Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes MAURO DOMENECH MÚSICA DE CÂMARA NA FORMAÇÃO DO MÚSICO PROFISSIONAL: ASPECTOS PEDAGÓGICOS, ESCOLHA E ADAPTAÇÃO DE SEU REPERTÓRIO São Paulo 2018 MAURO DOMENECH MÚSICA DE CÂMARA NA FORMAÇÃO DO MÚSICO PROFISSIONAL: ASPECTOS PEDAGÓGICOS, ESCOLHA E ADAPTAÇÃO DE SEU REPERTÓRIO Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Música. Linha de Pesquisa: Epistemologia e práxis do processo criativo. Orientadora: Profa. Dra. Sonia Marta Rodrigues Raymundo São Paulo 2018 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) D668m Domenech, Mauro, Música de câmara na formação do músico profissional: aspectos pedagógicos, escolha e adaptação de seu repertório / Mauro Domenech. - São Paulo, 2018. 174 f. : il. color. Orientadora: Profª. Drª. Sonia Marta Rodrigues Raymundo. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Música de câmara. 2. Música - Instrução e estudo. 3. Performance musical. I. Raymundo, Sonia Marta Rodrigues. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 785 MAURO DOMENECH MÚSICA DE CÂMARA NA FORMAÇÃO DO MÚSICO PROFISSIONAL: ASPECTOS PEDAGÓGICOS, ESCOLHA E ADAPTAÇÃO DE SEU REPERTÓRIO Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Música. Linha de Pesquisa: Epistemologia e práxis do processo criativo. Orientadora: Profa. Dra. Sonia Marta Rodrigues Raymundo Presidente: __________________________________ Profª. Drª. Sonia Marta Rodrigues Raymundo UFG/IA-UNESP Orientadora – Presidente da Banca Membro: ___________________________________ Prof. Dr. Emerson Luiz de Biaggi IAR-UNICAMP Membro: ___________________________________ Profª. Drª. Gisela Gomes Pupo Nogueira IA-UNESP São Paulo, SP – 30 de julho de 2018. AGRADECIMENTOS Inicialmente à pessoa que mais colaborou na feitura deste trabalho que foi minha orientadora, profª Sonia Ray, pelas suas orientações metodológicas e técnicas, pela paciência e pelas palavras de incentivo. À profª Valerie Albright, que me incentivou a iniciar o mestrado e que colaborou sempre ao longo dele, especialmente no estágio docência. A todos os professores do curso de mestrado, pois todos colaboraram diretamente nas decisões e estudos que resultaram neste trabalho. Profª Sonia Albano, que me introduziu à visão da interdisciplinaridade aplicada ao ensino da música e que me ajudou na escolha do tema e metodologia desta dissertação. Profª Yara Caznok, que me possibilitou aprofundar o estudo sobre análise musical. Profª Sonia Ray, que na sua disciplina, me possibilitou a oportunidade de discutir e estudar de forma prática suas propostas de pedagogia da performance musical. Prof. Flávio Apro, que me introduziu na discussão da fenomenologia diretamente aplicada à música, especialmente à interpretação musical. Professores Nahim Marum e Ricardo Kubala, com quem tive a oportunidade de estudar e discutir o repertório de câmara na música instrumental dos séculos XX e XXI. E prof. Luiz Amato, que me possibilitou estudar e discutir as práticas interpretativas dos períodos clássico e romântico. Agradeço também aos colegas de todas essas turmas pelo incentivo e as discussões sobre os assuntos deste trabalho. Ao prof. Henrique Autran Dourado, meu eterno guru, que foi muito importante na minha entrada na EMMSP. E nesta instituição, cabe um agradecimento especial aos professores Paulo Porto Alegre, Daniel Murray, Rosana Civile, Fernando Cordella, Miriam Braga Heimann e a todos os outros colegas e colaboradores que agradeço na figura do seu diretor, o compositor e professor Antonio Ribeiro, figura humana singular a quem sou especialmente grato. Ainda na EMMSP, o maior agradecimento de todos aos meus alunos, batalhadores incansáveis na árdua missão de dar continuidade à nossa vida musical, o que eles fazem com grande respeito, sacrifício, dedicação e amor. À minha família querida, Eliane Ribeiro Malaquias, Cíntia Domenech, Fernanda Domenech, Rafael Freitas e Fernanda Marega. À minha mãe, dona Lourdes. E finalmente ao meu maior e eterno inspirador, diário, na música e na vida, meu saudoso pai Antonio Domenech. RESUMO Este trabalho discute a música de câmara na formação do músico profissional, seus aspectos pedagógicos, a escolha e adaptação de seu repertório. Apresenta a prática da música de câmara como parte fundamental na formação do músico (instrumentista/cantor), com suas peculiaridades e características na educação musical, especialmente em relação à interpretação musical, às práticas de conjunto e à preparação para a performance. A metodologia consistiu em um estudo de caso de uma instituição de ensino profissionalizante representativa nacionalmente, situada na cidade de São Paulo, a Escola Municipal de Música de São Paulo – EMMSP, onde o pesquisador é professor de música de câmara. Envolveu coleta de dados de fontes disponíveis online e publicações, com aplicação do método teórico- reflexivo, implicando em revisão de literatura e estudo da estrutura pedagógica relacionada à disciplina música de câmara. O trabalho está organizado em três partes. Na primeira, apresenta-se uma revisão de literatura, discutindo o estado atual da questão no meio acadêmico. Na segunda, parte discute-se a função pedagógica da música de câmara enquanto disciplina na escola de formação profissional e faz-se uma proposta de metodologia para esta disciplina. Na terceira, discute-se a escolha e adaptação do repertório didaticamente orientado à disciplina, a disponibilidade de partituras e aplicabilidade da transcrição na adequação deste repertório em função da realidade cotidiana do professor. Palavras-chave: música de câmara; preparação para a performance musical; escolha e adaptação de repertório; formação profissional do músico. ABSTRACT This work discusses chamber music in the development of the professional musician, its pedagogical aspects and the choice and adaptation of its repertoire. The study presents the practice of chamber music as a fundamental part in the musician’s training (instrumentalist/singer) as well as its peculiarities and characteristics in musical education, especially as relative to musicalinterpretation, group practice and the preparation for performance. The methodology consists of a case study of a representative vocational training institution, located in the city of São Paulo, the Municipal School of Music of São Paulo – EMMSP, where the author of this study is a chamber music teacher. The research involved the collection of data from online sources and printed material, with application of the theoretical-reflexive method involving literature review and study of the pedagogical structure as related to the chamber music class. The work is organized in three parts. The first presents a literature review an d a discussion of the state of the art in the academic environment. The second discusses the pedagogical function of chamber music as a discipline in the curriculum of the school and the proposed methodology in the class. The third discusses the choice and adaptation of the repertoire for use in the class, the availability of scores and the applicability of transcription for use in the daily routine of the teacher. Keywords: chamber music; preparation for musical performance; choice and adaptation of repertoire; development of the professional musician. LISTA DE EXEMPLOS Exemplo n. 1: Exercício de calibragem de temperamento, página 1........................................ 61 Exemplo n. 2: Exercício de calibragem de temperamento, página 2........................................ 62 Exemplo n. 3: Exemplo de melodia de difícil execução – Romanza........................................80 Exemplo n. 4: Redução original para piano (c.1-10) do acompanhamento – Romanza........... 82 Exemplo n. 5: Parte do piano na redução para sexteto (c.1-8) – Romanza.............................. 82 Exemplo n. 6: Parte da flauta na redução para sexteto (c.1-16) – Romanza............................ 83 Exemplo n. 7: Parte do contrabaixo na redução para sexteto (c.1-17) – Romanza..….............83 Exemplo n. 8: Parte do trompete na redução para sexteto (c.1-18) – Romanza....................... 84 Exemplo n. 9: Parte da trompa na redução para sexteto (c.1-35) – Romanza.......................... 84 Exemplo n. 10: Partitura da redução para sexteto (c. 1-23) – Romanza.................................. 86 Exemplos n. 11 e n.12: Manuscritos com erro no compasso 20 – Divertimento......................92 Exemplo n. 13: Indicação de Lá bemol no Oboé 1 – Divertimento..........................................93 Exemplo n. 14: Indicação de Lá natural no Oboé no arranjo de Perry – Divertimento............93 Exemplo n. 15: Perry com nota acrescentada no c. 58, segundo acorde – Divertimento......... 94 Exemplo n. 16: Nossa transcrição fiel ao Manuscrito no c. 58 – Divertimento....................... 94 Exemplo n. 17: Ligaduras diferentes Oboé 1 compassos 13, 14 e 17 – Divertimento............. 97 Exemplo n. 18: Ligaduras diferentes, compassos 13, 14 e 17 Oboé 2 – Divertimento............ 97 Exemplo n. 19: Ligaduras diferentes nos Oboés no compasso 47 – Divertimento.................. 98 Exemplo n. 20: Processo de transcrição do Divertimento, c. 1-30.…..................................... 99 Exemplo n. 21: Resultado da transcrição para sexteto, c. 1-30 – Divertimento..................... 100 Exemplo n. 22: Simulação de improvisação c.17 – Beale Street Blues.….............................104 Exemplo n. 23: Edição de 1919 – Beale Street Blues.…........................................................105 Exemplo n. 24: Figura rítmico melódica de Armstrong em Henderson – Beale Street Blues.. 106 Exemplo n. 25: Figura tutti em tercinas de Armstrong em Henderson – Beale Street Blues.... 106 LISTA DE FIGURAS Figura n. 1: Sumário do guia bibliográfico de John Baron.….................................................. 27 Figura n. 2: Sumário do guia bibliográfico de John Baron, continuação.…............................ 27 Figura n. 3: Notação expressiva de Walter Bianchi, em vermelho (LIMA, 2015, p. 34).…... 41 Figura n. 4: Notação expressiva de Walter Bianchi, em vermelho (LIMA, 2015, p. 62)......... 42 Figura n. 5: Gráfico de dinâmica expressiva (BADURA-SKODA, 2010, p. 292)................... 45 Figura n. 6: Proposta de metodologia para a disciplina música de câmara.............................. 50 Figura n. 7: Decreto de 2002 que regulamenta o funcionamento da EMMSP......................... 66 Figura n. 8: Missão da EMMSP expressa no site da instituição............................................... 66 Figura n. 9: Cabeçalho da primeira edição, redução para piano e tuba – Romanza.…............ 77 Figura n. 10: Indicação de instrumento solista opcional – Romanza.….................................. 80 Figura n. 11: Autoria indicada no frontispício do manuscrito – Divertimento.........................91 Figura n. 12: Serpentão (fonte: GROVE Music Online).…..................................................... 95 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ….................................................................................................................. 12 CAPÍTULO 1 REVISÃO DE LITERATURA ….................................................................... 15 1.1 O conceito de música de câmara ….......................................................................... 16 1.2 Comunicabilidade e formas de organização na prática em conjunto …................... 19 1.3 A performance em grupo de câmara ….................................................................... 