unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP GABRIELA NATALIA DA SILVA PPPRRROOOSSSTTTIIITTTUUUIIIÇÇÇÃÃÃOOO,,, CCCOOORRRPPPOOO EEE AAANNNÁÁÁLLLIIISSSEEE DDDOOO DDDIIISSSCCCUUURRRSSSOOO::: AAA VVVIIIDDDAAA EEE OOO MMMUUUNNNDDDOOO DDDAAASSS PPPRRROOOSSSTTTIIITTTUUUTTTAAASSS DDDEEE LLLUUUXXXOOO... ARARAQUARA – SP 2018 GABRIELA NATALIA DA SILVA PPPRRROOOSSSTTTIIITTTUUUIIIÇÇÇÃÃÃOOO,,, CCCOOORRRPPPOOO EEE AAANNNÁÁÁLLLIIISSSEEE DDDOOO DDDIIISSSCCCUUURRRSSSOOO::: AAA VVVIIIDDDAAA EEE OOO MMMUUUNNNDDDOOO DDDAAASSS PPPRRROOOSSSTTTIIITTTUUUTTTAAASSS DDDEEE LLLUUUXXXOOO... Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Sexual. Linha de pesquisa: Sexualidade e educação sexual: interfaces com a história, a cultura e a sociedade. Orientador: Profa. Dra. Luci Regina Muzzeti ARARAQUARA – SP 2018 GABRIELA NATALIA DA SILVA PPPRRROOOSSSTTTIIITTTUUUIIIÇÇÇÃÃÃOOO,,, CCCOOORRRPPPOOO EEE AAANNNÁÁÁLLLIIISSSEEE DDDOOO DDDIIISSSCCCUUURRRSSSOOO::: AAA VVVIIIDDDAAA EEE OOO MMMUUUNNNDDDOOO DDDAAASSS PPPRRROOOSSSTTTIIITTTUUUTTTAAASSS DDDEEE LLLUUUXXXOOO. Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Sexual. Linha de pesquisa: Sexualidade e Educação Sexual: interfaces com a história, a cultura e a sociedade. Orientador: Profa. Dra. Luci Regina Muzzeti Data da Defesa: 28/02/2018 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Dra. Luci Regina Muzzeti Universidade Estadual Paulista – UNESP/Araraquara. Membro Titular: Profa. Dra. Valéria Cristina Gimenes Prado EDUCAE /Ribeirão Preto. Membro Titular: Profa. Dra. Andreza Marques de Castro Leão Universidade Estadual Paulista – UNESP/Araraquara. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara ARARAQUARA – SP 2018 À minha avó, por tudo o que ela me ensinou. AGRADECIMENTOS Acredito que tudo o que vivi me trouxe para este momento e sou grata a todos aqueles que fizeram parte da minha história. Entretanto, gostaria de registrar minha gratidão àqueles que estiveram mais próximos nesses dois anos e meio de mestrado. À Luci, minha orientadora, pelas orientações valiosas, pela gentileza, calma e sorriso com que sempre me recebeu. À Valéria Prado, Andreza Leão e Maria Regina Momesso pela presença em minha banca e pelas sugestões. Aos professores do Programa de Mestrado em Educação Sexual da Unesp, que possibilitaram o vislumbre de novas possibilidades e que contribuíram imensamente para minha pesquisa. Em especial, à Claudia Prioste e Luiz Nabuco, por trazerem o rico olhar da psicanálise; ao Paulo Rennes e Andreza Leão, cuja disciplina Fundamentos da Educação Sexual foi de grande importância. Agradeço ainda às professoras Denise Margonari, pelo bom humor das aulas e também à Maria Regina Momesso, pelo carinho, gentileza e competência. Às participantes da pesquisa, pela generosidade de dividir comigo histórias tão íntimas. À May Medeiros, por ter me dado dicas valiosas. Ao Gerald, por acordar junto comigo às 4:00 da manhã para preparar o melhor café da manhã do mundo e me levar para a rodoviária em outra cidade, quando eu estava cursando as disciplinas. Por me dizer todos os dias que eu consigo chegar lá, por encher a minha vida de amor. À Carol e Bisi, por me atulharem de perguntas sobre o mestrado e cuja perspicácia sempre me ensina algo novo. Pelo amor que muda tudo. À minha avó (in memoriam), que me recebia sempre com aquele sorriso de satisfação de quem vai entupir a neta de amor e guloseimas. Sinto a sua falta todos os dias. Ao meu avô, que se tornou um tagarela fofo e gentil. Ao meu irmão, por sempre me colocar para cima, pela energia positiva e por ser o garoto mais bondoso que eu conheço. À Jessica, minha cunhada, por dividir comigo as agruras do mestrado. À minha mãe, que foi feita mais de atos do que palavras. Exemplo de determinação e dedicação que me inspirou a chegar até aqui. À minha tia Ana, que sempre me recebe com abraço apertado, é amiga mais do que tia e faz as minhas comidinhas preferidas quando passo por lá. À prima Vitória, que é muito amorosa para uma adolescente e sempre se diverte comigo. À Ivonetinha, que é também minha família e cuida de mim com tanto amor todos os dias. À Lari, minha amiga querida, que compartilhou meu desespero de fazer o mestrado. Sensível, amorosa e divertida. À Ana Fernandes e Suilly, amigas desde a graduação, sempre preocupadas, carinhosas e generosas. À Silvanie, meu ombro amigo, salvação e orientação. O jeitinho meigo que ela insiste em disfarçar. À Paulinha Argenti, com quem me diverti durante as aulas, um amorzinho de pessoa. À Jacque e ao Gui, cuja delicadeza e dedicação à nossa amizade são de grande valor para mim. À Ray e ao Victor, amigos queridos, compreensivos e positivos. Foram parte essencial do percurso. À Lylian Tsai, minha professora de pilotagem, que quando dizia “Olha pra onde você quer ir e vai” provavelmente não imaginou que isso seria útil nos momentos de desespero do mestrado. Por fim, agradeço ao Cookie, Danny, Rio, Baleia, Bato, Malévola, Candy, Bibi e Harley, cujas patas fofinhas e barrigas quentinhas trouxeram alento e carinho todos os dias. Não lamentes, ó Nize, o teu estado; Puta tem sido muita gente boa; Putissimas fidalgas tem Lisboa, Milhões de vezes putas teem reinado: Dido foi puta, e puta d'um soldado; Cleopatra por puta alcança a c'roa; Tu, Lucrecia, com toda a tua proa, O teu conno não passa por honrado: Essa da Russia imperatriz famosa, Que inda ha pouco morreu (diz a Gazeta) Entre mil porras expirou vaidosa: Todas no mundo dão a sua greta: Não fiques pois, ó Nize, duvidosa Que isso de virgo e honra é tudo peta. 1 1 Soneto de todas as putas de autoria de Manuel Maria Barbosa Du Bocage. RESUMO Esta pesquisa origina-se de indagações presentes tanto na vivência quanto na observação da pesquisadora em relação à prostituição de luxo. Compreende-se que, na abordagem dos temas prostituição, sexo ou sexualidade, é inevitável deparar-se com preconceitos e visões enrijecidas, pois o “sexo é o grande problema, é o grande interdito das pessoas”, sendo controlado, legitimado ou negado por meio da materialização do corpo da prostituta. Portanto, no que tange à prostituição, os enunciados presentes na história demonstram a prostituta em um papel que ora assume um caráter libertário, ora pejorativo e pecaminoso. Isto posto, essa pesquisa se propôs a analisar a construção e a subjetivação da identidade da prostituta, buscou-se compreender com as putas são percebidas historicamente e como as próprias putas constroem sua subjetividade, seu modus operandi, imerso a relações de saber e poder com base na teoria da Análise do Discurso (AD) de Michel Foucault. Para tal, elaborou-se uma pesquisa de campo de natureza qualitativa, onde entrevistou-se 5 prostitutas de luxo que atendem na cidade de São Paulo e Zona Metropolitana. As entrevistas foram realizadas em uma sala comercial no Centro da cidade de São Paulo. E os dados foram compilados em duas categorias de analise, denominadas repectivamente: as relações de saber e relações de poder. Como resultados da pesquisa, notam-se que os ditos sobre a prostituta são construções que visam o controle desses corpos, com a finalidade de produzir o que Foucault denominou de “corpos doceis”, dentro da perspectiva da governamentalidade proposta por esse autor. As participantes de forma geral relataram a prostituição como possibilidade de liberdade sexual, ao passo que sua vivencia também é controlada por diversos enunciados que produzem sentimentos de culpabilização, atrelados aos discursos de controle social. Ressalta-se, que nos jogos de poder e saber, a existencia do discurso sobre o sujeito não é determinante para sua criação, antes é necessario que o proprio sujeito se identifique no discurso. Portanto, esta pesquisa buscou dar voz à Puta, revelando os sentimentos e os discursos que perpassam a vivencia de sua atividade. Palavras – chave: Prostituição de Luxo, Puta, Sexo, Análise do Discurso, Michel Foucault. ABSTRACT This research originates from questions present in both the experience and the observation of the researcher in relation to luxury prostitution. It is understood that, in dealing with the issues of prostitution, sex or sexuality, it is inevitable to encounter prejudices and stiffened visions, since "sex is the big problem, it is the great ban of people", being controlled, legitimized or denied by through the materialization of the body of the prostitute. Therefore, as far as prostitution is concerned, the present statements in history demonstrate the prostitute in a role that now assumes a libertarian, sometimes pejorative and sinful character. This put, this research set out to analyze the construction and subjectivation of the identity of the prostitute, sought to understand with the whores are perceived historically and how the whores themselves construct their subjectivity, its modus operandi, immersed to relations of knowledge and power with based on Michel Foucault's theory of Discourse Analysis (AD). For that, a field research of qualitative nature was elaborated, where 5 prostitutes of luxury were interviewed that attend in the city of São Paulo and Metropolitan Area. The interviews were conducted in a commercial room in the city center of São Paulo. And the data were compiled into two categories of analysis, referred to respectively: the relations of knowledge and relations of power. As results of the research, it is noticed that the sayings about the prostitute are constructions that aim at the control of these bodies, with the purpose of producing what Foucault called "sweet bodies", within the perspective of the governamentalidad proposed by this author. The participants generally reported prostitution as a possibility of sexual freedom, while their experience is also controlled by several statements that produce feelings of guilt, linked to discourses of social control. It is emphasized that in the games of power and knowledge, the existence of the discourse on the subject is not determinant for its creation, but it is necessary that the subject itself identify itself in the discourse. Therefore, this research sought to give voice to the Prostitute, revealing the feelings and the speeches that perpass the experience of its activity. Keywords: Luxury Prostitution, Prostitute, Sex, Speech Analysis, Michel Foucault. SUMÁRIO Apresentação da Autora ......................................................................................................... 13 1. Considerações Iniciais ........................................................................................................ 15 2. Ensaio Genealógico acerca da Prostituição ...................................................................... 19 2.1. A História da Prostituição I – da benção a maldição: a sexualidade nos povos primitivos. ................................................................................................................................ 22 2.2. A História da Prostituição Ii – do prazer ao pecado: o sexo dos Gregos aos Romanos................................................................................................................................... 27 2.3. A História da Prostituição Iii – da fogueira santa a interdição jurídica .................... 32 2.4. A História da Prostituição Iv – as Putas de Luxo ......................................................... 40 2.5. A História da Prostituição V – os discursos acerca da prostituição ............................ 49 2.5.1. A Biopolitica e as relações de controle da vida e dos corpos ..................................... 52 3. Metodologia ......................................................................................................................... 62 3.1. A Escolha do Método de Pesquisa .................................................................................. 