UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÍDIA E TECNOLOGIA RAFAEL BAZO JÚNIOR PLANO DE ARQUIVO DIGITAL DA MEMÓRIA LENÇOENSE BAURU 2021 RAFAEL BAZO JÚNIOR PLANO DE ARQUIVO DIGITAL DA MEMÓRIA LENÇOENSE Trabalho de Conclusão de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia, da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), sob orientação do Prof. Dr. Octavio Penna Pieranti. BAURU 2021 Bazo Junior, Rafael. Plano de Arquivo Digital da Memória Lençoense / Rafael Bazo Junior, 2021 85 f. : il. Orientador: Octavio Penna Pieranti Dissertação (Mestrado)– Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru, 2021 1. História oral. 2. Cultura. 3. Memória e identidade. 4. Políticas públicas. 5. Interface digital. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design. II. Título. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Bauru ATA DA DEFESA DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE RAFAEL BAZO JUNIOR, DISCENTE DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÍDIA E TECNOLOGIA, DA FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN - CÂMPUS DE BAURU. Aos 12 dias do mês de janeiro do ano de 2022, às 10:00 horas, por meio de Videoconferência, realizou-se a defesa de DISSERTAÇÃO DE MESTRADO de RAFAEL BAZO JUNIOR, intituladaPlano de arquivo digital da memória lençoense. A Comissão Examinadora foi constituida pelos seguintes membros: Professor Doutor OCTAVIO PENNA PIERANTI (Orientador - Participação Virtual) do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia, Curso de Mestrado Profissional / Universidade Estadual Paulista, Professor Titular FERNANDO ALVARES SALIS (Participação Virtual) da Escola de Comunicação / Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professora Doutora REGILENE APARECIDA SARZI RIBEIRO (Participação Virtual) do Departamento de Artes e Representação Gráfica da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design / Universidade Estadual Paulista. Após a exposição pelo mestrando e arguição pelos membros da Comissão Examinadora que participaram do ato, de forma virtual, o discente recebeu o conceito final:APROVADO. Nada mais havendo, foi lavrada a presente ata, que após lida e aprovada, foi assinada pelo Presidente da Comissão Examinadora. Prof. Dr. Octavio Penna Pieranti – PPGMiT/Unesp Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design - Câmpus de Bauru -Av. Engº Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, 17033360 http://www.faac.unesp.br/posgraduacao/tvdigital/CNPJ: 48.031.918/0029-25. RAFAEL BAZO JÚNIOR PLANO DE ARQUIVO DIGITAL DA MEMÓRIA LENÇOENSE Área de Concentração: Ambientes Midiáticos e Tecnológicos Linha de Pesquisa: Gestão Midiática e Tecnológica Banca Examinadora: Presidente: Orientador: Octavio Penna Pieranti Instituição: PPGMiT UNESP Profa. Dra. Regilene Aparecida Sarzi Instituição: PPGMiT UNESP Prof. Dr. Fernando Alvares Salis Instituição: PPGMC UFRJ Resultado: Bauru, _____/ ____________ / _________ RESUMO A importância da memória para a construção da história das cidades é um tema relevante para a identidade local. A tecnologia e as redes sociais possibilitaram a descoberta e a participação de novos protagonistas para difundir esse saber coletivo, com pessoas comuns dispostas a contar suas histórias de vida relacionadas à sua cidade. O objetivo geral da pesquisa aqui proposta é apresentar o Plano de Arquivo Digital da Memória Lençoense, a ser desenvolvido a partir das entrevistas orais reunidas em um projeto anterior, intitulado “Memória e Identidade Lençoense”, criado pela Prefeitura de Lençóis Paulista, em 2009, e de relatos gravados subsequentes. Para isso, realiza-se uma revisão bibliográfica e utiliza-se o método de história oral. Tendo como foco central o relato do próprio entrevistado com suas experiências e trajetórias de vida, a metodologia possibilita a criação de fontes de consulta através de gravações de entrevistas que retratam depoimentos, saberes e acontecimentos históricos que ficarão armazenados e disponibilizados para consulta pública no local e na rede. O projeto visa identificar quais os problemas enfrentados na implementação de políticas públicas, especificamente na área de cultura no passado dentro do contexto local em que se insere a pesquisa, e elencar as possíveis barreiras atuais na disponibilização dessa nova ferramenta de memória. Também foi realizada uma triagem de todo material arquivado da coleção “Memória e Identidade” e um estudo de softwares que possam organizar e disponibilizar o acesso dos arquivos apresentando um plano final que seja viável para o município. PALAVRAS-CHAVE: História oral; cultura; memória e identidade; políticas públicas; interface digital. ABSTRACT The importance of memory for the construction of the history of cities is a relevant theme for local identity. Technology and social networks have enabled the discovery and participation of new protagonists to spread this collective knowledge, with common people willing to tell their life stories related to their city. The general objective of this research project is to formulate and present the Digital Archive Plan of Memória Lençoense, to be developed from the oral interviews gathered in the previous project, entitled “Memória e Identidade Lençoense”, created by the Lençóis Paulista City Hall, in 2009, and from subsequent recorded accounts. For this, a literature review will be performed and the oral history method will be used. With a central focus on the interviewee's own account of their experiences and life trajectories, it enables the creation of sources of consultation through interview recordings that portray testimonies, knowledge and historical events that will be stored and made available for public consultation on the network. The project aims to identify the problems faced in the implementation of public policies specifically in the area of culture in the past and list possible current barriers in making this new memory tool available. There will also be a screening of all archived material from the “Memory and Identity” collection and a study of software that can organize and provide access to the files, presenting a final plan that is viable for the municipality. KEYWORDS: Oral history; culture; memory and identity; public policy; digital interface. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Casa da Cultura ............................................................................................................ 17 Figura 2 – Museu Municipal ......................................................................................................... 18 Figura 3 – Espaço Cultural ............................................................................................................ 19 Figura 4 – Biblioteca Municipal .................................................................................................... 20 Figura 5 – Teatro Municipal .......................................................................................................... 21 Figura 6 – Museu após enchente ................................................................................................... 46 Figura 7 – Danielo Bueno .............................................................................................................. 55 Figura 8 – Izaltina Castelhano e Salvador Castelhano .................................................................. 56 Figura 9 – Amadeu Radichi e Clélia Maria Finco Radichi ........................................................... 56 Figura 10 – Anísio de Jesus .............................................................................................................. 56 Figura 11 – Archangelo Brega ......................................................................................................... 57 Figura 12 – Luiz Antônio de Campos – “Belo” ............................................................................... 57 Figura 13 – Elizabeth Elena Pavanato – “Betinha” .......................................................................... 57 Figura 14 – Nairdes Maria Chiari .................................................................................................... 58 Figura 15 – Hilton Casali e Maria Casali ......................................................................................... 58 Figura 16 – Maria Aparecida Montoro ............................................................................................ 59 Figura 17 – Denise Orsi ................................................................................................................... 59 Figura 18 – Floriana da Conceição Vicente Diegoli ........................................................................ 59 Figura 19 – Enzo José Basso ............................................................................................................ 60 Figura 20 – Maria Angelina Boso .................................................................................................... 60 Figura 21 – Maria Angelina Trecenti Capoani ................................................................................. 60 Figura 22 – Izabel Cristina Campanari Lorenzetti ........................................................................... 61 Figura 23 – Irene Alcídia da Costa Andrade .................................................................................... 61 Figura 24 – Luzia Breda; Onice Coneglian Grandi; Dirce Conceglian; Yvone Coneglian ............. 61 Figura 25 – Celina Pasquarelli e Cláudio Pasquarelli ...................................................................... 62 Figura 26 – Sunei Tangerino Minetto; Valdemar Martins Tangerino; Edson Martins Tangerino ... 62 Figura 27 – Maria Cavassuti Ferreira e Inês Cavassuti .................................................................... 62 Figura 28 – Meire Chitto e Terezinha Chitto ................................................................................... 63 Figura 29 – Izabel Eliseu dos Santos ................................................................................................ 63 Figura 30 – João Ranzani ................................................................................................................. 63 Figura 31 – João Veloso ................................................................................................................... 64 Figura 32 – José Lopes Pinheiro; Lurdes de Rosa Pinheiro; Luiza Pinheiro ................................... 64 Figura 33 – José Luiz das Neves ..................................................................................................... 64 Figura 34 – João Antônio Macedo; Benedita Aparecida dos Santos Lima; Ida Maria dos Santos; Mariana da Conceição dos Santos Carneiro; João Bartolomeu Carneiro; José Carlos de Lima ...... 65 Figura 35 – Madalena Radichi e Almir Radichi ............................................................................... 65 Figura 36 – Mário Damico .............................................................................................................. 65 Figura 37 – Maria José Correa Romanholi ....................................................................................... 66 Figura 38– Pedro Galdino da Silva; Aparecida Galdino; Jocie Galdino .......................................... 66 Figura 39 – Sandra Orsi e Maria Inês Crepaldi ................................................................................ 67 Figura 40 – Adelino Lazzari ............................................................................................................. 67 Figura 41 – Maria Antonieta Giovanetti Muller ............................................................................... 