22 1.4 Estudos sobre repertório de música de câmara......................................................... 23 1.5 Intersecção da prática música de câmara com o estudo do instrumento ….............. 25 CAPÍTULO 2 ASPECTOS PEDAGÓGICOS DA MÚSICA DE CÂMARA ........................ 28 2.1 Práticas Interpretativas na Aula de Música de Câmara …........................................ 31 2.1.1 Escolhas Interpretativas …........................................................................... 32 2.1.2 Ferramentas da Interpretação Musical ......................................................... 36 2.2 Questões de Conjunto na Música de Câmara …....................................................... 46 CAPÍTULO 3 ESCOLHA E ADAPTAÇÕES DO REPERTÓRIO APLICADO À DISCIPLINA MÚSICA DE CÂMARA …........................................................................ 64 3.1 A reelaboração de repertório .................................................................................... 67 3.2 Exemplos de transcrições ......................................................................................... 76 3.2.1 Romanza ….................................................................................................. 77 3.2.2 Divertimento …............................................................................................ 87 3.2.3 Beale Street Blues ..................................................................................... 102 CONSIDERAÇÕES FINAIS ….............................................................................................108 REFERÊNCIAS ….................................................................................................................110 ANEXO I SUGESTÃO DE LEITURA …............................................................................. 118 ANEXO II TABELA DE RECITAIS PESQUISADOS – REPERTÓRIO …....................... 121 ANEXO III PARTITURAS COMPLETAS …...................................................................... 128 12 INTRODUÇÃO A motivação desta pesquisa nasceu da intenção de investigar mais detalhadamente problemas cotidianos no exercício da minha função de professor de música de câmara. As questões relativas à disciplina música de câmara na escola de formação musical profissionalizante surgiram dentro desta intenção de forma natural e geraram outras, como: qual a função da música de câmara dentro da grade curricular, que problemas outros professores enfrentam na sua prática pedagógica e institucional diária e de que forma poder-se-ia caminhar em direção à solução de eventuais problemas com o repertório da disciplina. O estudo de critérios de escolha e de reelaboração de obras despontaram como um caminho metodológico a ser considerado. Assim, a metodologia incluiu uma breve revisão de literatura, um estudo sobre a estrutura da Escola Municipal de Música de São Paulo – EMMSP e um estudo de caso da minha atuação como professor de música de câmara nesta instituição de ensino, por meio de análise de programas de recitais e identificação e análise de repertório e processos de adaptação instrumental. O objetivo geral da pesquisa é discutir a função da disciplina música de câmara na formação do músico profissional da área clássica (ou de concerto) e, em função dela, estudar os aspectos pedagógicos da disciplina e os parâmetros técnicos, ético e didáticos envolvidos no processo de escolha e adaptação do repertório de câmara didaticamente orientado. O trabalho discute de que forma a música de câmara contribui na formação do músico profissional, pois diferentemente do que acontece na aula de instrumento, avalia-se de antemão que a disciplina Música de Câmara não tem, dentro das propostas pedagógicas das escolas de música, o objetivo direto de formar cameristas, mas é uma das ferramentas usadas no processo geral de formação do músico. Esse viés pedagógico da prática da música de câmara tem impacto direto na escolha e aplicação do repertório utilizado na disciplina. Diferentemente da aula de instrumento, onde o estudante (de violino, por exemplo) que tem pretensões de se tornar um músico profissional em uma orquestra sinfônica tem o repertório a ser estudado definido pelas exigências da audição de admissão e pelo repertório executado nas orquestras, na disciplina música de câmara, o repertório é didaticamente escolhido e visa à formação geral do instrumentista. No caso do exemplo do violinista de orquestra, as competências musicais que ele trabalha e desenvolve nas aulas de música de câmara serão diretamente aplicadas na sua atuação na orquestra e no repertório desta. Portanto, o repertório 13 trabalhado nas aulas de música de câmara tem sua aplicação pedagógica na formação do músico como um todo, não sendo objetivo da disciplina o estudo em si das obras abordadas em aula, as quais o aluno poderá talvez nunca vir a tocar profissionalmente em concertos nem em audições. Considerando-se essa perspectiva da prática pedagógica da música de câmara e a importância das questões relativas ao seu repertório, o trabalho está estruturado em três capítulos. O primeiro, revisa trabalhos relativos ao assunto música de câmara e aos conceitos envolvidos nela, na intenção de determinar o estado atual da questão e por meio dessa análise determinar o que cabe a esta pesquisa aprofundar e colocar em discussão. São referenciados especialmente os trabalho de John Baron (1998), Campanhã e Torchia (1978) e Christina Bashford (2001), relativos ao conceito de música de câmara, Elaine Goodman (2002), Davidson e King (2004), Clarke (2002) e Leonardo Kaminski (2017), relativos à comunicabilidade em grupo musical, além de Sonia Ray (2005) e Kaminski (2017), sobre performance e sua preparação. Sobre repertório de câmara, discutem-se os trabalhos de Sylvestre (2007), Mello (2015), Salgado (2015), Borusch (2008), Schmeling (2003), Berger (2001), Keller (2011), Radice (2012), Tovey (1989) e Cobbett (1929 e 1963). No segundo capítulo, discute-se a aplicação pedagógica da prática de música de câmara. Nele é tratado como a disciplina música de câmara contribui na formação do instrumentista, ou seja, as formas como esta aula contribui na construção do saber e da capacitação de performance do músico em formação. Parte-se da prerrogativa de que, dentro de uma instituição escolar de música, cada disciplina cumpre funções específicas e complementares. Que o desenvolvimento da parte técnica é trabalhada mais diretamente na aula de instrumento, a parte de percepção e leitura é trabalhada na chamada aula de teoria e as outras questões mais teóricas são tratadas na aula de história, harmonia, contraponto, etc. Dentro dessa perspectiva e considerando que a aula de música de câmara consiste da preparação para performance de uma obra musical de forma assistida por um professor, este segundo capítulo se dedica à discussão de assuntos mais fundamentalmente relacionados à disciplina música de câmara, quais sejam, as práticas interpretativas e a adequação destas práticas a cada estilo musical, as questões técnicas, perceptivas e cognitivas da atuação em conjunto de câmara e a performance em grupo de câmara. Neste segundo capítulo, as principais referências são Flávio Apro (2004), Sonia Albano de Lima (2015), Clive Brown (1999) e a dupla Eva e Paul Badura-Skoda (2010) em trabalhos que tratam de interpretação e 14 das práticas interpretativas e David Waterman (2003) e Sergio Nirenberg (1995) sobre as questões práticas de conjunto. No terceiro capítulo, discutem-se a escolha e a aplicabilidade prática do repertório camerístico didaticamente orientado. É discutida uma metodologia de escolha e aplicação pedagógica do repertório, considerando-se a realidade da instituição de ensino estudada, procurando-se, no entanto, indicar opções acessíveis ao professor brasileiro em geral. O repertório é discutido por meio da experiência do pesquisador como professor da EMMSP e das discussões traçadas nos dois capítulos anteriores. Este capítulo discute, ainda, como objetivo específico, a necessidade, a oportunidade, os critérios e os processos de adaptação instrumental de obras musicais que se destinam a tal aplicação pedagógica. Todos os exemplos deste capítulo foram trabalhados pelo pesquisador na EMMSP com turmas de música de câmara e foram escolhidos por servirem de exemplo de vários desafios de ordem prática que o professor enfrenta e de discussão das soluções encontradas no estudo de caso. 15 CAPÍTULO I REVISÃO DE LITERATURA A música de câmara proporcionou um meio de compartilhar – reunindo a parte de cada um com o todo e, ao mesmo tempo, mantendo o que precisa ser mantido da identidade individual – e essa era uma parte essencial da democratização da Europa. (BARON, 1998, p. 441) 1 1� Tradução nossa: “Chamber music has provided a means for sharing – bleeding one’s part with the whole and at the same time retaining how worthwhile identity – and that was an essential part of the democratization of Europe”. 16 Este capítulo apresenta inicialmente uma revisão de literatura sobre música de câmara, incluindo conceitos, repertório e suas aplicações, de forma a elucidar o atual estado da questão. São discutidos estudos sobre a prática da música de câmara, procurando determinar as formas como essa prática pode contribuir para a formação profissional do músico clássico. Nesta revisão de literatura foram consultados livros, teses, dissertações e artigos que tratam diretamente de música de câmara ou de algum de seus aspectos. 1.1 O CONCEITO DE MÚSICA DE CÂMARA O termo música de câmara (em alemão Kammermusik, em francês la musique de la chambre, em italiano musica da camera ou musica per camera, e em latim moderno musica cameralis) foi usado pela primeira vez em meados do século XVI. “Nicola Vicentino, o primeiro a mencionar o termo (em sua L’Antica Musica [Roma: 1555]), afirmou que a música de câmara (o madrigal italiano e a chanson francesa) tinha sutilezas de expressão musical evitadas na música sacra” (BARON, 1998, p. 1).2 Mas como é apresentado por Campanhã e Torchia (1978, p. 1), tanto a prática da música em pequenas formações quanto a prática da música em casa, não ligada a rituais na igreja nem à dramaturgia, que são alguns dos parâmetros que vão inicialmente levar a se denominar como música de câmara um evento musical, estiveram anteriormente em uso em outras ocasiões ao que esses autores denominam ‘antecedentes’ dizendo, por exemplo, que na antiguidade, I a.C., a música de câmara em sua forma primitiva já fazia parte das reuniões aristocráticas do império romano, citando que “a esposa de Plínio cantava versos compostos por seu esposo, fazendo-se acompanhar da lira” e que “a música vocal e instrumental fazia parte da educação da juventude”. (CAMPANHÃ e TORCHIA, 1978, p. 1) Christina Bashford (2001, p. 434), quando define o uso corrente da ideia do que seja música de câmara, estabelece como parâmetros que ela é uma música escrita para um pequeno grupo instrumental, que cada parte é executada por único músico e que ela é destinada à performance em ambiente privado com ou sem público, ou em público em pequenas salas de concerto. Acrescenta que o termo implica essencialmente em intimidade, em uma música composta e tocada como um fim em si mesma. E destaca como elemento mais importante da música de câmara o prazer social e musical dos músicos em tocar juntos. 2� Tradução nossa “Nicola Vicentino, the first to mention the term (in his L’Antica Musica [Rome: 1555]), stated that chamber music (the Italian madrigal and French chanson) had subtleties of musical expression avoided in church music. [...]” 