unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP ADRIANE BELLUCI BELÓRIO DE CASTRO OOO DDDIIISSSCCCUUURRRSSSOOO JJJOOORRRNNNAAALLLÍÍÍSSSTTTIIICCCOOO IIIMMMPPPRRREEESSSSSSOOO NNNAAA CCCOOONNNSSSTTTRRRUUUÇÇÇÃÃÃOOO DDDEEE UUUMMM SSSUUUJJJEEEIIITTTOOO PPPOOOLLLÍÍÍTTTIIICCCOOO::: OOO CCCAAANNNDDDIIIDDDAAATTTOOO ÀÀÀ PPPRRREEESSSIIIDDDÊÊÊNNNCCCIIIAAA LLLUUUIIIZZZ IIINNNÁÁÁCCCIIIOOO LLLUUULLLAAA DDDAAA SSSIIILLLVVVAAA Araraquara – SP 2007 2 ADRIANE BELLUCI BELÓRIO DE CASTRO O DISCURSO JORNALÍSTICO IMPRESSO NA CONSTRUÇÃO DE UM SUJEITO POLÍTICO: O CANDIDATO À PRESIDÊNCIA LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/ Araraquara, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa. Linha de Pesquisa: Estrutura, Organização e Funcionamento Discursivos. Orientadora: Profª Drª Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento. Araraquara – SP 2007 3 ADRIANE BELLUCI BELÓRIO DE CASTRO O DISCURSO JORNALÍSTICO IMPRESSO NA CONSTRUÇÃO DE UM SUJEITO POLÍTICO: O CANDIDATO À PRESIDÊNCIA LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/ Araraquara, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa. Linha de Pesquisa: Estrutura, Organização e Funcionamento Discursivos. MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profª Drª Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento Instituição: Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Araraquara Membro Titular: Profª Drª Lea Sílvia Braga de Castro Sá Instituição: Universidade do Sagrado Coração – Bauru/SP Membro Titular: Profª Drª Naiá Sadi Câmara Instituição: Centro Universitário Barão de Mauá – Ribeirão Preto/SP Membro Titular: Prof. Dr. Arnaldo Cortina Instituição: Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Araraquara Membro Titular: Profª Drª Renata Maria Facuri Coelho Marchezan Instituição: Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Araraquara Local: Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Campus de Araraquara Data de aprovação: 09/03/2007 4 AGRADECIMENTOS À Profª Drª Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento, minha orientadora, pela acolhida e incentivo, sem os quais não seria possível a realização deste trabalho, e, principalmente, por me apresentar à Semiótica de modo tão poético e apaixonante. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Araraquara, especialmente, Prof. Dr. Arnaldo Cortina e Profª Drª Renata Maria Facuri Coelho Marchezan, pelas disciplinas ministradas e pelas contribuições durante o exame de qualificação. À professora e amiga Maria Inez Mateus Dota que, primeiramente, me despertou para o mundo da pesquisa e me cativou pela sua dedicação e disciplina. À professora e amiga Léa Sílvia Braga de Castro Sá que, sensível e pacientemente, removeu os primeiros véus de meus olhos-leitores. 5 A linguagem é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. (Hjelmslev, 1975, p.1-2) Há um século, o conflito entre a imprensa e o poder é uma questão da atualidade, mas toma uma dimensão inédita hoje, porque o poder não é mais identificado só ao poder político (o qual, além disso, vê suas prerrogativas roídas pela ascensão do poder econômico e financeiro) e porque a imprensa, os meios de comunicação de massas não se encontram mais, automaticamente, em relação de dependência com o poder político; o inverso é quase sempre o caso. Pode-se até mesmo dizer que o poder está menos na ação do que na comunicação. (Ramonet, 2004, p. 39) 6 CASTRO, Adriane Belluci Belório de. O discurso jornalístico impresso na construção de um sujeito político: o candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva. 2007. 262f. Tese (Doutorado em Lingüística e Língua Portuguesa). Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Araraquara, 2007. RESUMO O discurso jornalístico constitui, para a sociedade contemporânea, um poderoso instrumento de construção e disseminação de valores cognitivos e passionais, de modo que, no âmbito político, esse fazer tende a ser mais intenso e, conseqüentemente, mais evidente, em períodos que envolvem campanhas eleitorais para a presidência de uma nação. Tal panorama temático sustenta a presente pesquisa que, embasada na teoria semiótica greimasiana, busca (re)construir, por meio de diferentes gêneros textuais que compõem o jornalismo impresso – representado aqui pelos periódicos Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Istoé e Veja – a identidade do sujeito Luiz Inácio Lula da Silva no papel temático de candidato à presidência da República durante a disputa eleitoral de 2002 (especificamente no período de junho a outubro). Para tanto, recorre-se à categoria de sujeito a fim de abordá-la nas dimensões cognitiva, pragmática e passional e, a partir disso, verificar como se realiza textualmente a imagem do candidato para o (e)leitor por meio do discurso jornalístico impresso. Palavras-chave: Semiótica. Discurso jornalístico. Jornalismo impresso. Sujeito. Luiz Inácio Lula da Silva. 7 CASTRO, Adriane Belluci Belório de. Press journalism discourse in the construction of a political subject: the candidate to presidency Luiz Inácio Lula da Silva. 2007, 262 pages, Dissertation (Doctorate in Linguistics and Portuguese Language) Science and Letters School, UNESP, Araraquara, 2007. ABSTRACT The journalistic discourse consists of a powerful tool in the construction and dissemination of passional and cognitive values in contemporary society, so that, in political scope, this persuasive doing tends to be more intense and, consequently, more evident, in periods that involve electoral campaigns to the presidency of a nation. Such thematic scenery sustains the present research that, based on Greimasian Semiotic Theory, tries to (re)construct, by means of different textual genres that compose the press journalism – represented here by the newspapers Folha de S. Paulo and O Estado de S. Paulo, and by the magazines Istoé and Veja – the identity of the subject Luiz Inácio Lula da Silva in the thematic role of candidate to the Republic Presidency during the 2002 electoral dispute (specifically in the period from June to October). To attain this, it is used the category of subject in order to approach it in the cognitive, pragmatic and passional dimensions and, from this, verify how does it textually realize the candidate´s image to the voter/reader, by means of press journalism discourse. Keywords: Semiotics. Journalism discourse. Press journalism. Subject. Luiz Inácio Lula da Silva. 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................................... 10 2 SEMIÓTICA E MÍDIA: PERCURSOS VERBAIS E VISUAIS DO SENTIDO................................................................................................................... 20 2.1 Semiótica e as diferentes linguagens (verbal e visual)......................................... 25 2.2 Semiótica narrativa e discursiva: conceitos, operacionalização e o percurso gerativo do sentido........................................................................................................ 31 2.3 Palavra e imagem: formas de expressão e de conteúdo do cotidiano................. 35 3 MÍDIA E HISTÓRIA: (CON)TEXTOS E DISCURSOS QUE SE CRUZAM.................................................................................................................... 39 3.1 Mídia: narração ou construção de acontecimentos?............................................ 43 3.2 Jornais e revistas: sincretismo orientado para o (e pelo) olhar do leitor............ 48 3.3 A captura do sentido pela mídia e sua repercussão social: da diversidade à unidade............................................................................................................................ 55 4 DISCURSO POLÍTICO NA MÍDIA: UMA PAIXÃO SEMIÓTICA............................................................................................................... 61 4.1 Semiótica das paixões............................................................................................... 64 4.2 Discurso jornalístico de um enunciador apaixonado: o despertar da confiança.......................................................................................................................... 68 4.3 Entre a esperança e o medo: um candidato à presidência.................................... 72 9 5 A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO NO E PELO DISCURSO JORNALÍSTICO...................................................................................................... 76 5.1 O sujeito na teoria semiótica................................................................................... 79 5.2 Sujeitos na mídia: enunciadores e enunciados....................................................... 87 6 LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA EM MANCHETE: A IMAGEM DE UM CANDIDATO.................................................................. 89 6.1 Análise de textos publicados em junho de 2002..................................................... 94 6.2 Análise de textos publicados em julho de 2002....................................................... 99 6.3 Análise de textos publicados em agosto de 2002..................................................... 113 6.4 Análise de textos publicados em setembro de 2002................................................ 121 6.5 Análise de textos publicados em outubro de 2002.................................................. 144 6.6 Alguns traços, algumas palavras, alguns sentidos.................................................. 149 7 O ETHOS DO DISCURSO JORNALÍSTICO IMPRESSO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE FOLHA DE S.PAULO, O ESTADO DE S.PAULO, VEJA E ISTOÉ................................................... 157 8 CONCLUSÃO.......................................................................................................... 169 REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 179 ANEXOS........................................................................................................................ 186 11 1 INTRODUÇÃO Todo parecer é imperfeito: oculta o ser; é a partir dele que se constroem um querer-ser e um dever-ser, o que já é um desvio do sentido. Somente o parecer, enquanto o que pode ser – a possibilidade -, é, vivível. Dito isso, o parecer constitui, apesar de tudo, nossa condição humana. É ele então manejável, perfectível? E, no final das contas, esta veladura de fumaça pode dissipar-se um pouco e entreabrir-se sobre a vida ou a morte – o que importa? (Greimas) O primeiro livro da Bíblia, Gênesis 1:26-27, apresenta a criação humana como um reflexo, uma representação, uma imagem. Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme à nossa semelhança.[...] Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou. (A BÍBLIA SAGRADA, 1993, p. 3) Na descrição criacionista da origem humana, o homem é apresentado como um reflexo de Deus: a criatura é imagem e semelhança do Criador. De acordo com Houaiss (2001), os verbetes imagem e semelhança referem-se respectivamente a: [...] aspecto particular pelo qual um ser ou um objeto é percebido; representação da forma ou do aspecto de ser ou objeto por meios artísticos; aquilo que apresenta uma relação de analogia, de semelhança (simbólica ou real); réplica, retrato, reflexo; pessoa que representa, simboliza ou faz lembrar alguma coisa abstrata; personificação [...] (HOUAISS, 2003, p. 1573) [...] parecença entre seres, coisas ou idéias que têm elementos conformes, independentemente daqueles que são comuns à espécie; analogia; identidade; aparência exterior; aspecto; conformidade entre o modelo e o objeto imitado em arte [...] (HOUAISS, 2003, p. 2541) Essas expressões, registradas no texto bíblico como discurso fundador e difundidas culturalmente ao longo da história da humanidade, acionam e colocam em jogo duas modalidades: a do ser e a do parecer. 