67 Figura 42 – Yvone Maria Grandi Radichi ........................................................................................ 68 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Características política pública ..................................................................................... 35 Tabela 2 – Padrões e elementos de metadados de apoio á preservação digital .............................. 39 Tabela 3 – Inventário de entrevistas ............................................................................................... 47 Tabela 4 – Orçamento Fase 2 ......................................................................................................... 72 Tabela 5 – Cronograma – Fase 1 .................................................................................................... 73 Tabela 6 – Cronograma – Fase 2 .................................................................................................... 74 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................................10 1.1 Justificativa ................................................................................................................................. 11 1.2 Objetivo geral ............................................................................................................................. 14 1.2.1 Objetivos Específicos .............................................................................................................. 14 1.3 Impactos e benefícios esperados ................................................................................................ 14 1.4 A cultura em Lençóis Paulista .................................................................................................... 15 1.4.1 Casa da Cultura "Profª Maria Bove Coneglian" ...................................................................... 16 1.4.2 Museu "Alexandre Chitto" ..................................................................................................... 17 1.4.3 Espaço Cultural "Cidade do Livro" ........................................................................................ 18 1.4.4 Biblioteca Municipal "Orígenes Lessa" ................................................................................. 19 1.4.5 Teatro Municipal "Adélia Lorenzetti" .................................................................................... 21 1.5 – Problema de Pesquisa .............................................................................................................. 21 2 RESUMO TÉCNICO DO PROJETO ......................................................................................... 24 3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................................................... 25 3.1 Importância da preservação da memória .................................................................................... 25 3.2 Dificuldades da preservação das memórias ................................................................................ 27 3.3 Importância de novas mídias e tecnologias para democratizar o acesso aos conteúdos de preservação ....................................................................................................................................... 29 3.4 Fundamentação teórica-legal para uma política de preservação de arquivos públicos .............. 30 3.5 Barreiras da implementação......................................................................................................... 33 3.6 Política de Preservação Digital ................................................................................................... 37 3.7 Metadados na preservação digital .............................................................................................. 38 4. MATERIAIS E MÉTODOS ........................................................................................................ 42 4.1 Metodologia ................................................................................................................................ 42 4.2 Acervo disponível. ..................................................................................................................... 45 4.3 Inventário das entrevistas ........................................................................................................... 46 5. DADOS TÉCNICOS DO PLANO ............................................................................................. 69 5.1 Pessoal ........................................................................................................................................ 69 5.2 Equipamentos ............................................................................................................................. 69 5.3 Programas de computador .......................................................................................................... 70 5.4 Orçamento .................................................................................................................................. 71 5.4.1 Fase 1 ....................................................................................................................................... 71 5.4.2 Fase 2 ....................................................................................................................................... 71 5.5 Cronograma de implementação .................................................................................................. 72 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................................75 REFERÊNCIAS.................................................................................................................................78 ANEXOS .......................................................................................................................................... 84 ANEXO A – CARTA DE CESSÃO DE DIREITOS AUTORAIS. ............................................... 84 10 1. INTRODUÇÃO Conhecida como “Boca do Sertão” pelos bandeirantes, por ser um dos últimos povoamentos antes do fechado sertão do Oeste Paulista, Lençóis Paulista tem uma história de pioneirismo e de força de vontade dos seus primeiros moradores. Sendo conhecida, também, como a cidade do livro, por possuir mais livros que habitantes, e como a terra de Orígenes Lessa, escritor conceituado que ocupou a cadeira número 10 da Academia Brasileira de Letras. Lençóis, uma cidade com menos de setenta mil habitantes, conta com uma vida cultural intensa e possui muitos equipamentos culturais, tais como a Casa da Cultura “Professora Maria Bove Coneglian”, o Museu “Alexandre Chitto”, o Espaço Cultural “Cidade do Livro”, o Teatro Municipal “Adélia Lorenzetti”, o Memorial “Alfredo Guedes” e a Biblioteca Municipal “Orígenes Lessa”. Todos, conforme será abordado adiante, guardam essa memória, construída em parte pelo relato de famílias de imigrantes relevantes para o desenvolvimento do município e de sua economia. O poder público preocupou-se em zelar pela memória do município, porém nem sempre essa preocupação foi traduzida em ações sistemáticas, integradas e perenes. Em 2009, a Secretaria iniciou a implementação do projeto “Memória e Identidade” que, por meio de entrevistas com captação audiovisual, tinha o objetivo de registrar histórias das pessoas idosas e a relação delas com a cidade. Com o tempo e as mudanças de gestão municipal e de quadro de funcionários, o projeto foi descontinuado, mas uma parte do material permaneceu arquivada, ainda sem edição. O projeto não estava sujeito a um planejamento de produção e utilização precisa. A preocupação inicial era a de registrar as memórias antes que fossem perdidas com a morte das pessoas. No ano de 2015 foi criado um grupo de Facebook chamado “Lençóis Paulista Viva”. Nele, moradores começaram a publicar fotos, relatos antigos e curiosidades relacionadas ao município. Trata-se de um grupo ativo, que já conta com 17 mil pessoas realizando publicações diárias relacionadas ao passado. O grupo teve início com uma postagem de algumas fotos antigas da cidade, as quais, atualmente, constituem o acervo do Centro de Documentação Histórica. Tendo em vista a alta procura coletiva por esse material, este projeto de pesquisa objetiva apresentar um plano de estruturação de um arquivo digital a partir do projeto “Memória e Identidade”, para explorar as entrevistas e o material audiovisual gravado e não editado, que se encontram guardados no Centro de Documentação. Espera-se garantir esse acesso de forma presencial e por meio da internet com ferramenta de busca de memória digital, funcionando como um canal colaborativo aberto para que novos entrevistados possam acessar, fortalecendo a memória social local por meio de relatos, baseando-se no método da História Oral. 11 Este projeto tem uma finalidade prática relacionada à atividade profissional do seu autor, o qual atua há dezessete anos como servidor público municipal na Secretaria de Cultura. Nesse período, atuou quatro anos com a função de Coordenador, trabalhando com organização, montagem de exposições, eventos e implementação da agenda cultural seguindo projetos de interesse público, portanto, compatível com o escopo deste Mestrado Profissional em Mídia e Tecnologia. O projeto “Memória e Identidade” conta com a cooperação de outros servidores públicos da Secretaria de Cultura que lidam com esse tema na esfera municipal. Ressalte-se que a Secretaria Municipal de Tecnologia e Informação também tem atuado em projetos anteriores, em conjunto com a Secretaria de Cultura. Um exemplo é a implementação da biblioteca digital e a catalogação digital de peças do museu municipal de Lençóis Paulista. 1.1 Justificativa A relevância deste trabalho decorre de dois tópicos distintos e complementares: (a) a perda parcial da memória do município, em virtude do falecimento de munícipes que, tendo contribuído para o desenvolvimento local, não deixaram relatos por escrito; e (b) uma estratégia de ampliação da oferta de serviços públicos à população por plataformas eletrônicas, em consonância com o que se convencionou entender como “governo digital”. Juntos, esses pontos se relacionam a uma política pública cultural baseada na transparência de divulgação de informações, constituindo um dos fundamentos da chamada boa governança, cujos princípios são base da Lei 12.527/2011, conhecida como “Lei de Acesso à Informação – LAI”. Os pontos serão apresentados neste Plano como produto final para a conclusão do Mestrado Profissional. Em relação ao primeiro tópico, a memória social do município de Lençóis Paulista vem se perdendo, seja pela morte de alguns dos pioneiros da cidade, seja pela indisponibilidade do registro feito (de forma não estruturada por uma metodologia mais precisa) de suas histórias. Uma forma de ampliar o compromisso social com a preservação da memória social estaria na disponibilização pública desses arquivos guardados, estimulando uma política de devolução e engajamento coletivo, afinal, essas entrevistas podem criar um elo com outras pessoas que também desejam guardar suas memórias: A sociedade de modo geral também tem demonstrado interesse pela recuperação da memória coletiva e individual. É um fenômeno facilmente detectável a valorização das biografias e a demanda das empresas em registrar o depoimento de seus fundadores como meio de preservar sua memória (FERREIRA, 1996, p. 9). Conforme Ferreira (1996) pontua, a sociedade tem interesse em materiais de memória 12 coletiva. Porém, no contexto deste trabalho, a Secretaria Municipal de Cultura não dispõe de um plano para utilizar esses arquivos. Além disso, grande