas que não se preocupam em parecerem orgânicos - e transforma este objeto para uma figura ameaçadora, como um reflexo do que aconteceu na literatura da ficção-científica sobre a ameaça do andróide. Talvez, seja uma ameaça em potencial recente demais para ter agregado representações plurais. 50 Figura 18 - respectivamente; os animais mecânicos Tallneck e Broadhead (no qual a protagonista está montada) em Horizon: Zero Dawn; o "cão" do episódio Metalhead; diferentes robôs de Boston Dynamics. 51 Por mais que essas referências possam ajudar na representação da parte mecânica dos animais neste projeto, me pergunto se é necessário encontrar um ponto de dubiedade na representação. Talvez, uma representação objetivamente clara de animal por fora/mecânico por dentro seja um resumo eficiente da questão. Afinal, a dubiedade mora nos processos internos dos personagens humanos e andróides. E se, por exemplo, todos os animais que aparecem no livro (ou nas ilustrações) fossem mecânicos? Já que sua produção tem como objetivo enganar o olhar, não há nada além de seu interior mecânico que revele esta realidade, ainda mais tratando- se de figuras que não desenvolvem conflitos internos ao longo da narrativa. No mais, argumento que os animais poderiam ser representados de formas até relativamente fantasiosas; fossem todos máquinas, o que impediria, por exemplo, de um animal de fato extinto de ter perdido características originais ao longo da tradução para o mecânico? Alguém que nunca viu uma coruja, por exemplo, como Deckard, saberia identificar uma coruja verdadeira, já que a única imagem que este tem como referência é do catálogo de animais mecânicos de uma empresa que possui monopólio do mercado? Nessa possibilidade de leitura, a estranheza estaria apenas no olhar do leitor, não nos personagens do livro. Um animal ligeiramente diferente do real seria óbvio para nós que não é de verdade; então, por que para os personagens existe essa dúvida? Seria uma questão interessante de explorar. De qualquer forma, se há um ponto de dubiedade - ou de revelação, como o reflexo dos olhos em Blade Runner - ele será trabalhado em conjunto com a questão central; de humanos e andróides. 52 3.4 O humano-máquina, a máquina-humana e os "outros" "E, é preciso admitir, este [o teste de Turing] costuma falhar - mas não porque máquinas são tão inteligentes, mas porque humanos, muitos deles, pelo menos, são tão enrijecidos." (LUCAS, 2009, tradução nossa ). 20 Por mais que gostaria de separar os três em diferentes subcapítulos para facilitar a leitura e organização do texto, as ideias são indissociáveis, já que os humanos, os "outros" e os andróides estão em constante diálogo e se constroem a partir dos contrastes entre si. Desta forma, estes elementos serão discutidos ao mesmo tempo, e suas representações, construídas em conjunto. Começando do começo, Souto traz uma brilhante diferenciação entre robôs, ciborgues e andróides que é essencial para explorar suas possibilidades representativas. Régis (2006, apud SOUTO, 2014) classifica os autômatos como robôs (mecânicos), andróides (biológicos) e supercomputadores (entes). Robôs, mesmo se aproximando do humano, possuem natureza essencialmente mecânica, que mantêm as fronteiras claras, e são representados como simpáticos e leais; bons exemplos são os robôs R2-D2, BB-8 e C3P-O da série Star Wars (1977). Os supercomputadores seriam o mais próximo do divino, pois dispensam formas corpóreas. Enquanto isso, os andróides estariam, na escala da evolução autômata, entre os dois; Santaella (2010, apud SOUTO, 2014) os descreve como toda e qualquer forma de vida artificial autônoma, que se aproximam do humano (e se afastam dos robôs) não só por sua apresentação externa, mas principalmente por possuírem grande complexidade cognitiva. Paralelo aos seres essencialmente maquínicos se encontra o ciborgue, proposto "como uma solução para as alterações das funções corporais ao se acomodarem a ambientes diversos” (SANTAELLA, 2010, apud SOUTO, 2014, p. 11); próteses e implantes para elevar o humano à sua potência máxima; o Super-Homem, o pós- humano, o humano-máquina. Enquanto o andróide emula a humanidade, o ciborgue possui, além da máquina, algo essencialmente orgânico, construindo um ponto de Do original: "And, it must be admitted, it often does fail – but not because 20 machines are so intelligent, but because humans, many of them at least, are so wooden." 