62 3.2. A Escolha das Participantes ............................................................................................ 63 3.3. Local de Coleta de Dados ................................................................................................ 64 3.4. Instrumentos Utilizados .................................................................................................. 64 3.5. Procedimentos de Análise de Dados ............................................................................... 65 4. Apresentação dos Resultados e Discussões ....................................................................... 67 4.1. O Processo de subjetivação na identidade da Puta ....................................................... 68 4.1.1. A Governamentalidade na construção do corpo da Puta.......................................... 72 4.2. Condicionantes para entrada e permanência na Prostituição ..................................... 80 4.2.1. E o Prazer nosso de cada dia? ................................................................................ 90 4.3. As Dificuldades “Inerentes” a ocupação: relacionamentos amorosos ........................ 93 Considerações Finais .............................................................................................................. 99 Referências............................................................................................................................. 102 Apêndices ............................................................................................................................... 108 Apêndice A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ........................................... 109 Apêndice B – Questionario Socioeconomico....................................................................... 112 Apêndice C – Roteiro de Entrevista .................................................................................... 114 13 APRESENTAÇÃO DA AUTORA O interesse pelo universo das putas – termo que utilizo referenciando Gabriela Leite, que lutou incansavelmente por nossos direitos – surgiu ainda no curso de Licenciatura em Letras Português/Espanhol, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). A descoberta do tema surgiu paulatinamente, enquanto eu me embrenhava pelos autores e ia além das matérias que compunham a grade disciplinar. Livros como Amar, Verbo Intransitivo, de Mario de Andrade, A bela da tarde, de Joseph Kessel, A dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, dentre outros, fizeram com que as histórias dessas “professoras da arte de amar” ecoassem em minha mente e em meu corpo por muito tempo, até culminar em minha decisão por me tornar, eu mesma, uma cortesã. Assim surgiu, no último ano da graduação, em 2012, o blog que criei para narrar minhas vivências no campo da prostituição. Descoberta pela mídia no mesmo ano fui pauta de muitas matérias em jornais, revistas e televisão. O interesse por Lola Benvenutti – persona inspirada em Lolita, de Vladimir Nobokov – rendeu a publicação de meu primeiro livro “O prazer é todo nosso”, em 2014, composto de contos que retratam algumas das minhas experimentações pelo universo do sexo pago. Com o sucesso do livro e minha entrada mais efetiva na mídia, fui convidada a ministrar workshops e palestras para mulheres que buscavam conhecer seus corpos e encontrar prazer. Essas atividades midiáticas culminaram no lançamento do segundo livro, no ano de 2017, “Por que os homens me procuram?”. Foi mais ou menos nesse período que decidi deixar a profissão, me tornando “puta aposentada” 2 . Entretanto, senti na pele que tendo desempenhado esse trabalho, não importa a atividade que irei desempenhar posteriormente, sempre serei vista como puta, o que significa conviver com o estigma que 2 Utilizo a terminologia como forma de empoderamento, pois na minha percepção ser puta é uma profissão tão 14 essa atuação carrega. Essa marca acompanha por muito tempo àquelas que se dedicaram à profissão, fazendo com que sua valorização enquanto ser humano esteja atrelado a algo repulsivo para a sociedade. Atuei como puta por aproximadamente 3 anos, tendo considerado a experiência suficiente e desejando, a partir dessa vivência, outros desafios – afinal, como nos lembra do magnífico Guimarães Rosa: “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” – tenho buscado responder outras inquietações que essa atividade me traz. Achei pertinente buscar na teoria o que eu havia vivido na prática, tentando observar de que modo a representação estigmatizada dessas mulheres afeta sua existência. Foi então que adentrei no programa de Pós-graduação em Educação Sexual, a fim de encontrar respostas às perguntas que ainda estão presentes. Desta maneira, acredito que a percepção de uma pesquisadora que tenha, ela mesma, vivido as experimentações de seu objeto de estudo, pode contribuir com um olhar atento, sensível e coerente a respeito da vida dessas mulheres, principalmente no sentido de não reproduzir visões moralistas e degradantes tanto sobre a prostituição quanto sobre as próprias putas. comum quanto outras. 15 1. Considerações Iniciais A permanência e a importância atribuídas à prostituição ao longo da história da humanidade mostram a existência de um discurso que enquadra a prostituição como um “mal necessário” (cf. Simmel, 2001), sendo vista constantemente de forma degradante e marginalizada. A partir desse discurso, as prostitutas, ainda que sejam consideradas indispensáveis, vêm sendo ignoradas, vitimizadas e subjugadas durante séculos, pela religião, pela mídia, pelos movimentos sociais, pela sociedade da qual também fazem parte e que designam direta ou indiretamente os ambientes nos quais podem circular. Fazendo uma rápida retrospectiva, é possível perceber como o papel social da prostitua modificou-se em diferentes épocas, mas que, quase sempre, permanece marcado por negativismo e submissão. Na Grécia Antiga, assim como em outras sociedades, existiam as Prostitutas Sagradas, uma das classes de prostitutas vistas como encarnações da Deusa (Qualls-Corbett, 1990, p. 42), entidade feminina cultuada intensamente por sua associação à cultura, religião e fertilidade. O sexo nessa sociedade era sagrado e os pagamentos post coitum eram revertidos para o templo, numa relação de devoção e respeito (Freitas, 1966, p. 9). Nesse contexto, as mulheres que eram remuneradas pelo ato sexual não eram vistas como desonradas e sujas, mas como seres abençoados, sacralizados. Essa realidade começa a mudar por volta de 3.000 a.C., quando ocorre a transição da sociedade matriarcal para a patriarcal e a Prostituição Sagrada dá lugar aos prostíbulos instituídos por Sólon, que geravam riqueza para o Estado às custas de mulheres escravizadas. O sexo havia se tornado um negócio estatal e esse princípio permanece até a primeira metade da Idade Média, quando o clero, além de se entreter com essas mulheres, também lucrava com os bordeis (Roberts, 1998). 16 Na Idade Média, com a noção de sexo relacionado ao pecado, instituída pela Igreja, a prostituição, apesar de praticada por mulheres que eram consideradas impuras pela sociedade, era considerada essencial para manter a pureza e a honra das filhas e esposas - consideradas honestas e fiéis, servindo como meio de extravasar os desejos sexuais masculinos reprimidos pela religião (cf. Roberts, 1998). Entretanto, essa realidade altera-se drasticamente durante a Inquisição, com a crueldade instaurada contra as prostitutas e a dicotomia acirrada acerca da mulher santa e da mulher impura, considerada perigosa e responsável pelo desvio da sociedade, o que justificava sua condenação ao inferno. Na Idade Moderna, período de transição do sistema feudal para o capitalista, a burguesia assumiu o controle dos bordeis e a figura masculina definiu os espaços a serem frequentados pelas mulheres conhecidas corriqueiramente como “de família”, enquanto as prostitutas, ainda que hostilizadas, banidas do convívio social e sendo um dos principais alvos da Reforma Protestante, eram, além de culpabilizadas por doenças, encaradas como uma via de descarga do prazer. No Brasil, a crença do colonizador, marcada pelo primitivismo e conservadorismo religioso, imprimiu forte repressão aos hábitos sexuais dos indígenas, que eram vistos como desvios da fé, ousadias que conduziriam todos ao inferno. Essa maneira de encarar a sexualidade reverberou na sociedade continuamente, refletindo-se na época considerada o apogeu da prostituição no Brasil: a Belle Epoque. A Belle Epoque é o período histórico em que se tem forte influência dos modelos urbanos, culturais, científicos e dos costumes da Europa como todo. No Brasil, é marcado pelo período de dissociação em relação a visão escravista do seu passado. De acordo com Oliveira (2009, p. 70) “Ao adotar os modelos de urbanização europeus, pretendia-se aproximar a cidade das principais capitais europeias, centros difusores da cultura da Belle Époque, eliminando, ao mesmo tempo, todo traço colonial que a lembrasse de seu passado”. 17 Na Belle Epoque enquanto a mulher, a esposa, a dona de casa era constantemente vigiada, considerada ociosa, preocupada com frivolidades (Rago, 1991; Perrot, 1998) e coibida de sentir prazer, as prostitutas francesas renovavam os cabarés e seriam responsáveis por ensinar as artes do amor, aqui entendido como relação sexual, aos burgueses necessitados do preparo para o casamento (Rago, 1985; Rebolho, 2007). Ao longo da história a prostituta vai adquirindo novos discursos que lhes atribuíam o lugar de pecadora na Moral Cristã, impura dentro da visão da sociedade ocidental. Com a influência dessas subjetivações sociais, impunha-se às prostitutas um julgamento de culpa em razão da relação comercial estabelecida entre sexo e dinheiro (ou ainda, por fazerem do ato sexual moeda de troca). A sociedade ocidental, ao longo da história, tem apontando as prostitutas como mulheres que envergonham as suas famílias, como “sujas”, “corrompidas” e “atrevidas”. Rago (1991) cita o médico F. Ferraz de Macedo, que se refere à prostituição no Rio de Janeiro (do século XX, anos 20) como fruto da ociosidade, preguiça, desejo desmesurado de prazer, do amor ao luxo, miséria financeira, desprezo pela religião, falta de educação moral e do temperamento erótico da mulher. Segundo Rago (2008, p. 23) “construir masculinamente a identidade da prostituta significou silenciá-la e estigmatizá-la e, ao mesmo tempo, defender-se contra o desconhecido – a sexualidade feminina – recoberta por imagens e metáforas assustadoras”. É justamente esse conteúdo, de cunho valorativo e apreciado, construído pelo discurso do opressor masculino, a partir da ótica do outro, que contribui para que as prostitutas continuem vivendo marginalizadas e recriminadas pela sociedade, ao mesmo tempo em que o número de meretrizes aumenta exponencialmente. 3 . Com base nessas afirmações e a Análise do Discurso (AD) entende-se que o processo de subjetivação da identidade da prostituta relacionada a algo degradante é baseada em 3 A Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC) estima que o Brasil tenha cerca de 1,5 milhões de 18 discursos que se perpetuam e reformulam em uma sociedade que historicamente silencia a sexualidade feminina. Portanto, este trabalho teve como objetivo analisar os discursos/enunciados sobre as prostituas, buscando-se compreender com as putas são percebidas historicamente e como as próprias putas constroem sua subjetividade, sua forma de ser impregnadas por relações de saber e poder, com base na teoria da Análise do Discurso de Michel Foucault. pessoas – homens e mulheres – que vivem em situação de prostituição; no mundo, são mais de 40 milhões segundo a fundação francesa Scelles. 