parte das entrevistas foi gravada há mais de 10 anos. Atualmente, discute-se o desafio da digitalização dos serviços públicos, visando o debate sobre melhorar a eficiência e a capacidade de atendimento do setor público e incorporando novas tecnologias de comunicação presentes em plataformas digitais. Os avanços espetaculares ocorridos recentemente nas técnicas de armazenamento de informações, que permitem que milhões de dados sejam prensados e reformatados para caber em um número reduzido de disquetes de computador, garantem a guarda de inúmeras informações num mínimo espaço. Os computadores são novos e importantes lugares de memória (ABREU, 1998, p. 24). Como explica Abreu (1998), este projeto, além de funcionar como um arquivo de memória digital de saberes (político, social, cultural) da cidade, pode criar canais de conexão com um número maior de pessoas a partir de uma ferramenta que disponibiliza o acesso aos conteúdos audiovisuais ligados às instituições de memória, colaborando para uma visita virtual e estimulando uma visita física aos equipamentos culturais de Lençóis Paulista. A iniciativa ainda estabelece um canal aberto para que novos relatos possam surgir e sejam incorporados a esse acervo vivo, em conformidade com a Lei de Acesso à Informação (LAI), a qual determina que o poder público divulgue e dê acesso a dados públicos, criando uma gestão transparente da informação. Sobre o segundo tópico ressaltado no início da seção, a tecnologia pode trazer novas vantagens para a prestação de antigos e novos serviços para o cidadão. Essa abordagem encaixa-se nas estratégias de “governo eletrônico” e de “governo digital”, este uma evolução daquele, como vem sendo ressaltado por diversos autores (FUGINI; MAGGIOLINI; PAGAMICI, 2005; GUIMARÃES; MEDEIROS, 2005). Rover (2012) descreve “governo eletrônico” como: [...] uma infra-estrutura [sic] única de comunicação compartilhada por diferentes órgãos públicos a partir da qual a tecnologia da informação e da comunicação é usada de forma intensiva para melhorar a gestão pública e o atendimento ao cidadão. Assim, o seu objetivo é colocar o governo ao alcance de todos, ampliando a transparência das suas ações e incrementando a participação cidadã (ROVER, 2012, p. 3). Conforme o portal do governo federal (2020), o Brasil vem aumentando a oferta de serviços públicos de forma online. Segundo uma pesquisa sobre governo eletrônico, publicada pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2020), o país ficou em 20º lugar no mundo, ocupando a primeira colocação na América do Sul. 13 Os direitos culturais assegurados pela Constituição Federal formam a base para que as políticas públicas de cultura aconteçam no país. O Plano Nacional de Cultura (PNC) foi criado pela Lei n° 12.343, de 2 de dezembro de 2010. A lei estabelece que o PNC tenha duração plurianual, visando desenvolver a cultura no país por meio da democratização do acesso, da promoção e da difusão de bens culturais, entre outros. Ainda assim, observa-se que o campo da cultura não é o foco comum de estudos sobre “governo eletrônico” e “governo digital”. Entende-se, no entanto, que essa abordagem deve ser realizada, tendo em vista que o direito à cultura é reconhecido como direito fundamental (SPAT; SUPTIT, 2015; GARCIA, 2012; CUNHA FILHO, 2000). Isso significa que o aumento do acesso à cultura, principalmente por meios digitais, pode contribuir para o estímulo, o incentivo e a preservação, de forma a aproximar os bens culturais da sociedade. Este é um ponto, ainda, que se pretende aprofundar futuramente. Este projeto dialoga também com a agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Essa agenda é um plano de ação colaborativo firmado entre os países para trabalhar 17 objetivos, divididos em 169 metas (ODS), que colaboram com os direitos humanos. Salvaguardar o patrimônio cultural é uma das metas do objetivo de número 11, cujo propósito é tornar as cidades inclusivas, seguras e sustentáveis. Resumidamente, podemos elencar as seguintes razões para a realização do Plano que se pretende desenvolver: o A memória está se perdendo e espera-se contribuir para sua preservação por meio do aproveitamento e da utilização do acervo já gravado no passado, o qual está armazenado sem utilização; o Estímulo à preservação e à digitalização de acervos no município como um todo, sugerindo-se a continuidade nas gravações dos registros de memórias dos munícipes, cuidando da preservação e compartilhamento dessas memórias; o Defesa de avanços na estratégia de governo digital, disponibilizando informações ao cidadão por meio da criação de uma plataforma digital online no portal da prefeitura como mais um serviço público de consulta de arquivos de memórias complementando a biblioteca digital; o Transparência ativa, ou seja, uma alternativa para que o órgão público disponibilize publicamente informações “independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas”, nos termos do art. 8º da Lei de Acesso à Informação. 14 1.2 Objetivo geral O objetivo geral deste trabalho é apresentar o Plano de Arquivo Digital da Memória Lençoense, a ser desenvolvido a partir das entrevistas orais reunidas no projeto anterior, intitulado “Memória e Identidade Lençoense”, criado em 2009 pela Prefeitura de Lençóis Paulista, e de relatos gravados subsequentes. 1.2.1 Objetivos Específicos Para atingir o objetivo geral mencionado na subseção anterior, verificam-se os seguintes objetivos específicos: ● Relacionar o Plano proposto com a discussão contemporânea sobre a preservação da memória e a criação de arquivos digitais; ● Dimensionar a equipe necessária e a qualificação dos profissionais para a implementação do Plano desenvolvido; ● Levantar os equipamentos e serviços necessários para a implementação do Plano; ● Realizar inventário das entrevistas já feitas; ● Mapear potenciais problemas jurídicos envolvendo o uso do acervo; ● Apresentar uma estimativa de orçamento de equipamentos para viabilizar o projeto. 1.3 Impactos e benefícios esperados Este trabalho contribui para que pesquisas de cunho oral e histórico produzidas possam ser acessadas de qualquer local, promovendo discussão e conhecimento sobre os temas abordados, além de contribuir na preservação da memória da cidade e de sua fruição. O repositório digital é mais um equipamento de cultura digital que estabelecerá vínculos com os equipamentos físicos de cultura existentes na cidade, contribuindo também para acessá-los. Atualmente, todo o acervo de documentação histórica dos equipamentos de cultura, apresentado na próxima seção deste trabalho, é direcionado ao Espaço Cultural “Cidade do Livro”, onde está armazenado e acessado por pesquisadores. As entrevistas, objeto deste trabalho, também permanecerão para consulta física no local. Essa forma de disponibilizar conteúdos, no entanto, vem cada vez mais limitando seu acesso ao público. Todos os equipamentos de cultura do município mantêm um registro anual de visitas. O relatório de atividades da Secretaria de Cultura de Lençóis Paulista, aponta que no ano de 2020, por 15 exemplo, vinte pessoas buscaram documentos para pesquisas fisicamente no Espaço Cultural; a biblioteca digital, por outro lado, teve um total de 1.832 acessos no mesmo ano. Esses números exemplificam como o acesso à distância permitiu maior democratização do acesso aos conteúdos disponibilizados pelo poder público municipal. Outro impacto esperado diz respeito às entrevistas futuras, as quais poderão ser incluídas no projeto quando ele for implementado, contribuindo para que as informações não se percam e permaneçam agrupadas para facilitar o acesso. Essa possibilidade de integração foi pensada como uma segunda fase deste Plano. Acredita-se que, com esse delineamento, as mídias digitais serão usadas também como uma ferramenta de política pública e de transparência no âmbito municipal de Lençóis Paulista. 1.4 A cultura em Lençóis Paulista Lençóis Paulista fica a 300 quilômetros da capital e possui cerca de 70 mil habitantes. É conhecida regionalmente pela valorização de sua cultura devido, principalmente, a um lençoense ilustre, o escritor “Orígenes Lessa”. Imortal da Academia Brasileira de Letras, a proeminência literária de Lessa auxiliou a cidade na fundação da Biblioteca Municipal, uma das maiores do estado de São Paulo. Em seu discurso de posse na ABL, Lessa (1981) diz: Foi quando surgiu lá – a terra era boa – a ideia de fundar-se uma biblioteca. Não de cento e poucos volumes, mas pelo menos com mil volumes no final de dez ou doze meses. Aquela ideia dentro em pouco, tinha sede própria, tinha estantes e livros, alegria de leitores chegando. A cidade vibrava. O prefeito, os professores, os colégios e o milagre bom dos amigos por perto e de longe. Pedro Bloch é um dos primeiros a falar, numa reportagem, sobre a biblioteca de Lençóis Paulista. Uma tradutora de autores brasileiros sabe da notícia, faz a sua campanha particular. Livros aparecem, vindos de Buenos Aires. Estão lá nas estantes esperando os leitores futuros, que a massa de leitores da Biblioteca nascente é feita de leitores de amanhã. Há vinte anos que eles vêm sendo preparados sucessivamente, num clima de amor, pelos amigos de perto ou de longe que ajudaram a construir seu fabuloso patrimônio. Nem todas as bibliotecas do Brasil possuem livros doados por um Manoel Bandeira. Quantas bibliotecas no Brasil podem mostrar o manuscrito de um artigo de Alexandre Herculano ou as cinco páginas ao vivo de uma crônica de Olavo Bilac, oferecidas por um Procópio Ferreira, que Deus o tenha? Poucas tiveram doadores tão ilustres. Menotti, de uma vez, quinhentos volumes. Paulo Rónai, ao longo dos anos, muito mais. Guilherme Figueiredo, milhares de autógrafos e documentos. Quem quiser conhecer a letra e a assinatura de vários presidentes da república, a de Pedro II e a de Santos Dumont, a de dezenas e dezenas de membros da Academia Brasileira de Letras (a de Machado de Assis ainda não temos...) pode ir a Lençóis Paulista, praça Comendador José Zillo número 1, bem no centro da praça...A casa está em obras de ampliação: fora prevista para 20.000 volumes, já tem quase 30.000. Parece muito? É não... podem mandar mais... Espaço é problema da Prefeitura, que no momento, por exemplo dispõe de uma verba acrescida ao orçamento normal da Biblioteca e destinada a 16 encadernação de mais dois ou três mil volumes. De onde veio? De uma economia graças a editora Tecnoprint, que fez questão de cuidar de um fardão que a Prefeitura julgava seu fardo. Mas o mais importante não são os quase 30.000 volumes e essa verba inesperada para as encadernações em andamento: são os 5.000 leitores por mês que a Biblioteca já tem numa cidade que ainda não tem 50.000 habitantes... (LESSA, 1981, p. 22). A Prefeitura continua com o trabalho de aumentar o acervo iniciado por Lessa. Atualmente, a Secretaria de Cultura da cidade dispõe de uma conta específica para a ampliação desse acervo, e continua a receber doações da região, assim como de outros estados. Nessa perspectiva, Lençóis ultrapassou a marca de 150 mil obras, mantendo, assim, o título de “Cidade do Livro”, nome dado à cidade por possuir mais livros que habitantes. Esse título foi conferido na primeira metade da década de 1980, por meio do decreto executivo nº 50, de 22 de setembro de 1984, e depois, a Lei estadual nº 395, de 6 de junho de 2012. A cidade, assim, como registra a história, está sempre investindo em ações e novos equipamentos de cultura: atualmente são onze, sendo os mais relacionados à preservação da memória descritos a seguir. Este é pano de fundo com o qual o presente trabalho dialoga, ou seja, pretende-se reforçar a preservação da memória em um município que tem, historicamente, dedicado investimentos, pessoal e infraestrutura a iniciativas culturais diversas. São apresentados, a seguir, os equipamentos da cidade que também colaboram com a preservação da cultura local, e como eles podem ser utilizados de forma colaborativa ao plano proposto. 