12 No discurso bíblico, vemos então figurativizada a condição humana da relação ser- parecer, perfeição-imperfeição: enquanto o Criador figura como a perfeição, a criatura surge como a imitação, o simulacro. Obviamente respaldada pela crença, essa descrição mítica procura dar resposta àquilo que – apesar de toda tentativa de se ignorar – ainda inquieta o homem: sua origem e seu sentido na vida. Recorrendo ainda a outro texto bíblico, neste caso, ao evangelho de João, 1:1: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (A BÍBLIA SAGRADA, 1993, p. 479), depreendemos do versículo que Deus é verbo, palavra. A palavra, ao confundir-se com o próprio Criador, assume uma força indescritível. Assim, Deus, muito mais que se manifestar pela palavra, é a própria palavra. Em toda a Bíblia, Deus é igualado à palavra, ou seja, palavra e Deus são um só elemento, formam uma unidade (um é o outro e o outro é um), não há diferença entre ambos, eles se encontram num processo de identidade absoluta. Essa identificação nos possibilita inúmeras leituras, entretanto a que nos cabe aqui destacar é apenas uma: a palavra vista como criadora, geradora de sentido e vida. Assim, reconhecemos a importância da palavra para o ser humano: o indivíduo necessita da palavra para sua sobrevivência e sua constituição como sujeito no meio social. A palavra é tão necessária para a sobrevivência psico-social do ser humano quanto o oxigênio e a água o são para sua sobrevivência biológica. A palavra e, em sentido mais amplo, a comunicação é a base constitutiva e organizadora da vida em sociedade. Sem comunicação, não há sociedade, não há cultura. A comunicação confunde-se assim com a própria vida humana. Ao fazermos referência às duas citações bíblicas acima, nossa intenção é apenas evidenciar um dos pontos centrais de nosso trabalho: a relação ser-parecer mediada pela palavra na constituição do sujeito. Não abordaremos tal tema a partir do ponto de vista religioso. Ao contrário, como gênero científico, o presente trabalho necessita de um aporte teórico que se apresente adequado e se sustente diante da comunidade acadêmica. Nesse sentido, nossa opção científica é pela semiótica greimasiana que se constitui em ampla, profunda, específica e coerente teoria capaz de explicar satisfatoriamente a relação homem-linguagem e a condição do parecer que se estabelece a partir dessa relação. 13 Greimas (2003, p.122) reconhece essa condição ao afirmar que “o parecer é nossa condição, nossa quase intolerável condição humana: por isso é que somos, incessantemente, um querer e um dever ser”. Assim, a vida humana transforma-se em simulacro, cuja imperfeição inerente ao parecer se organiza e se concretiza em forma de sentido. Esse sentido está na essência humana e se manifesta em sua existência. Desse modo, temos, para a semiótica, o parecer como condição sine qua non da essência e da existência do homem e, por conseguinte, a relação entre parecer e ser manifesta- se na constituição de sua natureza. Ainda na perspectiva semiótica, o mundo é da ordem do parecer porque é visto pelo homem e construído pela linguagem. Landowski (1995, p. 241) nos confirma, de certo modo, tal condição, ao afirmar: Ao ser, portanto, qualquer que seja o objeto considerado – e o sujeito que olha –, não se tem nenhum acesso senão pela mediação do parecer. Embora escondendo o primeiro (ou por essa mesma razão), é ele, o parecer, - e ele só – que pode significar o ser, e quiçá, até certo ponto e indiretamente, revelá-lo. No capítulo introdutório de As astúcias da enunciação, Fiorin (1996) faz uma análise de quatro passagens bíblicas para explicar e demonstrar alguns princípios constitutivos da linguagem humana. Na descrição desses trechos, o autor classifica tais princípios como pertencentes ao campo do mito, para quem este conceito pode ser definido como: “uma explicação das origens do homem, do mundo, da linguagem; explica o sentido da vida, a morte, a dor, a condição humana. Vive porque responde à angústia do desconhecido, do inexplicável; dá sentido àquilo que não tem sentido” (FIORIN, 1996, p. 10). Com certeza, daí advém a força do mito no imaginário cultural da humanidade. Mesmo que a ciência, em busca de princípios reais, concretos, tenha a tendência a rejeitá-lo, uma vez que ele não pode ser compreendido e explicado pela razão, o mito sobrevive e subsiste a todas as coisas. Em Silva (1995, p. 28), também encontramos essa força do mito: “... ia dizer ‘o homem mítico’, mas o homem mítico somos todos nós; ele está mais vivo do que nunca em nós...”. Apresentados tais aspectos (míticos ou não) sobre o ser humano – o parecer como condição de sua existência e a linguagem como manifestação desse parecer –, gostaríamos de evidenciá-los como leitmotiv de nossa pesquisa a qual, a partir deste ponto, começamos a expor mais especificamente. 14 Nosso trabalho está pautado na discussão da relação entre sujeito, linguagem, mídia e história. Sabemos que o indivíduo se insere no mundo social, porque é capaz de comunicar-se. Na verdade, ele só existe, porque comunica. Essa comunicação – vista como elemento essencial para a vida humana por possibilitar a interação entre os indivíduos – faz com que o homem seja capaz de significar-se e atribuir significado às coisas que o cercam. Ou como prefere Greimas: “Parece-nos que o mundo humano se define essencialmente como o mundo da significação. Só pode ser chamado ‘humano’ na medida em que significa alguma coisa” (GREIMAS, 1975, p. 11). “O homem vive num mundo significante. Para ele, o problema do sentido não se coloca, o sentido é colocado, se impõe como uma evidência, como um ‘sentimento de compreensão’ absolutamente natural” (GREIMAS, 1975, p.12-13). Este é nosso ponto de partida: o indivíduo é constituído pela palavra, pela linguagem, enfim, pelo discurso e, através da palavra, da linguagem, do discurso, constrói suas representações do mundo, assim como se representa para o mundo. Essa é a relação do indivíduo com a linguagem: representar para significar e poder agir. É dessa forma que o indivíduo passa a sujeito, pois, assim como diz Beividas (1995, p. 173), “o sujeito não tem existência ontológica, ou seja, o sujeito é um efeito do discurso [...] sempre a partir da manifestação do discurso”. Desse modo, o discurso antecede o sujeito. A existência do sujeito, então, só pode ser reconhecida concretamente através dos textos que ele produz ou que dele produzem, visto que somente através de textos é que podemos atingir os discursos. Um texto pode ser definido como uma instância material, concreta, que produz efeitos de sentido. Um texto é o produto material do processo de produção da significação; é o produto da combinação e articulação entre expressão e conteúdo (semiose constitutiva do sentido), sendo que o texto pode utilizar as mais diversas substâncias para sua expressão. O texto é, pois, um conjunto de elementos que estabelecem relações entre si, dando formas aos sentidos circulantes na sociedade. Os sentidos, que não se esgotam nos textos, são aprisionados por estes que, por sua vez, têm começo, meio e fim. Daí, a limitação do texto, mas não do sentido. O texto é, na verdade, um catalisador de sentidos que permeiam a sociedade. Os sentidos manifestados por textos produzidos incessantemente por um sujeito social (por exemplo, os meios de comunicação) exercem uma força de atração e controle sobre as ações coletivas. E nesse sentido, a mídia tem desempenhado, há algumas décadas, um papel 15 de grande importância e expressiva significação nas sociedades contemporâneas, o qual se intensifica com o desenvolvimento imensurável da comunicação virtual. Essa participação é importante a tal ponto que quase todo o conhecimento e o acompanhamento que temos dos fatos mais representativos da sociedade nos é fornecido, atualmente, por esses mediadores da comunicação social. Dessa forma, assim como outros discursos que constituem o alicerce social, o discurso jornalístico se destaca pela sua abrangência e sua capacidade de persuasão e influência. Os textos simulam representar a parte visível, concreta, material das relações interindividuais, mobilizando os discursos que circulam na sociedade e manifestando os sentidos que formam a rede social na qual o conflito, a disputa, a oposição é a tônica. Assim acontece com os textos veiculados pela mídia: tornam-se cenas espetaculares no espaço público (social), atraindo o leitor e configurando formas de pensar, sentir, agir, uma vez que eles representam uma forte vertente produtora de sentidos de influência social na atualidade e, como tal, um direcionador de opiniões e comportamentos. A mídia, ao trabalhar com textos em cuja matéria-prima (linguagem) reside a ação simbólica, atua efetivamente na formação do imaginário cultural da sociedade contemporânea. De fato, a mídia representa o palco para inúmeros espetáculos que envolvem, contagiam, anestesiam, enfim, inebriam o leitor, fazendo dele um co-adjuvante dos acontecimentos. Este é, em um sentido amplo, o objetivo do presente projeto: selecionar e analisar diversos gêneros textuais produzidos por jornais e revistas de grande circulação, para observar discursivamente a construção de um sujeito de grande destaque na história política brasileira, a saber, Luiz Inácio Lula da Silva1, bem como verificar quais sentidos são manifestados, de modo predominante, em tais textos, para demonstrar o fazer persuasivo do discurso jornalístico impresso. Sendo assim, nossa hipótese de trabalho é que o discurso jornalístico interfere de modo significativo na formação da opinião pública, isto é, ele atua como um orientador da opinião pública, e como tal, é inegável sua participação na constituição da imagem de um candidato durante uma campanha eleitoral para a presidência da República. Logo, nossa busca será pela (re)construção do sujeito Luiz Inácio Lula da Silva, a partir do discurso manifestado por alguns meios de comunicação social impressos, no cenário político que antecedeu as eleições presidenciais em 2002. 1 Os textos analisados, neste trabalho, divergem quanto à grafia do primeiro nome de Lula. Optamos pela forma “Luiz”. 16 Para realização de tal pesquisa, encontramos na semiótica greimasiana o embasamento teórico adequado, uma vez que sua preocupação principal é buscar uma leitura capaz de dar conta da complexidade do discurso, isto é, apreender a significação em sua globalidade e profundidade. A semiótica possibilita-nos uma aproximação do sentido, que está na base de um texto, através do resgate e da análise de elementos advindos do próprio texto e essenciais na produção do sentido, tais como, língua, sujeito e história. Para a semiótica, o conceito de texto não se restringe à produção verbal – oral ou escrita – tampouco a produções significantes de outras linguagens – cinema, dança, pintura, TV etc. Em princípio, o texto é um lugar semiótico onde, entre outras coisas, expressão e conteúdo se encontram e se entrelaçam. Tal conceito vai muito além, é mais abrangente, pois, para a semiótica, o mundo é um texto. O mundo é um texto que se apresenta a nós como um todo significativo, um conjunto semiótico de onde emergem sentidos. E, como salienta Bertrand (2003, p. 11), “a Semiótica se interessa pelo parecer do sentido, que se apreende por meio das formas de linguagem e, mais concretamente dos discursos que o manifestam, tornando-o comunicável e partilhável, ainda que parcialmente”. Diante do exposto, resta-nos salientar alguns tópicos metodológicos cuja presença serve para dar algum sentido a este texto, são eles: os objetivos que representam nosso querer- fazer; a metodologia que se concretiza em nosso poder-fazer; o corpus que figurativiza nosso fazer-fazer; e, finalmente, o percurso gerativo de nossa pesquisa que esboça a leitura, análise e produção do trabalho. Nossa busca, neste trabalho, será analisar a construção do sujeito Luiz Inácio Lula da Silva, por meio do e pelo discurso jornalístico da mídia impressa brasileira durante o período de junho a outubro de 2002, quando a campanha eleitoral à presidência do Brasil esteve à tona como assunto para a sociedade brasileira. Entretanto, é necessário lembrarmos que a candidatura de Lula em 2002 representava sua quarta tentativa de chegar à presidência, ou seja, ele havia disputado outras três eleições anteriormente – em 1989, 1994 e 1998 –, sendo que em todas chegou ao segundo turno, mas em nenhuma ganhou. Posto isso, precisamos esclarecer que o enfoque deste trabalho será apenas para a quarta candidatura, mesmo sendo inevitável o resgate, em alguns momentos, de traços que marcaram o sujeito nas campanhas anteriores, o que encontraremos no próprio corpus a ser analisado. 