17 John Baron (1998, p. 6)3 – salientando que seu estudo é sobre a música que foi composta como música de câmara e também sobre a música que numa situação de performance diferente da original é tocada como música de câmara – circunscreve a discussão à música clássica ocidental Europeia e seus afluentes na América do Norte, excetuando assim a música étnica, e estabelece o que ele chama de os cinco ingredientes básicos que, quando reunidos, constituem a música de câmara: 1) Música de câmara é música instrumental; 2) Música de câmara é música de conjunto, ou seja, música para dois ou mais intérpretes; 3) Música de câmara é solista, ou seja, dois músicos não tocam a mesma música (partes) ao mesmo tempo; 4) O propósito da música é estabelecer um conjunto sério, não a exibição virtuosística de um membro do conjunto (embora este último, muitas vezes, se insira na música de câmara); e 5) A principal característica de qualquer música de câmara é a sua intimidade, explícita ou implícita. Pode-se extrair do cruzamento dessas análises os elementos norteadores da ideia de música de câmara, que servirá ao presente trabalho, porém limitar a ideia desta à música em grupo e à música instrumental são dois pontos controversos que precisam ser melhor discutidos. John Baron é enfático em relação à ideia de a música de câmara ser aquela executada por dois ou mais músicos. Um elemento importante na música de câmara é o compartilhamento da experiência entre dois ou mais músicos. Cada músico preserva sua identidade enquanto contribui para o todo. A música para um intérprete não tem esse elemento, e mesmo que todos os outros ingredientes da música de câmara estejam presentes, ela não pode ser chamada de música de câmara. Assim, uma partita para violino solo de Bach ou uma sonata para piano de Mozart não é música de câmara. (BARON, 1998, p. 8) 4 O mesmo autor afirmando que a música de câmara é instrumental detalha, no entanto, seu ponto de vista de que “música de câmara é música instrumental que envolve vozes apenas na medida em que elas são tratadas como instrumentos”5 (BARON, 1998, p. 8). Que nos séculos XVII e XVIII existem muitas composições para vozes, acompanhadas ou não por 3 There are five basic ingredients that, taken together, constitute chamber music. 1) Chamber music is instrumental music. 2) chamber music is ensemble music, i.e., music for two or more performances. 3) chamber music is solistic, i.e., no two players play the same music at the same time. 4) The purpose of music is to provide serious ensemble, not the virtuosic display of one member of the ensemble (though the latter often intrudes in chamber music). 5) The core feature of any chamber music is its overt or implied intimacy. 4 Tradução nossa: An important element in chamber music is the sharing of the experience among two or more players. Each player preserves his/her identity while contributing to the whole. Music for one performer alone lacks this element, and even if all the other ingredients are there for chamber music, it cannot be called chamber music. Thus a solo partita for violin alone by Bach or a Mozart piano sonata is not chamber music. 5 Tradução nossa: Chamber music is instrumental music that involves voices only in so far as they are treated as instruments. 18 instrumentos (as cantatas de câmara) e que nos XIX e XX os Lieder e outras canções são incluídas em música de câmara nos textos de muitos críticos.6 (BARON, 1998, p. 6) Christina Bashford, apesar de também apontar estes dois elementos – grupal e instrumental – como característicos do uso corrente do termo música de câmara, amplia esse limite de compreensão incluindo a música solo e a música que inclui vozes desde que esta esteja dentro das outras características que definem a música de câmara. Limitar o termo ao repertório instrumental de conjuntos, por exemplo, é excluir trabalhos híbridos como Der Hirt auf dem Felsen, de Schubert, e On Wenlock Edge, de Vaughan Williams, e ignorar tais gêneros vocais como os madrigais do século XVI e os lieder do século XIX que compartilham muitas das características da música de câmara. Da mesma forma, embora a música de câmara seja frequentemente definida como envolvendo dois ou mais músicos, muito do repertório solo, como a música renascentista para alaúde, as sonatas e partitas para violino e as suites para violoncelo de Bach e várias sonatas para piano de Beethoven preenchem muitas das funções e condições da música de câmara. (BASHFORD, 2001, p. 434) 7 No ambiente escolar, especialmente se considerado o âmbito da disciplina música de câmara, a característica grupal ganha relevância quando se discute sobre esta, sendo as questões de conjunto uma das mais destacadas nos estudos que tratam do assunto. Enquanto o repertório solo é mais estudado dentro da aula de cada instrumento. A música de câmara ser uma arte com um fim em si mesma, per se, sendo ela mesma sua raison d'être, e de natureza íntima, parece ponto pacífico. Outra ressalva importante, no entanto, é que modernamente esta música, sem perder o caráter intimista da composição, tem sua performance, ocasionalmente, também, para grandes públicos, fazendo uso inclusive de meios eletrônicos de amplificação de som. Dessa forma, considerar sua destinação unicamente aos espaços pequenos é uma ideia ultrapassada, passando esta a ser uma opção de performance e não mais a regra. Os autores citados neste capítulo têm como escopo de estudo a música clássica 6� No século XX esta abordagem da voz se torna ainda mais presente como ressalta Mestrinho (2007, p. 23) “Várias obras do século XX apresentam a voz em formações de câmara atuando independente de um apoio harmônico e totalmente inserida no contexto do grupo. Pode-se citar como exemplo Ten Blake Songs (1957) de R. Vaughan Williams (para voz e oboé), Le Marteau sans Maitre (1953/55) de Pierre Boulez (para voz, flauta, viola, violão, vibrafone, xilorimba e percussões) e Madrigals (1965/69) de George Crumb (para voz em formações variadas com dois ou mais instrumentos).” 7 Tradução nossa: To limit the term to instrumental ensemble repertory, for example, is to exclude such hybrid works as Schubert's Der Hirt auf dem Felsen and Vaughan Williams's On Wenlock Edge and to bypass such vocal genres as 16th-century madrigals and 19th-century lieder which share many of the characteristics of chamber music. Similarly, although chamber music is often defined as involving two or more players, much solo repertory such as Renaissance lute music, Bach's violin sonatas and partitas and cello suites and several of Beethoven's piano sonatas fulfils many of the functions and conditions of chamber music. 19 ocidental e será considerado neste trabalho quando se fala em repertório, usando esta mesma diretriz, que a prática sistemática envolvendo composição e performance de um repertório de música de câmara se inicia em meados do séc. XVI8 e se firma do séc. XVII em diante. Sendo este também o repertório que interessa nesta pesquisa, por ser o repertório que está presente hegemonicamente nas salas de concerto, sendo em razão disso, também, o utilizado preponderantemente na formação profissional dos alunos de música. Para finalizar este breve estudo do conceito música de câmara é de especial importância para esta pesquisa – por ela tratar das aplicações pedagógicas da música de câmara e das eventuais necessidades de adaptações do seu repertório – como John Baron trata em seu estudo o conceito de música de câmara, englobando tanto o repertório originalmente pensado como música de câmara quanto aquele instado a essa categoria pelas situações de performance posteriores. O desenvolvimento da música de câmara de meados do século XVI até o presente é contínuo e em curso. Ao longo deste período existe um tipo de música que compartilha elementos comuns que incluem além das notas visíveis no manuscrito ou páginas impressas situações comuns de performance. A performance íntima desta música é uma das suas principais características (alguns diriam a principal). Algumas músicas não foram escritas como música de câmara, isto é, foram escritas para a igreja ou a performance ao ar livre, o que não é íntimo, mas ao longo dos anos ela tornou-se música de câmara porque numa performance mais moderna é íntima. Ela pôde tornar-se íntima e música de câmara mais tarde porque a princípio compartilha outras características com a música originalmente concebida como música de câmara: é instrumental, é de conjunto, é solista para cada uma das partes, e é música de arte séria. (BARON, 1998, p. 439-40) 9 1.2 COMUNICABILIDADE E FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA PRÁTICA EM CONJUNTO Questões de comunicabilidade e organização na prática em conjuntos pequenos são 8� Tradução nossa: The term was first used in the middle 16th century to denote soft vocal ensemble music performed in a noble person's private palace, as distinct from full or loud vocal ensemble music performed in church. (BARON, 1998, p. 1) 9� Tradução nossa: The development of chamber music from the mid-16th century to the president is continuous and on-going. Throughout this period there is a body of music which shares common elements that include, besides the visible notes on the manuscript or printed pages, common performance situations. The intimate performance of this music is one of its primary (some would say the primary) characteristics. Some music was not written as chamber music, that is, was written for church or outdoor performance which is anything but intimate, but over the years it has become chamber music because more modern performance is intimate. It can become intimate and chamber music later because from the start it shares other characteristics with music originally intended as chamber music: it is instrumental, it is ensemble, it is solo for each part and it is serious art music. (BARON, 1998, p. 439-40) 20 tratadas em vários trabalhos, como o de Elaine Goodman (GOODMAN, 2002, p. 152-165), que trata da interação musical e social existente entre os membros de um grupo de câmara na seguinte classificação: a coordenação, a comunicação e o papel de fatores individuais e sociais. Tratando da necessidade de um conjunto musical tocar junto, estabelecendo uma pulsação interna que seja comum aos integrantes do grupo, a autora estabelece dois tipos de ação na coordenação do tempo: as habilidades de antecipação e reação às ações dos outros membros do grupo. Identifica, ainda, dois procedimentos que os indivíduos de um grupo usam para se manter em tempo com os outros integrantes do grupo: o ‘caçar’ que acontece quando o músico segue o outro como um caçador que mira sua presa e a ‘interação’ onde há um ajuste mútuo, ou cooperação, havendo troca constante de papéis na liderança do grupo, trocas estas determinadas pelo texto musical. O músico em um grupo musical desempenha um papel semelhante ao do ator em um drama. O ator desenvolve seu personagem por conta própria, mas quando o personagem entra em contato com os outros na peça, ele muda, não apenas pelo ritmo e nas deixas das falas. Assim como os atores moldam e ajustam seus personagens um ao outro desempenhando seu papel e assistindo aos personagens dos outros atores, o mesmo acontece com os músicos em performance de grupo. No entanto, os atores nunca perdem de vista seu próprio personagem, de modo que o drama é ao mesmo tempo definido por cada ator, assim como a combinação dos atores. O mesmo é verdadeiro na música de conjunto, pois cada músico imprime no conjunto sua própria identidade, mas também tenta se misturar com o grupo. (GOODMAN, 2002, p. 159) 10 Davidson e King (2004) apontam que os integrantes de um grupo de câmara precisam ter habilidade de decifrar o que acontece, individualmente e no conjunto, durante a execução musical para que haja fluência no discurso. A utilização dos canais de comunicação visual e aural contribui para que essa fluência musical ocorra. Elaine Goodman salienta que, na prática musical em grupo, a concentração individual do músico é dividida entre o monitoramento do som produzido por si e a atenção ao som produzido pelo restante do grupo. Como resultado disso, ajustes finos são feitos conscientemente e inconscientemente para o equilíbrio sonoro. A autora conclui que “a comunicação aural (ser capaz de ouvir um ao outro) é mais importante do que a comunicação visual (ser capaz de ver um ao outro). 