1.4.1 Casa da Cultura “Profª. Maria Bove Coneglian” A Casa da Cultura da cidade tem como patronesse a professora Maria Bove Coneglian, considerada uma personagem importante na cultura do município. Como descreve Coneglian (1997): Em 1953, a “cidade do livro”, Lençóis Paulista, sempre aberta às pessoas bem intencionadas, acolhia de coração aquela que vinha para atuar no ensino da preciosa arte musical. Muito ativa, culta e inteligente, sempre se dedicou muito ao ensino, à cultura, amando muito a música, os seus alunos e sua escola. Teve a vida repleta de lutas e vitórias, principalmente na cultura de nossa cidade. (CONEGLIAN, 1997, p. 68) Maria Bove chegou à cidade para lecionar música e sempre teve participação ativa em eventos culturais da cidade. Atualmente, a casa da cultura oferece cursos gratuitos na área de artes e tem um fluxo contínuo de alunos; conta, ainda, com saguão para exposições e auditório que podem 17 sediar eventos ligados à preservação audiovisual e de memória da cidade, contribuindo com a divulgação do plano aqui traçado. Figura 1 - Casa da Cultura Fonte: http://turismo.lencoispaulista.sp.gov.br/index.php/atracoes-turisticas 1.4.2 Museu Municipal “Alexandre Chitto” Fundado 1988, no prédio da antiga Destilaria de Álcool, mudou-se para o atual prédio em 1996, onde funcionou a prefeitura da cidade e permanece atualmente. O jornalista e historiador Alexandre Chitto, o “patrono”, foi o idealizador deste espaço. Segundo Chitto e Chitto (2013): Alexandre por mais de 40 anos esteve a frente da imprensa Lençoense, com grande visão cultural, social e encontrando tempo para dedicar-se as ações comunitárias e eventos do interesse de Lençóis. A familiaridade de Alexandre com a cultura o levou no início dos anos 80 a perseguir outro ideal: criar um museu. Alexandre Chitto, o homem das letras, foi o idealizador e o principal expoente da fundação do museu. Quem conheceu o historiador não duvidada que conseguisse êxito, pois estava sempre disposto a se doar, não vendo graça numa vida sem desafios. Seu objetivo era criar uma instituição onde pudesse preservar objetos do patrimônio lençoense, porque a cidade já alcançava seus 130 anos de existência. O museu é uma instituição necessária na conservação do patrimônio de um município. O primeiro dever é a conservação das peças no seu estado original e sua transmissão as gerações futuras. Para a formação do acervo, Alexandre foi convidando através de chamadas no jornal local “O Eco” e também enviando cartinhas aos lençoenses residentes em outras localidades, que colaborassem na doação de algum objeto que estivesse num baú de estimação (CHITTO e CHITTO, 2013, p. 52). As filhas do senhor Alexandre, Meiry e Therezinha, deram continuidade ao trabalho iniciado pelo seu pai e patrono do museu com a publicação de livros que contam a história do município. 18 Em 2014 foi inaugurado o Memorial “Alfredo Guedes” no distrito da cidade que leva o mesmo nome. O espaço funciona como um “braço” do museu, contando a história deste distrito através de peças doadas pelos moradores. No ano de 2016, entretanto, uma enchente do rio Lençóis atingiu o museu, permanecendo fechado por quase um ano para recuperação das peças e reorganização do acervo. No museu estão peças que podem funcionar como link para o acesso das memórias que estarão no Plano de Arquivo Digital da Memória Lençoense, contribuindo para que o audiovisual possa servir como mais um instrumento de aprendizagem e interação na difusão cultural e identitária da cidade. Figura 2 – Museu Municipal Fonte: http://turismo.lencoispaulista.sp.gov.br/index.php/atracoes-turisticas 1.4.3 Espaço Cultural “Cidade do Livro” Inaugurado em 2006, o Espaço Cultural “Cidade do Livro” abriga o Centro de Documentação Histórica, criado em 2005. Além disso, guarda parte do acervo da Biblioteca Municipal “Orígenes Lessa”, como obras raras e coleções especiais. O espaço conta com um laboratório de digitalização de acervo e uma sala de reparo/restauração de livros danificados. No térreo localiza-se a biblioteca infantil “Monteiro Lobato” e, nos fundos, um palco para apresentações artísticas, além de um auditório fechado. Abriga, também, o acervo das memórias digitais para serem feitas consultas de forma física. Este espaço pode servir de estúdio para gravações de memórias futuras, dando continuidade à construção do acervo. 19 Figura 3 - Espaço Cultural Fonte: http://turismo.lencoispaulista.sp.gov.br/index.php/atracoes-turisticas 1.4.4 Biblioteca Municipal “Orígenes Lessa” Fundada em 1961, a Biblioteca Municipal tem como patrono o cidadão e escritor lençoense Orígenes Lessa. Possui um grande acervo com obras e documentos raros, além de uma coleção de livros autografados. Em um discurso em Lençóis, Lessa (1981) descreve o momento da inauguração: E tive a felicidade de começar a descobrir que Lençóis, já então Lençóis Paulista, havia deixado longe a cidadezinha de poeira e de barro vermelho dos primeiros tempos e enveredava pelo caminho do progresso que é hoje irreversível. Um pequeno episódio, quando da inauguração do edifício, faz quase 20 anos que me fez sentir, num clarão, que meu pai estava cetro quando me dizia: “Você ainda vai ter orgulho de haver nascido em Lençóis…” A praça Comendador José Zillo estava apinhada de povo. Gente da cidade, gente das fazendas e das grandes usinas, gente das cidades vizinhas. A concha acústica era um “palco iluminado” onde nomes famosos da televisão, do rádio e do cinema vinham prestigiar a criação de uma biblioteca, iniciativa não muito comum e talvez pela primeira vez assim festejada. Os nomes brilhantes, as estrelas, os cantores arrancavam palmas da multidão deslumbrada. Lá pelas tantas quando surgia na concha acústica o ator de cinema que era então o recordista de bilheteria no interior e, a julgar pelo delírio dos aplausos, particularmente recordista em Lençóis, alguém me tocou pelo braço, creio que o professor Célio Pinheiro: - Venha ver uma coisa… Deixamos a concha, o povo aplaudindo. “É o maior ! É o maior” O Mazzaropi é claro. Descemos ao salão da Biblioteca, naquela tarde inaugurada. E lá, com surpresa, fui encontrar dez ou mais garotos, indiferentes ao clamor e as atrações da noite a folhear, fascinados, os livros e revistas que a Biblioteca punha agora a sua disposição… Naquele momento eu senti que havia a Lençóis dos meus sonhos. Não sei nem seria possível saber quem seriam aquelas crianças, mas quero crer que hoje, oscilando entre seus 25 e 30 anos, eles estejam entre a ala moça, que em vários setores constrói a Lençóis Paulista dos nossos dias, tão diferente da cidadezinha, que meu pai conheceu quando esta comunidade, hoje centenária tinha a idade que eles hoje tem… 20 Naqueles meninos e meninas que preferiam os livros a gente pode acreditar… (LESSA, 1983, fls.10). O acervo da biblioteca divide-se entre suas três unidades e continua sendo um atrativo da cidade. Essas instalações são localizadas em bairros da cidade, além de dois pontos de leitura instalados em praças públicas e da Biblioteca Infantil “Monteiro Lobato”. Em 2014, a Biblioteca recebeu uma ampliação, com a implementação de um novo espaço aberto de leitura no piso superior e um “café”. Recebeu, também, novos itens mobiliários e remodelação na oferta dos livros e periódicos que se aproximam aos de uma livraria, conforme os princípios do conceito de “biblioteca viva”, implantados em outras bibliotecas do país com a intenção de melhorar a oferta de literatura, além de contar com internet, WIFI gratuito, computadores, tablets e TV no local. Em 2017, através do edital de modernização de bibliotecas pública do SISEB (Sistema Estadual de Biblioteca), passou-se a contar com a biblioteca digital. Parte do acervo raro digitalizado e todas as edições do jornal “O Eco”, periódico municipal lançado em 1938 e publicado até o presente ano, passaram a estar disponíveis digitalmente. O Plano de Arquivo Digital da Memória Lençoense pode atuar com a biblioteca digital da cidade, onde o pesquisador, após acessar as memórias dos depoentes, poderá se aprofundar na pesquisa, buscando livros, jornais e revistas já digitalizadas da época. Figura 4 - Biblioteca Municipal Fonte: http://turismo.lencoispaulista.sp.gov.br/index.php/atracoes-turisticas 21 1.4.5 Teatro Municipal “Adélia Lorenzetti” O Teatro Municipal recebeu o nome de "Adélia Lorenzetti" homenageando a personalidade solidária desta cidadã lençoense. Adélia foi presidente de instituições como APAE e Rede de combate ao Câncer de Lençóis (MAGALHÃES; LORENZETTI, 2006). O teatro foi inaugurado no ano de 2016, construído pela Prefeitura Municipal de Lençóis Paulista em parceria com a Associação Lençoense de Incentivo à Cultura (ALIC), que, por meio de projeto, viabilizou a maior parte dos recursos a partir das Leis de Incentivo e continua com a captação para o fomento da programação ofertada mensalmente de forma gratuita à comunidade. O Teatro Municipal é o equipamento cultural mais novo da cidade, possuindo um amplo saguão para exposições. Conta, também, com um telão, o qual poderá ser usado para organizar sessões específicas de coleções de memórias temáticas, podendo ainda estar relacionadas à alguma exposição audiovisual ou outros materiais relacionados à preservação e à memória instalados no saguão. Figura 5 - Teatro Municipal Fonte: http://turismo.lencoispaulista.sp.gov.br/index.php/atracoes-turisticas 1.5 Problema de Pesquisa Como toda cidade do interior, Lençóis Paulista tem os seus contadores de causos. São pessoas que vivenciaram a construção da história do município, neste caso, em sua maioria, formada por imigrantes italianos. Em 2009 foi criado o projeto “Memória e Identidade”, visando registrar essas histórias. Em sua metodologia, uma equipe da Secretaria Municipal de Cultura ouviu e gravou alguns moradores contando a relação de suas vidas com os fatos da cidade. 