17o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br O Longo Caminho: Guerreiro Ramos e a sociologia da administração antes de A nova ciência das organizações O LONGO CAMINHO: GUERREIRO RAMOS E A SOCIOLOGIA DA ADMINISTRAÇÃO ANTES DE A NOVA CIÊNCIA DAS ORGANIZAÇÕES Edison Bariani* RESUMO ntes de se exilar nos EUA e elaborar suas construções teóricas em torno da administração na sociedade contemporânea – que culminou com a publicação de A nova ciência das organizações (em 1981) – Guerreiro Ramos percorreu longo caminho. Desde seus primeiros trabalhos sobre administração (no Departamento de Administração do Serviço Público, DASP, na década de 1940), até sua obra que precedeu o exílio, Adminis- tração e estratégia do desenvolvimento (em 1966), Guerreiro refletiu sobre a administra- ção, racionalidade e burocracia num contexto de busca pela modernização. Tais reflexões (e frustrações) subsidiaram sua formação intelectual, sua crítica posterior à racionalidade (instrumental) e suas considerações para uma visão humanista da administração, questão central nos seus esforços teóricos empreendidos em A nova ciência das organizações. Palavras-chave: Guerreiro Ramos. Administração. Burocracia. Modernização. The Long Way: Guerreiro Ramos and sociology of management before The new science of organizations ABSTRACT efore exiling to the U.S.A. and elaborating his theoretical constructions around the administration in contemporary society, which culminated with the publication of The new science of the organizations (in 1981), Guerreiro Ramos had already accomplished much . From his early works on administration (in the Department of Administration of the Public Service, DASP, in the 1940’s) to his work that preceded his exile, Administration and strategy of the development (in 1966), he reflected on administration, rationality and bureaucracy in a context of searching for modernization. Such reflections (and frustrations) characterized his intellectual development, his criticisms of rationality (instrumental) and his considerations about a humanistic view of administration, a central issue in his theoretical work in The new science of the organizations. Keywords: Guerreiro Ramos. Administration. Bureaucracy. Modernization. * Doutor em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – UNESP. Professor da Faculdade de Itápolis. Endereço: Av. Fouad Mucari, 1225, Jd. Campestre. Itápolis/ SP. CEP: 149000-000. E-mail: edsnb@ig.com.br A B o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br 18 Edison Bariani pós concluir os cursos de Ciências Sociais e de Direito (ambos na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro), formando-se, respectivamente, em 1942 e 1943, Guerreiro Ramos esforçou-se em cotejar o instrumental teórico que adquiria e as circunstâncias da sociedade na qual vivia, tateando a realidade brasileira e procurando desafios e respostas às muitas questões efervescentes que o acom- panhavam – e algumas o acompanhariam por toda a vida.1 Preterido na carreira universitária2, com a ajuda de San Tiago Dantas (influ- ente professor e político), passou a lecionar no Departamento Nacional da Criança (no Rio de Janeiro) para manter-se. Em dificuldades financeiras e convidado por um amigo, candidatou-se a um emprego de técnico em administração no DASP (Departamento de Administração do Serviço Público), sendo aceito e nomeado em 1943 – contava então 28 anos.3 Entre suas atribuições no órgão, cumpria analisar projetos de organização (para órgãos policiais, penitenciárias, de estímulo à agricultura etc.) e auxiliar na seleção de pessoal, cuja seção de recrutamento chegou a chefiar. Em 1949, pres- tou concurso para efetivação como técnico em administração, apresentando como requisito para mérito a tese Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho (RAMOS, 1950). Com a posse de Getulio Vargas (em 1951), distanciou-se do quadro da ins- tituição para integrar a equipe da Assessoria da Casa Civil do Presidente4 e, com a criação da Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP), pela Fundação Getu- lio Vargas (em 1952), tornou-se – simultaneamente – professor, mantendo com essa instituição estreita relação que duraria longos anos. Posteriormente, engajou- se diretamente na política ao integrar a Assessoria de Vargas, Grupo de Itatiaia, IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política) e ISEB (Instituto Su- perior de Estudos Brasileiros); curiosamente, continuou afastado da Universida- de, só vindo a ter propriamente uma carreira acadêmica no exílio, nos EUA.5 A 1 Ao que parece, sua passagem pela Universidade (ainda em fase de criação no Brasil) não teria deixado marcas indeléveis em sua formação (intelectual), até porque, já ao iniciar tais estudos, possuía considerável repertório cultural e teórico, bem como já havia atuado em movimentos cultu- rais e no Governo do Estado da Bahia. 2 Teria sido – segundo ele – indicado para suceder André Gros (na Cadeira de Política da Faculdade Nacional de Filosofia) e também para a de Jacques Lambert (Sociologia), mas assumiram Vítor Nunes Leal e Luiz de Aguiar Costa Pinto, respectivamente. Era 1943 e, no contexto da Segunda Guerra, teria sido acusado por “comunistas” de “colaboracionista”, devido ao seu passado integralista e a sua ligação, desde a Bahia, com Landulfo e Isaías Alves – Governador da Bahia e seu irmão, Secretário de Educação, respectivamente (OLIVEIRA, 1995, p. 140). A partir daí, e durante toda sua vida, acreditar-se-á (não somente devido a este episódio) um perseguido político, por exercer certa independência de pensamento e não se aferrar “a seitas e conluios”. 3 O DASP – criado durante a ditadura de Vargas no Estado Novo pelo Decreto-lei nº. 579, de 30 de julho de 1938 (BRASIL, 1938) – viria a promover verdadeira revolução no serviço público brasileiro, instituindo a racionalidade administrativa e valorizando o mérito e a competência, ao invés do clientelismo e patrimonialismo que grassavam na administração pública. Significativamente, foi Guer- reiro Ramos que, quando deputado, propôs projeto (n° 984, de 1963) para regulamentar amplamente a profissão de Técnico em Administração (SOARES, 2005, p. 101). 