17 Ao adotar um comportamento diferente do apresentado em candidaturas anteriores, o candidato Lula ao mesmo tempo em que rompe com um modelo não aceito pela maioria, adotando uma nova conduta, estabelece um contrato fiduciário com aqueles que antes o criticavam e o rejeitavam e, conseqüentemente, possibilita o apaixonamento e a adesão daqueles que, anteriormente, eram seus opositores. Nesse sentido, o discurso jornalístico servirá de influente mediador entre o candidato e o leitor-eleitor, visto que por meio dos periódicos será exibido (e também construído) esse discurso apaixonado. Para confirmar nossa hipótese, descreveremos as dimensões cognitiva, pragmática e passional do sujeito Luiz Inácio Lula da Silva, construídas pelo e constituídas no discurso jornalístico em diferentes gêneros textuais dos meios de comunicação impressos: dois jornais – Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo – e duas revistas – Istoé e Veja. Além disso, compararemos as descrições obtidas na análise dos quatro periódicos, com o intuito de verificar se a construção desse sujeito se dá sempre do mesmo modo ou de forma diferenciada nos periódicos analisados. Assim, será possível observar se o discurso jornalístico brasileiro apresenta pontos de vista diferentes sobre um mesmo tema ou se ele é construído num uníssono. Para tanto, nosso poder-fazer que se constitui na metodologia deste trabalho adota, como fundamentação teórica, alguns conceitos semióticos, como por exemplo, o percurso gerativo de sentido que é concebido em três níveis ou instâncias: o das estruturas fundamentais (oposição semântica profunda – valores inscritos no quadrado semiótico); o das estruturas narrativas (com dispositivos modais, sintaxe narrativa e esquema narrativo); e o das estruturas discursivas (isotopias figurativas e temáticas, além de projeções enunciativas); sem deixar de lado, evidentemente, a dimensão passional do discurso. Através desses conceitos operacionais, poderemos resgatar o sentido predominante manifestado nos textos jornalísticos analisados e, também, construir o percurso narrativo- passional do sujeito em destaque no corpus. Além disso, por considerarmos que o texto jornalístico não se limita à construção verbal, mas também compreende a visual, nossa análise observará o sincretismo das linguagens envolvidas. O corpus desta pesquisa é constituído por diferentes gêneros textuais (artigo, charge, editorial, entrevista e reportagem), selecionados durante o período de junho a outubro de 2002, dos – já mencionados – quatro periódicos de grande circulação nacional da mídia impressa. 18 O que nos motivou a fazer tal seleção foi a variedade de gêneros textuais (em que podemos encontrar diferentes linguagens: verbal, visual ou sincrética) em diversos meios, para que pudéssemos estabelecer uma comparação entre o sentido construído nesses textos, bem como o período que corresponde desde a oficialização das candidaturas (junho) até o realização das eleições (outubro). Assim, para realização deste trabalho, selecionamos e analisamos os seguintes textos: do mês de junho de 2002: uma reportagem publicada em 23/06/2002 pelo jornal O Estado de S.Paulo; uma reportagem publicada em 30/06/2002 pelo jornal Folha de S.Paulo; do mês de julho de 2002: uma reportagem publicada em 07/07/2002 pelo jornal Folha de S.Paulo; uma charge publicada em 10/07/2002 pelo jornal Folha de S.Paulo; uma reportagem publicada em 12/07/2002 pelo jornal Folha de S.Paulo; uma reportagem publicada em 09/07/2002 pelo jornal O Estado de S.Paulo; uma reportagem publicada em 24/07/2002 pela revista Istoé; uma reportagem publicada em 31/07/2002 pela revista Veja; do mês de agosto de 2002: uma reportagem publicada em 14/08/2002 pela revista Istoé; uma crônica publicada em 27/08/2002 pelo jornal O Estado de S.Paulo; uma reportagem publicada em 28/08/2002 pela revista Veja; uma reportagem publicada em 30/08/2002 pelo jornal Folha de S.Paulo; do mês de setembro de 2002: uma charge publicada em 11/09/2002 pela revista Istoé; uma charge publicada em 18/09/2002 pelo jornal Folha de S.Paulo; um editorial publicado em 18/09/2002 pelo jornal Folha de S.Paulo; uma reportagem publicada em 25/09/2002 pela revista Veja; 19 uma entrevista publicada em 25/09/2002 pela revista Veja; uma reportagem e uma entrevista publicadas em 25/09/2002 pelo jornal O Estado de S.Paulo; do mês de outubro de 2002: uma entrevista publicada em 02/10/2002 pela revista Istoé; Finalmente, o percurso que seguimos para efetivar nosso texto está organizado em oito partes, sendo que a Introdução e a Conclusão correspondem, respectivamente, aos itens 1 e 8 do trabalho e os itens 2 a 7 aos demais capítulos. No capítulo 2 Semiótica e mídia: percursos verbais e visuais do sentido, discorreremos sobre os princípios da teoria semiótica, bem como seus recursos para análise das linguagens verbal e visual – especificamente, do sincretismo dessas linguagens produzido pelo discurso jornalístico. Além disso, apresentaremos o conceito de figuratividade e esclareceremos os diferentes estágios do percurso gerativo do sentido. No capítulo 3 Mídia e história: (con)textos e discursos que se cruzam, faremos a exposição de tópicos essenciais sobre a linguagem – diferenciando os conceitos de texto e discurso – e sua organização no discurso jornalístico. No capítulo 4 Discurso político na mídia: uma paixão semiótica, apresentaremos alguns princípios teóricos sobre o conceito filosófico e semiótico de paixão. Exploraremos também duas paixões freqüentes em disputas eleitorais: o medo e a esperança. No capítulo 5 A construção do sujeito no e pelo discurso jornalístico, esclareceremos o conceito de sujeito a partir das diversas implicações que o pressupõe, tais como identidade- alteridade, enunciador-enunciatário, ator, actante, papel temático entre outras. No capítulo 6 Luiz Inácio Lula da Silva em manchete: a imagem de um candidato, analisaremos diversos textos organizados cronologicamente em função da data de publicação pelos periódicos, com o intuito de não só (re)construir a imagem do candidato à presidência do Brasil em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva, por meio do discurso jornalístico, mas também observar a voz do sujeito enunciador dos diferentes periódicos. No capítulo 7 O ethos do discurso jornalístico impresso: uma análise comparativa entre Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Veja e Istoé, compararemos o resultado das análises feitas no capítulo anterior e apresentaremos algumas considerações do ethos de cada periódico. Convidamos, agora, nossos leitores a trilhar esse percurso! 21 2 SEMIÓTICA E MÍDIA: PERCURSOS VERBAIS E VISUAIS DO SENTIDO Às vezes, não conseguimos ver algumas coisas, até o momento em que estamos preparados para olhá-las de um certo modo. (filme: Tenha fé) Agora o ouvido de meus ouvidos despertaram e os olhos de meus olhos se abriram. (Nietzche) Gostaríamos de iniciar este capítulo trazendo à tona o verbete “espetáculo” extraído de diferentes dicionários: [...] aquilo que chama e prende a atenção; encenação para ser apresentada diante de um público. Etim.lat. spectac lum, i: ‘vista, aspecto, chamar a atenção, jogos públicos, espetáculo’; deriv. De spectare ‘olhar, observar atentamente, contemplar’. (HOUAISS, 2001, p.1229) [...] representação teatral; vista; panorama. (BUENO, 1992, p. 446) [...] tudo que chama a atenção, atrai e prende o olhar. Contemplação, vista. Representação teatral, exibição de cinema, televisão etc., ou qualquer outra demonstração pública de canto, dança, interpretação musical etc.; função. Cena ridícula e/ou escandalosa. (FERREIRA, 1988, p. 269) Que espetáculo é a vida humana! Sim. A vida humana é um espetáculo. Espetáculo em muitos sentidos, em muitos níveis, em muitos contextos, em muitos discursos. Dizemos isso, pois, ao observar atentamente as relações humanas, quer no âmbito interpessoal, quer no social, reconhecemos certas características, certos traços, certas regularidades de ação que se mantêm invariáveis no tempo e no espaço, como se a vida humana fosse constituída por uma estrutura elementar inexorável cujo revestimento se altera constantemente em função da diversidade de máscaras incorporadas pelos sujeitos através de inúmeros jogos sociais. Eis um aspecto da vida-espetáculo. Além disso, na medida em que está intimamente associada à ordem do sensível, da percepção, da observação e, por conseguinte, do olhar, da contemplação, a vida humana se transforma em espetáculo, ou seja, relaciona-se à encenação, à representação, visto que é possível reconhecê-la como uma figurativização de temas comuns aos mais diversos sujeitos- 22 atores. Segundo Greimas (1976, p. 15), “[...] a percepção é considerada o ‘lugar não lingüístico onde se situa a apreensão da significação” e é graças à percepção que o mundo ‘toma forma’ diante de nós, e para nós. Desse modo, a vida humana como espetáculo identifica-se a um texto cuja linguagem sincrética absorve completamente o sujeito, produzindo um jogo de sentir, pensar e fazer que, uma vez interiorizado neste sujeito, constrói ali seu espaço cênico de onde frui o sentido. Como sugere também o verbete, todo espetáculo pressupõe um público, por isso podemos dizer que todo texto é uma encenação a ser apresentada diante de um público – o leitor – que tem a tarefa de resgatar os fios e retrilhar o percurso do sentido ali projetado. Eis que deste modo se constituem os textos para o leitor, como espetáculos que chamam e prendem a atenção, que incitam e merecem observação, que suscitam e clamam por contemplação. Esta é a ação do leitor diante de um mundo constituído por e construído com textos: contemplar, observar e prender-se aos espetáculos que o mundo lhe proporciona. Existem inúmeras definições para texto. Sob a perspectiva semiótica, podemos entendê-lo não só como um entrelaçamento de fios sintático-semânticos que mobilizam discursos e estruturam sentidos, mas também como uma cena espetacular cujas personagens – sujeito e objeto – denominados actantes mantêm relações estáticas ou dinâmicas (BARROS, 2003, p. 195). É o espetáculo narrativo. Em Greimas (1976, p. 173), encontramos mais esclarecimentos sobre o que ele considera como espetáculo, em termos semióticos: Já dissemos que fomos marcados por uma observação de Tesnière [...] que compara o enunciado elementar a um espetáculo. Se nos lembrarmos de que as funções, segundo a sintaxe tradicional, são apenas papéis desempenhados pelas palavras – o sujeito é nela ‘alguém que pratica a ação’; o objeto ‘alguém que sofre a ação’, etc. – a proposição é, com efeito, numa tal concepção, somente o espetáculo que o homo loquens se dá a si próprio. O espetáculo, porém, tem isto de particular, é que ele é permanente: o conteúdo das ações muda todo o tempo, os atores variam, mas o enunciado-espetáculo mantém-se sempre o mesmo, porque a sua permanência está garantida pela distribuição única dos papéis. (grifo nosso) Em outra citação, Greimas (1976, p. 155) insiste no uso do termo espetáculo para se referir à invariância de elementos que dão origem aos mais diversificados textos: [...] O jogo sintático que consiste em reproduzir cada