22 As primeiras entrevistas foram realizadas sob a supervisão da agente museal Conceição Langona, que, junto a outros funcionários, munidos de câmeras e outros equipamentos para gravação, faziam as visitas a munícipes para ouvir depoimentos sobre diferentes assuntos e passagens históricas de âmbito municipal, estadual e até mesmo nacional, como a participação na 2ª Guerra Mundial. As gravações não seguiram uma metodologia específica voltada à preservação da memória no âmbito de um projeto formal, mas possuem muitas características da metodologia da História Oral, como a aproximação do interlocutor no desenvolvimento das entrevistas deixando o participante à vontade para narrar sua versão da história. Esse material ficou guardado e o projeto foi descontinuado. Em levantamento preliminar para a elaboração deste projeto, realizado pelo autor, de abril de 2020 a março de 2021, ao todo, foram encontradas 36 entrevistas realizadas com 50 pessoas, sendo algumas realizadas, simultaneamente, com mais de um membro da família. Os temas abordados são variados, tais como educação, cultura, história, folclore, saberes, festas típicas, esportes, entre outros, sempre aproveitando o conhecimento ligado à vivência do entrevistado na área tratada. Abreu (1998) ressalta que a valorização do passado das cidades é uma característica comum às sociedades. A memória de Lençóis Paulista vem se perdendo porque parte dos personagens que marcaram a história do município faleceu sem registrar as suas trajetórias. Outros ainda estão vivos, porém, não escreveram os seus relatos pessoais. E talvez seja improvável que o façam, talvez por desconhecimento de que são importantes, por falta de recursos, de oportunidade, tempo ou, de um canal público que propicie isso. Segundo Meihy (1996), o desdobramento do golpe militar de 1964 no Brasil, bem como em vários outros países da América Latina, nos anos 1960, coibiu projetos que gravassem experiências, opiniões ou depoimentos: [...] depois da abertura política em 83, notava-se uma vontade grande de recuperar, face à História Oral, o tempo perdido. Museus, arquivos, grupos isolados e principalmente a academia manifestavam ansiedade, expressa na busca de entendimento para promover debates em torno da oralidade (MEIHY, 1996, p. 8). A ação iniciada pelo Museu Municipal com as gravações vai ao encontro da “vontade” mencionada pelo autor de recuperar e acrescentar novos registros de informações ao acervo do município. Espaços públicos são locais que servem de ponto de encontro para socialização e de promoção da cidadania. Nesse ponto, o problema a ser resolvido seria uma forma de devolver e disponibilizar o acesso a esses arquivos de memórias através de plataforma digital, podendo servir 23 como elo para uma visitação e uma interação futura com os equipamentos públicos físicos de memória da cidade. O acesso também poderá acontecer de forma presencial, pois não se sabe ainda se todos os arquivos poderão ser abertos à consulta pública. Isso dependerá da autorização dos entrevistados e dos responsáveis pelos registros. As visitas poderão ser agendadas, a princípio, no Espaço Cultural “Cidade do Livro”, o qual também abriga o Centro de Documentação Histórica, cuja função é centralizar e divulgar informações de diversas fontes, visando preservar a memória municipal e servindo de base para gravar novas coleções de entrevistas de memórias. O CDH guarda também parte do acervo da biblioteca como coleções especiais, identificadas pelo valor artístico, literário, histórico, científico ou os conjuntos documentais. Recentemente, o Centro passou a realizar a digitalização de obras para a biblioteca digital. Assim, o Plano ora proposto encaixa-se em uma política pública que abre caminho para uma participação efetiva da comunidade, auxiliando o desenvolvimento da criação e da preservação de memórias ao possibilitar o acesso e a consulta desses arquivos e devolvendo esses bens culturais à população. 24 2 RESUMO TÉCNICO DO PROJETO Nome do Produto: Plano de Arquivo Digital da Memória Lençoense Período de execução física: 17 meses Valor total do projeto: este projeto não recebeu nenhum recurso. Trata-se de um plano de implementação a ser apresentado com custo zero ou quase zero para possível implementação à Prefeitura de Lençóis Paulista. Bolsas – Financiamentos – Convênios e Parcerias: Não houve Instituições participantes: este projeto foi desenvolvido na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), no âmbito do Mestrado Profissional do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia (PPGMiT). Os arquivos de memória estudados são de propriedade da Prefeitura de Lençóis Paulista e da Secretaria Municipal de Cultura de Lençóis Paulista. Caracterização da Pesquisa: PTCBP - Pesquisa Técnica Científica visando avançar o conhecimento, com potencial para contribuir em políticas públicas. Caracterização da pesquisa com uma breve justificativa para o enquadramento: o objetivo geral da pesquisa proposta é formular e apresentar o Plano de Arquivo Digital da Memória Lençoense, a ser desenvolvido a partir das entrevistas orais reunidas em um projeto anterior, intitulado “Memória e Identidade Lençoense”, criado em 2009 pela Prefeitura de Lençóis Paulista, e de relatos gravados subsequentes. A relevância deste trabalho decorre de dois pontos distintos e complementares: (a) a perda parcial da memória do município, em virtude do falecimento de munícipes que, tendo contribuído para o desenvolvimento local, não deixaram relatos por escrito; e (b) uma estratégia de ampliação da oferta de serviços públicos à população por plataformas eletrônicas, em consonância com o que se convencionou entender como “governo digital”. 25 3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 3.1 Importância da preservação da memória A ideia de patrimônio cultural é constituída tanto por bens materiais quanto imateriais, associados à identidade e à memória de um grupo, de um povo e de uma comunidade (BATISTA, 2005; RODRIGUES, 2017; JUNIOR; TAVARES, 2018). Para falar de memória é importante entender o que constitui o patrimônio cultural e histórico. A Constituição Federal Brasileira de 1988 traz, em seu artigo 216, que: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Grupos sociais ou indivíduos buscam colecionar a memória exposta em objetos guardados quase sempre em museus, como testemunhos de reflexões e de vivências humanas que ajudam a contar a trajetória e a história do local, convidando o indivíduo a se transformar e a construir a sua identidade. Ao passo que tudo tem um processo, essas instituições conjugam, como missão, a tarefa de serem estimuladoras e propulsoras de novas ideias, servindo de base para contar a trajetória daquele local, como esclarece Leite (2020, p. 12): Um museu serve para facilitar o modo como olhamos para o mundo, para os outros e para nós mesmos. O sentido dos museus é propiciar uma consciência sobre o patrimônio que encontramos e como podemos usar isso para fazer coisas novas. O patrimônio não é o que se tem, mas o que se pode fazer com ele. Serve para podermos viver melhor e mais felizes. Os museus são espaços vivos e de inovação. São laboratórios onde podemos experimentar combinação de ideias. É através do encontro que se produz transformação. A Secretaria da Cultura de Lençóis Paulista, segundo consta inscrito no próprio edifício- sede, tem a missão de preservar o acervo e o patrimônio cultural irrestritamente e democraticamente, dando maior temporalidade a cada objeto e oportunizando o acesso a todo cidadão. 26 Segundo Scifoni (2003), a trajetória da criação do conceito de patrimônio cultural é um tema importante na discussão do espaço urbano. A Europa lidera o ranking de patrimônios preservados, porém, o Brasil iniciou o seu trabalho de reconhecimento dos patrimônios somente em 1980. Marins (2016) examina as práticas de preservação do patrimônio cultural a partir da década de 1980 e aponta para os traços de padrão elitista nos tombamentos no Brasil, como a canonização da arquitetura monumental, e cita vários tombamentos correspondentes. O autor ainda evidencia que, com a mudança política do país e a extinção do SPHAN, depois renomeado como IPHAN, o número de tombamentos caiu a partir de 1990. Em contrapartida, o decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000 instituiu o registro de bens imateriais. O decreto estimulou a escuta da sociedade, contrastando-se com o papel centralizador do IPHAN. Houve, assim, a valorização do engajamento do cidadão no âmbito da produção e da preservação cultural. Entretanto, Marins (2016) ainda aponta para uma territorialidade restritiva de bens imateriais em determinadas regiões e a sua ausência em outras, acompanhando ideias arraigadas nos tombamentos materiais realizados nos anos de 1980. Isso deixa evidente a necessidade de uma reflexão mais profunda para cumprir a missão dos patrimônios históricos: representar a complexidade social e cultural do país. O conceito de patrimônio, apresentado por Rodrigues (2017), liga a perspectiva de memória à reconstrução de fatos passados: É o conjunto de bens, materiais e imateriais, que são considerados de interesse coletivo, suficientemente relevantes para a perpetuação no tempo. O património faz recordar o passado; é uma manifestação, um testemunho, uma invocação, ou melhor, uma convocação do passado. Tem, portanto, a função de (re)memorar acontecimentos mais importantes; daí a relação com o conceito de memória social. […] É o conjunto de símbolos sacralizados, no sentido religioso e ideológico, que um grupo, normalmente a elite política, científica, econômica e religiosa, decide preservar como património coletivo (RODRIGUES, 2017, p. 354-355). Dessa forma, a memória social legitima a identidade de um determinado grupo, dispondo do patrimônio cultural como instrumento de validação. As definições de patrimônio e sua construção são complexas, pois estão intimamente ligadas à memória e à identidade dos grupos e das classes sociais. Países possuem patrimônios culturais de diferentes interpretações e heranças, mas que dizem respeito a um todo. Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo, aquele mesmo em que esteve engajada ou que dela suportou as consequências, que lhe assistiu ou dela recebeu um relato vivo dos primeiros atores 27 e espectadores, quando ela se dispersa por entre alguns espíritos individuais, perdidos em novas sociedades para as quais esses fatos não interessam mais porque lhe são decididamente exteriores, então o único meio de salvar tais lembranças é fixá-las por escrito em uma narrativa seguida, uma vez que as palavras e os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem (HALBWACHS, 1990, p. 80- 81). São essas memórias transformadas em “arquivos” que ajudam na preservação da história, pois elas ficam guardadas nas “instituições de memórias” das cidades. Por isso, é importante realizar e preservar os registros coletivos das memórias e das histórias que ainda estão vivas no cotidiano atual (tempo presente), no intuito de resgatar o passado, salvaguardando-as para contribuir com a construção da identidade local, regional e nacional. Afinal, no caso específico deste projeto, cabe citar fatos históricos nacionais nos quais há a participação de alguns lençoenses. 3.2 Dificuldades da preservação das memórias Pode-se pensar aqui na pouca importância dada aos idosos (detentores de memórias) nas sociedades urbano-industriais. Os velhos da época contemporânea são culturalmente condicionados a deixar seu lugar para os mais jovens, ficando subtendido que os idosos não têm mais valor produtivo. Esse fato contrasta com outras comunidades humanas, como “tribos primitivas” e/ou tribos indígenas, em que esses homens são detentores do saber. Em uma passagem, Bosi (1979, p. 37) faz um apontamento sobre a dificuldade cotidiana da comunicação dos mais velhos: “É a impotência de transmitir a experiência, quando os meios de comunicação com o mundo falham. Ele não pode mais ensinar aquilo que sabe e que custou toda uma vida para aprender”. Segundo Suzuki (2011 p. 68), “as lembranças vividas permitem a (re)significação do passado que pode servir como um instrumento de recriação identitária, possibilitando a preservação e a incorporação de novos elementos materiais e imateriais”. O autor relata aqui a importância da escuta para a preservação das memórias. Outro aspecto preocupante no Brasil é a desvalorização de seus patrimônios culturais. Trata- se de um desleixo social, cultural e político que cria dificuldades para consolidar e preservar a identidade nacional. A história do país é contada através de um patrimônio cultural eurocêntrico, o qual valoriza o que é estrangeiro (FERNANDES, 2005; SANTOS; NICODEMO; PEREIRA, 2017). Desde a época da colonização, foram inculcadas concepções ideológicas que se mantêm até os dias atuais; são resquícios conservadores, preconceituosos e excludentes que dificultam o autorreconhecimento e a representatividade identitária de um povo numeroso e complexo, que pouco valoriza a rica e complexa cultura herdada dos povos indígenas e africanos. Afinal, os 28 imensos e variados patrimônios imateriais dos povos africanos e indígenas, escravizados pelos colonizadores ibéricos, foram fundamentais tanto para efetivar o complexo