19 2. Ensaio Genealógico acerca da Prostituição Para entender melhor os conceitos que essa pesquisa busca investigar, é necessário entender a que se referem os termos: prostituta, prostituir se, e prazer. Para Aulete (1974, p. 2969) a prostituta é “mulher pública, meretriz”, por prostituição, “vida de devassidão, de impudicícia, ação de vergonhosa condescendência, de vergonhoso servilismo” e por prostituir “entregar à vida de devassidão, tornar devasso, corromper, desmoralizar, aviltar-se, desonrar-se, descer no nível moral, rebaixar-se”. Ferreira (2010, p. 618), define prostituta como “mulher que pratica o ato sexual por dinheiro” prostituir como “tornar (-se) prostituta ou prostituto, degradar (-se); aviltar (-se); Houaiss (2010, p. 635), traz a seguinte definição para prostituta “mulher que ganha dinheiro para manter relações sexuais, meretriz” e prostituir como “entregar-se ou manter relações sexuais em troca de dinheiro; rebaixar (-se) moralmente; degradar (-se); corromper (-se). Autores como Ferreira (2010, p. 212) relatam que vários sentimentos perpassam a vivência da prostituição, sendo um dos mais presentes a culpa, como verificamos abaixo: “ação negligente ou imprudente ou danosa a outrem; falta voluntária contra a moral, princípio ético, preceito religioso ou lei; responsabilidade por ou omissão prejudicial, reprovável ou criminosa, mas não intencional; sentimento de pesar, angústia e, por vezes, vergonha de quem se sente culpado por algo ruim. Já Houaiss (2010, p. 213) entende por culpa “responsabilidade por dano causado a outrem; falta, delito; fato de que resulta um outro fato ruim”. Prazer, para Houaiss (2010, p. 619) é “causar prazer a ou sentir prazer; deleitar (-se), sensação agradável oriunda da satisfação de um desejo; alegria, contentamento; boa vontade, agrado; satisfação sexual; 20 gozo.” Enquanto Ferreira (2010, p. 604) fala de prazer como “causar satisfação; agradar, aprazer; sentimento de alegria, de satisfação; aquilo que provoca prazer.” A fala de diversos estudiosos 4 sobre o assunto revela a heterogeneidade de discursos sobre o tema. Existem alguns discursos muitos fortes sobre a culpa em torno da profissão de prostituta. Podemos escolher dois para nos aprofundarmos: a culpa moralista e a culpa „não consciência‟. Como exemplos da culpa moralista, podemos citar alguns autores cujos estudos sobre prostituição têm evocado discursos estereotípicos e negativos. Bacelar (1982), por exemplo, pesquisou prostitutas no bairro de Maciel, em Salvador/BA, atentando-se para suas famílias e seu ambiente de trabalho. Concluiu que elas eram tristes, muito pobres e atuavam como prostitutas para sobreviverem. Freitas (1985) analisou a prostituição ocorria na cidade de Belo Horizonte/MG, entrevistando prostitutas e demais participantes deste cenário, percebeu que frequentemente a prostituta é associada à imagem de mulheres solitárias, carentes e isoladas. Além dos artigos e pesquisas sobre o assunto, vale observar a constante representação das prostitutas pela mídia 5 , onde frequentemente são retratadas numa visam de cunho moralista e dramático, o que desfoca, muitas vezes, a realidade 6 . Outro exemplo dessa imagem midiática podemos citar o programa televisivo Profissão Repórter, que em maio de 2005 abordou a vida de três prostitutas: Luana, travesti da Lapa, no Rio de Janeiro, Mariá, “acompanhante de luxo” paulistana e Ana Paula, prostituta “de zona” do sertão do Ceará. Enquanto o universo em relação à Luana e Ana Paula é rodeado por violência, drogas e um esforço em mostrar a degradação, a relação com Mariá é diferente, nada nas imagens 4 Mazzariol (1976), Perlonguer (1987), Freitas (1985), Gaspar (1984), Ariente (1989), Morais (1995). 5 Televisiva, jornalística e internet. 6 Entrevista durante a gravação do documentário “Um beijo para Gabriela”, em 2013. 21 remete à pobreza ou necessidades econômicas. Ela narra suas vivências sem qualquer tom de vitimização ou lamúria e mostra divertir-se com a situação, surpreendendo a própria jornalista com o fato de que Mariá é contratada também apenas para jantar com um cliente. Essa reação “marca a irredutível centralização da imaginação no sexo (coito) como atividade excludente na prostituição” (Beleli, 2011, p. 507). Mesmo no caso de Ana Paula, prostituta “de zona” e, portanto, pelo julgamento dos entrevistadores, mais “sofrida” que Mariá, embora ela apareça sempre sorridente e fale com gosto sobre sua profissão, há um esforço desmedido em agregar um tom dramático à narrativa, evocando sua gravidez, os possíveis clientes violentos (que em nenhum momento aparecem), drogas e a precariedade do local. Como exemplo da culpa não-consciência, podemos citar os discursos de alguns estudos feministas. A culpa não-consciência é a culpa da não-liberdade e a não consciência de que faz parte de uma engrenagem patriarcal e capitalista. Não raro, essas falas vêm acompanhadas da visão da prostituição relacionada a abuso, estupro, tráfico de mulheres e drogas. Em evento organizado durante a Marcha Mundial das Mulheres, em 2010, a “opressão” das mulheres foi diretamente associada à mercantilização do corpo. Nesse contexto, a submissão feminina fica evidente, em se tratando de sanar a demanda sexual masculina. Segundo as militantes participantes, a máxima defendida por elas de que “nosso corpo nos pertence”, é convertido em objetificação, comercialização, pelas prostitutas: “meu corpo é meu negócio”. A prostituição como consequência do mundo capitalista é vista de maneira negativa pela cientista política Pateman (1993, p. 299), que afirma que é um cliente masculino que participa do contrato da prostituição e não um patrão. Esse está interessado no lucro, o outro 22 na prostituta e seu corpo. “Ter corpos à venda no mercado, enquanto corpos, é muito parecido com a escravidão”. Incorporar a ideia de que habitamos uma sociedade machista e buscar nesse contexto as respostas para esse e outros questionamentos é uma maneira rasa de interpretar essas questões. É imprescindível que penetremos nos espaços de rejeição, entendendo o que cada período considerava como rejeitável e, desse modo, procurando por esses aspectos, poderemos, quem sabe, desnaturalizar valores e desconstruir pré-conceitos, não os aceitando como naturais e biológicos (Couto, 2011) Levando em consideração a fragmentação da modernidade, que envolve um sujeito igualmente fragmentado, imerso em um processo social e cuja pluralidade de saberes e modos de existir acabam por constituí-lo de maneira complexa, é preciso considerar a característica interdiscursiva intrínseca ao discurso. Assim, convém falar do discurso como lócus de disputa, como espaço de saber e poder, como é discutido por Foucault. Nesse sentido, analisar a prostituição por meio do discurso das prostitutas, considerando a questão da sexualidade e discutindo suas implicações para o modo de viver, ser e agir do sujeito apresenta-se como uma possibilidade de trazer à tona não apenas os discursos dessas mulheres, mas a maneira como elas se inserem nessa disputa e principalmente descrever como os discursos moralistas da religião cristã, da família, da mídia e da própria prostituta influencia no processo de subjetivação de sua identidade. 2.1. A História da Prostituição I – da benção a maldição: a sexualidade nos povos primitivos. Segundo Foucault (1988 citado por Araújo, 2002), a sexualidade é uma construção social que engloba o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos e nas 23 relações sociais, impregnada de valores morais e submetida a dispositivos de controle das práticas e comportamentos sexuais. Como esses dispositivos são construídos com base nos valores e ideologias predominantes na sociedade, eles assumem formas diferentes à medida que a sociedade muda, influenciando diretamente os comportamentos sócio individuais. Desta forma, pode-se afirmar que a sexualidade é um dispositivo que está sempre congruente com as crenças e verdades de uma sociedade de determinada época, com o objetivo de produzir formas, materialidades, subjetividades, corpos e sujeitos que venham a ocupar um lugar de poder ou de dominação. Foucault (2010) também afirma que o poder não é algo fixo ou físico, é movimento, construção. Logo não há relação de permanência dos lugares de poder e de dominação, todos podem ocupar ambos os lugares, basta que para isso se reformulem novos discursos de saber e poder. Utilizando-se dessa visão foucaultiana é possível afirmar que, assim como a expressão da sexualidade da mulher sofreu alterações dentro da história, o ato sexual com finalidade de troca comercial, comumente denominado de prostituição e a própria imagem da mulher que realiza – prostituta, também sofreram modificações em seus significados. Sendo assim, sobre os primeiros relatos dessas mulheres denominadas prostitutas, Roberts (1988) e Rebolho (2015) mencionam a existência das chamadas Prostitutas Sagradas no Período Primitivo. As autoras pontuam a existência da Prostituta Sagrada relacionada a um tipo de ritual sexual tradicional que existiu desde a Idade da Pedra e foi sendo incorporado às primeiras civilizações do mundo com seu conceito e práxis ressignificados, até chegar ao que hoje chamamos de prostituição. Ainda de acordo com essa visão, acredita-se que no período paleolítico, a mulher era associada à Grande Deusa, força geradora de vida, centro das atividades sociais. Vistas como encarnações da Deusa, as mulheres criavam um elo entre a comunidade e a divindade, 24 tornando-se sacerdotisas xamânicas. Estas conduziam rituais de sexo grupal com toda a comunidade como uma maneira de promover a união e de celebrar a vida (Roberts, 1988). Outras pesquisas relatam que o período de adoração a deusa perdurou 25.000 anos e durante todo esse tempo a sexualidade da mulher era tida como divina, detentora da prosperidade, como relata na passagem “provinham os alimentos, as vestes, aos utensílios que eram utilizados para a caça e a pesca, bem como os remédios para o corpo e para a alma. Detinham a mais poderosa energia universal, que seria a geração de outro ser” (Prado, 2016, p.18). Já nas culturas gravettianas e aurignacianas do período Paleolítico, evidenciam a posição central das mulheres. Nesse período, as esculturas e gravuras são representações das formas femininas, pois a mulher é vista como representação viva da Deusa, que eles entediam como sendo uma força geradora universal. A representação vai além da simbologia da fertilidade ou maternidade. Essas figuras eram adoradas pelos homens pré-históricos e simbolizavam um princípio ontológico muito maior, expressando a energia ou força que animava todo o universo e a natureza (Roberts, 1998). Seguindo essa ideia, com a passagem do período Paleolítico para o Neolítico, do nomadismo para o sedentarismo, foram surgindo organizações, templos e pequenas cidades onde as mulheres sacerdotisas continuavam a praticar seus rituais com práticas sexuais, pois era através do ato sexual que os adoradores tinham acesso ao poder da Deusa (Roberts, 1998, Rebolho, 2015). Essa perspectiva muda em consonância com a visão de mundo, haja vista que nesse momento histórico a busca por se estabelecer em um único território faz com que a virilidade masculina passe a ser valorizada e, consequentemente, abre espaço para o protagonismo do poder masculino de força e dominação, que culminou em novas formas de relacionamento. 