vez, em milhões de exemplares, um mesmo pequeno espetáculo, que comporta um processo, alguns atores e uma situação mais ou menos circunstanciada, talvez seja 23 falseado e não corresponda à maneira de ser das coisas no mundo ‘real’[...] (grifo nosso) O texto é, no nível narrativo, uma encenação entre sujeitos que se revestem em diferentes papéis actanciais e agem uns sobre os outros, garantindo mudanças de estado. O texto é, no nível discursivo, um jogo de representações entre enunciador e enunciatário que se olham e se aproximam ou se distanciam em função do sentido ali manifestado. O texto é, no nível fundamental, uma estrutura bipolarizada que atrai e fixa a atenção do leitor para um de seus pólos. Assim, reiteramos nossa afirmação de que todo texto pode ser comparado a um espetáculo, pois como este, o texto é uma encenação, um jogo de representações que atrai e fixa a atenção do público. Além dessas acepções – e talvez por elas mesmo –, o termo espetáculo é utilizado, com tanta freqüência, como mote em diferentes estudos científicos. Como exemplo, podemos citar Roger-Gérard Schwartzenberg (1978), em O espetáculo político, ao afirmar que a política tem se apresentado aos eleitores como espetáculo. Inserida na indústria da persuasão (nos EUA no início da década de 30, quando o partido democrático instituiu um serviço publicitário permanente), a política passa ao campo da publicidade, cujo produto a ser vendido é o candidato o qual, revestido em uma embalagem (aspecto físico) e exibindo uma marca comercial (partido), procura conquistar o mercado (eleitorado) através da adesão/compra (voto). Não se tem aqui uma propaganda totalitária, com imposição de um candidato e seu programa, ao contrário, o que se tem é uma publicidade moderna em que se vende um candidato, através de um processo de sedução do eleitorado que explora mais a emoção do que propriamente a razão. Além do campo político, vemos também a aproximação do termo espetáculo ao discurso jornalístico ou midiático. Mais que uma aproximação, constatamos uma transposição entre os campos semânticos de espetáculo e de jornalismo, visto que, principalmente nas duas últimas décadas, nos foi possível assistir, ao vivo e em cores, aos inúmeros acontecimentos que marcaram a história, seja local, nacional ou internacional. O espectador tornou-se um telespectador ao contemplar, à distância, as cenas “reais” exibidas no noticiário. Um observador que, em estado de estesia, mais é levado a sentir o acontecimento através de seus olhos do que a refletir sobre ele. Seja pela televisão, seja pelo jornal, o (tel)espectador depara- se com a imagem daquilo que está distante de si, mas aproximado pelo veículo que a transmite, isto é, o (tel)espectador é deslocado através da imagem que se impõe diante dele, em movimento na televisão, ou embalsamada no jornal. 24 Com efeito, podemos afirmar que os meios de comunicação de massa recriam os acontecimentos de forma mais atraente e, conseqüentemente, o simulacro – inerente à relação comunicativa humana – aparece, mais uma vez, e agora de modo espetacular, na apresentação dos fatos. Podemos dizer que a transformação do acontecimento em uma notícia muito mais sedutora coloca os meios de comunicação como produtores de uma espetacularização dos fatos, visto que o simulacro apresentado pela(na) televisão ou pelo(no) jornal pode apagar a diferença entre acontecimento e imaginação, história e ficção, essência e aparência, misturando-os, mesclando-os, combinando-os a ponto de produzir efeitos de realidade, de hiper-realidade, de supra-realidade, ou até mesmo, de surrealidade. O que pretendemos dizer com isso é que a função do jornalista de retratar/relatar os acontecimentos por meio das linguagens com objetividade é uma falácia, pois, pela semiótica, sabemos que os conceitos de realidade, verdade, objetividade e imparcialidade – muito empregados no âmbito midiático – não são senão efeitos de sentido construídos pelo enunciador em seu texto. Além disso, o fazer jornalístico possibilita um percurso sinuoso no que podemos considerar como campo artístico/literário da linguagem, visto que, no discurso jornalístico, é quase inevitável a presença de certos elementos marcantes na criação ficcional, como por exemplo, o uso recorrente de figuras de linguagem, bem como o fato de tais textos se apresentarem mais icônicos, ou seja, terem como característica essencial a figuratividade. Por isso, ousamos dizer que a relação entre acontecimento e espetáculo está na base da produção jornalística cujo enunciador, por meio de diferentes linguagens, apresenta um modo de construir figurativamente os acontecimentos para serem vistos como espetáculos pelo leitor-espectador a fim de prender sua atenção. De modo semelhante, Marrone (1998) apresenta a relação entre informação e espetáculo em telejornais, que pode ser estendida à tendência que tem mobilizado os meios de comunicação, em geral, a repensarem seu objeto e exibi-lo ao público. Segundo esse autor (1998, p. 3): Esses problemas práticos que se referem à gestão cotidiana dos telejornais implicam um problema teórico de certa relevância: aquele que se refere ao assim chamado infotainment2, ou seja, aquele gênero televisivo que mistura em seu interior finalidade e intenções espetaculares. 2 Infotainment: neologismo inglês que poderia ser traduzido como “infortenimento”, com o sentido de algo que mistura informação e entretenimento. 25 Em outro trecho de seu trabalho, Marrone (1998, p. 14), ainda se referindo ao telejornal, afirma “[...] o modo de apresentar-se e de apresentar as notícias, portanto, de dar-se a ver (que já é, a rigor, espetáculo) é um modo de tomar posição no mundo [...]” (grifo nosso). Enfim, se o termo “espetáculo” é evocado por diversos pesquisadores de diferentes áreas, certamente é porque ele representa de modo preciso nossa essência e existência, ou pelo menos, é ele que melhor se nos dá a perceber as complexas relações sociais. Visto pelas palavras de Debord (1997, p. 15): Não é possível fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo e a atividade social efetiva: esse desdobramento também é desdobrado. [...] A realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente. Baseado nesses diferentes traços semânticos, o lexema “espetáculo” constitui para nós a metáfora (im)perfeita do tema desenvolvido no presente trabalho. Seja através da identificação de espetáculo com a mídia (ou discurso jornalístico), seja a partir de sua associação com a política (mais especificamente, com as campanhas eleitorais), seja ainda pelo seu sentido mais profundo de relação com a vida social. Em qualquer nível de análise, ou contexto, teremos o espetáculo (a encenação ou o jogo a partir do qual o sentido é produzido) que desperta tanta atenção e conduz o olhar daquele que se coloca como espectador: neste caso, o leitor dos meios de comunicação impressos. Além disso, aproximando os termos “parecer”, “mito” e “espetáculo” – já explorados até aqui –, constatamos algo em comum entre eles que se explica pelo fato de que o mundo natural só se manifesta por meio deles, ou seja, a essência e a existência humana, e portanto social, somente se constitui de sentido através do parecer, através do mito e através do espetáculo. Podemos afirmar, então, que esses três aspectos da linguagem garantem à condição humana a diversidade, a multiplicidade, a ambigüidade, a polissemia. 2.1 Semiótica e as diferentes linguagens (verbal e visual) Já é sabido que a semiótica greimasiana tem sua origem alicerçada em algumas teses centrais apresentadas em Curso de Lingüística Geral – obra atribuída a Ferdinand Saussure –, entre elas, a concepção de que signo é uma unidade indissolúvel de significante e significado. 26 Isso possibilitou a re-inclusão da semântica no campo da lingüística e, posteriormente, o desenvolvimento da teoria semiótica. A semiótica, campo de investigação que se constrói a partir de meados do século XX, consolida-se, entre outros fatores, como a teoria que possibilita o alargamento do conceito de linguagem ao conjunto dos sistemas de significação verbais ou não-verbais. Greimas e Courtés (1979, p. 259) declaram que: Partindo do conceito intuitivo do universo semântico, considerado como o mundo apreensível na sua significação, anteriormente a qualquer análise, tem- se o direito de estabelecer a articulação desse universo em conjuntos significantes ou linguagens, que se justapõem ou se superpõem uns aos outros. Pode-se igualmente tentar indicar algumas características que parecem aplicar- se ao conjunto das linguagens. Assim, todas são biplanas, o que quer dizer que o modo pelo qual elas se manifestam não se confunde com o manifestado [...] Assim, dessa citação extraímos, pelo menos, duas idéias básicas que vão fundamentar a semiótica e promover, de certo modo, seu amplo desenvolvimento e aplicação nas ciências humanas: a primeira é que há diferentes conjuntos significantes (linguagens) que articulam o universo semântico; a segunda diz respeito ao fato de que toda linguagem é biplana. A concepção que apresenta as linguagens em dois planos é fruto do trabalho de outro importante pesquisador nessa área – Louis Hjelmslev –, em quem Greimas se inspirou para estabelecer os domínios da semiótica. Para Hjelmslev, toda linguagem se articula em dois planos: o da expressão e o do conteúdo, sendo que ambos podem, ainda, ser observados em relação a uma forma e a uma substância. Vejamos algumas explicações sobre esses planos: plano da expressão: deve ser entendido como [...] o significante saussuriano considerado na totalidade de suas articulações, como o verso de uma folha de papel cujo anverso seria o significado, e não no sentido de ‘imagem acústica’ como uma leitura superficial de Saussure permite a alguns interpretá-lo. O plano da expressão está em relação de pressuposição recíproca com o plano do conteúdo, e a reunião deles no momento do ato de linguagem corresponde à semiose. A distinção desses dois planos da linguagem é, para a teoria hjelmsleviana, logicamente anterior à divisão de cada um deles em forma e substância. (GREIMAS e COURTÉS, 1979, p. 174) plano do conteúdo: 27 [...] o termo conteúdo é sinônimo do significado global de Saussure, sendo que a diferença entre o lingüista genebrino e Hjelmslev só aparece na maneira de conceber a forma lingüística: enquanto para Saussure esta se explica pela indissolúvel união entre significante e significado que assim se ‘enformam’ mutuamente e, pela reunião das duas substâncias, produzem uma forma lingüística única, Hjelmslev distingue, para cada plano da linguagem, uma forma e uma substância autônomas: é a reunião das duas formas, a da expressão e a do conteúdo – e não mais a de duas substâncias – que constitui, a seu ver, a forma semiótica. (GREIMAS e COURTÉS, 1979, p. 80) A relação de pressuposição recíproca entre a forma da expressão e a do conteúdo é denominada semiose. Semiose também é sinônimo de função semiótica. Esquematizando, temos: Substância Linguagem Plano da Expressão Forma (biplana) Plano do Conteúdo Forma Substância Deriva, então, da articulação entre os planos da expressão e do conteúdo, o conceito de semi-simbolismo. O conceito de linguagem semi-simbólica, proposto por Greimas e Courtés (1991, p. 227), tem a finalidade de precisar a teoria helmsleviana no que se refere às línguas monoplanas ou sistemas de símbolos. Para eles, diferentemente dos puros sistemas de símbolos, os sistemas semi-simbólicos são sistemas significantes que não se caracterizam pela conformidade entre as unidades do plano da expressão e do plano do conteúdo, mas pela correlação entre categorias que dependem dos dois planos. Greimas e Courtés (1991) também esclarecem que, definidos por seu tipo de relação entre forma da expressão e forma do conteúdo, os sistemas semi-simbólicos podem realizar-se de diversos modos. Por exemplo, enquanto um sistema