projeto de colonização quanto para produzir uma população mestiça em todos os sentidos; são traços biológicos e comportamentais, completados por repertórios linguísticos, estéticos e gastronômicos, que compõem os valores e saberes socioculturais dos brasileiros da atualidade, uma das etnias mais complexas entre os povos contemporâneos. Oliveira (2012) explica como era estruturada a concepção elitista de patrimônio cultural: Segundo o conceito de “excepcionalidade”, certo bem somente integraria a categoria de patrimônio cultural se possuísse um elevado valor estético sob a ótica da Arquitetura e da Crítica de Arte, o que levava a uma consideração quase exclusiva do referencial estético eurocêntrico. A origem desta concepção adveio de uma noção de cultura que já não se diferenciava muito da formulada pelo senso comum da época, a qual seria associada a erudição, ou seja, ao ideal elitista de “refinamento de espírito”. Logo, como o governante concebia a cultura como erudição, ele fatalmente destinava os esforços estatais para salvaguardar, apenas, os bens portadores de referência a certo reconhecimento erudito, como as ciências (as artes aplicadas), as manifestações artísticas (as belas artes) e a Arquitetura, valores que representavam, inevitavelmente, o eurocentrismo colonialista da época (OLIVEIRA, 2012, p. 8). Chartier (2009, p. 9) complementa que “a instituição histórica se organiza segundo hierarquias e convenções que traçam as fronteiras entre os objetos históricos legítimos e os que não o são e, portanto, são excluídos ou censurados”. Em outras palavras, tudo o que era popular ou ligado à cultura local era rechaçado. Essas ideias continuam vivas na sociedade atual, mas romper com esse pensamento eurocêntrico altamente racista e preconceituoso visa compreender um enriquecimento de experiências sociais e a diversidade na composição da memória do País, trazendo vozes de grupos silenciados pela história. Um exemplo seria o trabalho do MEC com a implementação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), determinando o aprendizado nas redes escolares sobre a história dos povos e culturas africanas e indígenas, resgatando, assim, os vários aspectos das contribuições destes para a construção da sociedade e da história brasileira. O termo “complexo de vira-latas”, criado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues (1993, p. 51), ilustra o aspecto sob o qual a cultura brasileira tem se constituído: “Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face ao resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol”. Na citação, Rodrigues aponta o sentimento de inferioridade como traço comum em muitos brasileiros, fruto da construção cultural, social e histórica que desvaloriza a própria cultura e as características específicas das quais somos portadores. 29 3.3 Importância de novas mídias e tecnologias para democratizar o acesso aos conteúdos de preservação O fonógrafo e o gravador de fita magnética foram os primeiros artefatos tecnológicos que possibilitaram gravar os sons, as vozes e as memórias pessoais. A invenção e o aprimoramento desses equipamentos permitiram que as pessoas pudessem revisitar as informações e as vozes do passado como recurso afetivo-emocional e, também, para realizarem consultas documentais e históricas. As gravações viabilizaram a produção de acervos sonoros e permitiram preservar e democratizar o acesso aos diversos tipos de repertórios gravados. Instituições de cultura, como arquivos, bibliotecas e museus, possuem uma heterogeneidade de itens audiovisuais em seus acervos e têm sempre a preocupação em preservar e disseminar esses conteúdos de importância informativa e cultural que, muitas vezes, permanecem inacessíveis e desconhecidos. As tecnologias digitais, além de colaborarem para a preservação e o armazenamento dos conteúdos audiovisuais, também podem contribuir para democratizar o acesso online a eles, pois antes poderiam ser acessados apenas fisicamente. Pode-se citar como exemplo o Jornal O Eco, da cidade de Lençóis Paulista. Esse veículo de imprensa teve o seu acervo totalmente digitalizado, um recurso que se tornou um aliado do antigo periódico impresso, que hoje tem a sua difusão online pelo sistema de consulta na Biblioteca Digital “Orígenes Lessa”. A tecnologia veio para ampliar o acesso desse material físico, com novas formas de busca por palavras-chave, podendo ser ampliadas com a pesquisa do acervo, realizada por temas e assuntos publicados em todas as épocas. Da mesma maneira, nos museus, as peças catalogadas disponibilizadas via web podem servir para incitar a curiosidade de novos visitantes e pesquisadores, além de permitir que os visitantes conciliem visitas presenciais e virtuais, aprimorando os conhecimentos e suas experiências culturais. Medeiros (2017, p. 71) completa: “As Bibliotecas, arquivos e museus, mundialmente, se aliam na cruzada de digitalizar seus acervos e os colocarem disponíveis nas redes, por meio de bibliotecas ou repositórios digitais”. Marcondes (2017) discorre sobre uma importante mudança das instituições de cultura que ocorre diante da atual sociedade da informação e tecnologia: A emergência das tecnologias de informação, bem como uma demanda característica das modernas sociedades democráticas do fim do século XX, de que instituições públicas prestem contas e justifiquem os investimentos da sociedade em mantê-las, fez com que as instituições de memória se voltassem cada vez mais para a disseminação de seus acervos, ao invés de somente preservá-los. Essa mudança é conhecida como paradigma pós-custodial, as instituições de memória e cultura passam a não ter somente a missão de custodiar, de preservar e manter seus 30 acervos, mas também disseminá-los para que se constituam em recursos de memória, de história, de cultura, de educação e de cidadania das sociedades onde estão inseridas (MARCONDES, 2016, p. 63). As tecnologias alteraram o significado dos arquivos que passam a ser “orgânicos” e acessíveis, deixando de servir apenas como depósitos de informações. Também houve a ampliação dos papéis social, educativo e cultural do agente público que trabalha em instituições de cultura. São mudanças que exigem novos valores e posturas capazes de estabelecer novas formas de conexão pública na oferta de novos tipos de serviço para os públicos, colaborando para ampliar os conhecimentos coletivos, a construção de memória pública e o combate à desinformação. A partir do desenvolvimento da web 2.0 e das estruturas wiki, também foram criadas e disponibilizadas muitas ferramentas que possibilitam a interação e a contribuição dos usuários das redes digitais. Hoje é possível que os usuários alterem as páginas virtuais enquanto navegam na internet, podendo gerenciar os conteúdos que lhes interessam sem precisar dominar algum conhecimento especializado em linguagem eletrônica. 3.4 Fundamentação teórica-legal para uma política de preservação de arquivos públicos Para construir um serviço público que atenda um usuário eficientemente é preciso entender o que são as políticas públicas. Para Souza (2006, p. 26), elas podem resumidas como: “o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, ‘colocar o governo em ação’ e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no ramo ou curso dessas ações (variável independente)”. Aponte-se, ainda, outra definição possível: Políticas públicas são conjuntos de programas, ações e decisões tomadas pelos governos (nacionais, estaduais ou municipais) com a participação, direta ou indireta, de entes públicos ou privados que visam assegurar determinado direito de cidadania para vários grupos da sociedade ou para determinado segmento social, cultural, étnico ou econômico. Ou seja, correspondem a direitos assegurados na Constituição (POLITIZE, 2020). Existe um processo de elaboração de uma política pública composta por 6 etapas, conforme a ENAP (2018): identificação, formação de agenda de governo, especificação de alternativas, decisão política, implementação e avaliação. Pode-se compará-la a um organismo vivo: ela nasce, cresce e pode morrer (ou ser extinta se o problema for sanado ou deixar de existir); trata-se de uma construção entre Estado e sociedade (seguindo o modelo participativo, mas existem outros formatos) definida pelos poderes legislativo e executivo conforme as demanda sociais, as quais garantem sua participação social com percepções, reclamações e sugestões por meio de mecanismos 31 de controle social, como ouvidorias, conselhos públicos, ofícios, etc. Outro princípio importante em uma política pública para ela poder auxiliar efetivamente atendendo as demandas da população e proporcionando maior diálogo entre governo e sociedade civil é a chamada de Inovação Social. Segundo Bignetti (2011, p. 4), trata-se do “Resultado do conhecimento aplicado às necessidades sociais por meio da participação e da cooperação de todos os atores envolvidos, gerando soluções novas e duradouras para grupos sociais, comunidades ou para a sociedade em geral”. No plano legal, a Constituição de 1988 institui diversas formas de incidência dos cidadãos sobre políticas públicas e traz em seu artigo 215 que: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (BRASIL, 1988). Esse dispositivo prevê, ainda, o Plano Nacional de Cultura, criado posteriormente pela Lei n° 12.343, de 2 de dezembro de 2010, com o intuito de orientação a programas de desenvolvimento e ações ligados à cultura: Art. 215 O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. §3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção, promoção e difusão de bens culturais; III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005) IV democratização do acesso aos bens de cultura; V valorização da diversidade étnica e regional. A atual Secretaria Especial da Cultura é o órgão da administração federal responsável pelas políticas públicas do setor. Os políticos, quando eleitos, têm a oportunidade de criar o seu próprio planejamento de políticas públicas específicas para atender aos interesses de seus programas de governo. Para combater a instabilidade no setor cultural a Lei 12.343, de 2 de dezembro de 2010, estabeleceu por 10 anos o Plano Nacional de Cultura (PNC) (BRASIL, 2010), que, mesmo com a sua vigência expirada, ainda estabelece as orientações que auxiliam o poder público na construção de políticas públicas na área da cultura. O PNC determina os princípios, as diretrizes, os objetivos, as políticas e as metas do setor. O Plano possui 3 eixos, 36 estratégias, 257 ações e 53 metas, desenvolvido com forte participação popular. A partir de 2005, essas atividades passaram a ser supervisionadas pelo Conselho Nacional 32 de Política Cultural (CNPC), criado pelo decreto 5.520/2005 (BRASIL, 2013). Os dados sobre as políticas culturais são organizados pelo Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC). Segundo o Art. 216-A da Constituição Federal: O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais (BRASIL, 1988). A Lei 12.323/2010, em seu artigo 3º, traz as atribuições do poder público. Cabe destacar aqui alguns pontos relacionados à preservação: ● Formular políticas públicas e programas que conduzam à efetivação dos objetivos, diretrizes e metas do Plano; ● Proteger e promover a diversidade cultural, a criação artística e suas manifestações e as expressões culturais, individuais ou coletivas, de todos os grupos étnicos e suas derivações sociais, reconhecendo a abrangência da noção de cultura em todo o território nacional e garantindo a multiplicidade de seus valores e formações; ● Promover e estimular o acesso à produção e ao empreendimento cultural; a circulação e o intercâmbio de bens, serviços e conteúdos culturais; e o contato e a fruição do público com a arte e a cultura de forma universal; ● Garantir a preservação do patrimônio cultural brasileiro, resguardando os bens de natureza material e imaterial, os documentos históricos, acervos e coleções, as formações urbanas e rurais, as línguas e cosmologias indígenas, os sítios arqueológicos pré-históricos e as obras de arte, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência aos valores, identidades, ações e memórias dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira; ● Articular as políticas públicas de cultura e promover a organização de redes e consórcios para a sua implantação, de forma integrada com as políticas públicas de educação, comunicação, ciência e tecnologia, direitos humanos, meio ambiente, turismo, planejamento urbano e cidades, desenvolvimento econômico e social, indústria e comércio, relações exteriores, dentre outras; ● Organizar instâncias consultivas e de participação da sociedade para contribuir na formulação e debater estratégias de execução das políticas públicas de cultura; Para atingir as metas do PNC, é primordial que haja participação das cidades e estados, 33 articulados pela adesão ao Sistema Nacional de Cultura (SNC), em conjunto com a sociedade civil. Torna-se importante salientar a ampliação do papel social educativo e cultural das instituições de memória e, também, a importância da web na difusão de políticas públicas. 