53 intersecção, criando assim uma nova fronteira (SANTAELLA, 2010, apud SOUTO, 2014, p. 11); o hibridismo entre humano e máquina. Tomando estas definições como base, onde encaixar o humano? O humano potencializado por mecanismos externos já habita um imaginário antigo, desde as máquinas voadoras projetadas por Leonardo Da Vinci. E hoje? "Qual seria a fronteira entre o corpo humano e o corpo não humano? Existe, ou poderá vir a existir, um super-homem? Ou ainda, já somos todos maquínicos?" (SOUTO, 2014, p. 18). Como abordado anteriormente, há de se considerar o presente como distopia de ficção-científica Cyberpunk, e nossa relação com a tecnologia é uma incógnita essencial nesta equação; cada vez mais - e mais cedo - somos dependentes de extensões mecânicas e elétricas para habitar o mundo. Para além dos cotidianos aparelhos celulares e próteses ortopédicas, também existem modificações corporais como implantes de ímãs subcutâneos, que permitem relações com diferentes objetos e tecnologias, "tatuagens" elétricas , e até mesmo implantes cerebrais que 21 permitem que pacientes com paralisia controlem braços mecânicos - e seus próprios, com próteses externas - "com a mente" . Como frisa Souto (2014), a 22 limitação humana como objeto de estudo tecnocientífico reconfigura a própria vida ao retardar a morte, e acrescento também os possíveis processos de transição de gênero. “A imagem do ciborgue nos estimula a repensar a subjetividade humana; sua realidade nos obriga a deslocá-la.” (SILVA, 2009, apud SOUTO, 2014, p. 23). Souto questiona se seria necessário reformular o que se entende como humano diante das possibilidades que surgem; o humano digital está cada vez mais se tornando “permeável, projetável, programável” (SIBILIA, 2002, apud SOUTO, 2014, p. 21). Todos os caminhos nos levam ao ciborgue. O enredo de "Andróides Sonham?" explora esta aproximação da fronteira entre o humano e a máquina (e vice-versa), e o consequente distanciamento entre humano e animal - e a busca de sua reaproximação, por medo desta relação se Disponível em: https://www.nsf.gov/news/news_summ.jsp?cntn_id=121343 21 Acesso em: 30 set. 2022 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NXNGvDdkXZE&t=876s e 22 https://www.science.org/content/article/brain-implant-helps-quadriplegic-play- guitar-hero Acesso em: 30 set. 2022 54 https://www.youtube.com/watch?v=NXNGvDdkXZE&t=876s https://www.science.org/content/article/brain-implant-helps-quadriplegic-play-guitar-hero https://www.science.org/content/article/brain-implant-helps-quadriplegic-play-guitar-hero https://www.nsf.gov/news/news_summ.jsp?cntn_id=121343 perder por completo. Haraway (2009, apud SOUTO, 2014) pontua como a animalidade adquire um novo significado neste ciclo. Em "Andróides Sonham?", a necessidade de criar animais, além de ser um compromisso ecológico com a terra e m c o l a p s o , é t a m b é m u m l e m b r e t e d a p r ó p r i a h u m a n i d a d e , "naturalidade" (bestialidade?) das pessoas que ainda nela residem; de que o humano é, ainda, parte da natureza como integrante da fauna, diferente de suas réplicas ou extensões mecânicas e principalmente eletrônicas. Cuidar de um animal elétrico, então, seria uma emulação deste sentimento? Um sentimento tão sintético e fabricado quanto aqueles da máquina de sentimentos programados por um código numérico, como o que consta na narrativa? Este vai-e-vem entre as fronteiras da humanidade maquínica e orgânica também é adaptado ao cinema em "Blade Runner". A memória é usada como artifício para a emulação da humanidade nos Replicantes, nome dado aos andróides; são criadas, inseridas artificialmente nos autômatos como "amortecedor de emoções", uma forma de controle sobre os mesmos. Além de atribuir um forte senso de humanidade aos Replicantes, cria-se a dubiedade em relação ao personagem de Deckard. Na versão "Final Cut" (2007), há