25 Incluindo formas específicas de controlar a sexualidade das mulheres, visando identificar e determinar com precisão a paternidade de qualquer criança. Prado (2016, p. 18) ao citar Roberts (1998, p. 22) relata que a invasão dos territórios matriarcais culminou “[...] as culturas da deusa, amantes da paz, não puderam se desenvolver tranquilamente”. Foi por volta de 3000 a.C que tribos nômades de guerreiros, dominadas por homens, agora já contendo consciência do papel masculino na procriação da espécie e também para o desempenho econômico na criação de gado “[...] começaram a invadir os territórios matriarcais, finalmente subjugando os povos da deusa e sujeitando-os ao poder do masculino”. É a partir desse momento que as civilizações como Egito e Mesopotâmia passam a nomear sacerdotes masculinos, a institucionalizar a religião e a ter mais controle sobre os cultos 7 . Apesar da mudança de perspectiva religiosa, ainda se cultuava a Deusa - ainda que em menor proporção - nos templos e através dos rituais sexuais. No entanto, é nesse processo que as sacerdotisas vão se tornando sacerdotisas de templos, e concomitantemente, mulheres sagradas e prostitutas. Segundo Roberts (1988), é nesse período, segundo milênio a.C, quando surgem as primeiras prostitutas da história. É perceptível nesse contexto o deslocamento do poder do gênero feminino para o masculino. Com a conquista dos povos e submissão do gênero feminino esta sociedade criou deuses para competir e dirimir o poder da deusa. Nesse sentido, progressivamente passou-se a cultuar deuses masculinizados e a direcionar as relações para uma sociedade economicamente e politicamente organizada de maneira patriarcal (Prado, 2016; Roberts, 1998). 7 Vide Prado (2016); 26 Nesse ponto, quando começa a ocorrer o deslocamento do poder das mulheres para os homens e a sociedade passa a ser hierárquica, as distinções também se veem refletidas no mundo sagrado das sacerdotisas do templo, onde, através do compromisso com o novo regime patriarcal, um escalão de prostitutas da classe alta se desenvolve e consegue manter parte dos antigos poderes e privilégios (Roberts, 1988). Na Babilônia (aproximadamente 2400 a.C), as prostitutas-sacerdotisas detinham elevado poder, transcendendo o campo das atividades sexuais. Existiam duas qualidades de sacerdotisas, as entu e as naditu. As primeiras tinham poderes e privilégios em pé de igualdade com os sacerdotes homens, enquanto as naditu eram mulheres nobres que, em troca de atividades no templo, conquistaram privilégios como sacerdotisas. (Roberts, 1988, p. 26; Rebolho, 2015). Outros artigos demonstram a existência de várias crenças onde sexo e religião se misturam, por exemplo, o culto a deusa Inanna/Ishtar que governava o sexo com vistas à reprodução, ao prazer e como forma de conhecimento e encontro com o divino; sendo assim, o sexo era tido como religioso e sagrado (Dupla, 2016). Vênus, também deusa da fertilidade, era cultuada em vários países da Europa, inclusive nas regiões dos Montes Urais e do Lago Baical. Afrodite, deusa grega, também passava por um culto ao prazer do amor, aceitando, inclusive, a prostituição, desde que feita como uma maneira de cultuar a deusa Afrodite ou como ato de sacrifício em prol de algo maior que o ato sexual em si. Por exemplo, se pela prostituição (não-depravação) as donzelas conseguissem obter o seu dote para promover o casamento e, deste dote, parte fosse revertida à deusa como oferenda (Ullmann, 2005). O filósofo Ullmann (2005) nos conta que entre os babilônios havia o costume de, ao menos uma vez na vida, toda mulher babilônia sentar-se no templo de Afrodite e esperar que algum estrangeiro a escolhesse para copular em troca de dinheiro. Esse dinheiro era 27 considerado sagrado e parte dele deveria ser entregue como oferenda à Afrodite. Após o intercurso sexual, a mulher deveria voltar aos seus hábitos caseiros normais. Muitas ficavam anos a espera de serem escolhidas Por fim, voltando aos primórdios da civilização, acredita-se que embora não haja vasta literatura ou dados arqueológicos, é possível reconhecer símbolos de fertilidade em pinturas na cerâmica ou em figuras talhadas em pedras, barro, e bronze os costumes desse período histórico. O símbolo mais corriqueiro nessas expressões artísticas e documentais é a figura feminina, representada boa parte das vezes como mãe ou mulher grávida. No entanto, a figura masculina também aparece associada à fertilidade. A imagem do falo é recorrente em pinturas e esculturas, geralmente representado num tamanho muito maior que o real; eram, portanto, considerados sagrados (Ullmann, 2005). 2.2. A História da Prostituição II – do Prazer ao Pecado: o sexo dos gregos aos romanos. Durante toda a Idade Antiga, a mulher ocupou papel secundário em relação aos homens. Havia algumas diferenças entre uma Cidade Estado Gregas e outra acerca do papel da mulher na sociedade. Em Esparta, por exemplo, a mulher recebia uma educação atlética e isso a aproximava das qualidades e atividades masculinas, mas, de modo geral, em outras localidades eram condenadas à submissão e à obediência. Em Atenas, a mulher de bem pertencia sempre a algum homem, seja o pai, quando solteira, seja ao marido, filhos ou tutor, quando casada. Os direitos políticos e sociais eram extremamente diferentes para homens e mulheres. As mulheres não eram consideradas cidadãs, portanto, ocupavam um papel de inferioridade social em relação aos homens, tendo menos direitos e atividades sociais restritas à vida 28 domiciliar. Embora a educação fosse voltada para afazeres domésticos, às mulheres da aristocracia também lhes era ensinado a arte de ler. Nas classes sociais mais baixas, havia uma autonomia social maior, possivelmente porque precisavam gerar renda, sobreviver. Nesta camada social, a prostituição feminina era mais recorrente. Muitas ficavam em portos à espera dos navios e de marinheiros, e aceitavam como pagamento desde as dracmas (moedas) até objetos, mimos ou outros serviços. Muitas eram apenas filhas de famílias pobres que tinham por hábito alugá-las para, com isso, ajudar na renda familiar. Para uma mulher ser considerada prostituta, dependia em muito da quantidade de parceiros com os quais mantinha relação sexual e a duração desse relacionamento com cada um. Ainda no mundo grego, percebe-se que existia um tipo de hierarquia social na prostituição. Havia as prostitutas de origem mais humilde, que não frequentavam os mesmos locais que as chamadas hetairas, que eram mulheres com estudo e qualidades artísticas, muitas vezes estrangeiras. Participavam de festas e reuniões culturais, gozavam de liberdade de opinião dentro dos espaços fechados em que homens e hetairas se reuniam para divertimento. Eram vistas como parceiras, com quem os homens podiam manter relações amorosas fora do casamento ou quem eles podiam desposar sem compromisso afetivo (Ullmann, 2005). A denominação hetaira foi utilizada pela primeira vez na Grécia, e se referia literalmente a “companheira dos homens”. Autores (Prado, 2016; Rebolho, 2015; Vrissimtzis, 2002; Roberts, 1998, Murphy, 1994; Gregersen, 1983) relatam que as hetairas eram reconhecidas como prostitutas menos estereotipadas em relação a prostituição vivenciada por mulheres escravas. É necessário frisar que a percepção das hetairas como prostitutas só é possível na medida que se considera o novo modelo de organização política em expansão, o patriarcado. 29 Pois é nesse novo modelo político que a sexualidade da mulher passa a ser controlada e silenciada, diferente da maneira vivenciada no modelo matriarcal, existente antes da dominação masculina (Prado, 2016; Roberts 1998). Seguindo as explicitações de Ullmann (2005), para as mulheres gregas a vida era repleta de estigmatizações e relações de controle enquanto que para homens havia maior liberdade sexual. Retrato dessa afirmação é perceptível na constituição social da vida grega. A sexualidade da mulher passa a ser negada de modo que toda a ideia de bem e de mal estava centrada na filosofia do direito individual (lesão) e diante das leis do Estado (comunidade), não havendo tabus contra masturbação, contra o coito em si ou contra práticas homossexuais, desde que essas fossem realizadas por pessoas do gênero masculino. Tudo era considerado saudável e parte integrante da sexualidade, entre os homens. Já em Roma, a grande expansão urbana favoreceu o crescimento da prostituição e o trabalho das mulheres fora do seio doméstico. Muito embora as mulheres também fossem consideradas inferiores aos homens, a liberdade sexual era estampada nos objetos do cotidiano, utilizados por toda família. Uma questão interessante presente no Império Romano é a definição da prostituta. Uma mulher que mantivesse relações sexuais com muitas pessoas não poderia ser considerada prostituta, sendo apenas se cobrasse algo em troca, como relata Rebolho (2015) No entanto, vale ressaltar que ter o número elevado de amantes não torna uma mulher prostituta. O que a torna prostituta é ter relação sexual em troca de dinheiro. Se a cultura da época compactuava e dava liberdade às mulheres em manter várias amantes, não nos cabe julgá-las com o olhar contemporâneo (p.90). 30 Os romanos esculpiam e adornavam o órgão sexual masculino e cenas orgásticas em figuras de terracota, lâmpadas, utensílios de bronze e objetos de uso pessoal, como espelhos, cabos de talher, prataria, utensílios em geral usados por toda a parentela. Pinturas em bacias e copos descreviam cenas explícitas do ato sexual tanto homo quanto heterossexual, casal ou orgiástico. Ainda que a liberdade sexual fosse dirigida apenas aos homens, devendo as mulheres se preservarem até o casamento e honrar seus maridos, as hetairas continuam a atuar como braço importante na formação social e sexual da sociedade, sendo parte da sociedade (Ullmann, 2005). Com o declínio do Império Romano, as invasões bárbaras e as grandes cidades destituídas para formar aldeias agrícolas, a prostituição como parte da vida urbana perdeu espaço e com ela toda uma classe de mulheres: as hetairas. O prazer feminino passou a se tornar um mal a ser controlado. O cristianismo teve um papel fundamental na repressão da sexualidade feminina e na construção da prostituição marginal. A igreja Cristã passou a apresentar mais influência na vida dos sujeitos durante o governo do legislador Teodósio no Império Romano, pois foi nesse período que ela passou a ter poder político, já que com a expansão do Império Romano ela ficou responsável por governar os novos territórios (Rebolho, 2015). A Idade Média foi um período marcado pelo domínio do cristianismo, representado pela Igreja Católica na Europa Ocidental, uma instituição rica, organizada e influente. Com a transformação do cristianismo em religião oficial do Império Romano, em 391, durante o reinado de Teodósio, a Igreja passou a acumular fortunas e vastos territórios. No século V, a instituição tinha uma organização hierárquica definida – com padres e sacerdotes na base da pirâmide, bispos acima e o papa no topo. Os religiosos dedicaram-se a converter bárbaros e a 31 promover sua integração com os romanos, ganhando prestígio e passando a assumir funções administrativas nos novos reinos (Rebolho, 2015, p. 22). O mito da Criação, que logo surgirá dentro desse novo modelo de moral judaico-cristã e será crucial para associar a mulher à imagem de perigo, corrupção, portadora do mal e da libido demoníaca. Afinal, eram todas filhas de Eva. Segundo a antropóloga Raquel dos Santos Sousa Lima e o historiador Igor Salomão Teixeira, “os argumentos retirados desses textos contribuíram para fundamentar as representações cristã, judaica e muçulmana sobre a diferença dos sexos, tendo alimentado a misoginia, da qual a própria Igreja Católica é herdeira” (Teixeira, 2009, p. 114). As mulheres eram vistas como possuidoras do pecado original e disseminadoras do mal, por isso elas eram mantidas puras e afastadas dos homens. Maria, mãe de Jesus, aparece como símbolo ideal de comportamento feminino, em que as mulheres deveriam se espelhar: mãe, esposa e virgem. Os historiadores Jacques Rossiaud e Cláudia Schilling Sancho (1991, p. 20-30) confirmam que as prostitutas, até antes da Idade Média, não eram marginais à sociedade, tinham um papel reconhecido, podendo, inclusive, vir a ser consideradas damas se deixassem a prostituição e contraíssem matrimônio. A Igreja Medieval, embora condenasse todo relacionamento sexual, aceitava a existência da prostituição como um mal necessário. Essa afirmação é interessante se pensarmos as duas posições sociais atribuídas as mulheres daquela e dessa época: as santas e as putas. Afinal, a mulher passou a ter seu destino vinculado ao dogma da virgindade de Maria, mãe de Jesus. A mulher, cujo destino era se tornar esposa, era obrigada a resguardar a sua virgindade até o dia de seu casamento, enquanto as casas de prostituição passaram a 32 funcionar como uma local de escape sexual para homens solteiros ou viúvos. Lá era o local adequado onde o homem poderia liberar toda a sua libido com segurança, liberdade que não sobreviveu ao Renascimento da Idade Média. Houve uma progressiva rejeição à prática da prostituição, que passou a ser associada à violência, roubos e desvio de caráter. Assim, de parte integrante da estrutura social, a prostituição passou a ser considerada um mal necessário e, em seguida, um flagelo social gerador de problemas e de punições divinas que precisava ser controlado, regulamentado. 