4 Também assessoraram Vargas – sob o comando de Rômulo de Almeida – Jesus Soares Pereira, Ignácio Rangel e Darcy Ribeiro, entre outros. A Assessoria redigia discursos (pronunciados na Mensagem Programática, comunicação frequente do Presidente) e elaborava projetos, mormente econômicos – daí sua notoriedade como Assessoria Econômica – que davam forma à política de nacionalismo e desenvol- vimento de Vargas. Discreta e competentemente, recrutada, em sua maior parte, no próprio bojo do funcionalismo federal, pois não havia verbas suficientes às vezes nem para remunerar os assessores, a Assessoria de Vargas elaborou projetos como: de criação da Petrobrás, do Fundo Nacional de Eletrifica- ção, Eletrobrás, Plano Nacional do Carvão, Capes, Reforma Administrativa, Carteira de Colonização do Banco do Brasil, Instituto Nacional de Imigração, Comissão Nacional de Política Agrária, Comissão de Desenvolvimento Industrial, Banco do Nordeste do Brasil, Plano Nacional do Babaçu; de planejamento para indústria automobilística, seguro agrícola e crédito rural etc. Segundo Maria Celina D’Araújo (1992, p. 152): “A criação dessa Assessoria, quando da instauração do Governo [Vargas], representa um fato inédito no Brasil. Pela primeira vez um Governo brasileiro criava um órgão permanente de planejamento encarregado de estudar e formular projetos sobre os principais aspectos da economia do país”. A respeito da Assessoria, ver também o depoimento de Jesus Soares Pereira (LIMA, 1975). 5 O ISEB, embora dedicasse seus esforços ao ensino e difusão sociais do conhecimento, não pode ser considerado estritamente um órgão acadêmico, uma vez que pretendia um papel de intervenção política ativa – e muitas vezes direta – que destoava da preocupação institucional, canônica e ritual de uma academia. 19o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br O Longo Caminho: Guerreiro Ramos e a sociologia da administração antes de A nova ciência das organizações Estimulado (na prática do ofício) pelas questões candentes, Guerreiro Ra- mos iniciou modestamente (em 1946) sua criação intelectual no campo da admi- nistração no DASP, resenhando livros para a Revista do Serviço Público (ligada ao órgão). Apesar do formato restrito e dos estreitos limites para o raciocínio teórico, fez daquele espaço editorial um campo para aprendizado e exercício sistemático de reflexão. Em “A divisão do trabalho social”, resenha crítica sobre o livro de E. Durkheim,6 lê-se um comentário respeitoso, atento à contribuição fundamental à sociologia e, sobretudo, às possibilidades do planejamento como forma de intervenção social. Se nesta seção se vai tratar agora de um livro editado em 1893, é em atenção a dois motivos: um deles, porque esta obra foi uma das primeiras a propor uma visão unitária das transformações sociais; o segundo, porque para a compreen- são das questões de planificação social, tão importante para a administração [...] é um lead excelente (RAMOS, 1946b, p. 162). Preocupado com a erosão da ordem social, alerta para a planificação – e o papel dos sociólogos – como forma de contenção dos desequilíbrios e consequente garantia de convivência social democrática, bem como para a importância da ilus- tração da elite; também, rascunha ali temas que o preocupavam: o esclarecimen- to dos dirigentes e a função de uma intelligentzia no Brasil. Uma sociedade de que estão ausentes as forças de integração espontânea dos indivíduos e dos grupos, só poderá manter-se ou por métodos policiais ou por métodos administrativos compreensivos. A preponderância de uns ou de outros dependerá da preparação sociológica dos grupos governantes. Não estou certo de que o problema tecnológico do governo se resolveria medi- ante a fórmula, um tanto platônica, de pôr os sociólogos no lugar dos governantes, mas, com certeza, sua solução será tanto mais assegurada quanto maior for a capacidade dos dirigentes de assimilarem os conhecimentos recém-atingidos pelas ciências sociais. Por este motivo, cresce de importância o papel dos órgãos de estado maior, naturalmente incumbidos de pôr ao alcance dos governantes os conhecimentos técnicos e científicos das ciências sociais, sem os quais a administração da soci- edade será aleatória e torpe (RAMOS, 1946b, p. 161-2). A temática do planejamento – uma constante – também domina um artigo posterior, no qual reconhece a contribuição de K. Mannheim e censura duramente O caminho da servidão, de Hayek; problematizando o tema, propõe um estudo mais acurado e, prudentemente, aponta caminhos.7 Parece que a atitude mais prudente diante da planificação é a de considerá-la como uma questão em debate, cuja solução ainda não está suficientemente amadurecida e, portanto, há de não condená-la ou aplaudi-la em bloco, pois a adesão a certo enunciado científico não pode ser fundada em tendências emoci- onais (RAMOS, 1946c, p. 163). Adverte que, com a ascensão dos monopólios, a competição não mais regu- laria as relações sociais: “estamos vivendo já numa sociedade planificada [...] O que nos interessa é saber agora que espécie de planificação é necessário realizar, tendo-se em vista as necessidades da democracia”; diante disso, os pontos de vista possíveis seriam “o capitalista, o fascista e o comunista”, e observa que os dois últimos estão ainda dentro dos marcos capitalistas da história, pois “preten- dem apenas substituir os detentores do atual controle dos meios de produção por outros detentores, motivo por que não são propriamente revoluções, mas golpes de estado”. Observa, ainda, que “tanto a planificação fascista como a comunista padecem de tendências de índole reacionária muito forte, pois ambas pretendem impor uma unidade cultural à sociedade, sem compreender a estrutura fundamen- 6 Publicada na Revista do Serviço Público, editada pelo DASP em out./nov. 1946. 