um pequeno trecho de um unicórnio cavalgando na memória de Deckard, que indica que Scott leu e representou o personagem como Replicante. Outro personagem, próximo ao final da narrativa, deixa à Deckard um origami de um unicórnio, sugerindo que sabia da condição de Deckard, enquanto este seria alheio à ela - assim como Rachael desconhecia sua própria realidade. Enquanto Deckard e os demais humanos se aproximam das máquinas, especialmente no livro, Rachael e os demais Nexus-6 se aproximam dos humanos. Estes modelos foram construídos à imagem do humano, com alterações para serem "mais humanos que humanos", como descreve a corporação que os criou. São programados com comportamentos humanos: respiram, raciocinam, sangram, têm memórias - tão artificiais quanto as que os humanos desta nova terra vivenciam -, sentimentos e mais "vontade de viver" do que Iran, esposa de Deckard; os andróides que o protagonista caça ao longo do enredo possuem um desejo tão grande de prolongar suas curtas vidas que fogem à Terra - na qual são proibidos de entrar - e usam de sua força para encontrar seu criador na esperança de corrigir a uma falha que os mata tão precocemente. 55 Entre o humano e o andróide, existe um terceiro elemento, crucial na narrativa de "Andróides Sonham?" e Blade Runner: os "outros"; menores que os humanos, mas tampouco máquinas, aqueles que tiveram suas faculdades mentais afetadas pela poeira a ponto de serem proibidos de sair da Terra; os "cabeças de galinha" são alvo de julgamento e preconceito por aqueles que não foram tão profundamente alterados pela radiação, e ocupam cargos menores na sociedade. Isidore, um "cabeça de galinha", é um dos narradores do livro, curioso e sensível ao mundo ao seu redor e às máquinas; é o que melhor consegue descrever o seu entorno e comunicar seus sentimentos. Diferente de Deckard, simpatiza com os animais maquínicos, e se apega aos Nexus-6 fugitivos, que buscam abrigo em seu apartamento tomado por tranqueiras. Isidore sente a solidão sem necessidade de assistência eletrônica, como Iran, e encontra nos andróides companhia. Para mim, Isidore é o personagem mais humano da trama; só ele sente empatia genuína. Deckard é um personagem focado, seco e invejoso. Seu diálogo inicial com sua esposa demonstra falta de tato, empatia com a mesma; importa-se com sua imagem aos olhos dos vizinhos e tem como único objetivo - quase uma fixação - obter um animal genuíno (tema que é extremamente recorrente no início da narrativa), e encobre a realidade sobre Groucho, sua ovelha mecânica, e desdenha animais de porte pequeno de forma a manter seu status. Isidore, por outro lado, é uma figura solitária que anseia por contato, que encobre sua realidade como "cabeça de galinha" para não ser destratado. As características de ambos os personagens são refletivas no estilo da escrita de PKD; os capítulos sob a perspectiva de Deckard acompanham seus pensamentos retilíneos, objetivos e racionais, enquanto os de Isidore são mais emotivos. Esta contradição em relação à natureza dos personagens é uma forma sutil de expressar suas dualidades, que fogem de uma sinalização óbvia, um sinal de clareza. Explorar o subjetivo frio de Deckard e o curioso de Isidore na imagem é conversar com o texto e adicionar ao enredo. Desejo escancarar essa dubiedade dos personagens, de forma a transparecer também nossa realidade como ciborgues; uma desumanização, despersonificação e maquinização de Deckard em sua representação gráfica e, na contra-mão, uma humanização de Rachael, dos demais Nexus-6 e Isidore. Não quero dar respostas, mas amplificar as dúvidas. 