2.3. A História da Prostituição III – Da Fogueira Santa a Interdição Jurídica Para compreender melhor a instalação de certas práticas e mudanças comportamentais ao longo da história da sociedade, deve-se refletir sobre os fatores que influenciaram essa mudança. O processo de mudança, de ressignificação está diretamente ligado à visão de homem no contexto vigente. Nesse sentido, não se pode analisar as novas práticas sociais dissociadas das práticas morais presentes (Foucault, 1988, p. 45 citado por Araújo, 2009). A história da sexualidade perpassa questões de caráter religioso na construção de significados. Os comportamentos sexuais são conhecidos desde o início da civilização e representados pelo pecado original de Adão e Eva. “Na cultura ocidental, os mitos fundadores apresentam a sexualidade, sobretudo, a partir da „sexualização‟ do pecado original feita por Santo Agostinho, como a responsável pela perda do paraíso, com todos os desdobramentos que se seguem, em particular, o lugar atribuído às mulheres” (Salles & Ceccarelli, 2010, p. 32). Nos primeiros séculos do Cristianismo, o mundo toma um novo rumo, passando a compreender o homem antes e depois de Cristo. Segundo Salles e Ceccarelli (2010), em seu artigo “A invenção da sexualidade”, durante a Antiguidade Clássica já havia dispositivos que 33 regulavam a sexualidade. Esta corrente de pensamento mudou a concepção sobre a busca do prazer, encarando a prática sexual sem motivo para a procriação, um ato de luxúria, ou seja, pecado. O casamento se tornaria, então “uma permissão para a satisfação da luxúria ou do prazer para aqueles que consideravam as relações sexuais indispensáveis” (Ranke- Heinemann, 1996, p. 23). Com o passar dos séculos, a sociedade adota paulatinamente concepções da nova religião monoteísta cristã, que ensina ao homem como (sem adotar o sentido de gênero) deve se comportar para ser fugir da punição do inferno. Nos séculos que se seguem, com a diáspora do Cristianismo na Europa, a Igreja é quem ditará a moral e os conceitos aceitos ou negados. Nos primeiros séculos da era cristã, os tratados teológicos elogiavam a virgindade feminina e atacavam o matrim nio com o propósito de convencer as mulheres a evitá-lo, agora com uma nova justificativa. A igreja, valorizando o celibato, manifestou a ideia de que o prazer da relação sexual era pecaminoso e que o sexo só se justificaria para a reprodução. Um exemplo da ideia é a proposta da Igreja Católica transmitir para a mulher da época a figura de Maria de Nazaré, que engravidou sem sequer ter tido relações sexuais com seu marido José e até sua morte permaneceu virgem. Temos então a representação do ideal de mulher que se esperava (Salles & Ceccarelli, 2010, p. 17). Deste modo, tudo aquilo que não corresponde à figura criada por essa instituição é considerada pecaminosa, errônea e deve ser posta à margem. No decorrer da história da prostituição ocorreram momentos de aceitação e momentos de negação do ato sexual. Segundo Araújo (2002), a visão de amor presente no casamento é uma invenção de ordem burguesa. É por volta do século XVIII na Europa que esse tipo de união passa a ser feita por livre e espontânea vontade, ao menos juridicamente falando. Da Antiguidade à Idade Média, os pais cuidavam do casamento dos filhos e só se casavam sujeitos do mesmo estrato social, ou seja, nobre com nobre, plebeu com plebeu, de 34 modo que a sexualidade não era vivida como um lugar de prazer. Sua função específica, no casamento, tornou-se a procriação. Esse tipo de união resultou na expulsão da sexualidade do casamento e possivelmente por esse motivo o sexo e amor eram vivenciados com mais frequência nas relações de adultério. Entre o final da Idade Média – século XV/XVI, e o final do século XIX -, muitas transformações aconteceram. Mulheres passaram a disputar espaço nos papéis racionais até então exclusivos dos homens. Joana D'arc, guerreira, Elizabeth I, rainha da Inglaterra e Isabel I, rainha de Castela são exemplos de mulheres que irromperam a domesticação feminina. Destaca-se durante esse período a assunção, por parte das mulheres, de papéis antes exclusivamente masculinos, muito embora a religião e o estigma da mulher-virgem permanecessem no imaginário coletivo. Segundo o sociólogo Michel Foucault, há registros de uma relativa liberdade sexual por volta do século XVI, na maneira como os corpos poderiam ser expostos, nas práticas sexuais e no modo como os discursos se davam em torno do sexo. É nesse mesmo período, como desenvolvimento das sociedades burguesas vitorianas e do capitalismo, em que se inicia uma hipótese repressiva, entendida como mecanismo de coerção e autoritarismo, de obediência e censura. A partir desse século a sexualidade transforma-se, passando a encontrar centralidade no casal, na família. “[...] em toda a parte o puritanismo moderno imp s o seu triplo decreto de interdição, de inexistência e de mutismo” (Foucault, 1994, p. 11). Em 1215, o Concílio de Latrão estabeleceu técnicas de confissão, métodos de interrogatório e inquéritos que passaram a fazer parte dos sacramentos. Em 1545-1563, o Concílio de Trento tornou esses mecanismos de poder mais organizados e funcionais. Através da confissão, tinha-se acesso a todos os segredos de seus membros. Ao se confessar, era recomendável a descrição de detalhes da relação conjugal: atitudes tomadas, gestos, posição de cada parceiro, carícias, momento exato do prazer. A imposição da necessidade de se fazer 35 um autoexame acerca de todas as insinuações da carne, manifestas nas imaginações, e, desejos voluptuosos (Foucault. 1994). Através da reflexão incessante sobre sexo, a Igreja encontrava uma forma de controlar a sexualidade dos seus membros, por meio da confissão dos pecados; sua técnica de disciplinamento dos corpos era a introjeção da culpa e aplicação de punições físicas. Criou-se um sistema de vigilância, de mecanismos corretivos, de força coerciva ao alimentar a confissão, a vergonha, a difamação, o pecado e o medo da punição. A Igreja, as escolas e a medicina reprimiam a sexualidade, silenciavam-na, disciplinavam-na (Foucault, 1994). Sexo e corpo eram marginalizados pela Igreja. Discursos racionais, dirigidos por peritos com vista à construção de uma “verdade sobre o sexo”. É somente no final do século de XIX que se experimentará novamente a busca por uma “liberdade de expressão”, perdida desde a instalação do patriarcado. Teremos então, o primeiro movimento que pode ser chamado de feminista, quando surge na Inglaterra e na França um movimento liderado por Josephine Butler contra a regulamentação estatal da prostituição. Porém, já no início do século XX, o movimento se divide entre duas vertentes de feministas, aquelas que veem a prostituição como liberdade sexual e as que defendem o combate à prostituição, e à estimulação de uma “pureza social”. Para estas, a prostituição deveria ser combatida ao invés de regulamentada, salvando as prostitutas e punindo os exploradores dos bordéis e os clientes (Hirata, 2009, p. 205). Margareth Rago (2008) ao realizar a genealogia das mitologias misóginas, acaba expondo as formulações hegemônicas desses imaginários, mostrando a função social que a prostituição assumiu na sociedade e nos alertando para quão masculino se tornou o imaginário em torno das prostitutas e da sua própria identidade. Dar continuidade à 36 construção dessa identidade a partir da visão masculina significa perpetuar a marginalização dessa categoria, silenciando-a e estigmatizando-a. A reflexão histórica deve ser no sentido de descortinar essa posição hegemônica para dar espaço à leitura feminina dessa mesma história. Persiste o imaginário da prostituta como flagelo, doença, e a sexualidade feminina como uma força misteriosa que deve ser contida. A prostituição passou a representar uma ameaça física ao corpo, que atinge a família, o casamento e a propriedade. A família passa a ser eleita como espaço onde se pode desempenhar uma sexualidade sadia e a prostituição passa a representar um perigo a essa estabilidade, definida pelos médicos sociais como doença moral (Rago, 2008). A história da prostituição vinha sendo considerada tema marginal até recentemente pela academia. Não havia produções e pesquisas significativas em torno deste tema. No Brasil, duas obras merecem destaque: Os prazeres da noite, de Margareth Rago, e Meretrizes e Doutores, de Magali Engel. Para Rago (2008, p. 89) a prostituição representava uma ruptura com a imagem da mulher ideal (virgem, mãe e pura) e da concepção de maternidade. É na busca por uma homogeneização que se estabelece a norma, que funciona como uma forma de coerção fluida e não violenta, estabelecendo, em toda a sociedade, a exclusão de todos aqueles que se centram na “anormalidade”. Sua submissão perpétua e constante, através de um controle do tempo, reduz a sua potência em termos de resistência (Foucault, 2007). Para Foucault, o poder está inserido dentro de uma natureza relacional, constante e perpétua. “O poder é exercido somente sobre sujeitos livres e apenas enquanto são livres [...] escravatura não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado [...] a liberdade precisa existir para “o poder” ser exercido [...]” (1982, p. 221). “O poder não é violência nem consentimento o que, implicitamente, é renovável” (Foucault, 1982, p. 220). Com essas palavras, Foucault refere-se não ao poder manifestado através da violência física, mas ao 37 poder sutil, intencional e subjetivo. “Não há poder que se exerça sem uma série de miras e de objetivos” (Foucault, 1994, p. 98). O poder “induz, incita, facilita ou dificulta; ao extremo, ele constrange ou, entretanto, é sempre um modo de agir ou ser capaz de ações. Um conjunto de ações sobre outras ações” (Foucault, 1982, p. 220). O biopoder também se apresenta como um mecanismo regulador da própria sexualidade e dos comportamentos dos sujeitos coletivos. A estrutura hierárquica corrobora a ideia geral de vigilância. O biopoder é, assim, uma forma de poder em que o Estado controla as sociedades através do desenvolvimento de diretrizes políticas que atuam sobre a população em geral, de forma a garantir o bem-estar e a saúde de todos. Considerando o corpo como um objeto biológico, esse mecanismo de poder investe na produção de verdades científicas, em estatísticas, em verdades incontestáveis. Embora o poder disciplinar e o biopoder atuem em diferentes níveis, eles incidem de forma complementar sobre os corpos. É através dessa normatividade que são guiadas as políticas de administração do Estado, estabelecendo identidades fixas, classificadas e ordenadas, distintas das possíveis sexualidades desviantes. Na