10 Tradução nossa: The performer in a music ensemble plays a role similar to that of the actor in a drama. An actor develops a sense of character on his or her own, but when the character comes into contact with others in the play, it changes, not least through the pacing and delivery of lines. Just as actors mould and adjust their characters to one another by playing up to and playing off each other’s parts, so do musicians in ensemble performance. However, actors never lose sight of their own character, so the drama is at once defined by each actor as well as the combination of actors. The same is true in ensemble music, for each musician stamps the ensemble with his or her own identity, but also tries to blend in with the group. 21 Pelo simples fato de que nós ouvimos a música – nós não a vemos.” (GOODMAN, 2002, p. 156)11. Autores como Clarke (2002, p. 66) destacam, também, a grande importância da comunicação visual na performance em grupo, afirmando “O movimento e o corpo humano são particularmente significativos para esse conjunto complexo de relações por diversas razões, sendo a mais óbvia o fato de que a música é produzida pelos movimentos do corpo e do instrumento”12. Corroboram este pensamento Davidson e King (2004) e a própria Elaine Goodman (2002), destacando a importância da comunicação visual como uma forma também importante de interação. Eles consideram que, estabelecidas as diretrizes musicais durante os ensaios, é possível durante a performance que cada membro do grupo transmita e acompanhe intenções interpretativas por meio de gestos, olhares e movimentação corporal. Essa questão já objeto de alguns estudos experimentais, como o citado por Kaminski (2017). Para explicar a importância da comunicação visual, em Appleton et al. (1997) analisa-se diferentes situações de performances simuladas com um duo de piano. Os integrantes executaram uma obra para piano a quatro mãos com e sem visualização do coperformer. Os sujeitos da pesquisa eram dois pianistas, ambos pós-graduados. Entre os resultados alcançados na pesquisa de Appleton et al. (1997), constatou-se que os músicos durante a execução da obra no mesmo piano apresentaram mais variações de andamento e melhor sincronia. Ao estar sem comunicação visual e em pianos diferentes, os músicos tiveram menos flexibilidade de andamento e constante dessincronização. (KAMINSKI, 2017, p. 30) Evidencia-se, portanto, a importância que a comunicabilidade tem dentro de um grupo e que ela vai além da comunicação aural, que é obviamente a preponderante. A comunicação se dá pela música que se produz, do som, mas também de uma variada gama de formas, que cada grupo irá estabelecer, de forma mais ou menos consciente. Na música de câmara, pelo fato de cada integrante do grupo ter parte solista, por serem poucos instrumentistas e fisicamente próximos, se configura um ambiente pedagógico excepcional para o estudante desenvolver essas percepções do som produzido por si e seus companheiros de grupo e praticar essas interações de conjunto e comunicabilidade, preparando-o não só para a própria prática de câmara mas também para a atuação em uma orquestra, onde essa percepção e capacidade de interação com o grupo serão definitivas no desempenho de suas funções. 11 Traduc ̧ão nossa: Aural communication (being able to hear each other) is more importante than visual communication (being able to see each other). The simplest way to relate to this point is that we hear music – we don’t see it. 12 Traduc ̧ão nossa: “Movement and the human body are particularly significant in this complex set of relationships for many reasons – the most obvious being that music is produced by movements of the body and instrument” 22 1.3 A PERFORMANCE EM GRUPO DE CÂMARA A performance tem sido fruto de muitos estudos e é um tema que vem sendo discutido no Brasil com maior frequência nos últimos anos. Já conta também com ampla bibliografia internacional e, como indica Kaminski (2017), a performance em grupo, apesar de suas particularidades, parte da performance individual. “Por haver divisão de tarefas entre os músicos, a performance musical em conjunto possui uma diferença significativa em relação a uma apresentação solo. Para cada performance, precisa-se realizar um preparo singular, tornando o estudo individual o passo inicial para o estudo coletivo.” (2017, p. 27). Sonia Ray (2005), no estudo denominado Elementos da Performance Musical – EPM, que vem sendo utilizado por vários pesquisadores brasileiros, analisa a performance musical, classificando a questão em cinco tópicos: 1) Conhecimento do conteúdo; 2) Aspectos técnicos; 3) Aspectos anato-fisiológicos; 4) Aspectos psicológicos; 5) Aspectos neurológicos e 6) Musicalidade e expressividade. E ainda, segundo o mesmo estudo, a performance pode ser dividida em três fases: 1) Preparação: que compreende técnicas de ensaio e de estudo, preparo físico, preparo psicológico, conhecimento do discurso musical, opções conscientes do processo de cognição e produção da performance; 2) Realização: que compreende preparo físico, domínio do instrumento, preparo psicológico e produção da performance; e 3) Avaliação: que compreende domínio do instrumento, domínio do corpo, opções feitas no processo de cognição, percurso escolhido na preparação e interferências detectadas (origem e destino). Essas etapas ocorrem ciclicamente, em um processo de interferência mútua, como a autora frisa. “Cabe ressaltar que, apesar de estarem sendo aqui abordados individualmente, não se pode perder a noção de que os EPM ocorrem simultaneamente durante a performance musical [...]”. (RAY, 2005, p. 42) Todos esses elementos estão presentes quando a performance se faz em grupo e, além dos aspectos de comunicabilidade já tratados, alguns estudos como o de Kaminski (2017) frisam questões particulares da performance e sua preparação feitas em grupo. Quanto aos grupos de música de câmara, ainda há uma pluralidade de situações na qual os membros dos conjuntos estão expostos, tais como o objetivo da performance, experiências dos integrantes e família dos instrumentos. Isso faz com que exista uma grande variedade de formas de preparo, situações de ensaios e preparo prévio, se for necessário. Por razões históricas, alguns instrumentos possuem maior relação com o repertório de música de câmara, fazendo com que as experiências prévias forneçam diferentes dificuldades no processo de preparação para a performance coletiva. (KAMINSKI, 2017, p. 28) 23 1.4 ESTUDOS SOBRE REPERTÓRIO DE MÚSICA DE CÂMARA O repertório de música de câmara em geral é tratado, e já há muito tempo, em diversas publicações, especialmente estrangeiras13. Estes guias de escuta, guias históricos, etc., são bastante úteis ao professor, no entanto, um repertório de câmara pensado especialmente para o processo de formação do músico (exceto para iniciantes) parece não ter divulgação. O repertório de câmara é tratado em estudos no Brasil, especialmente por instrumentistas. O assunto é tratado quase sempre de forma dirigida a uma formação instrumental e a um estilo específico.14 Sylvestre (2007) discute o repertório escrito para voz em formações camerísticas sem piano dentro da música de câmara brasileira contemporânea, abordando exclusivamente o repertório de câmara contemporânea em que a voz tem que atuar com outros instrumentos. Apresenta um levantamento das obras deste âmbito para formações instrumentais acústicas, de 2 até 12 instrumentos incluindo a voz, e discute a necessidade de um preparo específico do intérprete cantor para atuar com outros instrumentos, conhecer outros timbres e aprender a lidar com eles, adquirindo maior independência e segurança de afinação. E sugere procedimentos para a preparação do intérprete desse repertório a partir dos já citados EPM - Elementos da Performance Musical (Ray, 2005). Mello (2015) faz um estudo sobre a preparação corporal para performance de música de câmara com violão no repertório com técnicas estendidas. Discute a preparação para performance de câmara, fazendo considerações sobre o repertório de câmara para violão, sobre técnicas estendidas e estuda o uso do corpo na performance. Analisa técnicas de ensaio relacionando a importância delas, com enfoque na preparação corporal e propõe um roteiro para elaboração da preparação para performance de três obras do repertório de câmara com violão que contém técnicas estendidas. Salgado (2015) trata de questões similares, discutindo estratégias para a preparação da performance de música de câmara para quarteto de violões, com o objetivo de determinar como quartetos de violões brasileiros profissionais planejam e realizam os ensaios na preparação de suas performances. E sugere estratégias direcionadas para as especificidades dessa formação como formas de otimização da referida preparação. Em um sentido mais didático, encontram-se pesquisas como a de Borusch (2008), que 13 Exemplos: (BERGER, 2001), (KELLER, 2011), (RADICE, 2012), (TOVEY, 1989), (COBBETT, 1929 e 1963) 14 Outros exemplos, além dos citados aqui: (JUSTI, 1996), (GIFONI, 2007), (POTTHOFF, 1996), (PEREIRA, 2005) e (FREITAS, 1997). 24 trata da prática de transcrever/arranjar peças para Música de Câmara para serem tocadas em conjunto por jovens estudantes dos Cursos de Formação Musical I, Formação Musical II e Avançado em Música na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP). Esse uso de transcrições vem no sentido de proporcionar a vivência musical em conjuntos de câmara a jovens estudantes de nível intermediário15 de instrumento. O estudo indica a dificuldade de encontrar partituras adequadas aos conjuntos formados, discutindo o uso de transcrições e arranjos como solução para esse problema. Foi parte desse estudo uma pesquisa do repertório de música de câmara nas universidades federais e estaduais que possuem no seu currículo o curso de Graduação em Música com ênfase em performance. Também no mesmo sentido, mas contendo uma análise e conceitualização das formas de reelaboração musical (arranjo, transcrição, redução, etc.) encontra-se a tese de doutorado de Flávia Pereira. Este trabalho será utilizado como referência importante quando o assunto transcrição e arranjo forem tratados no capítulo 3. Outra pesquisa sobre repertório de câmara com direcionamento didático é o intitulado Escolha e organizacao de repertorio musical para grupos corais e instrumentais (SCHMELING, 2003), escrito por Cecília Torres, Agnes Schmeling, Lúcia Teixeira e Jusamara Souza e que foi baseado em três relatos de experiências das autoras em diferentes contextos: a orquestra jovem da Escola de Música da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA), os corais infanto-juvenis da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e da Escola Técnica da UFRGS e aulas particulares de flauta doce ministradas a um grupo de adultos. As autoras, fundamentadas em Gauthier e Tourinho, discutem questões importantes acerca dos critérios de escolha do repertório para grupos heterogêneos. Discutem os elementos que podem influenciar a seleção e o estudo do material a ser trabalhado e do espaço necessário para as histórias musicais pessoais e interesses específicos dos membros do grupo. Todos esses estudos fornecem de alguma forma material para reflexão e discussão relativa ao assunto tratado nesta dissertação. Eles também sugerem bibliografia relativa ao assunto que pode ser importante na pesquisa. Mas não tratam, diretamente, nem da disciplina música de câmara no nível pré-profissional – que é discutida nesta dissertação, considerando o caso estudado – nem estudam o repertório geral utilizado em um curso completo desta disciplina. 