7 “Notas sobre a planificação social”, publicado na Revista do Serviço Público em dez./1946. o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br 20 Edison Bariani tal da nossa época” (RAMOS, 1946c, p. 164).8 Define, então, a planificação (demo- crática) como: [...] uma autoconsciência da sociedade atual ou, melhor, é a realização de sua essência. É menos um intento de reconstruí-la em bases favoráveis a este ou aquele grupo do que um intento de liberar as suas forças genuínas reprimidas. Não se trata de manipulação, mas de uma estratégia que visa desembaraçar de todos os obstáculos o sistema de fatores que configuram a sociedade (RAMOS, 1946c, p. 165-6). O culturalismo, a concepção de fases (faseológica)9 e os escritos de Mannheim tornavam-se influências poderosas sobre Guerreiro Ramos. No âmbito da administra- ção, a planificação (democrática) surge como uma alternativa ao fascismo, comunis- mo e neoliberalismo, orientada para a interpretação da realidade social conforme as particularidades da sociedade brasileira. Desse modo, começa a aflorar a preocupa- ção com a assimilação do conhecimento vindo do exterior: “É necessário, portanto, colocar o problema de um modo não ideológico, isto é, em termos da estrutura funda- mental de nossa época e não de arquétipos” (RAMOS, 1946c, p. 165). É com Max Weber, entretanto, que se dá – manifestamente – a maior empatia. Ao resenhar Economia e sociedade, quando do lançamento da edição mexicana, provavelmente o primeiro comentário sobre a obra no Brasil, Guerreiro Ramos afirma que aquela era “a tentativa mais bem-sucedida de estabelecimento de uma ciência sociológica da história, e, por isto mesmo, de uma sociologia efetiva”. Assim, para ele, “é a partir de Max Weber que a sociologia se emancipa definitiva- mente do normativismo, se liberta de certa tendência reformista que a impelia a invadir, não sem os clamores das vítimas, os feudos da moral, da religião, da pro- fecia e da filosofia” (RAMOS, 1946a, p.129-30). 10 Por meio de uma leitura perspicaz de Weber, Guerreiro Ramos desperta teorica- mente para a teoria da organização, o estudo da burocracia e da administração, além de extrair dali subsídios metodológicos. Todavia, a prudência weberiana no trato da sociologia como mecanismo de ação, contra o “normativismo”, parece não ter afetado o ímpeto do jovem Guerreiro, inebriado pelas possibilidades de intervenção social.11 Ele não se deixa levar por uma possível leitura antimarxista da obra, desconsidera uma possível inversão do materialismo histórico e atenta sim para a amplitude e o não-determinismo metodológico da obra de Weber. A leitura é permeada por certa reverência que revela mais que uma admiração intelectual. Guerreiro Ramos identifica ali uma posição filosófica que vinha ao encontro de suas concepções espiritualistas; sua interpretação norteia-se – além do culturalismo – por certo existencialismo (refletido na leitura de Weber), que se sobrepõe à anterior proximidade com o espiritualismo cristão da revista L’Esprit e o neotomismo de Jacques Maritain. 8 Saliente-se que, por essa época, Guerreiro Ramos ainda não havia feito uma ampla leitura de Marx, como ele próprio admitiu mais tarde – ver Oliveira (1995, p. 145). Conhecia certamente, mas talvez não muito mais que isso, a Contribuição à crítica da economia política, que leu na edição traduzida por Florestan Fernandes (Ed. Flama), ao qual tece elogiosos comentários pelo prefácio que introduzira àquela obra – ver Ramos (1946a). Embora posteriormente tenha conhecido melhor (e até se aproxi- mado) de Marx e de marxistas como Lukács, Rosa Luxemburg, Karl Korsh etc. (e visitado a China, Iugoslávia e a União Soviética a convite do PCB), manteve sempre razoável distância do comunismo. Antes de morrer chegou a definir o marxismo como “a maior desgraça na história do pensamento brasileiro” (OLIVEIRA, 1995, p. 168). 9 O culturalismo tem forte influência de Mannheim e Alfred Weber, já o conceito de fases (ou concepção faseológica), segundo o qual a história das sociedades seria balizada por fases histórico- culturais relativamente progressivas, é creditado a Franz Carl Miller-Lyer (1857-1916), autor de As fases da cultura (1908), O sentido da vida e a ciência (1910) e A família (1912). 10 “A sociologia de Max Weber”, artigo publicado na Revista do Serviço Público em ago./set. 1946. 11 Weber seria – segundo ele – a influência mais intensa que sofrera. Entretanto, desde então até o final dos anos 1960, intensifica a construção de uma sociologia que prima pela intervenção (e conscientização) social. Ao final da vida, em 1981, comentando sua proximidade com Weber e os anseios políticos deste – apesar da tentativa do autor alemão de separar ciência e ação –, senten- ciou: “Weber era um isebiano, um ibespiano” (OLIVEIRA, 1995, p. 166), o que indica algo sobre a leitura que fazia da obra de Weber: se a ciência não seria subsídio imediato para a política, também não estariam radicalmente separadas. 21o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br O Longo Caminho: Guerreiro Ramos e a sociologia da administração antes de A nova ciência das organizações Esta concepção [de Weber] de ciência é eminentemente anti-socrática. O conceito socrático de ciência supunha uma relação conatural entre o indivíduo e o univer- so. A ciência, segundo Sócrates, está infusa no homem e este a adquire desenvol- vendo-a dentro de si como um embrião se desenvolve no seio materno. A con- cepção típico-ideal da ciência é o reverso do socratismo. O espírito humano e o mundo são inconversíveis. O homem está ilhado e nenhuma garantia possui de que a sua ciência seja uma expressão verdadeira do que o mundo é em si mes- mo. Assim sendo, importa menos conhecer a forma ou substância do universo do que conhecer como podemos dominá-lo ou conjurar a sua irracionalidade. A con- cepção típico-ideal da ciência exprime o desespero da consciência humana diante do fracasso da explicação religiosa ou mágica das forças do mundo histórico. Ela é representativa de uma época secularizada em que os padrões sagrados foram radicalmente minados pelo trabalho corrosivo da razão (RAMOS, 1946a, p. 132). Além das lições de Durkheim, da influência de Mannheim e do encantamento com Weber, as preferências de Guerreiro Ramos não se refreavam. Em outro arti- go12, ele demonstra apreço pela pesquisa empírica, pela técnica dos surveys e pela sociologia norte-americana, representada pela Escola de Chicago e seu re- presentante mais ilustre no Brasil à época: Donald Pierson. 