semi-simbólico pode se apoiar em uma só categoria da expressão ou em uma hierarquia de categorias, outros podem fazê-lo sobre uma verdadeira redundância do significante, ou seja, uma dezena de categorias de forma, de cores, de técnicas etc. Um sistema semi-simbólico pode, ainda, se realizar em uma 28 substância sonora, visual ou outra, outros, porém, se realizam em uma semiótica sincrética, em uma pluralidade de substâncias que produzem assim uma sinestesia. Decorre disso o fato de que, em semiótica, a reunião de linguagens num determinado texto é chamada de “sincretismo”. No caso dos meios de comunicação impressos, como jornais e revistas, os textos com fotos, gráficos, fundos coloridos são exemplos de “semióticas sincréticas”. Sincretismo, portanto, é a relação estabelecida entre as linguagens, num determinado texto, e, conseqüentemente, a construção do sentido decorrente dessa relação. Em Greimas e Courtes (1991, p. 233), encontramos a seguinte explicação: As semióticas sincréticas (no sentido de semióticas-objetos, quer dizer, das magnitudes manifestadas que dão a conhecer) se caracterizam pela aplicação de várias linguagens de manifestação. Um spot publicitário, uma historieta, um telejornal, uma manifestação cultural ou política são, entre outros, exemplos de discursos sincréticos. [...] semióticas sincréticas constituem seu plano da expressão – e mais precisamente a substância de seu plano da expressão – com os elementos dependentes de várias semióticas heterogêneas. Afirma-se, assim, a necessidade – e a possibilidade – de abordar estes objetos como “todos” de significação e de proceder, em um primeiro momento, a analisar seu plano do conteúdo. (tradução nossa)3 Além dos conceitos explorados até o momento – plano da expressão, plano do conteúdo, semi-simbolismo, sincretismo –, outro se faz central para a teoria semiótica e sua proposta de interpretação das diferentes linguagens. É o conceito de figuratividade que, partindo da expressão plástica, se estende, posteriormente, para todas as linguagens. Bertrand (2003), nos capítulos 5, 6 e 7, desdobra o conceito de figuratividade. Por meio da análise de vários exemplos de discurso (principalmente o literário), o autor constrói, em pormenores, os inúmeros aspectos desse termo essencial e complexo da semiótica. Em linhas gerais, figuratividade sugere espontaneamente a semelhança, a representação, ou a imitação do mundo pela disposição das formas numa superfície. É capaz de tornar sensível a realidade sensível e, desse modo, é um termo aplicado a linguagens verbais e não-verbais, pois estas têm, em comum, a propriedade de produzir e restituir parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais concretas. A figuratividade faz surgir aos olhos do leitor a “aparência” do mundo sensível. 3 Las semióticas sincréticas (en el sentido de semióticas-objetos, es decir, de las magnitudes manifestadas que dan a conocer) se caracterizan por la aplicación de varios lenguajes de manifestación. Un “spot” publicitario, una historieta, un diario televisado, una manifestación cultural o política son, entre otros, ejemplos de discursos sincréticos. [...] las semióticas sincréticas constituyen su plano de expresión – y más precisamente la substancia de su plano de expresión – con los elementos dependientes de varias semióticas heterogéneas. Se afirma así la necesidad – y la posibilidad – de abordar esos objetos como “todos” de significación y de proceder, en un primer tiempo, a analizar su plano de contenido. (GREIMAS e COURTÉS, 1991, p. 233) 29 O conceito de figuratividade também tem raiz na teoria do sentido, de modo que podemos observá-lo mais amplamente nos fenômenos semânticos e realizações culturais ligados aos processos de figurativização. Como afirma Bertrand (2003, p. 154), a figuratividade rege em boa medida muitas formas e gêneros discursivos – dentre eles, o discurso jornalístico. Desse modo, a figuratividade é considerada, em semiótica, uma propriedade semântica fundamental da linguagem, que se apresenta em diferentes graus de manifestação de acordo com o discurso. Os discursos, então, se organizam em mais figurativos (considerados, grosso modo, figurativos) ou menos figurativos (designados como temáticos). Essas duas grandes classes discursivas (figurativa e temática) apresentam cada qual uma forma de adesão do enunciatário, ou seja, um modo de adesão que o contrato enunciativo de cada tipo de discurso propõe ao enunciatário – em que ele faz crer e como. Como nosso interesse reside no discurso jornalístico, considerado mais figurativo neste trabalho que envolve diferentes gêneros textuais – de charges a reportagens –, abordamos a discussão do conceito de figuratividade, relacionando-o ao modo de adesão do enunciatário ao discurso, visto que um dos objetivos dos meios de comunicação é, de certo modo, promover a aproximação do enunciatário e garantir sua fidelidade. Logo, quanto melhor desempenho na construção de discursos que arregimentem leitores por meio da aceitação de contratos de veridicção estabelecidos, principalmente, pela dimensão figurativa, maior o sucesso e a permanência desses meios no mercado. A figuratividade pode ser entendida, ainda, como a transcodificação das figuras da expressão do mundo natural em figuras do conteúdo das línguas naturais. Podemos dizer, então, que a figuratividade representa os modos de “contato” por meio dos quais, graças a atividade de percepção, o sujeito adere à substância do conteúdo. A figuratividade, então, se define também como um aspecto da semiose (já mencionada anteriormente), por meio da qual há uma aproximação e um ajuste entre uma figura significante do mundo percebido e o conteúdo de um sistema de representação verbal, visual ou sincrético. Essa relação é maleável, culturalmente alterada pelo uso e simulada no discurso, por isso a recusa à idéia de que os textos apresentam um “referente real” ou “referente fictício, imaginário”. Para a semiótica, os textos produzem “efeitos de realidade” ou “efeitos de ficção” e essa construção tem como um de seus pilares a figuratividade. De acordo com Bertrand (2003, p. 155): 30 [...] os textos figurativos requerem uma forma de racionalidade peculiar, que é de ordem analógica, e não dedutiva. A adesão do leitor procede, por assim dizer, de maneira lateral: basta pensar no funcionamento da parábola (evangélica ou não), cujo significado figurativo está aí para veicular uma mensagem abstrata, espiritual ou teórica, que só pode adotar, para se dizer e ser compreendida, um suporte concreto da linguagem. [...] Fala-se, então, em ‘pensamento figurativo’, em ‘raciocínio figurativo’ e evoca-se a ‘profundidade’ do figurativo, embora este se situe na superfície das estruturas discursivas, dentro do percurso gerativo do sentido. Assim, é importante ressaltar que, para se ter acesso à figuratividade, há necessidade de uma análise da estruturação sintagmática dos textos, ou seja, a chamada isotopia do discurso. A isotopia designa a interação dos semas ao longo de uma cadeia sintagmática (dos elementos de significação – não das palavras – e das figuras – não dos signos). Sua análise permite examinar a permanência e a transformação dos elementos de significação. A isotopia do discurso vai ser desdobrada em isotopia figurativa e isotopia temática. Elas se diferem, mas são igualmente complexas e se encontram entretecidas no discurso. A isotopia figurativa, concernente aos atores, ao espaço e ao tempo (no desenvolvimento de uma narrativa, por exemplo), distingue-se da isotopia temática, mais abstrata, mesmo sendo esta estabelecida pela leitura a partir da superfície figurativa. Antecipando algumas considerações ao tomar como exemplo o corpus de nosso trabalho, a exemplificação da isotopia temática ficaria assim: a tematização “mudança” é manifestada no discurso pela isotopia figurativa (ou figurativização): “Lula nas eleições anteriores era sisudo, carrancudo, inflexível. Na atual campanha, mostra-se simpático, com sorriso no rosto, alegre, flexível”. Alguns discursos se apresentam quase que exclusivamente construídos por isotopias figurativas; outros mesclam as duas em proporção semelhante; já outros ressaltam a isotopia temática. No entanto, o importante é perceber que a escolha desta ou daquela isotopia como predominante no texto evidencia uma estratégia do enunciador – mesmo que o discurso se organize fundamentalmente a partir de uma delas, cabe ao enunciador trabalhá-la, mais ou menos, de acordo com sua intenção – para persuadir o enunciatário a aderir ao discurso, visto que cabe à isotopia a coerência do texto e, conseqüentemente, do discurso. Além disso, à isotopia também compete uma maior ou menor “abertura” para interpretação, isto é, a isotopia é responsável por restringir ou favorecer tanto a polissemia, quanto o fazer-crer. Como já dito, a dimensão figurativa do discurso é responsável pelos efeitos de sentido que criam a “ilusão de verdade”, a “tela do parecer”. Portanto, a figuratividade é a principal responsável pela forma de adesão do enunciatário aos discursos que se apresentam 31 construídos com maior grau de figuras, pois, como afirma Bertrand (2003, p. 155), “fazer ver também é fazer crer”. Também associada à figuratividade, está a dimensão passional do discurso, já que, ao explorar mais enfaticamente a isotopia figurativa, um texto transforma-se em poderoso instrumento de envolvimento passional dos enunciadores e enunciatários. Para nós, fazer ver é fazer sentir para fazer crer. Ao despertar paixões eufóricas – tal como a esperança –, a partir de um arranjo altamente icônico (mais figurativo), o enunciador sensibiliza mais rapidamente o enunciatário e o leva a crer mais facilmente em um tema correspondente. 2.2 Semiótica narrativa e discursiva: conceitos, operacionalização e o percurso gerativo do sentido Aliando princípios da lingüística saussuriana com reformulações feitas por Hjelmeslev, explorando o modelo proppiano de análise de narrativas, dialogando com a problemática do sujeito lançada por Benveniste e refletindo sobre alguns aspectos da fenomenologia sob a perspectiva de Merleau-Ponty, Greimas e seus colaboradores desenvolveram, ao longo de quase meio século, uma teoria científica que, por sua extensão e profundidade, equivale a uma radiografia da organização e do funcionamento social sustentados e consolidados pela(s) e na(s) linguagem(ns). Essa teoria – com ares de ciência – foi, pouco a pouco, assumindo um papel de destaque junto a pesquisas nas áreas das ciências humanas e sociais, delineando-se como o estudo da significação e do sentido. O projeto semiótico, que podemos designar como de base para toda a ampla pesquisa desenvolvida posteriormente, teve como marco inicial a publicação da obra de Greimas, Semântica estrutural, a qual reuniu diretrizes essenciais para a fundamentação dessa teoria. O autor, ao demarcar nessa obra as estacas do campo semântico, inicia a construção de um grande edifício científico cujos pilares se concretizaram como um modelo de investigação da significação. Esse modelo, visto inicialmente como lingüística do discurso, logo em seguida, se estabelece como semiótica européia cujas raízes e postulados nascem da teoria da linguagem de origem lingüística, mas sua abrangência, aplicação e repercussão vão, pouco a pouco, se estendendo para as demais linguagens. A semiótica, como uma teoria do sentido, tem um domínio muito amplo e se vale de diferentes disciplinas das ciências humanas para a constituição de seu arcabouço teórico. Ou seja, em seus princípios, ela é originária da confluência entre ramos da ciência lingüística, da 32 antropológica e da filosófica, por isso, mesmo sendo considerada em geral como estrutural e de inspiração hjelmsleviana, é um produto interdisciplinar que procura realizar, de modo eficaz e coerente, aproximações teóricas que dêem conta de seus questionamentos. Diferenciando-se da