15 É considerado, na pesquisa citada, como aluno de nível médio, aquele que é capaz de executar uma pequena polifonia, como as existentes no Pequeno Livro de Anna Magdalena Bach. 25 1.5 INTERSECÇÃO DA PRÁTICA MÚSICA DE CÂMARA COM O ESTUDO DO INSTRUMENTO Situações diversas relacionadas à técnica instrumental dos indivíduos do grupo surgem na prática da música de câmara de forma peculiar. Nela se unem diferentes instrumentos, muitas vezes de diferentes famílias, propiciando uma oportunidade particular de se tratar a técnica do instrumento. Ray e Carvalho (2006) discutem as possibilidades de aplicações pedagógicas da prática da música de câmara no ensino individual do instrumento musical. Determinando o âmbito do aluno de nível intermediário, analisam dois trechos extraídos do Trio para Flauta, Violoncelo e Piano de Bohuslav Martinu e discutem sua aplicação no ensino do piano. O primeiro exemplo trata do Staccato associado ao Pizzicato, onde discutem aspectos de articulação, analisando um trecho musical em que o pianista (mão esquerda) tenta imitar um pizzicato para chegar mais perto do som produzido pelo violoncelo, som este que não precisa ser tão curto, pois do ponto de vista musical, neste caso, se quer um som mais aveludado do que pontiagudo. O segundo exemplo trata do legato no teclado associado ao legato nas cordas com arco, quando discutem um trecho em que o pianista procura imitar o legato produzido pela flauta e o violoncelo, instrumentos nos quais é mais fácil produzir essa articulação. Para tanto, o pianista deve manter os dedos em contato com as teclas e a mão perfeitamente imóvel na posição correta. Ambos exemplos são referenciados em Richerme (1996). Com outro enfoque, Areias (2016) reflete sobre as características do Concertino para violino e orquestra de câmara de Guerra Peixe, que justificaria sua inserção no currículo de nossas escolas de formação de violinistas, contribuindo como material pedagógico importante na abordagem de questões técnico-interpretativas, identificando neste concerto um grande diferencial na linguagem musical e na utilização de material simbólico da cultura brasileira em referência à rabeca e a seus recursos idiomáticos, o que influencia estilística e tecnicamente a performance do violinista solista e todo o grupo que o acompanha. 26 A revisão de literatura sobre música de câmara e seu repertório identificou um vasto material de estudo em edições comerciais e também uma crescente de pesquisas no âmbito acadêmico sobre o assunto. O conceito, depois de estabelecido o âmbito do repertório pertinente a esta dissertação, ou seja, a música clássica ocidental, apesar de não estar unanimemente estabelecido, pôde ser estudado, concluindo em um quadro de elementos que permite estabelecer parâmetros e conceitos que contemplam as pretensões deste trabalho. É importante salientar que o repertório estudado é não só o que foi composto como música de câmara, mas também o que é tocado como tal em situações específicas de performance posteriores. A pesquisa sobre o repertório de câmara, também bastante estudado no meio editorial e acadêmico, mostra, no entanto, haver um espaço grande para pesquisa de um repertório didaticamente escolhido e orientado que contemple os vários períodos históricos e formações instrumentais e que se configure como básico para um curso de música de câmara, especialmente considerando o nível que esta dissertação está estudando. Ainda sobre a literatura disponível sobre música de câmara, um trabalho que precisa ser destacado de forma especial é o guia bibliográfico escrito por John Baron, Chamber Music: a research and information guide. (BARON, 2010). Um trabalho monumental que reúne 2.804 trabalhos sobre o assunto. Tratando do âmbito da música clássica ocidental, o livro lista e faz uma breve resenha de livros, artigos em jornais e revistas, dissertações e teses, ensaios ou capítulos de Festschriften 16, tratados e biografias. A maioria das fontes de pesquisa citadas é escrita em inglês e alemão mas também cita trabalhos em outras línguas como francês, italiano, etc., inclusive português. A estrutura do livro divide os assuntos em: Referências Gerais, História da Música de Câmara, Estudos Analíticos, Práticas da Performance de Música de Câmara, Intérpretes de Música de Câmara e Tópicos Variados. Como define o próprio autor na introdução: “Esta é uma ferramenta de referência para qualquer pessoa interessada em música de câmara. Ela não é a história ou uma enciclopédia mas um guia de onde encontrar respostas para questões sobre música de câmara”. (BARON, 2010, p.xiii)17 16 Wikipedia, Festschriften. Pode ser acessado em . Acessado em 3/2/2017. 17 Tradução nossa: “This is a reference tool for anyone interested in chamber music. It is not a history or an encyclopedia but a guide to where to find answers to questions about chamber music”. https://pt.wikipedia.org/wiki/Festschrift 27 Figura n. 1 Sumário do guia bibliográfico de John Baron. Figura n. 2 Sumário do guia bibliográfico de John Baron, continuação. 28 CAPÍTULO II ASPECTOS PEDAGÓGICOS DA MÚSICA DE CÂMARA “Um dos problemas mais graves no ensino da performance musical é a tradição dos professores de instrumento, canto e regência de não documentarem suas reflexões sobre a experiência de fazer e ensinar música. No mundo da música de concerto, grandes instrumentistas, cantores e maestros permanecem apenas como uma memória inacessível às gerações posteriores que não tiveram a oportunidade de ouvi-los enquanto eram ativos como intérpretes e professores.” (BORÉM, 2000, p. 143) 29 Este capítulo trata da música de câmara diretamente como disciplina escolar18, discutindo sua aplicação pedagógica e definindo seu repertório, considerando a atividade do pesquisador como professor desta disciplina na EMMSP. A abordagem do repertório de câmara no ambiente escolar, especialmente o de formação profissionalizante de nível pré-vestibular, que é o âmbito específico deste estudo de caso, se dá em ocasiões variadas que dependem das diretrizes pedagógicas e da metodologia da instituição escolar onde ela acontece. A EMMSP, o caso estudado aqui, tem sua missão dirigida à formação profissional do instrumentista de música clássica, a música de concerto, o que define o repertório que ela se propõe a trabalhar. Nela, o aluno tem a oportunidade de trabalhar com o repertório de câmara na própria aula de instrumento com o estudo do repertório solista acompanhado, na aula denominada correpetição19, na aula de música de câmara e, se for do interesse dele, o aluno pode pleitear uma vaga nos grupos de música antiga e de música contemporânea. O conceito de música clássica de câmara, com seu repertório específico, passou por um longo processo de transformação. É importante observar quando se estuda esse repertório que houve situações variadas na práxis que levou os compositores a escreverem para essa formação, de um pequeno grupo, em que cada músico tem parte solista. É preciso considerar o ambiente e as ocasiões às quais essas composições se destinaram na sua origem e como essa dinâmica influenciou na escolha dos instrumentos musicais utilizados na composição. O repertório de música de câmara compreende desde a chamada bassa musica, praticada ainda nas cortes medievais e tocada por instrumentos como harpa, cordas dedilhadas e de arco, o órgão portátil e madeiras, destinada a banquetes e ocasiões sociais mais íntimas, em oposição à alta musica, tocada por instrumentos como trompetes, trombones e percussão (tímpanos), usada em eventos cerimoniais ou festivos, até trabalhos do século XX como o 18 Obviamente muitos dos conceitos aqui discutidos se aplicam também fora do ambiente escolar, na prática da música de câmara enquanto atividade puramente artística, e não só na área pedagógica. 19 Na EMMSP há alguns professores pianistas que trabalham obras de interesse dos alunos, como sonatas, concertos, árias, canções, etc. “O pianista colaborador, também conhecido como correpetidor, acompanhador e coach, é um profissional que vem atuando em diversos contextos, dentre eles, as instituições de ensino musical. […] A atuação do pianista colaborador consiste em realizar atividades musicais com outros músicos – instrumentistas e cantores – e, dependendo da necessidade, em grupos maiores como corais, orquestras, big bands, companhias de ópera e escolas de ballet (MUNIZ, 2010; FOLEY, 2006; PORTO, 2004). Segundo Mundim (2009), essas atividades musicais visam à preparação do músico solista para uma performance musical (concerto, prova pública, prova de concurso, festival de música), ou apenas ao acompanhamento em aulas de instrumento ou canto. O repertório comumente solicitado ao pianista colaborador são duos (sonatas originais ou concertos para instrumento cuja redução é destinada ao piano; árias de ópera e canções), música coral e orquestral. Por vezes, há demandas para a música de câmara – desde trios a formações de octetos.” (MONTENEGRO, 2013) 30 quarteto op. 22 de Webern para tenor, saxofone, piano, clarinete e violino, a História do Soldado de Stravinsky para septeto de violino, contrabaixo, clarinete, fagote, trompete, trombone e percussão, ou tantos outros exemplos do pluralismo que se instalaria modernamente. Esse repertório se constitui por composições e formações como os cosort instrumentais, ou mistos, do século XVII tocando canzonas, ricercares, fantasias e suites, passando pelas sonatas, os trio sonata, o concerto grosso e as diversas formações da música barroca, da música galante e da música clássica. Passando pelo século XIX, já com a música instrumental definida como uma arte per se, escrita para as mais diversas formações, e a consolidação definitiva de grupos que seriam utilizados largamente por muitos compositores, até hoje, como o quarteto de cordas e o piano trio, e o surgimento de outros como o quinteto de sopro e o quinteto de metais. A formação do músico clássico com pretensões profissionais, portanto, precisa incluir o conhecimento das particularidades estilísticas deste vasto repertório, especialmente no que diz respeito às características práticas da sua performance. Todas as disciplinas dentro de uma escola que determina para si a missão de formar um músico com esse perfil contribuem para este propósito, como: as matérias teóricas de percepção, análise, história da música, harmonia e contraponto. A prática musical englobando os variados estilos, dos diferentes períodos, ficam a cargo da aula de instrumento, da prática de coral e de orquestra e da aula de música de câmara. Todas são fundamentais para cumprir esse desafio pedagógico de preparar o aluno para enfrentar esse vasto repertório. Nesse caso de estudo, a Escola Municipal de Música de São Paulo, ou outra escola com o mesmo perfil pedagógico, é essencial, portanto, que durante o curso, o aluno trabalhe um repertório que inclua as músicas Renascentista, Barroca, Clássica, Romântica, Moderna e Contemporânea, incluída a Música Brasileira, e tenha consciência das diferenças nas suas práticas interpretativas. Isso é determinante na escolha do repertório da disciplina no sentido de que ele precisa abarcar ao longo do curso obras desses variados estilos20. Neste capítulo verifica-se qual é a função da disciplina música de câmara dentro dessa estrutura pedagógica. Discute-se, portanto, a forma pela qual a aula prática de música de câmara contribui na formação do músico e quais os aspectos pedagógicos específicos da disciplina. Na primeira parte deste capítulo é abordado o trabalho pedagógico relativo às práticas interpretativas, uma das atividades centrais da aula de música de câmara. As 20 No anexo I, apresenta-se uma sugestão de bibliografia de referência que trata mais diretamente das questões das práticas interpretativas desses estilos musicais. 