13 Um aspecto que tem sido negligenciado no Brasil, na formação dos especialistas nos vários ramos das ciências sociais, é o treinamento dos mesmos, no emprego dos métodos e no manejo das técnicas de pesquisa. A não ser a rara exceção da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, onde o Prof. Donald Pierson mantém um curso de pesquisa social, não sabemos de nenhuma outra entidade universitária em que se considere a pesquisa social como uma disciplina autônoma. Um dos maiores serviços prestados ao desenvolvimento dos estudos sociais, no Brasil, pelo Sr. Donald Pierson é, precisamente, o de ter difundido, entre nós, um sistema de referências para o estudo de pesquisa social (RAMOS, 1947, p. 147). Guerreiro Ramos, conhecedor de um leque de referências teóricas, ressen- tia-se de um instrumental mais leve, de técnicas de pesquisa e questionários, que o capacitasse a abordar mais diretamente dados quantitativos e situações empíricas, uma vez que só tinha como referência, nesse aspecto, os estudos monográficos de Le Play. Nessas breves resenhas escritas por Guerreiro Ramos, já aflora a preocupa- ção, ainda um tanto formalizada e livresca, com a utilização da sociologia como instrumento de intervenção social, gestão racional dos recursos e organização ad- ministrativo-estatal; o instrumento fundamental dessa intervenção sociológico-ad- ministrativa é o planejamento democrático, entendido então menos como operação deliberada e mais como desobstrução dos entraves, forma de dar livre curso às potencialidades latentes de uma sociedade que se candidatava à modernização. Adiante, de novo a influência de Weber faz-se sentir enormemente na tese que o autor apresenta ao DASP (Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho: ensaio de sociologia do conhecimento), cujo objetivo era “mostrar que a organização racional do trabalho é consequência de um longo processo de secula- rização, no transcurso do qual apareceu, tardiamente na civilização ocidental, uma atitude laica do espírito humano, em face da natureza e da sociedade” (RAMOS, 1950, p. 8-9). Nessa obra, Guerreiro discorre sobre o conceito de trabalho na civilização ocidental, taylorismo, fordismo, Fayol, administração e a moderna socio- logia do trabalho.14 O erudito trabalho de investigação (e ostentação) conclui que a organiza- ção racional do trabalho só se produz em sociedades nas quais predomina o es- 12 “A pesquisa e os ‘surveys’ sociais”, publicado na Revista do Serviço Público em mar./abr. 1947. 13 Donald Pierson, então professor da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, ofereceu um curso no Rio de Janeiro e Guerreiro Ramos, com sua curiosidade insaciável, tomou contato com a sociologia norte-americana (ver Oliveira, 1995, especialmente cap. 3: “Donald Pierson e a sociologia no Brasil”). Para um contato com a obra do autor, ver Pierson (1972). Quanto à Escola de Chicago e à ecologia humana, ver os volumes de divulgação organizados pelo mesmo autor (PIERSON, 1948, 1970). 14 As referências aqui são os estudos weberianos sobre a burocracia, administração, patrimonialismo, o sagrado/profano (presentes em Economia e sociedade) e o estudo – paradigmático – da ética como secularização, em A ética protestante e o espírito do capitalismo (WEBER, 1997, 1989, respect.). o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br 22 Edison Bariani pírito antitradicional e laico, não se desenvolvendo em outras nas quais o sagrado se sobrepõe ao racional e secular. Os EUA seriam o campo mais fértil para tal, já a América Latina, Ásia e Oceania muito menos, pois nestas a indústria seria algo incipiente e a maior parte de suas populações não teria emergido ainda das “cultu- ras de folk”. Mannheim (quanto ao planejamento), Hans Freyer (quanto à sociologia como intervenção social) e a Escola de Chicago (quanto ao continuum histórico da cultura), entre outros, também são referências teóricas presentes na análise. As considerações sobre o histórico da organização racional do trabalho con- vergem para o ponto crucial da obra: a análise da administração pública, mormen- te no Brasil. Segundo Guerreiro Ramos, as circunstâncias de um gerenciamento racional dos negócios nessa esfera não seriam um assunto meramente técnico ou institucional, um simples modelo de gestão, e sim o produto de um amadurecimen- to histórico-social, do alcance de determinado estágio evolutivo de superação so- bre os particularismos: Na administração pública, a racionalização é, antes, uma fase da evolução do Estado que uma tecnologia propriamente dita. Ela surge, sob a forma do que Max Weber chamou burocracia, naqueles tipos de Estado em que, sob influência do constitucionalismo, se afirma o predomínio da função pública sobre a feudalidade e a soberania territorial, ou seja, do interesse universal sobre o interesse particular (RAMOS, 1950, p. 113). Esse processo histórico avançaria segundo a formulação tipológica weberiana, na qual os tipos de dominação ‘sucedem-se’ mais ou menos progressivamente, denotando o advento da racionalidade e da dessacralização do mundo; isto pos- to, para assentar-se, a organização racional-legal haveria de solapar as bases patrimonialistas de dada sociedade, instaurando-se – em ritmo e intensidade – conforme as características de cada sociedade. “A superação da administração patrimonial pelo desenvolvimento da administração racional ocorre mais ou me- nos lentamente, conforme a composição social de cada país. Esta superação fir- ma-se, na Europa, como uma tendência decisiva, a partir do século XIX” (RAMOS, 1950, p. 117). O sociólogo reconhece, então, que a universalização do capitalismo impõe um caráter relativamente inexorável ao processo, embora de modo lento e tensamente articulado com a ordem anterior: [...] a administração pública racional está em emergência, em toda parte. Ela se vai instalando nos Estados modernos através de uma lenta superação do patrimonialismo. É o que explica a coexistência de elementos burocráticos com elementos patrimoniais dentro de uma mesma sociedade (RAMOS, 1950, p. 119). Não obstante o uso da tipologia weberiana, Guerreiro