semântica, cujo objetivo é estudar as significações lexicais tomadas em sua evolução histórica (semântica histórica) ou nas relações constitutivas do sentido da palavra (semântica sincrônica), a semiótica aproxima-se da semiologia, uma vez que ambas são de caráter mais geral, ou seja, preocupam-se com as diferentes formas de manifestação da linguagem. Além disso, essas duas têm [...] em comum o fato de ultrapassarem a semântica em dois sentidos: para além da palavra, da oração, do período, elas encaram os fenômenos significantes em sua globalidade discursiva, para além da simples língua natural, elas consideram a significação como um objeto próprio, transversal às línguas que lhe dão forma e asseguram-lhe a eficiência (BERTRAND, 2003, p. 12). Segundo Fiorin (1995), Semântica estrutural desempenhou um papel fundamental na construção do edifício teórico da semiótica francesa. Para ele, essa obra exerceu a função de discurso fundador, em suas palavras, “[...] funciona como referência básica para a elaboração teórica e para a compreensão de um dado domínio da ‘realidade’; estabelece uma relação particular com o que veio antes” (FIORIN, 1995, p. 19-20). Ao descrever e explicitar o papel da semântica na constituição da semiótica, Fiorin se refere a um projeto semiótico: “Verifica-se aqui que, ao pensar a semântica de duas maneiras, Greimas está elaborando, na verdade, não um projeto semântico, mas um projeto semiótico” (FIORIN, 1995, p. 24). Esse projeto semiótico viria, anos mais tarde, consolidar-se como um dos mais difundidos e utilizados métodos científicos de análise do sentido, o qual deve ser percebido como as relações estruturais, subjacentes e reconstrutíveis que produzem a significação. E é com a publicação de Du sens, em 1970, que Greimas propõe dar mais esclarecimentos sobre o objeto científico que o envolveria por mais duas décadas. Dessa forma, Greimas concebeu uma teoria de análise do discurso a qual oferece princípios, métodos e técnicas que, embora complexos, são adequados e eficientes à análise interna do discurso apreendido em diferentes níveis de geração e de abstração os quais se articulam segundo um percurso, consagrado como percurso gerativo do sentido. O discurso é, então, analisado, pela semiótica greimasiana, por meio da identificação desses três diferentes níveis ou instâncias: o das estruturas fundamentais (oposição semântica 33 profunda – valores inscritos no quadrado semiótico); o das estruturas narrativas (com dispositivos modais, sintaxe narrativa e esquema narrativo); e o das estruturas discursivas (isotopias figurativas e temáticas, além de projeções enunciativas), sendo que cada nível comporta dimensões sintáticas e semânticas. Para explicitar esse processo de geração do sentido, descreveremos brevemente cada um dos níveis. O nível mais simples, geral e abstrato é o denominado fundamental. Nesse nível, o sentido é estabelecido em uma rede de relações a partir de uma categoria semântica mínima que comporta dois elementos simples em oposição entre si. Esses elementos simples, por meio de operações de afirmação e negação, mantêm relações de contradição, contrariedade e implicação. Dessa rede de relações, é formalizado o modelo do quadrado semiótico, o qual ainda apresenta um termo complexo (afirmação simultânea dos termos simples) e um termo neutro (negação simultânea dos termos simples). É interessante observar, nesse modelo, que, embora as relações sintáticas sejam sempre mantidas, a categoria semântica pode variar. Ao lado da categoria semântica (dimensão inteligível), dispõe-se também de uma orientação sensível aos termos simples, ou seja, uma valorização positiva ou negativa desses elementos em função do discurso: é a chamada categoria fórica, da qual resultam os qualitativos eufórico e disfórico. No nível intermediário, designado como narrativo, ressalta-se o percurso narrativo de um sujeito cujo ponto central incide sobre a transformação de estados por que passa esse sujeito e, conseqüentemente, sobre a relação de junção que se estabelece entre ele e um objeto de valor. Esse percurso narrativo do sujeito, aliado a outros dois percursos (o do destinador- manipulador e o do destinador-julgador), constitui o esquema narrativo canônico que, por sua vez, compreende quatro etapas: manipulação, competência, perfórmance e sanção. Além das relações estabelecidas entre sujeito e objeto de valor, é importante considerar, ainda nesse nível, os estados de alma do sujeito, ou seja, observar a(s) paixão(ões) que regula(m) o sujeito e seu fazer. Os níveis fundamental e narrativo definem a instância sêmio-narrativa de geração do sentido. Resta-nos agora esclarecer em que consiste o nível discursivo. Mais complexo e superficial de todos, o nível discursivo se apresenta por meio da articulação dos elementos enunciativos (pessoa, tempo, espaço) dispostos de tal modo a garantir um enfeixamento temático que pressupõe figuras (dependendo do tipo de discurso, aparecem mais, ou menos, figuras). A respeito do percurso gerativo do sentido, Bertrand (2003, p. 48) afirma que “[...] cada um dos níveis desse percurso é, na realidade, uma janela aberta para um conjunto de 34 problemáticas que, separadamente, foram objetos de inúmeras investigações entre os semioticistas”. Isso garante um avanço ainda maior da teoria que, nos dias atuais, aprofunda questões já apontadas por Greimas. Esse aprofundamento evidencia um novo momento para os semioticistas que, partindo do modelo clássico, apresentam um modelo passional do percurso gerativo do sentido, redirecionando a semiótica da ação para uma semiótica da paixão. Inseridos nesse universo semiótico de observação dos discursos produzidos pela e na sociedade, encontramo-nos diante de uma teoria que, pressupondo o fazer do enunciador e a atividade decorrente da leitura, “mergulha” no texto em busca do sentido. Por isso, podemos afirmar que o discurso, para a semiótica, se constitui num ir-e-vir do texto, da manifestação à imanência e da imanência à manifestação. Desse modo, é no entremesclar dos fios sintáticos e semânticos do texto que se esconde e se camufla o sentido; para chegar a ele, o semioticista deve trilhar percursos, reconhecer atores, desvendar traços, passear por tramas, depreender paixões, contornar figuras, esboçar temas até atingir suas profundezas. Esse é o panorama conceitual do presente trabalho que, ao se fundamentar na semiótica greimasiana, entende o texto como um processo de significação, de construção do sentido, de discursivização, estruturado por uma rede de relações sintático-semânticas em cuja análise se estabelece o diálogo texto-discurso-sentido. Nos estudos atuais da semiótica, encontramos, para a noção de texto, duas concepções que adotamos neste trabalho. A primeira concepção observa o texto como um objeto de significação, de cujo interior emana o sentido, ou seja, a partir do enunciado e, conseqüentemente, da análise interna (estrutural) que dele se faz, é possível chegar ao sentido. Complementar e paralelamente a essa concepção, adota-se um outro ponto de vista para a análise do texto, desta vez como objeto de comunicação entre sujeitos (enunciador/enunciatário) que, pelo texto, se projetam e se reconhecem a ponto de sugerir um simulacro da enunciação. Esquematizando o que foi apresentado neste tópico, teremos: 35 Nível discursivo: figurativo e temático; resgate de aspectos da enunciação; instância de mediação e de conversão crucial entre estruturas profundas e superficiais. Nível narrativo: actancial e modal; estruturas narrativas virtuais; nível intermediário em que se organizam elementos da sintaxe textual. Nível fundamental: axiológico; mais abstrato e simples onde se estabelece uma oposição semântica que se relaciona à categoria tímica. 2.3 Palavra e imagem: formas de expressão e de conteúdo do cotidiano Passemos, então, a discorrer sobre os elementos básicos para a construção e realização do sentido nos meios de comunicação impressos, ou seja, a palavra, a imagem e, mais precisamente, a relação entre elas. Palavra (texto verbal) e imagem (texto visual) estão tão imbricadas em nossa sociedade que não podemos nem devemos priorizar uma em detrimento da outra. Ao contrário, precisamos, antes, saber como extrair dessa ligação discursiva as mais adequadas interpretações e análises. Embora nos pareça familiar a idéia de que a palavra como texto verbal, inicialmente na sua forma oral, tenha ocupado, ao longo da história da humanidade, uma posição de destaque como meio de comunicação entre os indivíduos, é à imagem que devemos o título de pioneira do registro das primeiras mensagens produzidas pelas civilizações mais remotas. As imagens em cavernas, desenhadas ou pintadas – petrogramas –, gravadas ou talhadas – petroglifos –, podem ser consideradas precursoras da palavra escrita e um dos primeiros meios de comunicação humana, as quais, inicialmente num processo de imitação, esquematizavam visualmente as pessoas e objetos do mundo natural. Com o desenrolar da história e o desenvolvimento da escrita, a palavra passou a assumir um papel importante, principalmente em algumas sociedades – as consideradas letradas –, sem que, para tanto, a imagem fosse preterida. 36 Certamente, houve momentos em que as atenções se voltaram mais para uma do que para outra forma de comunicação; entretanto, é inegável a participação de ambas na composição do construto cultural da humanidade. Nesse contexto, podemos afirmar que, de certo modo, o século XX marcou a história – entre outros aspectos – como o período em que mais se produziu e mais se utilizou de recursos para disseminação da imagem como forma de comunicação entre as diferentes camadas sociais, quer pela publicidade, quer pelos meios de comunicação social – jornal, revista, televisão e, mais recentemente, internet. Há algumas décadas, vivemos a era da imagem impressa e eletrônica, on-line e em tempo real, que invade espaços e cria novos (ciberespaço) para projetar neles todo o imaginário cultural da humanidade a uma velocidade jamais equiparável à nossa possibilidade de absorção. Entretanto, nessas novas formas de relação e de contato comunicativas desenvolvidas e vividas pelo ser humano, deparamo-nos com os mesmos desejos, anseios e angústias que o marcam há séculos, encontramos as mesmas paixões que o governam há tempos e que se concretizam em ações já reconhecidas em antigas narrativas cuja estrutura se mantém intacta, embora sua superfície se diversifique e se atualize em novas figuras a todo instante. É como se estivéssemos diante de uma tela em que formas já se solidificaram em antigos sulcos, porém, ao frescor de coloridas pinceladas, temos sempre a impressão de viver o novo (vã ilusão da humanidade!). Após esse brevíssimo relato da origem e da participação da imagem em nossa sociedade, é necessário entendermos a complexidade de sua natureza e funcionamento. A imagem, por ser considerada uma linguagem universal, incita naturalmente a uma leitura. Muitas vezes, o leitor realiza a leitura da imagem sem critérios específicos, justamente pelo fato de se sentir competente a reconhecer sua forma de manifestação e, conseqüentemente, seu conteúdo. Decorre daí uma sutil distinção que gostaríamos de destacar sobre o ato de leitura da imagem: sua percepção e a apreensão de sua significação. Bertrand (2003, p. 160) explica a relação entre o sujeito e o mundo natural por meio dos sentidos, utilizando para tanto citações de Merleau-Ponty: [...] ‘essa experiência [da percepção] nos põe em presença do momento em que se constituem para nós as coisas [...]; ela nos fornece um logos no estado nascente’. Se a visão já está habitada por um sentido ‘que lhe dá uma função no espetáculo do mundo’, logo esse mundo do senso comum se desenvolve como uma linguagem figurativa e articulada em ‘propriedades sensíveis’ inseparáveis de ‘propriedades discursivas’. 