31 principais referências usadas nesta discussão serão os trabalhos de Flávio Apro (APRO, 2004) relativos às escolhas interpretativas e os de Sonia Albano de Lima (LIMA, 2015), sobre Walter Bianchi como professor de música de câmara e sua abordagem da prática da interpretação, e o de Clive Brown, Classical & Romantic Performing Practice 1750-1900, especificamente na forma como este define os elementos práticos da interpretação (BROWN, 1999). Em um segundo momento são abordadas as questões relativas às práticas de conjunto, particularmente do conjunto de câmara com a sua característica, já comentada, de ser um grupo pequeno de músicos, onde cada um deles tem uma parte solista. Nessa discussão, a principal referência utilizada é o trabalho de David Waterman para o The Cambridge Companion to the String Quartet (WATERMAN, 2003, p. 97-122). Essas discussões levam a uma proposta de metodologia para a disciplina música de câmara, concluindo o capítulo. 2.1 PRÁTICAS INTERPRETATIVAS NA AULA DE MÚSICA DE CÂMARA O trabalho pedagógico relativo às questões da interpretação musical é parte fundamental da disciplina música de câmara. Todo o trabalho pedagógico da instituição de ensino musical vai contribuir para a formação do aluno como intérprete, mas a disciplina música de câmara é ocasião peculiar para se tratar do assunto de forma efetiva e na prática21. Davies e Sadie, no verbete Interpretation do GROVE, fazem uma distinção entre interpretação e performance. Este capítulo é dividido em duas partes, não no exato sentido indicado por eles, mas também considerando duas fases da interpretação, uma de escolhas interpretativas e outra da realização da interpretação. Uma interpretação é distinta da performance na qual ela é incorporada. Enquanto uma dada performance é um evento único que pode ser reproduzido (como por uma gravação) mas não pode ser reeditado, uma interpretação resulta de uma série de decisões que podem ser repetidas em diferentes ocasiões de performance: diferentes performances de um determinado músico ou maestro pode incorporar a mesma ou uma interpretação muito semelhante. (DAVIES e SADIE, 2001)22 21 O trabalho de Sonia Albano de Lima, por exemplo, trata da metodologia utilizada pelo prof. Walter Bianchi nas aulas de música de câmara que este ministrava na Escola Municipal de Música de São Paulo designando-a como “uma metodologia de interpretação musical” e seu ensino. (LIMA, 2015) 22 Tradução nossa: An interpretation is distinct from the performance in which it is embodied. Whereas a given performance is a unique event that might be reproduced (as by a recording) but cannot be re-enacted, an interpretation results from a series of decisions that can be repeated on different occasions of performance: different performances by a given player or conductor might embody the same or a very similar interpretation. 32 O assunto interpretação tem seu viés filosófico que vem há muito tempo sendo largamente discutido, tanto no âmbito da filosofia como no das diversas artes e encerra um sem-fim de considerações estéticas, éticas, artísticas e históricas23. Essas questões de enfoque filosófico relativos à interpretação musical são tratadas na primeira parte deste capítulo (Escolhas Interpretativas), em que se faz uma contextualização dessa questão que sirva metodologicamente à disciplina música de câmara sem, no entanto, a intenção de um aprofundamento no assunto que extrapolaria as pretensões desta dissertação. Em um segundo momento, considerando o estudo de uma metodologia para a aula de música de câmara como objetivo geral desta dissertação, este capítulo concentrará seus maiores esforços, no estudo dos procedimentos de performance que buscam traduzir as opções interpretativas efetivamente em um evento sonoro. Portanto, a segunda parte deste capítulo (Ferramentas da Interpretação Musical) discute as práticas interpretativas, ou seja, o uso efetivo que o músico faz de seu instrumento, explorando as variáveis do som produzido por ele na construção da interpretação. 2.1.1 ESCOLHAS INTERPRETATIVAS No primeiro momento de estudo, discussão e tomada de decisões sobre as escolhas interpretativas precisa ser apresentado ao aluno a dicotomia fundamental da interpretação musical entre fidelidade e liberdade, entre a intenção de reproduzir as intenções do compositor e a do intérprete se expressar, entre a objetividade do performer reproduzir a partitura e a subjetividade de ele recriar a obra com a sua interpretação pessoal. O músico em formação precisa estar ciente do aspecto estético, filosófico destas escolhas e de como estas escolhas estabelecerão seu perfil como intérprete diante do público. Esta questão é bastante presente no cotidiano do músico contemporâneo e é essencial que o aluno tenha esta consciência. Flávio Apro no primeiro capítulo de sua dissertação de mestrado (APRO, 2004) discute os fundamentos teóricos sobre interpretação musical, colocando como sua questão fundamental: Recriação ou Reprodução? Ele cita como o estudioso Enrico Fubini aborda essa dicotomia. 23 Sugestão de consulta: (BRELET, 1951), (CONE, 1968), (GOEHR, 1992), (DONNINGTON,1980), (ECO, 1993 e 1995), (HARNONCOURT, 1988), (LIMA, 2006), (PAREYSON,1993), (RINK, 2002), (STRAVINSKY,1996), (RINK, 2006), (ABDO, 2000), (SCHENKER, 2000), (MAGNANI, 1996), (GADAMER, 1997). 33 O problema era tão antigo como a própria música, ou quase tão antigo; no entanto, somente com o Romantismo ficou patente e de forma nítida, quando a concepção das artes como criação absoluta – por um lado – e a aparição do virtuosismo – por outro – colocaram em cena o contraste latente entre a personalidade do criador e a do executante, entre as pretensões de caráter absoluto no plano criativo do compositor e as pretensões do intérprete, figura esta, a partir de então, indispensável e dotada cada vez mais de relevo social. (FUBINI, 1971, p. 379, Apud. APRO, 2004) No mesmo sentido, Lydia Goehr atenta para o momento e circunstâncias em que surge a noção de obra musical e a consequente ideia da importância e do comprometimento estético do performer como “intérprete” dessa obra. No final do século XVIII, mudanças na teoria estética, na sociedade e na política levaram os músicos a pensar sobre a música em novos termos e produzir música de novas maneiras. Os músicos começaram a pensar sobre a música como envolvendo a criação, a performance e a recepção não apenas da música em si, mas também de obras de música. O conceito de obra começou, então, a servir à prática musical em sua capacidade reguladora neste momento. (GOEHR, 1992, p. v)24 No mesmo trabalho, Apro (2004) apresenta o momento histórico em que a preocupação com a fidelidade à música do passado se instala na cena musical internacional, citando Joseph Kerman que discute as relações entre a pesquisa musicológica e as práticas interpretativas. “O advento das chamadas ‘performances históricas’ foi impulsionado pelas pesquisas da década de 1950 (especialmente na Inglaterra e Holanda). Os especialistas do pós-guerra, por estarem imersos no positivismo, determinaram regras precisas de execução, ajustando a prática musical à metodologia praticada na época.” (Kerman, 1987. apud. APRO, 2004, p. 17). Destacando que textos críticos publicados nos Estados Unidos impulsionaram essa influência mútua, e a prática de música antiga absorveu o conceito positivista de autenticidade, o que resultou na reconstrução de sistemas de afinações, instrumentos, ornamentação, etc. Do ponto de vista prático, essa intenção de fidelidade apresenta limites claros que precisam ser discutidos com o aluno. Flávio Apro, ainda no mesmo trabalho, comentando artigo de Salomea Gandelman (GANDELMAN, 1995), aponta os limites dessa intenção de fidelidade absoluta. A brilhante invenção de Thomas Edison, o fonógrafo, permitiu que, a partir do ano de 1877 em diante, houvesse registros mais acurados sobre as práticas e estilos da performance musical: desde a voz de Brahms até os maneirismos dos instrumentistas. Toda tentativa de se comprovar a prática musical anterior a essa invenção constitui um exercício puramente hipotético, sem possibilidade de verificação empírica. (APRO, 2004, p. 20) 24 Tradução nossa: At the end of the eighteenth century, changes in aesthetic theory, society, and politics prompted musicians to think about music in new terms and to produce music in new ways. Musicians began to think about music as involving the creation, performance, and reception not just of music per se, but of works of such. The concept of a work first began to serve musical practice in its regulative capacity at this time. 34 Em sentido contrário, há estudiosos e intérpretes, mesmo modernamente após a onda de performances históricas (ou historicamente informadas como vieram a ser chamadas posteriormente), que valorizam a expressão pessoal e a criatividade do performer acima da intenção de fidelidade, considerando o ato da performance também como momento de criação e sujeito ao “gênio” do intérprete. O livro L’interprétation créatrice (1951), em dois volumes, da musicóloga francesa Giséle Brelet é tido como uma das obras de referência em termos de fundamentação teórica para interpretação musical. Baseando-se na fenomenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty, Brelet apresenta um minucioso estudo, no qual apresenta conceitos que induzem a interpretações fortes e marcantes, em vista de sua plena convicção filosófica de que o virtuose é o único músico verdadeiro. (APRO, 2004) Segundo Brelet, os intérpretes não devem se esforçar para recriar o efeito original de uma obra ou respeitar as intenções do compositor, em vista da diferença entre fidelidade histórica e estética. O pianista francês Alfred Cortot pode ser considerado um exemplo prático da teoria de Brelet. Suas aulas públicas e execuções em disco constituem bons registros da tradição romântica. Para esse artista, a questão mais importante para o intérprete é a busca do sentimento inerente a cada obra, como se ele fosse mensageiro das emoções do compositor, que já conta com essa evocação (CORTOT, 1986, p. 16. Apud. APRO, 2004, p. 34). Entre essas duas visões, a princípio antagônicas, estão