não o faz ingenua- mente; atenta para a idealização dos tipos, as especificidades das sociedades e a não-imanência de sentido e ritmo na história. Cada sociedade percorreria um ca- minho próprio e combinaria, de modo ímpar, formas modernas e arcaicas. [...] a administração racional não surgiu, na civilização ocidental, abruptamente. Tampouco, em nenhuma sociedade contemporânea, ela se verifica em toda sua pureza. Na realidade, o que existe atualmente são formas híbridas de adminis- tração pública, umas mais do que outras (RAMOS, 1950, p. 118). Pautado pela transformação histórica, o avanço desse tipo de organização dependeria de uma análise social que identificasse e tornasse possível a supera- ção de resistências à mudança entrincheiradas em mentalidades, formas culturais e hábitos cristalizados pelo tradicionalismo, substituindo-os por formas moder- nas, congruentes com a efetivação da nova ordem. A racionalização assume algumas peculiaridades na esfera da administração pública. Aí ela é uma questão eminentemente sociológica, antes de ser de qual- quer outra natureza. A racionalização na esfera da administração pública não se converte em mera aplicação do saber técnico na organização de atividades. É, principalmente, um processo de transformação do aparato estatal, que se opera a custa da diminui- 23o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br O Longo Caminho: Guerreiro Ramos e a sociologia da administração antes de A nova ciência das organizações ção (e até anulação) da eficácia da tradição, ou melhor, que implica a substitui- ção de ‘folkways’ por ‘technicways’ (RAMOS, 1950, p. 12).15 Assim, haveria uma tendência de ascensão do processo de racionalização, mas não progressiva e implacavelmente de modo a eliminar o passado e fazer tá- bua rasa da sociedade e suas circunstâncias de existência; sua evolução seria difícil e inconstante, defrontando-se com a ordem anterior e a cultura enraizada, que a obstaculizariam. Dentre essas formas de resistência à efetivação, a cultura exerce- ria um papel fundamental: a organização não se bastaria, só com a mudança de condutas seria possível viabilizar a modernização. A arrebatadora marcha da racio- nalização (pensada por Weber) teria como contraponto a força da cultura e a rotinização de condutas, lições tomadas com o culturalismo e a Escola de Chicago. Ganharia importância nesse processo a sociologia, vista como forma de embasar a ação transformadora (Mannheim e Freyer) e mudar mentalidades arraigadas. No caso brasileiro, a herança de privatismo, no entender do autor, ainda impedia a instituição de uma racionalidade administrativa: No Brasil, a racionalização da administração pública defronta-se com sérios obs- táculos, principalmente oriundos de sua formação histórica. Pode afirmar-se, mesmo, que a sua introdução em nossa máquina corre por conta daquele idea- lismo utópico, característico das elites brasileiras e extensamente estudado por Oliveira Vianna. A verdade é que a estrutura social e política do país ainda não apresenta até hoje condições capazes de tornar plenamente efetivo, em nossa administração pública, um sistema racionalizado. Uma tradição de patrimonialismo permeia o Estado brasileiro que, até recente- mente, se pulverizava socialmente em ‘organismos monocelulares’, clãs parentais, clãs feudais, clãs eleitorais, de puro direito privado e carecia daquela unidade orgânica e compacta a que se referia Von Stein (RAMOS, 1950, p. 24).16 Em auxílio às abrangentes formulações teóricas das quais se servia, Guer- reiro Ramos lança mão de autores nacionais para dar conta da peculiaridade da sociedade brasileira e viabilizar a crítica aos particularismos. Utiliza-se de Gilberto Freyre e sua crítica ao mandonismo, de Nestor Duarte e a análise da ordem priva- da e, principalmente, de Oliveira Vianna e sua enfática condenação da organiza- ção clânica, do familiarismo e do idealismo das elites. Oliveira Vianna ainda forne- cerá subsídios para a crítica da importação de idéias por parte de uma classe dirigente considerada alheia à realidade brasileira (RAMOS, 1950, p. 124-5).17 Admitia Guerreiro a escalada do processo de publicização em confronto às resistências e aos comportamentos tradicionais, entretanto, ainda detectava a persistência de obstáculos: À luz de um critério sociológico, portanto, a administração pública, no Brasil, ainda não ultrapassou o estádio patrimonialista. É verdade que, atualmente, o 15 Aqui a influência de Weber dá lugar à da sociologia norte-americana, especificamente William Graham Sumner e Alice Davis, respectivamente, responsáveis pelos conceitos. Adiante, também, será mencionado Edward Sapir. 16 Oliveira Vianna (1883-1951) foi um dos precursores da sociologia brasileira e crítico feroz da transplantação de idéias ‘alheias’ à realidade nacional. Lorenz Von Stein (1815-1890), teórico social e historiador do séc. XIX, um dos fundadores da sociologia alemã, influenciado por Hegel e sistema- ticamente lido por Marx e Engels, posteriormente retomado por H. Freyer e H. Marcuse. Von Stein elaborou uma interpretação dialética da história na qual a idéia básica era o antagonismo entre Estado e Sociedade. Sobre Von Stein, ver Marcuse (1978) e Freyer (1944). 17 O autor refere-se diretamente às obras: de Oliveira Vianna, Instituições políticas brasileiras, O idealismo da Constituição, O idealismo político no Império e na República; de Nestor Duarte, A ordem privada e a organização nacional; e, de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala. Quanto a este último, Guerreiro Ramos valoriza um interessante aspecto de sua obra que permanece um tanto descuidado atualmente: a percepção de que, no Brasil: “Tudo deixou-se (sic), porém, à iniciativa particular [...] Claro que daí só poderia resultar o que resultou: de vantajoso, o desenvolvimento da iniciativa particular estimulada nos seus instintos de posse e de mando: de maléfico, a monocultura desbragada. O mandonismo dos proprietários de terras e escravos. Os abusos e violências dos autocratas das casas-grandes. O exagerado privatismo ou individualismo dos sesmeiros” (FREYRE, 1983, p. 244-5). o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br 