56 Um filme que "amplifica as dúvidas" sobre o estreitamento das fronteiras entre humano e andróide é Ex_Machina (2015), que utiliza o Teste de Turing como tema 23 e artifício narrativo. No enredo, o personagem Caleb é incumbido de testar uma andróide - Ava - e determinar se esta passa no teste. O próprio Caleb questiona a validade do mesmo, uma vez que este requer dois humanos, e ele é só um. O segundo humano, no entanto, está fora do enredo; o espectador é, sem perceber, o terceiro presente no teste, e cabe ao mesmo definir, ao final do filme, se Ava passou ou não. Como, então, construir este efeito na ilustração? Para isso, busquei como outras formas de mídia representaram o que chamei de ponto de dubiedade e ponto de revelação. Um ponto de revelação seria o reflexo nos olhos dos Replicantes em Blade Runner, mais sutil, ou mais constante como os círculos luminosos dos andróides em Detroit: Become Human (2018), que denotam de forma clara a natureza maquínica dos personagens. Assim como o questionei ao pensar nos animais, do que adicionaria à narrativa trabalhar sobre pontos de revelação? Em ambos os exemplos, eles servem de contraste aos conflitos internos dos personagens, assumindo um papel de peça que compõe o ponto de dubiedade. O Teste de Turing testa a capacidade de uma máquina de apresentar 23 comportamento - não inteligência - humano. O original se dá através de um diálogo entre um "juiz" humano, outro humano e uma máquina. O juiz pode estar ciente ou não de que um dos participantes é uma máquina. Ao final deste, cabe ao juiz distinguir o humano da máquina; caso isso seja impossível, a máquina passou no teste. 57 Figura 19 - os andróides de Detroit: Become Human Falando-se de ilustração, existem outros meios de representar os pontos de clareza, que podem ser mais sutis e ajudar a compor o efeito de "Teste de Turing" que desejo alcançar, e também engajar o leitor a buscar e compreender essas sutilezas narrativas na imagem; afinal, “metade da arte narrativa está em evitar explicações” (BENJAMIN, 1994, apud PRADES, 2019 p. 62). Um dos fatores que compõem a imagem é a cor, que pode ser utilizada para exprimir diferentes emoções, pontos de foco e efeitos de luminosidade e contraste. A série Breaking Bad (2008), por exemplo, faz uso da cor da roupa dos personagens para definir personalidades e atribuir diferentes estados emocionais de cada um ao longo da série; independência, perigo, inocência, dinheiro, contato com o crime da trama, segurança, neutralidade e morte são alguns dos temas atribuídos a diferentes cores que de forma sensível e visual agregam significados à narrativa. A iluminação, ambientação e perspectiva são outros componentes da imagem que podem contribuir para o todo; uma situação com perspectiva distorcida ou exagerada nos remete à ação, tensão, movimento, enquanto uma imagem com linhas retas, ordenadas, nos remete à calma. Acredito que adotar estas ferramentas seguindo os diferentes pontos de vista dos narradores de "Andróides Sonham?" seja um ótimo caminho para atribuir humanidade (ou falta dela) nos personagens, construindo o mundo ao redor dos mesmos utilizando diferentes tons, temperaturas, saturações e composições. 58 Parte IV - Ceci n'est pas un mouton: expandindo universos 59 4 Do processo O passo 0, para mim, anterior a qualquer decisão estética, é a do material; minha ferramenta de escolha é sempre o papel, meu domínio técnico reside no grafite, na aquarela, no nanquim e no guache. A aquarela, felizmente, permite criar transparências e camadas que poderiam traduzir a fumaça e a poeira, a vivacidade da cor onde lhe cabe, contaminações que se criam sozinhas. O nanquim, de escuridão incomparável, é coadjuvante, adentrando onde é necessário escassez, penumbra, conversando também com um noir. O lápis de cor confere detalhes, profundidade e texturas mais precisas do que a aquarela, sem se sobrepor ou roubar protagonismo. Tive receio no início pois, assim como o guache, pode, sem querer, atribuir infantilidade às imagens; algo que poderia usar ao meu favor, caso surgisse a oportunidade. A equipe está reunida e pronta. As cores se apresentaram como um desafio, sem dúvida; minha produção usual é vibrante, com elementos naturais, alta luminosidade e cores vivas. Sintonizar o cérebro para uma paisagem acinzentada e estéril requereu alguns estudos de técnica e paleta anteriores ao desenvolvimento das ilustrações. Morar próximo ao Minhocão de São Paulo me conferiu a oportunidade de estudar a verticalidade, algo que também foge do meu usual, do conforto do meu quarto. No início da escrita deste trabalho, comecei em paralelo a releitura de "Andróides Sonham?", buscando no enredo passagens para retratar. Conforme a pesquisa tomou corpo, no entanto, boa parte dos rascunhos iniciais foram descartados, pois percebi que as imagens poderiam ganhar mais peso, especialmente após o desenvolvimento do capítulo anterior. Procurei, durante a leitura, encontrar a questão central de cada capítulo e formas de transformá-la em imagem, seguindo a ideia elaborada anteriormente de explorar a subjetividade dos personagens a partir do ponto de vista de cada narrador. 