afirmação “onde há poder há resistência” (Foucault, 1994, p. 98) está dito que os sujeitos têm a capacidade de se insurgir e de se insubordinar e, consequentemente, modificar a dominação a que estão submetidos em determinadas condições, “segundo uma estratégia precisa” (Foucault, 1979, p. 241). É nesse movimento que, em oposição ao silenciamento das vozes dos trabalhadores do sexo, começaram a surgir, a partir da década de 70, organizações de prostitutas capazes de falarem por si mesmas, numa tentativa de (re)conceituar o entendimento geral do que seria prostituição. Dito de outra maneira é uma possibilidade de se fazer circular novos discursos e criar novas subjetividades acerca da prostituição. Durante os anos 70, nos EUA e Grã-Bretanha, as bandeiras de Butler retornaram ao movimento feminista contra a criminalização da prostituição pelo Estado e contra o assédio policial sofrido pelas mulheres. Passaram a exigir que fossem identificadas como 38 “trabalhadoras do sexo”, reivindicando reconhecimento social e legal de sua atividade como trabalho. Já as feministas abolicionistas mantinham firme a posição de que a prostituição consentida e autônoma era um ato de violência em si, contra a mulher. Nos anos 80, essa tensão ideológica e estratégica tornou-se uma cisão política, de âmbito internacional, dentro do movimento feminista. Enquanto as primeiras lutavam ao lado das prostitutas formando um movimento de uma só voz, as abolicionistas lutavam para que o Estado interviesse de maneira mais rigorosa a fim de coibir a prostituição (Hirata, 2009, p. 205-206). A adoção do termo trabalhador do sexo inclui todos aqueles (homens, mulheres, cisgêneros e transgêneros) que trocam serviços sexuais por alguma forma de ganho econômico (prostituição de rua e interior, striptease e danças eróticas, pornografia ou o trabalho como operadores de linhas telefônicas eróticas, entre outros). Em meados dos anos 80, as prostitutas falavam em seu próprio nome, a fim de reivindicar a solidariedade dos organismos responsáveis pelo trabalho e por migrações, bem como dos movimentos feministas, exigindo o fim do assédio sexista, racista e colonialista das autoridades públicas, assim como o pleno acesso aos direitos civis e humanos. Em colóquios nacionais e internacionais, as prostitutas denunciaram a violação a seus direitos humanos. Posteriormente, com o apoio de subvenções não governamentais e governamentais para o trabalho de prevenção da AIDS, mobilizaram milhares de mulheres, principalmente na América Latina e na Ásia. Esta foi a primeira vez na história que prostitutas se beneficiaram de um estatuto legítimo como educadoras para a saúde (Hirata, 2009, p. 208). A organização americana COYOTE (Call Off Your Old Tired Ethics), fundada por Margo St. James, em 1973, contestava o argumento das feministas radicais que dizia que toda prostituição era forçada. Em 1985, realizou-se, em Amesterdã, o First World Whores‟ 39 Congress, onde foi instituída a World Charter for Prostitute‟s Rights, uma declaração mundial com vista a proteger os direitos dos trabalhadores do sexo, adotada pelo International Committee on Prostitutes‟ Righs (ICPR) (Ramalho, 2012, p. 180). Reivindicaram-se “direitos humanos e liberdades civis”, a livre escolha o seu local de trabalho, fim dos exames obrigatórios exclusivos para prostitutas e instituição de exames obrigatórios para todas as pessoas sexualmente ativas. Recentemente, em outubro de 2005, realizou-se, em Bruxelas, um dos marcos históricos no movimento europeu dos profissionais do sexo: a European Conference on Sex Work, Human Rights, Labour and Migration, organizada pelo International Committee on the Rights of Sex Workers in Europe (ICRSE). Nesta conferência foram assinados e aprovados a “Declaração dos Direitos dos Profissionais do Sexo na Europa” e o “Manifesto dos Trabalhadores do Sexo na Europa” que reclamavam o direito à vida, à liberdade e segurança pessoal, à proteção contra a violência, à intimidade, à liberdade de movimento e associativismo, à proteção igual na lei, à liberdade de expressão, ao trabalho e a condições justas e favoráveis de trabalho, à não discriminação, entre outros (Ramalho, 2012, p. 181). Estes movimentos de direitos dos trabalhadores do sexo estão essencialmente implicados na reivindicação de direitos e numa mudança de paradigma associado ao conceito de prostituição até então instituído. O trabalho de defesa dos direitos dos trabalhadores do sexo, inicialmente realizado pela COYOTE, permitiu que outros grupos semelhantes pudessem emergir. Hoje em dia, projetos e movimentos de trabalhadores do sexo de todo o mundo parecem apresentar-se cada vez mais organizados, empenhados e determinados a fazerem-se ouvir. Esta multiplicidade de vozes, construída por uma diversidade de atores, tem hoje o potencial de influenciar os discursos dominantes e transformar o trabalho sexual através da (des)estigmatização e conquista de direitos, poder, reconhecimento, e com isso, legitimidade (Ramalho, 2012, p. 182). 40 O reconhecimento da pluralidade de causas e das motivações que levam as pessoas a escolher como trabalho a atividade sexual, nos impulsiona a compreender a realidade de novas maneiras, a partir de perspectivas alternativas. Se desejamos que a libertação do estigma seja possível e que com ela a diferença entre putas e santas, virtuosas e perdidas, puras e impuras, Marias e Evas deixe de existir, devemos esperar que, termos como “perversos”, “doentes”, “imorais”, “libertinos”, “vadios”, “delinquentes”, “vítimas”, relativos aos trabalhadores do sexo venham a ser considerados termos ultrapassados. Para que “[...] talvez um dia, numa outra economia dos corpos e dos prazeres, já não se compreenda, bem como, as astúcias da sexualidade e do poder que fundamenta o seu dispositivo conseguiram submeter-nos a esta austera monarquia do sexo” (Foucault, 1994, p. 161). 2.4. A História da Prostituição IV – As Putas de Luxo Foucault em “História da sexualidade, a vontade de saber” explicita a obscuridade em torno do que se considera sexo ou sexualidade. De acordo com o autor, não há meios de se mascarar em qualquer sociedade que seja os discursos ou expressões da sexualidade humana, pois esta se encontra como um dos eixos das construções ideológicas e, consequentemente, das relações sociais (Araújo, Bandeira & Silva, 2015, p. 367). “[...] O maior preconceito é porque trabalhamos com sexo. Sexo é o grande problema, é o grande interdito das pessoas. E nós trabalhamos fundamentalmente, com fantasia sexual, esse é o verdadeiro motivo da existência da prostituição. É um campo imenso” (Leite, 2009, p. 14). 41 Ainda com base nas afirmações de Gabriela Leite a grande questão é o tabu acerca da prostituição, do comércio do sexo. Existe forte estigma em relação a quem vende o serviço, mas não sobre quem compra. A prostituta de luxo frequenta locais de alto padrão socioeconômico, seja pelo fato de seus clientes se encontrarem nesses ambientes, ou mesmo por trabalharem também como acompanhantes em eventos (Araújo, Bandeira & Silva, 2015). Outra característica própria da prostituição de luxo está relacionada à baixa vulnerabilidade em comparação à prostituição de rua, pois com o público mais seleto e com um grau de instrução maior, o risco de sofrer violência e contrair IST 8 diminui, embora tais riscos não estejam descartados. Levando em consideração o intrincado “regulamento” da prostituição de luxo, que abarca tanto um mercado estético extremamente rigoroso, como clientes cujo padrão de excelência é alto, o valor do programa cobrado pode ser visto como um investimento, assim como ocorre com o mercado de bens de consumo. Se buscarmos um serviço/produto de qualidade e renome, provavelmente o investimento será mais alto. Desta maneira o valor do serviço de cada prostituta de luxo varia de acordo com cada profissional; em média fala-se em um valor próximo de 1.000 a 3.000 reais por hora de trabalho. Esse valor pode variar conforme o preço estipulado por cada profissional (Araújo, Bandeira & Silva, 2015). Relatos de experiências exitosas, como belas viagens ao exterior, luxo, dinheiro, bons contatos; mas também experiências negativas, como o uso de drogas, exigências corporais e sexuais, problemas nos relacionamentos afetivos, conflitos familiares, recusa pública, preconceito. (Ribeiro, 2011, p. 5 - 6 ). 8 De acordo com a nova nomenclatura utilizada pelo Ministério da Saúde, 2017. 42 Outra convenção diz respeito ao fato de o sexo com a prostituta de luxo não carregar o estereótipo convencionado socialmente à garota de programa, já que elas não trabalham em pontos de vias, ruas e sim através de sites. Além de trabalharem apenas com sexo, podem também atuar como acompanhantes em eventos e até mesmo ouvir os desabafos sobre os problemas pessoais de seus clientes, o que as transformam, eventualmente, em ouvintes e conselheiras, não limitando estes indivíduos apenas ao ato sexual (Araújo, Bandeira & Silva, 2015, p. 366). Desta forma a prostituição de luxo estabelece um novo patamar à medida que, diferentemente do baixo meretrício, as acompanhantes de luxo (termo comumente utilizado pelas prostitutas consideradas elite), voltam-se para um público diferenciado, com condições financeiras que possibilitam o desembolso de um valor mais alto pelo programa. Essas prostitutas muitas vezes são modelos, atrizes e atendem homens com grande influência social, como altos executivos, políticos, atores, etc. (Silva & Blanchette, 2008). Essas profissionais captam seus clientes em boates, casas de massagem, bem como utilizando-se de anúncios em sites especializados em prostitutas de luxo (Oliveira, 2008). Existem também bookers que fazem a intermediação entre garota e cliente, ficando com parte do pagamento; podem também ser indicadas por clientes habitués ou amigas. Em se tratando de pesquisas com foco na prostituição é frequente a literatura abordar a prostituição como uma alternativa ligada à falta de oportunidade de sobrevivência, trazendo à tona a identificação da prostituta com o papel de vítima. Muitos outros trabalhos que tem como tema a prostituição buscam instituir o discurso de que a profissional é incapaz de optar pela prostituição, sendo sua atividade apenas um reflexo da falta de opções (Guimarães, 2007; Leite, 2009 & Bourdieu, 2012). Ignoram, portanto, a existência de mulheres que encontrem prazer de fato em sua atuação profissional, inclusive entre as prostitutas do baixo 43 meretrício, como traz à tona Barreto (2014) ao afirmar que as prostitutas podem estar satisfeitas com seu trabalho, sentem prazer e se divertem. Na contramão desse discurso vitimizador de diversos pesquisadores em relação à prostituta, consideramos fundamental trazer a fala das protagonistas da prostituição. Dando voz àquelas que permanecem silenciadas, ainda que suas vidas e enunciados sejam fonte de muitos trabalhos. Assim, a fala de Cláudia de Marchi (2016), acompanhante de luxo cuja notoriedade em 2016 fez com que estampasse inúmeros sites de notícias, é pertinente para essa pesquisa. De acordo com Cláudia, que foi professora universitária e Advogada, a prostituta é definida como “aquela que está na situação por necessidade extrema, se expondo a uma quantidade imensa de riscos, em esquinas, cobrando barato e sujeita ao que o cliente deseja. Seria então, a garota de programa aquela com status melhor que a prostituta, que acha que porque faz faculdade, ou algo assim, tem um nível melhor. Todavia, faz tudo o que o homem quer, faz sexo com mulheres mesmo que não goste, finge orgasmo para agradar o homem, não tem tanta cultura, se veste de forma vulgar, assim como prostitutas de esquina. A acompanhante de luxo já é mais madura, sabe o que quer o que faz o que não quer e impõe respeito, é empoderada” 9 . A noção de empoderamento que