24 Edison Bariani país dispõe de um ‘mecanismo burocrático relativamente moderno’. Uma consci- ência da função pública mais aguda do que em outros períodos se registra em nossos dias. Contudo, a pressão do privatismo e do familiarismo deforma e perturba essa estrutura governamental, dando, assim, à nossa administração pública o caráter a que [Edward] Sapir chamaria ‘espúrio’, visto que nela não se integram perfeitamente os processos burocráticos. Registra-se, pois, dentro de nossa administração pública, um verdadeiro conflito cultural, como já lembrara o sociólogo brasileiro Emílio Willems (RAMOS, 1950, p. 128-9, itálicos nossos). Por suas incumbências e seu caráter precursor, o DASP, nesse contexto, estaria no ‘olho do furacão’, assim como a burocracia que o compunha (inclusive o próprio autor). Este conflito cultural retrata-se com maior agudeza naquilo que se poderá cha- mar ‘processo do DASP’, órgão pioneiro da implantação da racionalização na administração federal, cujo destino vem sendo ultimamente discutido pela opi- nião pública e assume as proporções de um caso de consciência do país. Tal ‘processo’ não deixa de ser dramático, pois muitos o sentem no espírito e na carne (RAMOS, 1950, p. 130). Mesmo saindo em defesa do departamento, não poupa críticas à importa- ção de modelos em dissonância com a situação específica do país, inclusive à influ- ência de Willoughby (uma das mais presentes no DASP), embora pondere que, naquelas circunstâncias, representaria algum progresso. A Lei nº. 284 [de 28 de outubro de 1936 que instituiu o Conselho Federal do Serviço Público Civil, com características de órgão de administração geral] re- presenta uma verdadeira transplantação no Brasil das idéias sobre racionaliza- ção administrativa, em voga nos Estados Unidos, especialmente na forma por que são expostas por Willoughby. Muitas reservas poderiam ser feitas a esta maneira de introduzir tais idéias em nossa administração federal. É, porém, incontestável que, de qualquer modo, a Lei 284 assinala um avanço na história administrativa do Brasil (RAMOS, 1950, p. 133).18 Todavia, defende o DASP contra o assédio que sofria por parte da oposição liberal, porta-voz das resistências privatistas à modernização administrativa. “O que resta a dizer é que, no presente momento, a evolução da racionalização da administração, no Brasil, está perturbada pela reorganização política que se vem operando desde 29 de outubro de 1945” (RAMOS, 1950, p. 134), ou seja, pela deposição de Vargas e fim do Estado Novo. A defesa dos privilégios, do privatismo, seria também reivindicação de orga- nizações políticas que não primariam pela coerência ideológica, antes, represen- tariam interesses específicos que se aglutinariam para conquistas particulares, assediando o Estado e perturbando a racionalidade da administração. Este ‘privatismo’, até o momento crônico na vida brasileira, exprime-se, na esfe- ra política sob a forma de partidos de patronagem, isto é, partidos sem unidade ideológica, meras agremiações ou ajuntamentos de gânglios que, interferindo na administração pública, retardam, quando não paralisam de todo, o processo de sua burocratização (RAMOS, 1950, p. 125). O advento da modernização capitalista como forma de racionalização é to- mado ali por Guerreiro Ramos como processo menos político que cultural, enfrentamento entre o privatismo e a racionalização, entre a burocratização e o patrimonialismo (entendidos como tipos ideais), consistindo em um “conflito cultu- 18 Mais tarde, em O processo da sociologia no Brasil (RAMOS, 1953, p. 39-40), Guerreiro voltou ao ponto afirmando: “Formalmente, operaram-se desde a Lei de nº 284, de 1936, mudanças no arcabouço administrativo federal. Mas foram mudanças promovidas sem fundamento na pesquisa sociológica de nossas condições. Mudanças que cortaram de uma noite para o dia, ‘a golpes de decretos’, tradições de trabalho cuja validade não foi arguida, discutida, ponderada, como era imprescindível. Sacrificou-se tudo a novíssimas técnicas importadas, sem se refletir que elas de nada valeriam sem as suas premissas comunitárias. Mas em nome delas, subvertemos estruturas burocráticas, que vinham se formando lentamente, que, portanto, vinham sofrendo os testes da vida ou de uma experiência até multissecular”. 25o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br O Longo Caminho: Guerreiro Ramos e a sociologia da administração antes de A nova ciência das organizações ral” no qual a administração pública defrontar-se-ia com o tradicionalismo e suas vicissitudes arraigadas. O Estado seria, naquele momento, o agente portador do moderno, capaz de dissolver os embaraços postos por esse tradicionalismo. As- sim, a política e seu caráter conflituoso, ao menos nesse contexto, atuariam como fator perturbador da administração pública e da racionalidade modernizante que, naquela circunstância, o Estado Novo lograra construir. A modernização – para Guerreiro Ramos – deveria ser defendida da interferência irracionalista da socie- dade civil, seus interesses e seus vícios, deixando ao Estado – em sua onipotência e racionalidade – a tarefa primordial. Desse modo, o autor releva a condição do Estado como grande arauto da modernização, único agente capaz de se sobrepor aos interesses privatistas das oligarquias. No entanto, tal condição do Estado elide a participação dos grupos sociais no processo de mudança. Ao que parece, somente certa intelligentsia, in- crustada na burocracia do Estado seria capaz de informar as elites governantes e influenciar tal processo no sentido requerido, uma vez que havia – por parte do autor, bem como para Oliveira Vianna (1930) – profunda desconfiança com relação ao preparo destas para o exercício do poder. Nutriam, sim, uma arraigada convic- ção sobre a capacidade de técnicos, especialistas e intelectuais com formação e compromisso para assumir as tarefas da modernização do Brasil. Entretanto, em tese, os quadros técnicos alojados no Estado poderiam, na ausência de grupos-sujeitos competentes, indicar formas e nortes para a tomada de decisões e, quem sabe, formular projetos políticos? Ou ainda, o exercício