os que optam por uma interpretação musical que conjuga elementos de fidelidade com elementos de criatividade, questões objetivas relativas ao estilo com questões subjetivas do intérprete. E além de existirem intérpretes que fazem essa opção consciente, há os que defendem que essa conjugação está presente mesmo naquelas performances em que os intérpretes pretendem estar em uma postura extremista25, como conclui Apro referenciado em Luigi Pareyson e Humberto Eco. Mas a liberdade e fidelidade na interpretação musical, conforme a leitura dos textos de Pareyson e Eco, não são excludentes, mas complementares. Tal oposição consiste num falso dilema, afinal a execução musical não pode ser vista parcialmente (tal como as acepções extremas de Schenker e Brelet), e todos os argumentos que justificam essa dualidade apresentam contradições e equívocos. Por tratar-se de um fenômeno único, não-dualista, a interpretação que privilegia uma visão parcial denota incapacidade de se ver o todo. (APRO, 2004, p. 112)26 Flávio Apro cita ainda como exemplo importante dessa linha de pensamento 25 “Ouço muito sobre a subjetiva e objetiva da interpretação; Qual a melhor? Estou totalmente perdido sobre compreender o que se entende pelo objetivo na interpretação. Cada interpretação, se for feita por uma pessoa e não por uma máquina, é eo ipso, subjetiva. Fazer justiça ao objeto (ou seja, a composição) é lei e dever de cada intérprete, mas é claro que cada um à sua maneira, ou seja, subjetivamente”. Anton Rubinstein 26 Ver nota 23 35 conciliatória Frederick Dorian, no seu The history of music in performance (DORIAN, 1942), que define Subjetividade como aquela que reflete a individualidade do intérprete, e Objetividade como a atitude de lealdade incondicional ao roteiro musical. Dorian recomenda que as partituras mais modernas, que trazem detalhes suficientes para garantir a autenticidade interpretativa, demandam uma realização mais objetiva, enquanto os textos musicais mais antigos, com menos detalhes, estão inevitavelmente destinados a uma realização mais subjetiva. Explicando que o motivo dessa diferença é que no passado os compositores normalmente eram seus próprios intérpretes e suas partituras continham apenas as informações estritamente necessárias à realização. Após esta discussão, Apro conclui, referenciado ainda em Luigi Pareyson e seu Estetica: teoria da formatividade: A interpretação acontece, portanto, quando subsiste um equilíbrio entre o objeto respeitado e a atividade do intérprete, que interroga, descobre e revela a obra, num processo simultâneo de construção e desenvolvimento. A marca pessoal do intérprete está sempre atrelada à essência da obra, em forma de fidelidade ativa, e não passiva (ou em forma de liberdade respeitosa, e não arbitrária). (APRO, 2004, p. 49) Independentemente da posição pessoal que o professor ocupa nesta discussão, é importante que ele apresente e discuta com o aluno essa gama de opções interpretativas e os caminhos para construir sua interpretação, seja de qual linha for. Nesse processo de discussão sobre opções interpretativas é importante observar, ainda, outro elemento presente na prática interpretativa, a intuição, como salienta Sonia Albano de Lima. As escolhas performáticas, voluntárias ou involuntárias, interagem articuladas umas com as outras, interferindo sobremaneira no resultado interpretativo. Não basta listar as variantes sob uma ótica cartesiana. De certa forma, essas escolhas se mesclam, se integram, se articulam, interferindo diretamente na fruição do objeto artístico como um todo. Sob uma perspectiva bastante genérica, a performance é um fazer artístico que integra conhecimento racional e intuitivo, tradição, emoção, sensibilidade, história, contemporaneidade e cultura do executante. (LIMA, 2006) Considerada mais particularmente a interpretação dentro da aula de música de câmara, é preciso observar suas características peculiares. Essa aula, que se configura na preparação para a performance em grupo de câmara, é situação interpretativa diferente daquela em que o aluno estuda com seu professor de instrumento uma peça em que ele tem função de solista absoluto, como num concerto por exemplo, onde eles constroem sua interpretação de acordo com sua perspectiva particular daquela obra. É diferente também de uma performance do 36 instrumentista em uma orquestra, em que, a princípio, a interpretação é dirigida pelo maestro e é ele quem interpreta a partitura e define segundo sua visão as escolhas relativas a tempo, dinâmica e nuanças de articulação, de acentuação, de balanço, de sonoridade, etc. Portanto na discussão sobre interpretação entre professor e aluno não se pode perder de vista a futura atuação profissional desse aluno. A carreira desse aluno poderá oferecer situações de performance em que suas intenções interpretativas pessoais não serão ponto fundamental. Na situação citada da atuação em uma orquestra sinfônica, por exemplo, o bom profissional é aquele que tem a capacidade de se adaptar às intenções interpretativas do regente, que é nessa situação de performance quem tem a hegemonia na interpretação. Esse fato aumenta ainda mais a necessidade de que no período de formação esse futuro profissional se confronte com as problemáticas das mais diversas posturas interpretativas. Na aula de música de câmara, esse processo inclui a assistência do professor que interfere na interpretação por meio de colocações verbais, mas não atua efetivamente na performance. Por essa sua particularidade essa disciplina prática é ocasião peculiar para se tratar do assunto de uma perspectiva única, do músico com parte solista, mas membro de um pequeno grupo, onde ele interage com os poucos membros desse grupo e propõem juntos a construção da interpretação. E nesse ambiente propor uma interpretação não se refere unicamente às discussões verbais, mas às propostas dinâmicas da interpretação que cada membro do grupo faz durante sua performance, usando da comunicação mais puramente musical. 2.1.2 FERRAMENTAS DA INTERPRETAÇÃO MUSICAL No verbete interpretation do The Oxford Companion of Music, Brian White define interpretação como uma tradução da partitura e aponta vários aspectos da música que não são traduzíveis na escrita musical. O processo pelo qual um artista traduz um trabalho de notação em som artisticamente válido. Devido à ambigüidade inerente à notação musical, um intérprete deve tomar decisões importantes sobre o significado e a realização de aspectos de uma obra que o compositor não pode prescrever com clareza. Estes podem incluir escolhas discretas sobre dinâmica, andamento, fraseado e similares, ou julgamentos em larga escala sobre a articulação de divisões formais, o momento dos clímax musicais e assim por diante. Essas determinações refletem a compreensão do intérprete sobre o trabalho, condicionada pelo seu conhecimento musical e pela sua personalidade, e resulta em uma interpretação. (WHITE, 2011)27 27 Tradução nossa: The process by which a performer translates a work from notation into artistically valid sound. Because of the ambiguity inherent in musical notation, a performer must make important decisions about the meaning and realization of aspects of a work which the composer cannot clearly prescribe. These may 37 Quando se trata de música clássica, de concerto, que concentra muito material de um passado, onde os compositores não se importavam ainda com uma notação detalhada, essa questão se sobressalta cada vez mais conforme a antiguidade da obra. Gandelman (1995) define alguns momentos-chave na notação musical que determinam a evolução gradual da quantidade de informações contidas nas partituras. Aponta que a discussão do papel do intérprete como mero executante ou parceiro criador é relativamente recente na História da Música, tendo como base deste pensamento a oscilação que decorre dessa gradativa evolução da escrita musical, conforme ela delineia: no século IX houve a fixação das alturas em pautas; nos séculos XII e XIII foi introduzida a mensuração das durações; no século XVI, apareceram as primeiras indicações de intensidade, andamento, articulação e fraseado; no Barroco, Claudio Monteverdi (1567-1643) contribuiu delimitando a instrumentação em suas obras; e entre os séculos XVII e XVIII, a Escola de Mannheim inaugurou o conceito de gradações dinâmicas. Já Peter Hill, independentemente da época de autoria da obra, aponta no seu texto To score to sound a enorme distância que existe entre o que é possível ser definido por meio da escrita musical e o evento sonoro em si, salientando o caminho que essa ideia musical percorre desde a imaginação do autor até sua efetiva realização sonora. Muitos artistas referem-se a partitura como “a música”. Isso é errado, é claro. Partituras definem informações musicais, algumas delas exatas, algumas aproximadas, juntamente com indicações de como essa informação pode ser interpretada. Mas a música em si é algo imaginado, primeiro pelo compositor, depois em parceria com o artista e, finalmente, comunicado em som. (HILL, 2002) O documento que o instrumentista tem, no entanto, como objeto de interpretação é a partitura. É a partir da leitura e análise dela que o processo de interpretação se dá no ambiente da música clássica. Todo esse processo que se dá a partir da partitura permite, no entanto, uma grande gama de interpretações por parte deste instrumentista, como pode ser reiterado neste pensamento de Howard Mayer Brown. A notação musical pode ser entendida como um conjunto de instruções indicando ao intérprete como o compositor desejava que a música soasse. [...] Nem todos os elementos de uma performance podem ser registrados por escrito. [...] Mesmo no século XX, quando as compositores tomam mais cuidado do que nunca para indicar exatamente a característica e a duração de cada som, diferentes performances de uma peça (incluindo mesmo aquela feita pelo mesmo músico) variam no tempo, fraseado, articulação, timbre e assim por diante.28 (BROWN, 2001) include discrete choices about dynamics, tempo, phrasing, and the like, or large-scale judgments concerning the articulation of formal divisions, pacing of musical climaxes, and so on. These determinations reflect the performer's understanding of the work, as conditioned by musical knowledge and personality, and result in an interpretation. 