Cláudia de Marchi (2016), menciona traz à tona a questão da legitimidade de sua ocupação, bem como da satisfação que uma prostituta pode obter com seu trabalho, tanto interna quanto externamente. Interno no sentido de que, embora nem todos os programas sejam agradáveis, nem tragam realização sexual, a acompanhante de luxo se vale de estratégias e mecanismos que visem a possibilitar algum tipo de prazer: o jogo de sedução, a ideia de ser paga para performar uma atividade que a maioria das mulheres realiza “gratuitamente”, dominar ou ser dominada por alguém mais poderoso que ela, etc. 9 Disponível em: http://www.olhardireto.com.br/conceito/noticias/exibir.asp?id=12715 44 Externamente, a satisfação decorreria do fato de serem muito bem remuneradas, possibilitando-as um padrão de vida acima da média, especialmente se comparado a trabalhos para os quais possuem formação (Araújo; Bandeira & Silva, 2015). Todavia, a prostituta de luxo, ainda que constantemente requisitada em programas televisivos, reportagens e publicações, segue estigmatizada. É possível dizer que ela sofre duplamente o preconceito de realizar um trabalho sexual: além de ser puta (termo utilizado amplamente com caráter depreciativo), o faz por escolha, ou seja, voluntariamente se coloca em situação depreciativa. Isso posto, acredita-se que a mulher optar pela prostituição a aproxima de uma imagem de flagelada e sofredora, atribuída à puta ao longo de séculos. Nesse sentido, compreender essa atividade por escolha e prazer, é inconcebível a uma sociedade moralista. Ainda que as prostitutas permaneçam estigmatizadas e enfrentem constantemente situações que as colocam à margem da sociedade (Costa; Silva & Nascimento, 2009), o trabalho tem significado fundamental na vida dessas mulheres, constituindo suas identidades, bem como ocorre em outras profissões. Além disso, toda uma rede de relacionamentos se estabelece, trocas ocorrem e rendas são geradas com base na oferta de serviço sexual, segmento importante da economia atual (Silva & Cappelle, 2017). É interessante mencionar que, apesar da estereotipia e do desconforto com que a sociedade trata o assunto, a prostituição de luxo virou tema de muitos livros, programas televisivos e séries, com grande sucesso de público. Há que se recordar o imenso sucesso protagonizado por Raquel Pacheco quando decidiu falar de sua vida como garota de programa, a famigerada Bruna Surfistinha. Com o livro “O doce veneno do escorpião”, publicado em 2005 e escrito por Jorge Tarquini, sua história tornou-se um best-seller, vendendo cerca de 250 mil exemplares. Seguiram-se a essa publicação, “O que aprendi com Bruna Surfistinha” (2006) e “Na cama com Bruna 45 Surfistinha” (2007), com tiragens mais modestas, mas ainda assim expressivas para o mercado brasileiro. Em 2011, houve o lançamento do filme Bruna Surfistinha, protagonizado por Deborah Secco. Segundo a atriz, representar esse papel foi um divisor de águas em sua carreira. No ano de 2016 sua história retorna às telas – dessa vez no canal fechado Fox1 – por meio da série #MeChamaDeBruna, cuja segunda temporada estreou em 2017. Esses são alguns exemplos de como a prostituição, apesar de sofrer com a ojeriza social, desperta, paradoxalmente, profundo interesse. Além de Raquel, outras prostitutas também obtiveram grande sucesso midiático com o lançamento de livros em que contavam suas vivencias como prostitutas. É o caso de Gabriela Leite, que publicou “Eu, mulher da vida”, em 1992 e “Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta”, em 2008, além de ter sido tema de diversos documentários sobre prostituição e que apesar de sua morte, continua sendo referência no assunto. Vanessa de Oliveira, hoje sexóloga e escritora, ganhou notoriedade em 2006, ao publicar seu primeiro livro, “O diário de Marise”. Nos anos seguintes, escreveu outros oito livros, cujos temas envolvem sexo, comportamento, relacionamento e religião. Entre eles, “100 segredos de uma garota de programa” (2007), “Seduzir clientes” (2008), “Como enlouquecer um homem na cama e fora dela” (2014). O sucesso da temática da prostituição – especialmente a prostituição de luxo – pode ser notado em sucessos recentes da televisão aberta, como em “Verdades Secretas”, novela exibida pela rede Globo, de 8 de junho a 25 de setembro de 2015; contendo 64 capítulos, chegou a alcançar 30 pontos de audiência 10 . A minissérie “Felizes para Sempre?”, também exibida pela Globo, teve média de 17 pontos de audiência e alcançou 20 pontos no episódio 10 Segundo a Kantar Ibope Media, um ponto de audiência equivale a 245.702 domicílios e 688.211 espectadores. 46 final 11 , sendo veiculada de 26 de janeiro a 6 de fevereiro de 2015, com 10 episódios. A série de televisão brasileira “O negócio”, transmitida pelo canal fechado HBO, cujo primeiro episódio foi ao ar em 18 de agosto de 2013, teve 3 temporadas e 39 episódios. O glamour com que a mídia representa essas mulheres corrobora para que exista uma aura mítica envolvendo a prostituição. Um universo repleto de mistérios e artimanhas da sexualidade, magistralmente dominado pelas acompanhantes. Nesse sentido, a vida imita a arte e a expectativa é que as prostitutas de luxo se apresentem impecáveis, elegantes, bem vestidas, corpos perfeitos. Barreto (2014) vem ao encontro dessa ideia ao afirmar que as garotas se preocupam excessivamente em cuidar da pele, corpo, cabelos, alimentação e em consumir produtos de luxo, como roupas, sapatos e joias. Frequentam centros de estética, salões, academias de ginástica, clínicas médicas (é comum entra elas procedimentos como implantes nos seios e glúteos, lipoescultura/lipoaspiração) buscando atingir um ideal de perfeição estética, que seria seu cartão de visitas, daí a necessidade do alto investimento. É interessante perceber que, no quesito beleza, a distinção entre acompanhantes de luxo e protagonistas do baixo meretrício se dá justamente pelo fato de aquelas não parecerem prostitutas. São grandezas inversamente proporcionais: quanto mais distantes estiverem do visual estereotipado convencionado socialmente do que seria uma garota de programa, mais se aproximam da imagem de prostituta de luxo. Além de representar um ideal estético, o cuidado com o corpo evidencia a importância de manter uma identidade profissional. Há inúmeras profissões que demandam a criação de uma persona que se adapte ao ambiente profissional que frequenta, o que demanda certa postura, muitas vezes, cara de se manter. De acordo com Amauri (2014) essa ideia aplica-se tanto a executivos quanto a prostitutas. Os primeiros não podem simplesmente criar networking no boteco da esquina bebendo cerveja barata, eles precisam frequentar bons 11 Dados acessados em Acesso em: 29/01/2018. https://pt.wikipedia.org/wiki/Felizes_para_Sempre%3F 47 bares, cujo valor seria significativamente mais alto em relação a um boteco popular. Nesse sentido, às garotas é imposto que aparentem certo sucesso financeiro, educacional e estético: ela não pode se vestir de maneira vulgar, deve saber se expressar e ter acesso a seu cliente alvo, que não frequenta quaisquer estabelecimentos. Corroborando essa ideia, Amauri (2014) cita o exemplo de Fabi, acompanhante de luxo que contratou seus serviços de consultor financeiro: Quando chegou em São Paulo, adorava comprar sapato na Arezzo. “Agora acho Arezzo sapato de puta ralé. Às vezes eu viajo com cliente, preciso estar bonitinha, né? Homem chique gosta de mulher bem-vestida”. Hoje compra sapatos na Zeferino. Cada par custa algo por volta de R$ 600. Contou de uma vez que foi passar o final de semana na chácara de um cliente e escutou “Não te pago R$ 400 reais por hora para você aparecer aqui de Melissa.” No pulso, carrega uma pulseira da marca HStern, que comprou por 10x de 900 reais. “É bom pra intimidar o cliente”. Outra característica marcante dessa categoria de profissionais seria o acesso à educação de qualidade. Tendo vindo de famílias com bom poder aquisitivo, poderiam ingressar em escolas particulares e universidades (Barreto, 2014). Faz parte do imaginário acerca da prostituição de luxo que muitas universitárias ou recém-formadas se prostituem para pagar os estudos ou manter um padrão de vida que lhes deem acesso a certos bens de consumo aos quais não teriam acesso apenas com a renda advinda de sua área de formação. Contudo, não se pode dizer que que essa situação seja o caso da maior parte das meninas que desempenham o papel de acompanhantes de luxo. Pode, inclusive, apresentar-se como 48 estratégia de marketing para acrescentar valor à profissional e, consequentemente, a seu serviço. Claudia de Marchi (2016), prostituta de luxo atuante em Brasília, propõe significação distinta em relação à importância que o ensino superior representa para quem deseja tornar-se acompanhante de luxo. Em sua perspectiva, o capital cultural deve ir além de estar cursando ou de ter cursado o ensino superior, pois, diferentemente do que ocorria nos anos 1990, em que fazer faculdade era considerado um privilégio elitista, na atualidade, todos teriam acesso às universidades. Nesse sentido, Marchi (2016) sugere que o tipo de cultura que uma acompanhante de alto padrão precisa ter concerne a “conhecer cinema, boa música, bons filmes, bons autores, bons diretores, bons interpretes, bons artistas!”. A importância do acesso à Educação de qualidade vem da necessidade de saber se comunicar e se portar em relação a seu público alvo. Ainda mais relevante do que encarnar a fantasia da mulher perfeita, sexualmente bem resolvida e capaz de proporcionar prazer ao cliente, a relação cliente – prostituta representa uma possibilidade afetiva, em que a prostituta se torna companheira, apta a ouvir e possibilitar que o cliente seja quem ele deseje ser (Silva & Cappelle, 2017). Sendo assim, desde que a acompanhante de luxo entenda os códigos que regem sua categoria e o dominem, seu contrato com o cliente pode ir além da relação sexual, abarcando não apenas o espaço restrito do quarto (privado), mas também espaços públicos: festas, jantares, eventos, viagens. O domínio desse código de conduta faz parte do saber/fazer da prostituta de luxo. Em levantamento no site de acompanhantes de luxo, MClass 12 , é possível obter fotos, informações acerca das medidas das meninas, modo de contato, tipo de atendimento, etc. Também é possível, através de uma mensalidade, que o cliente tenha acesso a conteúdo 12 www.mclass.com.br 49 restrito, como vídeos e entrevistas. Cerca de 30 garotas responderam ao contato via Whats App perguntando sobre o valor de atendimento; o montante variou entre 300 e 600 reais por hora. Sendo as mais jovens e as famosas que fizeram ensaios sensuais para revistas como Sexy e Playboy, as que possuem cachês elevados. Portanto, Silva e Cappelle, (2017, p. 24) relatam que “a prostituição de luxo tem como principal característica o fato de se voltar para um público sofisticado, com condições financeiras que tornam possível o pagamento de altos valores por um programa”. Evidencia- se nessas profissionais uma dinâmica de trabalho diferenciada em relação a outros tipos de prostituição, marcadas pela pobreza, pelas péssimas condições de trabalho em boates ou, até mesmo, nas ruas e pelos baixos preços cobrados pelo programa. 