3.5 Barreiras da implementação O projeto “Memória e Identidade” foi iniciado em 2009, sem uma formulação necessária para a sua implementação, havendo apenas a preocupação de registrar as memórias dos mais velhos. Essa falta de planejamento costuma ser condenada na literatura de pesquisas sobre o tema. Por exemplo, segundo Lotta (2019): Estudos sobre implementação de políticas públicas têm crescido constantemente, tanto em nível nacional quanto em nível internacional (...). Estes estudos têm como ponto de partida a ideia de que as políticas públicas podem ser analisadas como um ciclo que perpassa diferentes fases: agenda, formulação, implementação e avaliação (LOTTA, 2019, p. 11). Complementarmente, é importante entender o conceito de política pública que também orienta o trabalho final aqui desenvolvido. Segundo a ENAP (2018, p. 9): Para construir um conceito de políticas públicas com aderência à realidade local e que dialogue com a experiência do dia a dia dos gestores locais, pode-se dizer que política pública é o conjunto de ações realizadas, mobilizando recursos humanos, financeiros e tecnológicos pelo poder público no sentido de promover a cidadania. Tais ações podem ser levadas a cabo direta ou indiretamente pelos governos, materializando-se em bens e serviços ou tomando a forma de regulação e normas que melhor organizam as relações sociais, sempre com foco na promoção da cidadania. Este plano, ora apresentado como documento necessário à conclusão do mestrado, considerou a fase da implementação da política pública e, mais especificamente, os fatores externos reais/materiais, dentre os quais a atuação de burocratas nem sempre tem sido em total consonância com a formulação realizada. Lotta (2019) apresenta um breve histórico sobre os mais de quarenta anos de estudos sobre implementação de políticas públicas. Pode-se destacar o olhar de cima para baixo (top down) que vê falhas quando as políticas não seguem a formulação proposta no “papel”, e o olhar de baixo para cima (bottom up) que considera e estuda os agentes transformadores envolvidos na implementação para compreender como a política funciona na prática. Diante de todos esses estudos, a autora elenca 5 pressupostos importantes para o entendimento sobre a implementação de políticas 34 públicas: elas são contínuas; os processos de decisão são complexos; têm alta interatividade; há interferência de fatores externos; e necessita entendimento sobre o funcionamento em campo. Todos os pressupostos estão ligados com a atuação dos burocratas que exercem um papel decisivo na implementação de políticas públicas diante das variadas decisões tomadas. Lotta (2019) ainda esclarece que existem diversos tipos de recortes possíveis para estudos da implementação, como: entender a implementação por intermédio dos arranjos institucionais, a partir dos instrumentos ou sobre a perspectiva dos atores que se desdobram sobre os diversos tipos de burocratas, como os de médio escalão, os de nível de rua, entre outros agentes das máquinas públicas. Existe, então, um leque de alternativas possíveis para se estudar a implementação. Há formas diferentes de os assuntos entrarem em pauta para a formação de agendas públicas, uma delas é o processo político. Pode-se dizer que a gestão municipal de 2009 tinha o foco e a consciência do papel cultural que a cidade de Lençóis Paulista exercia na região. Foi tal visão estratégica que favoreceu o início da produção dos vídeos do projeto “Memória e Identidade”. É possível que alguns erros na formulação do projeto possam ter levado a Secretaria Municipal de Cultura a enfrentar obstáculos em sua implementação, como a falta de tecnologia adequada para gravação e armazenamento do material audiovisual coletado, servidores sem qualificação para realizar entrevistas e o manuseio adequado de equipamentos de gravação. Esses obstáculos colaboraram para a descontinuidade e o arquivamento do projeto “Memória e Identidade”, que, mesmo com os problemas apontados, comprova a criatividade daquela gestão em levar adiante o projeto, culminando no acervo da coleção de vídeos – ainda que esse acervo, organizado de forma precária, fosse posteriormente arquivado e preservado. Segundo Pedone (1986), “as decisões em políticas públicas, especialmente na área social, estão impregnadas de valores, sendo estes defendidos por diferentes grupos conforme as suas orientações ideológicas” (PEDONE, 1986, p. 27). O fim da gestão municipal que iniciou o projeto, a qual durou dezesseis anos, mudou também o foco das políticas públicas na cidade. Essas mudanças periódicas dos projetos e modelos de gestão pública, somadas à falta de comprometimento e problemas gerenciais, agregaram outros obstáculos para o andamento de muitos projetos municipais. Afinal, as falhas e as dificuldades que comprometeram o projeto “Memória e Identidade” poderão ser superadas com a apresentação de um plano bem estruturado de retomada, visando a implantação de uma nova ferramenta tecnológica de acesso online aos arquivos audiovisuais, indo ao encontro da declaração universal sobre os arquivos da UNESCO (2010): Arquivos registram decisões, ações e memórias. Arquivos são um patrimônio único e insubstituível transmitido de uma geração a outra. Documentos de arquivo são geridos desde a criação para preservar seu valor e significado. Arquivos são fontes 35 confiáveis de informação para ações administrativas responsáveis e transparentes. Desempenham um papel essencial no desenvolvimento das sociedades ao contribuir para a constituição e salvaguarda da memória individual e coletiva. O livre acesso aos arquivos enriquece o conhecimento sobre a sociedade humana, promove a democracia, protege os direitos dos cidadãos e aumenta a qualidade de vida (UNESCO, 2010). Segundo Batista e Rezende (2015), o quadro a seguir indica questões pertinentes em cada uma das etapas da formação de uma política pública. Tabela 1 - Características de uma política pública Fases da política Questões pertinentes à análise de cada fase Reconhecimento do problema – montagem da agenda ● Como os temas ganharam atenção dos governos? ● Que problemas foram reconhecidos pelos governantes como relevantes? ● Como as alternativas para esses temas foram geradas? ● Como a agenda governamental se constituiu? ● Por que e quando uma ideia emergiu? Formulação da política e Tomada de decisão ● Como as alternativas políticas foram formuladas? ● Como determinada proposição foi escolhida entre outras alternativas? ● Quem participou do processo de formulação e decisão das políticas? Implementação ● A formulação da política apresenta objetivos, metas e direção clara? ● Os recursos necessários para sua implementação foram considerados no momento da formulação/ implementação? ● O processo de construção da estratégia de implementação é claro? Em especial quanto à divisão de atribuições e atividades? Exige mudança organizacional? ● Os atores que estão envolvidos na implementação estão de acordo e compreendem a política traçada? Avaliação ● A ação política implementada trouxe mudanças positivas ou negativas para as condições prévias das populações? Qual(is) o(s) impactos gerados? ● As ações previstas foram realizadas? ● As metas definidas foram alcançadas? Os instrumentos e recursos previstos foram empregados? ● As ações propostas utilizam os diferentes recursos com eficiência? Fonte: Baptista e Rezende (2015, p. 253-254) 36 Analisando as questões apontadas pelos autores no quadro do campo da implementação, fica evidente que os obstáculos mencionados poderiam ter sido mitigados caso houvesse um planejamento consistente para ser seguido. Segundo Baptista e Rezende (2015, p. 243): “Se a política é ‘boa’, mas a perspectiva de execução é ruim pela falta de capacidade técnica ou falta de recursos, também existirão problemas na implementação”. Ainda sobre possíveis barreiras na implementação deste projeto, é necessário destacar as dificuldades no âmbito jurídico. As cartas de cessão fazem parte da dinâmica das entrevistas de história oral, elas são elaboradas pelas instituições conforme a utilização dos arquivos e são documentos indispensáveis. Não foram localizados os termos de cessão de direito dos arquivos pesquisados, sendo imprecisos os relatos sobre a sua existência. De toda sorte, caso tenham existido, foram perdidos na enchente que o Museu “Alexandre Chitto” sofreu no ano de 2016. Durante o inventário das entrevistas foi percebido que a maioria dos entrevistados faleceu. Nesse caso, Alberti (2005) aponta: Inicia-se uma negociação com seus herdeiros, que deve ser encaminhada com muita paciência. Possivelmente o entrevistado estava disposto a ceder o depoimento sem restrição alguma, tendo conhecido seus entrevistadores e confiado no programa. Já seus herdeiros podem ter dúvidas a respeito, receosos da imagem que se fará de seu parente se a entrevista for aberta ao público. Podem julgar, por exemplo, que o entrevistado falou demais sobre certos assuntos, não censurou suas opiniões, ou ainda confundiu fatos e detalhes, denunciando falhas de memória e dificuldades de raciocínio (ALBERTI, 2005, p. 133). A autora orienta ainda que os herdeiros examinem o arquivo antes de assinar a carta, se assim o quiserem. É importante que a instituição, ao elaborar a carta, liste todos os que judicialmente têm o poder de decisão a respeito. Com os nomes dos entrevistados levantados em inventário, será preciso localizá-los e, no caso dos falecidos, seus herdeiros, para que assinem o termo de cessão de direitos sobre depoimento oral. Uma proposta de termo foi incluída no Anexo A deste trabalho. Além disso, pode ser que, para assinar o termo, alguns entrevistados ou seus herdeiros peçam para rever as entrevistas. Nesse caso, essa oportunidade deverá ser garantida a eles em espaço cultural a definir. 