37 Se “propriedades sensíveis” são inseparáveis de “propriedades discursivas”, a percepção já é a possibilidade do sentido, é a significação em potencial que, através do parecer, realiza um movimento de constituição recíproca entre o sujeito e o objeto visto. Ver é não só identificar objetos do mundo, como também apreender relações entre tais objetos, para construir significações. Ver é compreender e interpretar relações de sentido. “Ver já é um ato de linguagem. Esse ato faz das coisas vistas a enunciação da invisível textura que as ata” Certeau (apud BERTRAND, 2003, p. 160). Além disso, se, como afirmou Kurt Tucholsky (apud JOLY, 2003, p. 25), Ein Bild sagt mehr als 1000 Worte (“uma imagem vale mais do que mil palavras”), é indiscutível o poder de manifestar sentidos e de provocar sensações que as imagens têm. Não só isso. As imagens, expressão básica dos meios de comunicação, são utilizadas como evidência de autenticidade de um fato – “efeito de realidade” (Roland Barthes), ou ainda “impressão referencial” (Rastier e Greimas) –, pois toda imagem conta uma história. Outro fator que reforça a ação das imagens sobre os (tele)espectadores é o fato de que sua exibição, muitas vezes, feita simultânea e instantaneamente, produz o efeito de que é possível vivenciar vários acontecimentos ao mesmo tempo em diferentes lugares – uma vez que a relação tempo-espaço passa a ser uma questão bastante relativa, visto que “eu estou aqui, mas meus olhos podem estar lá sem que para isso haja uma variação espácio-temporal” –, podemos afirmar que essa é uma experiência estésica em que se tem um rearranjo das dimensões espácio-temporais, diferente do que estamos acostumados a vivenciar. A experiência estética, assim como vemos em Greimas (2002), é um evento extraordinário enquadrado pela cotidianeidade, é uma surrealidade englobada pela realidade; nela o tempo pára, o espaço se fixa e ocorre um sincretismo entre sujeito e objeto que estão disjuntos na temporalidade de todos os dias. Merece destaque também o fato de que a imagem carrega em si a ambigüidade, pois, embora pareça auto-referente, possibilita o engano, o desvio da “realidade”, o distanciamento daquilo a que se refere no mundo natural. Uma vez que depende da produção por um sujeito e do reconhecimento por outro, o sentido não é fixo, mas construído a partir daquilo que ela evidencia. Além disso, a imagem é um objeto segundo em relação a um outro que ela representa de acordo com certas leis particulares. E, por apresentar essa natureza imitadora, as imagens são traidoras, pois ao mesmo tempo em que nos oferecem um sentido delineado, elas podem sugerir outro, às vezes, até mesmo divergente do primeiro, principalmente quando em relação com outra linguagem, como, no caso de jornais e revistas, a linguagem verbal. 38 Entretanto, toda imagem apresenta um caráter referencial e um caráter discursivo que possibilita certas regulações de sentido no momento de sua leitura. Isso equivale a dizer que, mesmo sendo essencialmente polissêmica, a imagem, como qualquer outra linguagem, é passível de especificidades que garantem sua análise, além disso, traz à tona marcas enunciativas que organizam sua significação no contexto sócio-histórico-cultural. “Em semiótica visual, a imagem é considerada como uma unidade de manifestação auto-suficiente, como um todo de significação, capaz de ser submetido à análise” (GREIMAS e COURTÉS, 1979, p. 226). Há quem diga que as imagens podem testemunhar o que não pode ser colocado em palavras, mas seria essa a relação entre imagem e palavra em nossos dias: uma diz o que a outra não pode revelar? Cremos que não, pois imagem e palavra se completam. Há entre elas um princípio de interação constante, de circularidade reflexiva e criadora. Elas se suprem mutuamente de suas deficiências, se alimentam uma da outra, como num ciclo vital, para gerar sentido. Sendo assim, imagem e palavra são linguagens distintas em natureza – forma e substância da expressão –, mas semelhantes em atributos – forma e substância do conteúdo –, além disso, ambas realizam funções comunicativas e, conseqüentemente, discursivas. 40 3 MÍDIA E HISTÓRIA: (CON)TEXTOS E DISCURSOS QUE SE CRUZAM O mundo é para a semiótica um texto, a macro- semiótica do mundo natural, que já se apresenta a nós como um conjunto significante e não como uma tela cinza, insignificada. (Waldir Beividas) O discurso é esse espaço frágil em que se insere e se lêem a verdade e a falsidade, a mentira e o segredo; [...] equilíbrio mais estável ou menos, proveniente de um acordo implícito entre os dois actantes da estrutura da comunicação. (Greimas) É impossível concebermos uma sociedade sem comunicação. Nossa organização social se estabelece graças à comunicação. Vivemos imersos num mundo tecido pela comunicação o qual se estrutura a partir de inúmeros sentidos e de incontáveis discursos. Nesse mundo plurissignificativo da comunicação, o ser humano necessita de uma direção, de um sentido. Imerso no caos discursivo – areia movediça que o prende e o tenta engolir –, o indivíduo crê sobreviver por uma orientação que só pode ser estabelecida por textos. Se não tivesse como esteio o texto e suas demarcações estabilizadoras do sentido, o indivíduo estaria mais do que entregue à “sua própria sorte”, ou seja, com pouca – ou quase nenhuma – possibilidade de interação com o outro por meio de linguagem, pois o “texto, qualquer que seja sua extensão, é lugar de desambigüização, ao menos parcial das significações” (BERTRAND, 2003, p. 171). A possibilidade de interação reside no texto. O texto é, na verdade, um catalisador de sentidos que permeiam a sociedade. Um sentido se circunscreve no texto, mas sua origem está aquém do texto, assim como sua projeção vai além dele. Como descreveu Julia Kristeva, “os textos são cristais de significância na história”. Essa metáfora nos permite fazer pelo menos duas interpretações. Em primeiro lugar, tal afirmação sugere que podem ser inúmeras as possibilidades de sentido produzido pelas fronteiras de um texto e, em segundo lugar, aponta para o fato de que os textos cristalizam sentidos, garantindo certas regulações sintáticas, semânticas e pragmáticas. Os elementos básicos para a construção e a apreensão do sentido: língua, sujeito, ideologia e história, constituem o que denominamos condições de produção do discurso. Tais 41 condições (que se organizam pela enunciação) delineiam o sentido que vai ter seus limites regulados pelo texto (conformado em enunciado). Assim, a tríade texto-sentido-discurso se impõe como indispensável à sobrevivência humana e é inerente à sua história. É sabido que o objeto da semiótica é o texto. Como já mencionado anteriormente, esta teoria nasce com o intuito de explicar a construção do sentido nos textos; primeiramente, pela análise de suas relações internas e, logo em seguida, numa dimensão mais abrangente que expande os limites do texto, pela observação das relações enunciativas pressupostas ao texto/enunciado. Por isso, a teoria semiótica diferencia texto e discurso. Para ela, texto é a união do plano da expressão com o plano do conteúdo o qual engloba os níveis discursivo, narrativo e fundamental (cf. item 2.2). Visto desse modo, “o texto é, em princípio, um signo, ou seja, possui um significado/conteúdo que é veiculado por meio de uma expressão, a qual pode ser verbal, visual entre outros tipos, bem como a combinação destes diferentes tipos o que, em semiótica, denomina-se texto sincrético” (DISCINI, 2005, p. 29). Entretanto, o texto não pode ser visto apenas como signo, porque tanto o conteúdo como a expressão supõe cada qual relações internas de sentido, e também porque o próprio texto deve ser considerado situação de comunicação (o que supõe um enunciado em relação com uma enunciação). Por isso, à semiótica compete observar as relações entre plano do conteúdo e plano da expressão, entre enunciado e enunciação para reconstruir não apenas o que o texto diz, mas também porque e como diz. Já o discurso corresponde ao nível do percurso gerativo mais superficial e ao mesmo tempo semanticamente mais rico. Para Fiorin (1997, p.41), o discurso é a materialização de formações ideológicas, ou seja, da visão de mundo de uma dada classe social, logo, todo discurso é social. Esse autor ainda explica que, para cada formação ideológica, corresponde uma formação discursiva a qual ele define como um conjunto de temas e figuras que materializam uma determinada visão de mundo. Desse modo, o nível discursivo do percurso gerativo de sentido descrito pela semiótica deve ser um dos mais explorados pelo analista que deseja trabalhar, assim como nós, com questões ligadas à ideologia e à história. Segundo Fiorin (1995, p. 27), quando Greimas diz que uma visão de mundo é significação e condição de significação, está mostrando que a linguagem é materialização da ideologia e que uma Weltanschauung (uma ideologia no sentido gramsciano) preside à 42 construção do discurso. Isso evidencia o aspecto histórico não desprezado por Greimas em suas pesquisas. Nascimento (2004, p. 192-193), fundamentando seu artigo em Greimas e Lopes, discorre sobre o conceito de texto. Para a autora, “construir um texto é produzir uma nova definição”. Essa afirmação não só se apóia na distinção, resgatada por Greimas, entre definição lógica (formulada por Aristóteles, tem por função descrever a essência dos seres), definição lexicográfica (ainda de herança aristolélica, procura elaborar uma definição-tipo que represente um saber comum de um termo institucionalizado por uma comunidade lingüística) e definição discursiva (de acordo com Greimas, é da ordem de um discurso em particular e tem como finalidade construir um subcódigo autônomo), como também está embasada na concepção de texto como a articulação de três tipos de interpretantes (extradiscursivo: o do código, intradiscursivo: o do contexto e heterodiscursivo: o ideológico) que se homologam em discursos. Para Nascimento (2004), as três definições propostas por Greimas dialogam com os três interpretantes aos quais se refere Lopes. Portanto, para a semioticista, produzir um texto é colocar limites no discurso, isto é, colocar limites no universo semântico – fruto da memória cultural –, transformando o discurso em um “microuniverso semântico fechado em si mesmo”, ou ainda o transformando em gênese, em texto. É nesse âmbito (discurso-texto) que o trabalho jornalístico atua, pois os meios de comunicação social (no papel de enunciadores) colocam em ação e inter-relacionam sistemas de comunicação e sistemas de cultura e de conhecimento (organizando-os em textos) e, conseqüentemente, provocam um reflexo sobre o pensar, sentir e agir dos atores sociais (no papel de enunciatários). Para muitos pesquisadores, quando os meios de comunicação social apresentam sistemas de cultura e conhecimento homogêneos, a tendência desse reflexo exercido sobre os atores sociais é condicionar suas formas de pensar, sentir e agir, ou seja, é exercer influência cognitiva, passional e pragmática sobre eles. De qualquer modo, dizer que os meios de comunicação influenciam o indivíduo é quase lugar-comum. O desafio está em dizer como eles o fazem e também observar que não é uma influência unilateral, uma vez que esses meios estão inseridos no “próprio mundo” a que se referem, logo, interagem com ele, tanto o influenciando, como sendo por ele influenciados. A teoria semiótica tem se empenhado na análise de “como” um texto diz o que diz. No caso específico do discurso jornalístico, para que tal análise seja feita adequadamente, é 43 necessário, primeiramente, observarmos alguns aspectos teóricos que passamos a discutir a partir do próximo tópico e nos dois próximos capítulos. 