2.5. A História da Prostituição V – Os Discursos acerca da Prostituição Falar em análise de um discurso (AD) é antes de tudo se ater ao discurso propriamente dito, ao que é proferido de forma objetiva, buscando a exaustão dos significados do que é dito, como é dito e para quem é dito, possibilitando, assim, o surgimento de relações de poder e de saber mais íntimas. Desta forma e de acordo com a perspectiva de Foucault, “precisamos antes de tudo recusar as explicações unívocas, as fáceis interpretações e igualmente a busca insistente do sentido último ou do sentido oculto das coisas, é preciso ficar simplesmente no nível de existência das palavras, das coisas ditas” (Fischer, 2001, p. 198). Para a análise de um discurso ser eficaz é necessário fazer um movimento de desnaturalização do enunciado em questão, deixando-o surgir na complexidade que lhe é peculiar. Essa tarefa não é tão simples, pois somos condicionados a pensar que discursos são apenas um conjunto de signos, como significantes que se referem a determinados conteúdos e 50 carregam significados ocultos, cheio de reais intenções, conteúdos e representações, escondidos nos e pelos textos, não imediatamente visíveis (ibidem, 2001). Para Foucault, não há algo escondido por de trás de um discurso, o que existe são relações que o próprio discurso põe em funcionamento. Dito de outra forma o discurso é um meio pelo qual se produzem materialidades, se produzem sujeitos discursivos que formaram instituições que produzirão outros sujeitos e assim por diante. Portanto, analisar o discurso seria dar conta exatamente disso: de relações históricas, de práticas muito concretas, que estão vivas nos discursos (Fischer, 2001, p. 198). Ainda de acordo com a autora: (...) nessa perspectiva, significará antes de tudo tentar escapar da fácil interpretação daquilo que estaria por trás dos documentos, procurando explorar ao máximo os materiais, na medida em que eles são uma produção histórica, política; na medida em que as palavras são também construções; na medida em que a linguagem também é constitutiva de práticas (Fischer, 2001, p. 199). Michel Foucault, em sua célebre aula traduzida para o livro “A ordem do Discurso”, esclarece que os discursos estão sempre ligados a relações de poder, ou seja, no discurso há sempre uma tentativa de organização das práticas, onde frequentemente se estabelecem inúmeros saberes a respeito daquele discurso. Sendo assim, utilizar a metodologia da análise de discurso para compreender um dado fenômeno possibilita que os lugares de poderes sejam reformulados. O autor exemplifica essas relações quando fala sobre a oposição entre razão e loucura presente da Idade Média aos dias atuais: Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, 51 não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato. (Foucault, 2014, p. 10-11). Com o passar dos séculos, esse discurso sobre o que é dito pelo o louco se reformula e a partir do século XVIII, os médicos buscaram saber o que era dito e porque era dito. A palavra lhe era dada simbolicamente e, como ocorre nos dias atuais, assim que proferida, a palavra do louco cai imediatamente no vazio, pois a escuta do médico é sempre guiada pela manutenção da censura (Foucault, 2014, p. 12/14). Ao se pensar no objeto de pesquisa deste trabalho, pode-se afirmar que os discursos sobre a prostituição e a respeito da prostituta emergem no sentindo de manter-se na censura, pois os ditos que circulam sobre a prostituição e a prostituta frequentemente atribuem significados pejorativos, degradantes quando não violentos baseados em condutas e crenças presentes desde os primórdios do patriarcado. Nessa perspectiva da AD Foucaultiana, percebe-se que é no nível da linguagem que se articulam os discursos e se materializam subjetividades. Por meio da materialidade da língua nos é permitido penetrar os saberes de uma sociedade, suas ideologias e, consequentemente, nessa complexidade de relações, o sujeito, os sentidos e a História. Logo, o discurso não é transparente, livre de opacidades, de falhas, equívocos, apagamentos, dispersões e memória e é justamente por meio do discurso que se buscará, aqui, trazer à tona e refletir sobre o discurso a respeito e das próprias prostitutas. Dessa maneira, entendemos que há vários saberes e poderes envolvidos em um discurso que tome a prostituição como tema, uma vez que, as formações discursivas (Foucault, 1995) não são estanques em si, trazendo elementos que as façam dialogar, complementar-se, coexistir ou confluir-se, entende-se que, para se proferir um discurso sobre a prostituição na contemporaneidade são necessários saberes produzidos, circulados e 52 distribuídos (Foucault, 1996) por vários campos e instituições, tais como a mídia e a igreja e a medicina. Assim, por meio da materialidade da língua, especificamente utilizando-nos da análise dos enunciados, como sugere Foucault (1995), a análise do discurso será utilizada com a finalidade de emergir essas relações interdiscursivas, exteriorizando os saberes e os poderes que delas decorrem. Portanto, ao se pensar na forma que os discursos exercem relações de poderes e saberes dentro do universo da prostituição feminina, é necessário que se esteja atento à descrição dos enunciados, dos jogos de verdades sobre o ato sexual, sobre a sexualidade feminina, como também sobre a subjetivação dos corpos, por meio das instituições de controle, como por exemplo, o saber proferido pelas Igrejas, pela medicina e pelas mídias, que legitimam verdades, criando e propagando relações sobre legitimidade e ilegalidade sobre esse fenômeno. Essas relações consistem em propagar a ideia de governo das populações, para um bem “maior” e a manutenção da vida – BIO. 2.5.1. A Biopolitica e as relações de controle da vida e dos corpos Foucault (1990) recupera a noção de governamentalidade presente desde a era Moderna diferenciando-a dos modelos de relações de poder presente nas Monarquias e Soberanias. Na Monarquia e na Soberania Foucault relata que o gerenciamento do poder estava circunscrito a um espaço fixo, onde o Soberano ou o Rei não poderiam circular com frequência. Isso consistia em manter o Soberano em um lugar inacessível, distante da população. Essas relações eram pensadas e calculadas a fim de possibilitar a continuidade do regime do Monarca, pois o que constituía o Poder nessas relações era a posição espacial ocupada pelo Soberano. 53 Já no modelo de governamentalidade presente na era Moderna, que Foucault (1990) denomina de dispositivo de Poder Pastoral, tem-se a metáfora do pastor e das ovelhas, onde diferente do gerenciamento do poder nas relações de Soberania e Monarquia a governamentalidade se faz na circulação do poder. Desta forma, o Pastor exerce a figura que conduz/orienta/governa suas ovelhas para a salvação. Sendo assim, o poder pastoral se faz no movimento/caminho, tem por objetivo chegar ao “pasto”, utilizando para isto diversas estratégias para pensar tal condução, e é neste caminho que emergirão relações de poder sobre as ovelhas, já que nesta lógica seguir o pastor possibilita a sobrevivência das ovelhas. Sobre essa questão Foucault (1990) nos relata que, Jamais Antiguidade Greco-Romana haverá a ideia de que certos indivíduos poderiam desempenharem em relação aos outros o papel de Pastores, guiando-os ao longo de toda sua vida do nascimento à morte. [...] o poder pastoral não tem por função fazer mais aos inimigos sua principal função é fazer o bem em relação aqueles de que cuida, fazer o bem no sentido mais material do termo, alimentá-los, garantir subsistência, oferecer pasto, conduzir as fontes, permite-lhes beber, comprar boas pradarias (Foucault, 1990, p. ?). Luckmann e Nardi (2017) contribuem relatando que a ideia da governamentalidade refere-se a uma lógica da pastoral cristã, que propunha que todo o indivíduo deve deixar-se governar e ser conduzido por alguém que o levasse à salvação, numa relação de estrita obediência. Essa arte de governar torna-se mais presente na vida das civilizações a partir de sua difusão pós Reforma Protestante. 54 [...] permaneceu relativamente limitada até a Reforma Protestante, quando houve sua difusão ao campo mais amplo do governo das populações. Essa expansão corresponde, primeiramente, ao seu deslocamento do foco religioso para a sociedade civil – é a laicização da arte de governar. Um segundo ponto é a multiplicação das áreas de atuação deste governar: como governar as crianças, os pobres, a família, uma casa, uma cidade, o Estado e, também, no âmbito individual, o corpo e o espírito (Luckmann & Nardi, 2017, p. 1241). Desta maneira, para o governo de suas ovelhas “o Pastor disporá de meios de análise, de reflexão, de detecção do que se passa, mas também o cristão será obrigado a dizer ao seu Pastor tudo que se passa no âmago de sua alma” (Foucault, 1990). É nesse dizer, nesse delatar-se, que surge uma das questões mais importantes para o Poder Pastoral e para o dispositivo da sexualidade, a emergência da confissão. A confissão é uma tecnologia utilizada para o governo do indivíduo, sua efetividade se dá no autoexame da consciência que deverá ser apresentada aquele que está na posição de governo. A confissão seria então uma tecnologia individualizadora de autoconsciência e culpabilização do sujeito consigo mesmo, quando este não age conforme o modelo da moral cristã. Desta maneira o Poder Pastoral é um governo dos vivos, biopoder sob este aspecto está mais próximo do Poder Pastoral do que dos modelos Monárquicos/Soberanos. O Biopoder seria então uma possibilidade de controle dos aspectos relacionados às condições da existência humana como os condicionantes de vida, dados epidemiológicos dentre outros são assuntos do interesse do Estado. A forma de governar e as relações de poder presentes nela são condicionantes que visam à manutenção da vida ou a decisão da morte o que Foucault nomeou por “fazer viver e deixar morrer”, como verificamos abaixo: 55 O direito de matar é efeito do poder do soberano, cujo foco é o corpo e o individuo; onde o poder está centrado na figura única de um soberano, tal soberano podia deixar viver ou fazer morrer. No biopoder, em operação na Biopolitica, há uma nova tecnologia de poder em jogo, que desponta ao final do XVIII, e que, diferentemente, diz respeito à vida: não é individualmente, as massificante, ou seja, “se faz em direção não do homem-espécie” (1999, p. 289). Foucault desenvolveu as primeiras noções sobre o biopoder em suas analises presentes nos escritos de historia da sexualidade I – a vontade de saber. De acordo com o autor, o biopoder se desenvolve a partir do século XVII de duas formas. Na primeira centrou suas analise “no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade [...]” (Foucault, 2006, p.151). A segunda análise foi realizada por volta do século XVIII, influenciada pelo pensamento da época, consistiu no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo [...]; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população.” (Foucault, 2006, p.152). Sendo os dois polos que “constituem o biopoder denotam que o corpo dócil, útil e individualizado, passa a ser visto como um corpo coletivo que demanda intervenções para a sua gestão. Na gestão do corpo social o sexo foi alvo de uma disputa política” (Grimes, 2012, p. 2). Na governamentalidade tem se como finalidade a „sobrevivência da espécie‟, logo todas as intervenções são justificadas tendo com base o bem comum, a vida. A compreensão de corpo para Foucault é essencial para se entender como se dá a formulação do controle dos corpos da prostituta por meio dos discursos. Foucault não sistematizou uma produção sobre corpo, no entanto, é possível estabelecer uma noção de suas 56 ideias com base na importância que ele atribui ao corpo em suas obras. Para este autor, o corpo é algo anterior ao sujeito, o corpo preexiste em seus discursos históricos e políticos, pois consiste numa superfície moldável sociohistoricamente, ao contrário “do sujeito que não existe a priori, mas é uma invenção pautada em discursos e relações de poder-saber que o constituem, sendo o corpo em Foucault preexiste como superfície” (Mendes, 2006, p. 168). Pensar na construção de corpos pressupõem primeiramente compreender os poderes presentes nessa constituição. Partimos da compreensão de corpos enquanto construtos sociais e gêneros enquanto performativos (Lima, 2014)