conti- nuado das formas de organização administrativa poderia, ao final, proceder a mudanças estruturais? Poderia a burocracia investir-se de interesses políticos pró- prios e/ou desempenhar funções absolutamente autônomas, tecendo assim um projeto próprio de modernização? Se até aquele momento tais possibilidades pareciam plausíveis, após sua experiência no DASP, Guerreiro Ramos, já no contexto do pós-1964, voltou a ocu- par-se (em Administração e estratégia do desenvolvimento, de 1966) dessas e ou- tras questões, inquirindo-se: “a burocracia pode ser agente ativo de mudanças sociais?” (RAMOS, 1966, p. 245).19 De início, Guerreiro Ramos repõe a questão numa outra base teórica, alertando para o fato de que “a burocracia não tem natureza, tem história. Conferir-lhe atribu- tos fixos e imutáveis é incidir num erro de perspectiva histórica” (RAMOS, 1966, p. 264). Ou seja, seria equivocado dotá-la de atributos inerentes e imutáveis, julgá-la positiva ou negativa, autônoma ou submetida, conservadora ou progressista em si. O que não o impede de analisar-lhe o papel e status, demarcando (como grupo) os limites de sua posição e possibilidades de atuação na estrutura social: A burocracia é agrupamento que, por força de seu lugar na estrutura social, jamais logra impor suas próprias diretivas à sociedade em geral. Isso não quer dizer que a burocracia não possa exercer um papel modernizante. Na verdade, pode, e a história tem dado prova disso. Mas o seu papel modernizante apresen- ta-se-lhe sempre como uma chance, um ‘acidente estatístico’ da história, da conjuntura de poder (RAMOS, 1966, p. 274). Se a burocracia não desfruta de estatuto político que a capacite à universa- lidade de empreendimento como portadora de um projeto, entretanto, em deter- minadas conjunturas, poderia adquirir certa ‘autonomia política’ e motivação que, nessas condições, seriam direcionadas num dado sentido. O resultado, porém, seria socialmente nocivo: Quando a burocracia adquire orientação política autônoma, debilita-se a estrutu- ra social, ‘aristocratizando-se’, e tende à ‘exploração parasítica’ dos recursos 19 Esse livro (Administração e estratégia do desenvolvimento: elementos de uma sociologia especial da administração, 1966), sobre o qual o autor posteriormente manifestou um mau juízo, foi escrito logo após o Golpe de 1964, num contexto de penúria: cassado politicamente (havia sido deputado federal pelo PTB do Estado da Guanabara), desempregado e sem oportunidades devido à vigilância quanto ao seu trabalho, recebeu subsídios da Fundação Ford e foi abrigado por Luiz Simões Lopes (ex-presidente do DASP) na Fundação Getulio Vargas, onde produziu esse livro. o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br 26 Edison Bariani econômicos. É dizer, na história decorrida e em curso, a política espontânea da burocracia tem sido essencialmente predatória e conservadora e jamais modernizante (RAMOS, 1966, p. 275, itálicos do autor).20 Ademais, a atuação da burocracia estaria sempre submetida às diretrizes de um grupo superior, capaz de construir um projeto político, que legaria àquela a possibilidade de ação. “A execução direta de toda estratégia administrativa modernizante é sempre tarefa de elite, nas condições atuais de nossa época” (RAMOS, 1966, p. 280, itálicos do autor). Cabalmente, para ele: “A burocracia como agrupa- mento social jamais se torna sujeito do poder político [...] Não existe burocracia dirigente” (RAMOS, 1966, p. 328). Guerreiro Ramos adverte, todavia, que se, por um lado, a burocracia pode- ria exercer efetivamente uma função modernizadora e colaborar decisivamente para a superação de obstáculos ao desenvolvimento, embora não como protago- nista principal da mudança, por outro, [...] as características de uma burocracia que, alguma vez, desempenhou fun- ções modernizantes, são sempre a posteriori, post festum, e, por isso, têm es- casso valor normativo ou estratégico. As normas da autêntica estratégia admi- nistrativa são coetâneas às ações e ao desempenho administrativo (RAMOS, 1966, p. 299). As constatações anteriores não lastreariam cientificamente uma deliberada intervenção modernizadora, já que só a experiência adquirida daqueles fatos e contexto determinados poderia afirmar o papel modernizador da burocracia; an- tecipadamente, não haveria como detectá-lo. Ademais, o escopo das ações da burocracia reduzir-se-ia a realizações circunstanciais e operacionais da rotina ad- ministrativa, não de efetiva direção política, tarefa das elites. Se todo experimento sócio-político só se consolida na prática e não há re- sultado a priori, os efeitos só poderiam ser significativamente entendidos com a efetivação. Todo progressismo ou conservadorismo só se definiria realmente na ação, num dado contexto (e numa certa perspectiva), nunca discursivamente, ‘em abstrato’. Todavia, seria ainda possível uma prospecção racional a respeito das potencialidades e implicações dos projetos. A elaboração de Guerreiro Ramos tra- ta não somente da dificuldade de intelecção da eficácia da ação e do projeto, mas também da incapacidade, por parte da burocracia, de indicar rumos precisos e determinados aos processos modernizadores. A burocracia estaria circunscrita ao âmbito da racionalidade e dos negócios rotineiros do Estado, e alijada da esfera da criação, da política. Teoricamente, o culturalismo de Guerreiro Ramos, já então passado pelo filtro político da contestação de esquerda, por força das circunstâncias, retorna como um relativismo histórico que dá vazão ao ceticismo do autor naquele mo- mento. Embora não nutrisse simpatia por essa obra (Administração e estratégia do desenvolvimento), demasiadamente esquiva e de circunstância (e de erudição, denotando o enciclopédico conhecimento do autor a respeito do tema), nela, e na insegurança do período (pós-1964), emergem as incertezas em relação ao regime (e à própria trajetória do autor) e suas possibilidades. Pelas frestas do incerto, vem à tona (ainda que nas entrelinhas) o desânimo com as forças políticas consi- deradas progressistas, com o potencial transformador desses sujeitos políticos e, até mesmo, uma incômoda suspeita. Como a burocracia e a racionalidade adminis- trativa conduzida pelo sentimento público (e nacional) e dirigida ao desenvolvi- mento capitalista autônomo não logrou o êxito esperado e sucumbiu politicamen- 20 A referência a MICHELS (1968, p. 242 e. passim), sua crítica da burocracia e formulação da “lei de bronze da oligarquia”, é notória. Segundo esse: “É uma lei social inevitável que todo órgão da coletividade, nascido da divisão do trabalho, crie a partir do momento em que se consolide, um interesse especial, um interesse que existe em si por si. Mas os interesses especiais não podem existir dentro do organismo coletivo sem colocar-se em imediata oposição com o interesse geral. Mais do que isso: as camadas sociais que desempenham funções diferentes tendem a se isolar, a criar órgãos aptos a defender seus interesses particulares e a se transformar, finalmente, em clas- ses distintas”. 