3.1 Mídia: narração ou construção de acontecimentos? Qualquer evento pode se tornar notícia. Qualquer evento pode ganhar notoriedade na mídia. Mas o que faz um acontecimento qualquer ganhar estatuto de “notícia”? Para entendermos essa questão, é necessário recorrer a teorias que se detêm no estudo da notícia (ou de sua produção) propriamente dita, e reconhecer as relações entre o mundo natural e o simbólico na produção jornalística, bem como as relações entre o jornalismo e a história. Abordaremos aqui, pontualmente, conceitos de alguns pesquisadores da teoria da comunicação que discutem essas relações, mesmo sabendo que eles divergem, em alguns pressupostos, da semiótica, nossa base teórica. A citação desses conceitos, no entanto, contribui na apresentação de diferentes pontos de vista sobre o mesmo objeto de estudo: o discurso jornalístico. Uma das principais divergências entre as teorias de comunicação de um modo geral e a teoria semiótica é a abordagem do conceito de realidade. Enquanto as teorias de comunicação admitem a existência da realidade e a tomam como referente, a semiótica somente admite a existência da realidade pelos textos, ou seja, só existe acesso ao “real” por via de textos, depois de sua apreensão pelo homem, logo, a construção de uma determinada realidade se dá a partir de uma visão de mundo, de uma ideologia. Sabendo disso, passemos, então, a apresentação de conceitos da teoria da comunicação. Um dos autores de maior repercussão nessa área é, sem dúvida, Mauro Wolf (1995). Para ele, o trabalho jornalístico está orientado para captar mais os acontecimentos pontuais, que representam a ruptura, do que os constantes, que representam a permanência, a estabilidade. A ruptura está associada à transgressão social, ao “avesso da vida”, ao extraordinário, pois quanto menos previsível for o acontecimento, mais probabilidade tem de se tornar notícia e de integrar assim o discurso jornalístico. Decorre daí a valorização do “novo”, da “novidade”, do “aqui-agora”, e, contrariamente, a desmotivação da construção diacrônica da notícia. Apoiando-se nas pesquisas de Wolf, vários autores exploraram e procuraram compreender as relações entre o “real” e o simbólico que permeiam a notícia. Entre eles, 44 encontramos Mota (2002, p. 307) que define notícia como sendo o fato, a versão do fato e o metafato. Como fato, a notícia é o “anormal”, um rompimento com a ordem natural das coisas, um desvio do comportamento esperado. Além disso, para se tornar notícia, o fato deve apresentar os seguintes atributos: atualidade, proximidade, proeminência, impacto e significância. Daí decorre o conceito de noticiabilidade que, segundo Wolf (1995, p. 175), “é o conjunto de elementos através dos quais o órgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos, de entre os quais há que seleccionar as notícias”. Um dos componentes da noticiabilidade é o que Wolf chama de valores/notícia (newmaking) cujos pressupostos implícitos podem ser descritos como: as características substantivas das notícias: o seu conteúdo; a disponibilidade do material (o meio) e os critérios relativos ao produto informativo; o público; a concorrência. Já como versão do fato, a notícia se apresenta como um texto com certa permissividade na recriação simbólica do real narrado. Segundo Mota (2002, p. 308), a notícia revela certa interpretação e até dramatização do evento. Não é incomum nos depararmos com a narração de um fato cujos elementos vivenciados são transformados em espetáculo em que a vida passa a ser avaliada como ficção, em que o leitor é pré-inserido como personagem. Desse modo, Mota (2002) descreve esse tipo de notícia em que há uma dramatização típica como um texto com traços de narrativa pseudoliterária, isto é, que se utiliza da verossimilhança para fazer crer ao leitor que o fato efetivamente aconteceu conforme narrado e, nesse caso, a criação mantém uma intimidade com o acontecimento. Para Mota (2002, p. 315), “o enunciado é íntimo ao referente, entretanto não é o fato que conta, mas sim o conto do fato”. E é dessa forma que a notícia aparece como metafato, pois o que passa a existir é o enunciado do fato tal como narrado, não o fato em si. O fato é (re)criado tantas vezes quanto narrado. O metafato, ou meta-acontecimento, é regido pelas regras do mundo simbólico, articulando as instâncias enunciativas do sujeito e do objeto, os agentes e os atores. De acordo com Mota (2002, p. 317), os próprios acontecimentos referenciais estão doravante voltados a um devir discursivo, espetacular. As notícias não são ficção, mas são histórias sobre a realidade, não são a realidade em si, logo, são fatos novos, metafatos, metanotícias. Analisadas desse modo, as notícias, como processo de comunicação, atuam como mito – um sentido construído e difundido que permanece como verdadeiro –, ou seja, fazem parte de uma prática cultural antiqüíssima e universal (a narrativa e o contar histórias); fornecem 45 mais do que o fato; contam as coisas não como elas são, mas segundo seu significado; constroem totalidades significativas a partir de acontecimentos dispersos; e, finalmente, como mito, as notícias podem “tranqüilizar”, pois explicam fenômenos desconsertantes. Ao lado dessa perspectiva de observação da notícia e, portanto, do texto jornalístico, encontramos a perspectiva semiótica apresentada por Marrone (1998, p. 7) para quem “não há notícia ‘pura’ e, a partir dela, um modo de dá-la: não só na realidade, como é óbvio, já no modo de dá-la se produz uma ou outra notícia, mas, sobretudo, se produzem – no momento mesmo da sua colocação em cena – os valores a partir dos quais aquela notícia é anunciada e, conseqüentemente, interpretada”. Para Marrone (1998), as notícias de um jornal constituem-se em uma série de eventos que devem ser retomados no interior do discurso, numa determinada ordem e para um determinado fim; são eventos que devem ser narrados. Enfim, a comunicação jornalística é uma forma particular de narrativa, ou seja, “um específico gênero narrativo que, embora não seja contemplado nas tradicionais classificações do gênero literário, possui regras, complexidades e finalidades análogas àquelas de outros gêneros narrativos como a novela, o romance, a anedota” (MARRONE, 1998, p. 19). Quando analisada semioticamente, a notícia apresenta semelhanças em relação ao conto literário, das quais Marrone (1998, p. 22) destaca: a notícia apresenta uma estrutura interna que a análise deve reconstruir para mostrar valores culturais que nela estão contidos e os procedimentos estéticos mediante os quais tais valores são transmitidos; o conto jornalístico (a notícia) comporta na realidade ao menos dois contos, que se sobrepõem e se entrelaçam variavelmente entre si: aquele do qual se fala (a notícia verdadeira e própria) e aquela de quem dela fala (que se refere ao jornalista e ao aparato redacional na sua complexidade); o problema da relação entre a estrutura narrativa interna e o eixo comunicativo que a veicula: o fato de que os modos de narrar, apresentando uma intrínseca eficácia comunicativa, comportam determinadas escolhas interpretativas e determinados valores no público dos leitores. A estrutura narrativa não se limita, portanto, a organizar os eventos num esquema pré-ordenado, ela é também uma proposta de adesão aos valores da narração, proposta que um autor imaginário (ou enunciador) dirige a um público imaginário (ou enunciatário); 46 a eficácia comunicativa é funcional ao grau de esteticidade do texto narrativo, seja ele interno ou micro-conto enunciado ou aquele externo ou macro-conto da enunciação. Marrone (1998, p. 20) ainda retrata o conto jornalístico como, pelo menos, duas histórias: “aquela enunciada, que se refere a uma figura ou situação do mundo que se torna o tema da notícia, e aquela do enunciador, que se refere a uma figura do discurso, que tem a tarefa de dar aquela mesma notícia”. Nesse sentido, o semioticista italiano refere-se ao fato e à leitura do fato. Outro pesquisador semioticista do produto jornalístico, Hernandes (2005a), diferencia acontecimento, fato e notícia. Para ele, “acontecimento se relaciona ao ‘real’, a tudo que tem existência”; “fato é justamente a primeira eleição e a apropriação que um determinado veículo faz do acontecimento, filtrado segundo uma ideologia”; e “notícia é, por sua vez, uma hierarquização de fatos, também fruto de uma visão de mundo” (HERNANDES, 2005a, p. 785). Nesse sentido, um acontecimento, por exemplo, a candidatura de um político à presidência, não se constitui em fato, se não for citada nos jornais. Uma vez citado nos jornais, o fato necessitará de uma contextualização, uma narrativa que o hierarquize em relação a outros fatos, – em nosso exemplo, um candidato em relação a outro candidato ou o impacto de sua candidatura na economia ou na história do país – então, só assim virará notícia. Segundo Hernandes (2005b), portanto, a transformação de acontecimento em fato acontece quando se determina um valor a algo, tornando visível, presente; desse modo, “produzir um fato” é omitir ou esquecer outros aspectos do acontecimento, por isso o fato sempre está atrelado a uma visão de mundo. Além disso, a notícia, ao se atrelar a uma visão de mundo, evidencia “um objetivo de despertar curiosidade (fazer-querer-saber), crenças (fazer-crer), sensações (fazer-sentir) e, até mesmo, ações de consumo (fazer-agir)” (HERNANDES, 2005b, p. 34). Outra questão relevante acerca do conceito de notícia – e de interesse ao nosso trabalho – é que ela pode ser considerada como precursora de todas as outras abordagens ou gêneros jornalísticos, tais como reportagens, editoriais, charges, crônicas, visto que a reportagem apresenta a notícia, o editorial opina sobre a notícia, a charge faz uma crítica ou expõe ao ridículo a notícia e, por fim, a crônica, muitas vezes com tom humorístico, apresenta uma reflexão sobre a notícia. 47 Ampliando nossa observação dos meios de comunicação e confrontando-a com outros teóricos, encontramos Ignácio Ramonet, um sociólogo que estuda os fenômenos da comunicação midiática. Esse pesquisador apresenta dois parâmetros que exercem influência determinante sobre a informação – termo usado por ele para se referir ao conteúdo veiculado pela notícia –, são eles: o mimetismo midiático e a hiperemoção. Por mimetismo, entende-se [...] aquela febre que se apodera repentinamente da mídia (confundindo todos os suportes), impelindo-a na mais absoluta urgência, a precipitar-se para cobrir um acontecimento (seja qual for) sob pretexto de que os outros meios de comunicação – e principalmente a mídia de referência – lhe atribuam uma grande importância. Esta imitação delirante, levada ao extremo provoca um efeito bola-de-neve e funciona como uma espécie de auto-intoxicação: quanto mais os meios de comunicação falam de um assunto, mais se persuadem, coletivamente, de que este assunto é indispensável, central, capital, e que é preciso dar-lhe ainda mais cobertura, consagrando-lhe mais tempo, mais recursos, mais jornalistas. (RAMONET, 1999, p. 20) Esse parâmetro constrange os meios de comunicação não só a abordarem a mesma informação, mas principalmente a “falarem a mesma coisa”, com pouca ou quase nenhuma variação. Desse modo, a notícia teria, segundo Ramonet, pouca ou quase nenhuma variação de um veículo a outro. Por outro lado, a hiperemoção, que ele considera como outra figura característica da superinformação, [...] sempre existiu na mídia, mas permanecia como específica dos jornais de uma certa imprensa demagógica que manejavam facilmente com o sensacional, o espetacular e o choque emocional. Ao invés, a mídia de referência apostava no rigor, na frieza conceitual, banindo quanto possível o pathos para se manter estritamente nos fatos, nos dados, nos atos [...] (RAMONET, 1999, p. 21-22) Entretanto, para Ramonet, isso começou a se modificar pouco a pouco sob a influência da mídia de informação dominante que é a televisão – o telejornal. O telejornal em seu fascínio pelo “espetáculo do evento”, desconceitualizou a informação, imergindo-a novamente, pouco a pouco, no lodaçal do patético. Insidiosamente, estabeleceu um