60 Figura 20 - estudo de miniaturas para as ilustrações de cada capítulo 61 62 Apesar de meu trabalho não fluir da melhor forma com o uso de miniaturas, elas são muito práticas para um projeto como esse, pois nos permitem observar o enredo como um todo de uma só vez, tecendo relações entre as imagens. Ao todo, neste primeiro momento, são 20 propostas de ilustrações para os 22 capítulos do livro; é possível que esse número se reduza durante o processo de criação das imagens, uma vez que algumas possam se tornar redundantes em significado. Acompanhamos Isidore nos rascunhos em vermelho, e Deckard, em azul. 63 Figura 21 - estudos iniciais para a ilustração do capítulo 1 64 65 Figura 22 - estudo de cores e composições para a ilustração do capítulo 1 66 Figura 23 - rascunho inicial para a ilustração do capítulo 1 67 Figura 24 - rascunho final para a ilustração do capítulo 1 68 O primeiro capítulo passou por algumas explorações em torno da ovelha elétrica de Deckard, com diferentes pontos de vista e recortes. Por ser o capítulo inaugural, achei importante também incluir a ambientação da cidade e a solidão de Iran, que é muito relevante no capítulo 1 e tece um paralelo com o capítulo 2, de Isidore. Este foi o único capítulo que recebeu um estudo de cores (figura 22). Este processo foi abandonado pois, além de tomar muito tempo, descobri que me trouxe mais dúvidas do que certezas. Deste momento em diante, passei a confiar mais em minha intuição inicial. Figura 25 - estudos iniciais para a ilustração do capítulo 2 69 Figura 26 - rascunho inicial para a ilustração do capítulo 2 70 Figura 27 - rascunho final para a ilustração do capítulo 2 71 Uma ideia que surgiu em um primeiro momento foi de representar o vazio por uma infinidade de sobreposições de tintas de diferentes pigmentos até alcançar um preto óptico; o vazio pelo acúmulo de inutilidades, o que Isidore chama de "bagulho" (figura 25). Acabei descartando essa ideia para criar o paralelo com o capítulo anterior (pode-se ver este processo na figura 20); uma ambientação da cidade no qual só se vê duas luzes acesas, do apartamento de Isidore e o que Pris agora se encontra. Diferente de Iran, Isidore não precisa de um impulso sintético para sentir a solidão, e encontra uma alegria imensa em descobrir outro residente em seu prédio. A luz nas janelas cria uma conexão entre os dois. Outra possibilidade foi a do rascunho inicial (figura 26), no qual a conexão se faz dentro do prédio. Optei pela cena externa por acreditar que ela retrata melhor a solidão do personagem, além de fugir de uma obviedade e redundância narrativa. A seguir, desviamo-nos da ordem cronológica para fazer um panorama de todos os capítulos narrados por Isidore. 72 Figura 28 - rascunho inicial para a ilustração do capítulo 6 73 Figura 29 - segunda versão do rascunho inicial para a ilustração do capítulo 6 74 Figura 30 - rascunho final para a ilustração do capítulo 6 75 Figura 31 - rascunho inicial para a ilustração do capítulo 7 76 Figura 32 - rascunho inicial para a ilustração do capítulo 13 77 Figura 33 - rascunho inicial para a ilustração do capítulo 14 78 Minha intenção para Isidore era que nunca aparecesse sozinho, já que a questão central de sua narrativa é que encontra afeto nos andróides. No capítulo 6, aparece ao lado de Pris (figuras 28 e 29); no capítulo 7, uma cena de carinho para com um gato que acredita ser elétrico (figura 31); nos capítulos 13 e 14, figura central de apoio para os andróides (figuras 32 e 33). Para o capítulo 6, depois de algumas versões (figuras 28 e 29), optei por representar esta companhia apenas na margarina (figura 30), ponto central do gesto de conexão de Isidore, que a oferece como