37 3.6 Política de Preservação Digital Impulsionadas pela tecnologia, a informatização e a digitalização de acervos públicos acontece de forma gradual. Aos poucos, as instituições culturais também iniciam o trabalho na área, mas é preciso pensar em uma política de preservação que estabeleça critérios e diretrizes. A Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regulamenta o direito constitucional de acesso dos cidadãos às informações públicas, indiretamente estabelece que exista a implementação de uma política de preservação digital. Ferreira (2006) designa “preservação digital” como: O conjunto de atividades ou processos responsáveis por garantir o acesso continuado a longo-prazo à informação e restante patrimônio cultural existente em formatos digitais. A preservação digital consiste na capacidade de garantir que a informação digital permanece acessível e com qualidades de autenticidade suficientes para que possa ser interpretada no futuro recorrendo a uma plataforma tecnológica diferente da utilizada no momento da sua criação (FERREIRA, 2006, p.13). Segundo Miranda, Galindo e Vila Nova (2011): Uma política de preservação deve ser uma ação constituída por uma equipe de profissionais capacitados, e que a participação do profissional bibliotecário no processo decisório, no planejamento e na implementação da política, é fundamental (MIRANDA; GALINDO; VILA NOVA, 2011, p. 3311). A bibliotecária, servidora pública municipal, fará parte da equipe de implementação deste projeto junto a outros servidores da Secretaria de Cultura e Tecnologia, formando, assim, uma equipe multidisciplinar. Para Grácio (2012, p. 108), “toda política de preservação digital de uma instituição deve estar amparada em leis que respaldem a instituição e garantam a propriedade intelectual ao autor do objeto digital e sua autenticidade”. Observa-se que isso não ocorreu em Lençóis Paulista, porque houve uma preocupação de iniciar o trabalho prático de digitalização antes da construção de uma política. Ainda assim, entende-se que o plano de arquivo digital ora proposto é necessário e justificável. A ausência de uma política mais ampla de preservação digital e a eventual despreocupação com a cessão de direitos no caso concreto não devem inviabilizar a preservação da memória do município, porque é necessário registrar as memórias dos mais velhos enquanto estão vivos e tornar esse material acessível a consultas. Contudo, o presente plano preocupa-se, por outro lado, com as ausências, sendo apresentadas neste trabalho algumas sugestões para o tratamento 38 dessas questões. Mesmo que inexista uma política pública municipal consolidada para a preservação da memória local, há presença de esforços pontuais, sendo possível citar alguns exemplos. O Arquivo Histórico de Lençóis Paulista foi criado pela Lei Municipal nº 3.384, de 23 e março de 2004. Nela, é possível verificar que a condição de acesso é um item a ser cumprido: O Arquivo Histórico Municipal é responsável por custodiar, conservar e dar condições de acesso aos documentos gerados e acumulados organicamente durante o transcurso das atividades de entidades públicas ou privadas ou de uma família ou pessoa. Os documentos de arquivo histórico são mantidos para registrar, provar, testemunhar alguma atividade, época, costume e em geral, são únicos. Ou seja, guardar a memória local, nacional e/ou internacional. Para a biblioteca, a preservação de memória faz parte da sua natureza. Trata-se de uma instituição que existe essencialmente para esse fim de coleta e de produção, preservando e criando acesso às memórias. Evidencia-se que não existe na cidade uma política de preservação digital constituída, mas, na prática, a biblioteca do município conta com um laboratório de digitalização de acervo, criado a partir de um edital de modernização de bibliotecas públicas do Sistema de Bibliotecas Públicas do Estado de São Paulo (SISEB), no ano de 2014. Esse processo teve a participação de um grupo interdisciplinar composto pelos servidores municipais do Espaço Cultural “Cidade do Livro” e da Secretaria de Tecnologia e Informação, culminando na Biblioteca Digital “Orígenes Lessa”. 3.7 Metadados na preservação digital O aumento de conteúdo na internet elevou a necessidade de criação de ferramentas que possibilitassem a organização das informações e o retorno mais preciso das buscas realizadas na rede, pois os sistemas de busca tradicionais não possibilitam uma pesquisa sempre exata. A descrição de metadados, popularmente chamado “dados sobre os dados”, apresenta precisão e qualidade dentro de uma pesquisa. Grácio (2012, p. 121) define-os como “um conjunto de dados, chamados ‘elementos’, cujo número varia de acordo com o padrão adotado, e que descreve o recurso, possibilitando a um usuário ou um mecanismo de busca acessar e recuperar esse recurso”, ou seja, é um padrão de descrição (catalogação) de um documento em formato eletrônico para o ambiente digital, visando facilitar a busca e apresentando resultados mais precisos. Torna-se necessário não apenas armazenar os arquivos, mas garantir que sejam acessados. Para isso, é preciso que estejam bem alocados. Adotar um bom esquema padronizado de metadados 39 é fundamental para a preservação dos arquivos digitais. Um padrão de metadados escolhido por uma instituição permite a troca de informações entre elas, contribuindo para a difusão do material pesquisado. Existem diferentes padrões de metadados no mundo, cada um utilizando uma estrutura distinta, alguns pensados para diferentes tipos de objeto, são exemplos: Padrão Dublin Core; padrão EAD; padrão ANI/NISO Z39.87; padrão METS; padrão PREMIS, entre outros. Cada padrão possui um conjunto de qualificadores que permitem descrever o objeto e possibilitam identificá-lo em uma pesquisa em outras bases de dados que utilizem o mesmo padrão de metadados. Formenton et al. (2017, p. 89) montaram um quadro comparativo de características de agentes qualificadores de padrões de metadados que julgam importantes para a preservação digital. Tabela 2 – Padrões e elementos de metadados de apoio à preservação digital Padrão Características Elementos de metadados úteis para a preservação digital Dublin Core ● Esquema flexível e extensível de metadados descritivos para descoberta de recursos Web. ● Mantido pela DCMI, vem sendo muito usado por comunidades internacionais. ● Pode ser representado em XML e propicia interoperabilidade de dados na Web. ● Título ● Criador ● Descrição ● Data ● Formato ● Identificador ● Fonte ● Relação ● Cobertura ● Direitos ● Detentor de Direitos ● Proveniência MODS ● Esquema XML aplicável aos objetos de bibliotecas digitais e mantido pela LC. ● Elementos descritivos herdam a semântica dos elementos MARC 21. ● É mais simples que MARC completo e mais rico que o DC Qualificado. ● Informação de Título ● Nome ● Informação de Origem ● Descrição Física ● Índice ● Item Relacionado ● Identificador ● Localização ● Parte ● Condição de Acesso ● Informação de Registro EAD ● Esquema XML e uma DTD para codificar instrumentos de pesquisa arquivísticos. ● Mantido pela LC junto com a SAA. ● Compatível com as normas de descrição arquivística, tal como a ISAD(G). ● Cabeçalho EAD ● Descrição Arquivística 40 PREMIS ● Esquema XML de metadados para suporte a preservação digital em repositórios. ● É mantido pela LC, focaliza o sistema e sua gerência e define unidades semânticas. ● Pode ter apoio do DC, MODS, EAD e MIX na verificação da autenticidade, integridade, procedência ou direitos relativos aos objetos mantidos num repositório digital. ● Objeto ● Eventos ● Agentes ● Direitos ANSI/NISO Z39.87 ● Inclui metadados técnicos para gestão de coleções de imagens fixas digitais. ● Implementado e adotado via esquema XML NISO MIX mantido pela LC. ● Compreende metadados para preservação e metadados administrativos. ● Informação Básica do Objeto Digital ● Informação Básica da Imagem ● Metadados de Captura da Imagem ● Metadados de Avaliação da Imagem ● Histórico de Mudança METS ● Esquema XML mantido pela LC para gestão de objetos de biblioteca digital. ● Pode implantar e padronizar os pacotes PSI, PAI ou PDI no modelo SAAI. ● Organiza e expressa relações hierárquicas e hiperligações entre os objetos e suas partes. ● Inclui DC, MODS, EAD e MIX na seção de Metadados Descritivos, e pode ter o PREMIS na seção de Metadados Administrativos. ● Cabeçalho METS ● Metadados Descritivos ● Mapa Estrutural ● Ligações Estruturais ● Comportamento Fonte: Formenton et al. (2017, p. 89) No quadro é possível visualizar os diferentes qualificadores dentro de cada padrão. Nesse espectro, não existe um padrão único para ser trabalhado, pois o mais importante é pensar na integração para fortalecer a difusão de uma base de dados que está sendo criada. O modelo Dublin Core, por exemplo, citado pelos autores como utilizado em comunidades internacionais, é atualmente empregado na Biblioteca Digital “Orígenes Lessa”. Ele conta com 15 qualificadores que são: 1 – Título 2 – Autor 3 – Assunto 41 4 – Descrição 5 – Editor 6 – Colaborador 7 – Data 8 – Tipo 9 – Formato 10 – Identificador 11 – Fonte 12 – Língua 13 – Relação 14 – Cobertura 15 – Direitos Os qualificadores são de uso opcional para cada criador de repositório. Também é possível criar outros qualificadores, mas é preciso entender que eles podem não ser reconhecidos nas aplicações de outros repositórios, dificultando sua localização. Com o levantamento realizado das entrevistas será possível inserir alguns metadados já recolhidos quando o upload for realizado, como, por exemplo: descritores dos campos título, assunto, descrição, data e formato. 42 4 MATERIAIS E MÉTODOS 4.1 Metodologia A metodologia utilizada neste plano ampara-se fortemente no método de história oral. O foco narrativo será o relato do próprio entrevistado com suas experiências e trajetória de vida. Segundo Alberti (2005): A história oral é um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica, etc.) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. Como consequência, o método da história oral produz fontes de consulta (as entrevistas) para outros estudos, podendo ser reunidas em um acervo aberto a pesquisadores. Trata-se de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos, conjunturas, etc. à luz de depoimentos de pessoas que deles participaram ou testemunharam (ALBERTI, 2005, p. 17). A fonte principal será o conjunto de 36 entrevistas semiestruturadas, realizadas com 50 pessoas e arquivadas digitalmente no Centro de Documentação Histórica. A proposta do projeto “Memória e Identidade”, quando foi iniciado em 2009 e, posteriormente, descontinuado, era preservar a memória desse grupo específico de idosos que participou de alguma maneira de fatos históricos da cidade, mas não foi pensado em uma aplicação futura além de seu armazenamento. Avaliando os arquivos, apesar de não terem sido refletidos dentro de uma construção metodológica mais precisa, é perceptível que trabalharam com algumas das principais características da história oral, como depoimentos gravados trazendo uma versão de passado, biografias e narrativas construídas pelo entrevistador junto ao entrevistado. O que define e caracteriza a entrevista em história oral é a sistematização dos processos organizados pela lógica proposta em um projeto inicial. Projeto este que deve ser capaz de articular argumentos operacionais de ações desdobradas de planejamentos de pesquisas prévias sobre algum grupo social que tem algo a dizer. Podemos afirmar que não há história oral sem um processo que deve funcionar como um mapa de pesquisa (MEIHY; RIBEIRO, 2011, p. 17). Os autores evidenciam a importância de se pensar em um projeto que dê um norte para as entrevistas. O Plano aqui exposto tem o intuito de classificar esse material preservado e pensar em uma maneira de disponibilizá-lo para consulta pública, de modo que possa ser continuado com novas inserções e coleções de novas memórias. Nesse sentido, escreve Abreu (1998, p. 24): 43 Não basta, entretanto, resgatar o passado. A memória das cidades está sendo produzida a cada dia. Por isso, temos que estar atentos ao presente, e preocuparmo- nos sempre em registrar as memórias coletivas que ainda estão vivas