27o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br O Longo Caminho: Guerreiro Ramos e a sociologia da administração antes de A nova ciência das organizações te, o regime pós-1964 (e sua burocracia que naquele momento parecia ser diri- gente), autoritário, excludente e que trazia tantas ligações com o passado, a posteriori, poderia mostrar-se modernizante. Isto é, já não parecia seguro que as mudanças na sociedade brasileira teriam como herdeiros as forças progressistas; um outro tipo de mudança, que não a sonhada revolução brasileira, poderia ser possível, e o capitalismo consolidar-se-ia no Brasil por outros meios que não o projeto político autônomo e nacional. Essa ‘modernização’ (com aspas ou não) configurar-se-ia mais tarde como o fôlego do regime e a esfinge para a esquerda; modernização esta muito peculiar – conservadora, pelo alto –, mas que desafiava uma geração de intelectuais que se acostumou a pensar o desenvolvimento e a modernização capitalista como a face mais visível da democracia, da cidadania, da soberania etc. Ilusão que o tempo se encarregaria de destruir. Para Guerreiro Ramos, razão e modernização já não eram convergentes. A dedicada administração já não podia sustentar sua autonomia. A política continu- ava uma amante infiel. Mais tarde, devido à desilusão do servidor com a impotên- cia e o amesquinhamento privatista da burocracia, do sociólogo com o descompromisso da Inteligência com o país, do estudioso com a falta de oportuni- dades acadêmicas e do político com a baixeza do jogo do poder, Guerreiro Ramos exilar-se-á, distanciando-se da política e pondo em causa a razão (instrumental), a seriação histórica e a idéia de planejamento racional e democrático, bem como a utilidade desse instrumental para uma transformação social positiva, não mais pensada em termos de modernização, mas sim de humanização. Estava plantada a semente de A nova ciência das organizações (RAMOS, 1989). Referências D’ARAUJO, Maria Celina Soares. O segundo Governo Vargas 1951 – 1954: democra- cia, partidos e crise política. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1992. (Fundamentos, 90). BRASIL. Decreto-lei nº. 579, de 30 de julho de 1938. FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 22ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. FREYER, Hans. Introducción a la sociología. Madrid: Aguilar, 1944. LIMA, Medeiros (Org.). Petróleo, energia elétrica, siderurgia: a luta pela emancipa- ção; um depoimento de Jesus Soares Pereira sobre a política de Vargas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. (Estudos brasileiros, 7). MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. (O mundo, hoje, 28). MICHELS, Robert. Os partidos políticos. São Paulo: Senzala, 1968. OLIVEIRA, Lucia Lippi de. A sociologia do Guerreiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. PIERSON, Donald. (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1948. ______ (Org.). Estudos de organização social. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1970. (Biblioteca de ciências sociais, IX). ______. Teoria e pesquisa em sociologia. 14ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1972. RAMOS, Alberto Guerreiro. A sociologia de Max Weber; sua importância para a teoria e a prática da Administração. Revista do Serviço Público, Rio de Janeiro, DASP, v. 3, n. 2/3, p. 129-39, ago./set., 1946a. ______. A divisão do trabalho social. Revista do Serviço Público, Rio de Janeiro, DASP, v. 4, n. 1/2, p. 161-8, out./nov., 1946b. o&s - Salvador, v.17 - n.52, p. 17-28 - Janeiro/Março - 2010 www.revistaoes.ufba.br 28 Edison Bariani ______. Notas sobre a planificação social. Revista do Serviço Público, Rio de Ja- neiro, DASP, v. 4, n. 3, p. 163-6, dez., 1946c. ______. A pesquisa e os “surveys” sociais. Revista do Serviço Público, Rio de Ja- neiro, DASP, v. 1, n. 3/4, p. 147-51, mar./abr., 1947. ______. Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho: ensaio de sociologia do conhecimento. Tese apresentada ao concurso para provimento em cargo da carreira de Técnico em Administração do quadro permanente do Depar- tamento Administrativo do Serviço Público em 1949. Rio de Janeiro: Departamen- to de Imprensa Nacional, 1950. ______. O processo da sociologia no Brasil: esquema de uma história das idéias. Rio de Janeiro: Andes, 1953. ______. Administração e estratégia do desenvolvimento: elementos de uma socio- logia especial da administração. Rio de Janeiro: FGV, 1966. ______. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das na- ções. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 1989. SOARES, Luiz Antonio Alves. Guerreiro Ramos: considerações críticas a respeito da sociedade centrada no mercado. Rio de Janeiro: Conselho Regional de Admi- nistração do Rio de Janeiro, 2005. VIANNA, Oliveira. Problemas de política objetiva. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1930. WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, organiza- do por Hans Gerth e C. Wright Mills. ______. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 6ª ed. São Paulo: Pioneira, 1989. ______. Economia y sociedad. 2ª ed., 11ª reimpressão. Mexico, DF: Fondo de Cultura Economica, 1997. Artigo recebido em 20/05/2009. Artigo, aprovado, na sua versão final, em 20/10/2009.