boas-vindas à sua nova vizinha, Pris, novamente para fugir de uma redundância narrativa. Acredito que parte desta decisão foi também inconsciente; a manteigueira que utilizei como referência é uma herança de minha avó materna, Neob. Esta conexão pessoal com o objeto reflete o gesto de Isidore. Como decisão estética, este recorte mais intimista transmite muito mais conforto, criando maior contraste à solidão da amplitude do capítulo 3 (figura 27). Este recorte também aparece nos rascunhos dos capítulos 14 e 18 (figuras 33 e 35), e será eventualmente abraçado para as revisões das demais ilustrações que seguem o ponto de vista de Isidore. Para a caracterização de Pris e Isidore, procurei utilizar a retomada da moda dos anos 1980; Isidore com uma calça de cintura alta, com a camisa dentro do cinto; Pris, mais "rebelde", com um macacão e um corte de cabelo mullet (figura 28, 31 e 32). 79 Figura 34 - estudos para a ilustração do capítulo 18 24 Um agradecimento especial à Kelly por servir de modelo para as fotografias.24 80 Figura 35 - rascunho final para a ilustração do capítulo 18 81 Seu último capítulo, o 18, no qual tem sua visão de mundo quebrada, há um paralelo com a quebra de Deckard; Isidore se vê sozinho, novamente, a medida que sua rede de crenças é despedaçada tanto pela revelação da fraude do Mercerismo como pela mutilação da aranha pelos andróides. Retornarei à descrição da ilustração deste capítulo quando chegarmos à quebra de Deckard. A seguir, voltamos ao capítulo 3, em ordem cronológica, acompanhando os capítulos narrados por Deckard. 82 Figura 36 - estudos iniciais para a ilustração do capítulo 3 83 Figura 37 - rascunho inicial para a ilustração do capítulo 3 84 Figura 38 - primeira parte do rascunho final para a ilustração do capítulo 3 85 Figura 39 - segunda parte do rascunho final para a ilustração do capítulo 3 86 Seguindo Deckard, o capítulo 3 desenvolve sua frieza e seu foco nos animais. Em um primeiro momento, pensei em retratar seu raciocínio lógico em um esquema científico (figura 36). Neste capítulo, ele foca na compra de um avestruz; no entanto sua cabeça está ainda sintonizada na discussão que teve com seu vizinho, no capítulo 1, acerca de sua ovelha elétrica e ratos orgânicos. Deckard despreza animais de pequeno porte, mas não tanto quanto a humilhação de não possuir um animal genuíno. Esta é uma retomada do primeiro capítulo, e, por fim, optei por retomar a imagem da ovelha, trabalhando em cima de rascunhos descartados para o capítulo 1. Apesar de contente com a proposta do rascunho inicial (figura 37), senti falta de representar o interior elétrico da ovelha. Diversas opções para tal foram exploradas, como pode-se observar nos estudos para o capítulo 1 (figuras 21 e 22). Desta forma, optei por transferir o rascunho finalizado da parte externa da ovelha para outro papel (figura 38), em um primeiro momento para preservá-lo caso decidisse reverter ao original, e explorar a possibilidade de representá-la inteiramente elétrica (figura 39). Por fim, acabei utilizando ambas a parte interna e externa da ovelha na versão final, que se encontra no apêndice. 87 Figura 40 - estudos iniciais para a ilustração dos capítulos 4 e 5 88 Figura 41 - rascunho final para a ilustração dos capítulos 4 e 5 89 Os capítulos 4 e 5 são a respeito do encontro de Deckard e Rachael, e ainda o foco de Deckard nos animais. Uma penumbra cobre a andróide, enquanto a coruja é o foco da iluminação. Em determinado momento, pensei em representar a infantilidade de Deckard em relação à coruja (figura 40). Julguei, no entanto, que seria um ponto de vista muito emocional para o mesmo, e a possibilidade de desenvolver sua desconexão com as pessoas e andróides me pareceu mais rica. Para a caracterização de Rachael, procurei utilizar a já citada Winona Ryder como referência. Um detalhe que merece ser revisitado é substituir os óculos de proteção descritos no livro por uma máscara de proteção contra o Covid-19. 90 Figura 42 - rascunho final para a ilustração do capítulo 8 91 No capítulo 8, há um momento muito relevante para o personagem de Rachael; ela entra em contato com Deckard oferecendo ajuda,