28 Tradução nossa: Musical notation can be understood as a set of instructions indicating to the performer how 38 Jon Finson, no seu trabalho sobre as práticas interpretativas no século XIX, aponta ainda a mesma precariedade que a notação musical apresenta perante o todo de que a música representa de informação sonora, e também como ela é incapaz de registrar a essência da obra. É apropriado ler um romance em silêncio, mas nenhum artista e poucos musicólogos sugeririam que a leitura de uma partitura constitui uma realização completa de uma peça. A partitura precisa ser executada e a peça apreciada pelo seu som. Parece mais razoável entender notas [e] texto de maneira uniforme. A notação musical deve ser considerada como um sistema de símbolos que representa todo um contexto sonoro; ela é uma forma abreviada de toda a prática de relações de altura, duração, ornamentação e timbre. Se adotamos este ponto de vista, o texto da notação musical de uma determinada obra não registra tanto o que é essencial para aquela peça quanto o que é peculiar a ela. (FINSON, 1984, p. 459)29 Abordando o assunto sempre do ponto de vista do professor de música de câmara, discute-se a seguir as questões práticas interpretativas, as ferramentas de expressão que o músico tem para dar vida à partitura, a efetiva realização física da interpretação no objeto da música, o som, como definiu Descartes em sua primeira obra editada Compendium Musicae. Sua finalidade é encantar e nos excitar diferentes paixões. As cantilenas (canções) podem ser tristes e alegres, e não deve nos parecer estranho que a música é capaz de diferentes efeitos, como os poetas elegíacos e os autores trágicos agradam-nos mais e melhor quando excitam em nós paixão e dor e maior aflição. Os meios para esta finalidade ou, se se preferir, as principais propriedades do som são duas, ou seja, considerando suas diferenças em relação a duração ou tempo, e em relação a força e intensidade, consideramos a razão da altura relativa ao agudo ou grave. Para o que diz respeito à natureza do som em si, isto é, de que corpo e como ele nasce, para torná-lo mais agradável, é uma questão de física. (DESCARTES, apud CASTRO, 2015) 30 As formas como o músico pode manipular as propriedades físicas do evento sonoro musical por meio do seu instrumento receberam ao longo do tempo diversos nomes, mas não há uma nomenclatura referencial única a respeito do assunto. O professor necessita estabelecer uma forma de comunicação imediatamente compreensível sobre eles com seus alunos. Ao mesmo tempo, o professor precisa reforçar nos alunos a noção da enorme variedade de possibilidades expressivas que o músico tem no manuseio desse evento sonoro, the composer wished the music to sound. […] Not all the elements of a performance can be fixed in writing. […] Even in the 20th century, when composers took more care than ever before to state exactly the quality and duration of each sound, different performances of a piece (including sometimes those by the same musician) varied in tempo, phrasing, articulation, timbre and so on. 29 Tradução nossa: It is appropriate to read a novel in silence, but no performer and few musicologists would suggest that reading a score constitutes sufficient realization of a piece. The score must be performed and the piece judged on its sound. It seems more reasonable to understand note texts in a uniform way. Notation should be regarded as a system of symbols representing a whole context of sound; it is a shorthand for the entire practice of pitch relationships, durations, ornamentation,and timbre. If we adopt this point of view, the note text of a given work does not record so much what is essential to that piece as what is peculiar to it. 30 Tradução de Gustavo de Castro (CASTRO, 2015, p.17) do Compendium Musicae de René Descartes a partir da edição de L'Abrégé de Musique, edition A. Paris, de 1618 39 frisando que elas vão muito além de tocar piano ou forte, staccato ou legato, e também como esses recursos conferem não só expressão à performance, mas são importantíssimos na definição do estilo. As causas geradoras da expressão, que residem na frase musical, devem evidentemente revelar formas materiais mais puras, passíveis de serem observadas e submetidas à análise e síntese. Um Tratado de Expressão Musical é, portanto, possível como um Tratado de Harmonia ou Melodia. (RAMEAU, 1760, p. 3) São bastante empíricas as visões sobre as ferramentas objetivas que o músico tem para construir sua interpretação, moldando efetivamente o evento sonoro que seu instrumento produz. O assunto, na maioria das vezes, tratado por instrumentistas (e cantores), sofre influência das características particulares de construção e de emissão sonora de cada instrumento. São aqui estudadas e comparadas algumas dessas visões na busca de uma plataforma de entendimento prático e de uma terminologia direcionada ao exercício pedagógico das questões das práticas interpretativas31. Aplicado à música ocidental, o assunto envolve todos os aspectos do modo como a música é e tem sido executada, e seu estudo é de particular importância para o artista moderno preocupado com a performance historicamente informada. Os tópicos que podem ser considerados como aspectos das práticas interpretativas incluem os notacionais (isto é, a relação entre notas escritas e os sons que eles simbolizam, especialmente assuntos como ritmo, andamento e articulação); improvisação e ornamentos; instrumentos, sua história e estrutura física e a maneira como são tocados; a produção de voz; questões de afinação, intonação e temperamento; e conjuntos, seu tamanho, disposição e os modos em que são organizados. (BROWN, 2001)32 Uma primeira visão sobre a prática da performance discutida aqui consta do trabalho de Sonia Albano de Lima: Uma metodologia de interpretacao musical (LIMA, 2015), que relaciona a prática da música de câmara, e seu ensino, à interpretação musical. O livro trata do trabalho de Walter Bianchi como professor de música de câmara na Escola Municipal de Música de São Paulo e aqui se destaca a abordagem que o prof. Bianchi faz das ferramentas objetivas que o músico pode usar para construir a interpretação. A autora descreve a metodologia de Bianchi como voltada para a resolução de problemas estritamente musicais, 31 Em inglês Performing Practice que Latham (2011) define como: Um termo emprestado da Aufführungspraxis alemã do século XIX para descrever a mecânica de uma performance que define seu estilo. 32 Tradução nossa: As applied to Western music, the subject involves all aspects of the way in which music is and has been performed, and its study is of particular importance to the modern performer concerned with historically informed performance. Topics that may be considered aspects of performing practice include notational ones (i.e. the relationship between written notes and the sounds they symbolize, especially such matters as rhythm, tempo and articulation); improvisation and ornaments; instruments, their history and physical structure and the ways in which they are played; voice production; matters of tuning, pitch and temperament; and ensembles, their size, disposition, and the modes in which they are directed. 40 quais sejam: articulação, dinâmica, pontuação, andamento e fraseado. Para o professor, a articulação compreenderia o legato, staccato, portato, non legato, sem esquecer as matizes que a voz humana e os diversos instrumentos podem fazer. A dinâmica seria a arte de graduar a intensidade sonora, crescendos e decrescendos, apontada como um dos fatores mais importantes para atingir a sensibilidade do ouvinte, provocando variações no som, podendo levar o discurso musical a produzir sensações análogas às do discurso literário, com suas ondas de tensão e repouso. Já quanto à pontuação, Bianchi estabelece uma relação de similaridade entre o discurso musical e a língua falada com suas perguntas e respostas, suas interrogações, suas exclamações, suas vírgulas, seus pontos e vírgulas, suas reticências, seus acentos e seus pontos-finais. O andamento ideal é descrito pelo professor Bianchi como aquele que busca o equilíbrio perfeito entre a fluidez da ideia musical e o temperamento do intérprete, utilizando um vocabulário concentrado nas palavras rallentando, accelerando, rubato, ritenuto, stringendo, affretando, que acolhe Kairos 33. Por fim, o professor Bianchi aponta como quinto elemento da expressão o fraseado. O fraseado mantém, também, uma relação profunda com a linguagem verbal, procurando dar ao texto musical a mesma discursividade e lógica semântica contida no texto literário. Bianchi descreve o fraseado como a utilização de técnicas estritamente musicais como recursos de pontuação, ondulação natural da frase musical, graduação expressiva, clareza, precisão rítmica, melódica e estrutural, no intuito de fazer o intérprete expressar o mais atentamente possível o bem dizer musical. Como recurso didático, o professor Bianchi utilizava uma notação gráfica e numérica para indicar e registrar com clareza esses 5 elementos da expressão musical — articulação, dinâmica, pontuação, andamento e fraseado — indicando em cada um deles uma graduação que observa a lógica e a organicidade. A indicação numérica foi a maneira mais lógica que o professor encontrou para graduar os procedimentos interpretativos. Ela está presente não só na dinâmica, mas também nas alterações de tempo, nas alterações rítmicas, na execução das cadências, nos ornamentos, nos grupos irregulares e até nas frases musicais. (LIMA, 2015, p. 35) 33� “Kairos descreve uma noção peculiar de tempo […] simboliza o instante singular que guarda a melhor oportunidade; é o momento crítico para agir, a ocasião certa, a estação apropriada, não reflete o passado nem o futuro. É um tempo não-absoluto, contínuo ou linear, uma noção distinta daquela proposta pela concepção newtoniana de tempo cronológico […] Dessa maneira, podemos dizer que Kairos é o tempo do intérprete musical, porque envolve uma visão de totalidade fundada nas condições que as circunstâncias se apresentam” (LIMA, 2015, p. 42-43) 41 Figura n. 3: Notação expressiva de Walter Bianchi, em vermelho (LIMA, 2015, p. 34). 42 Figura n. 4: Notação expressiva de prof. Walter Bianchi, em vermelho (LIMA, 2015, p. 62). 43 A segunda visão sobre as ferramentas da interpretação musical é extraída do livro Classical & Romantic Performing Practice 1750-1900, em que Clive Brown (BROWN, 1999) investiga as práticas interpretativas dos períodos clássico e romântico. O livro apresenta, detalha e contrapõe as visões, muitas vezes contraditórias, de vários estudiosos ao longo do tempo, em extensa pesquisa em métodos de instrumento e guias de execução instrumental34. Para fazer essa análise, Brown subdivide os elementos da performance musical e é a forma como esses elementos são elencados e definidos que interessa aqui apresentar. O sumário divide o livro em 16 capítulos que são aqui agrupados por elemento musical para melhor comparação com a visão de Bianchi. Acentuação: 1. acentuação na teoria, 2. acentuação na prática, 3. a notação de acentos e dinâmicas. Articulação e Fraseado: 4. articulação e fraseado, 5. articulação e expressão, 6. a notação de articulação e fraseado. 7. Arcadas. Tempo: 8. tempo, 9. Alla Breve, 10. designações de tempo, 11. modificações no tempo. Embelezamentos: 12. Embelezamento, ornamentação e improvisação, 13. Appogiaturas, Trilos, Gruppettos e Ornamentos da mesma espécie, 14. Vibrato, 15. Portamento; e 16. Paralipomena. Segundo Brown, a acentuação é talvez o mais básico dos determinantes principais de estilo em uma execução musical. Em um nível fundamental, quase subliminar, a acentuação está ligada à estrutura métrica da música, à qual se integra a relação entre a figura melódica e a progressão harmônica e a contraposição entre dissonância e resolução. Esta é designada como acento métrico. Sobreposto a esta moldura básica do acento métrico está outro nível de acentuação que ele chama de acento de expressão, de retórica, de oratória ou simplesmente de ênfase. A acentuação métrica ordena o compasso e a de expressão ressalta e dá textura diferenciada a elementos específicos na construção da articulação e do fraseado musical. Brown citando vários autores indica algumas possíveis ocorrências da acentuação expressiva: na primeira nota de um pequeno grupo de notas em uma ligadura, em uma dissonância à tonalidade, em um salto com grande intervalo de altura, em notas que se distinguem das anteriores por serem notas longas, em síncopas, contrariando a regra métrica, em agrupamentos 34 A partir de pesquisa em textos de inúmeros autores, como por exemplo: Quantz (1752), C. P. E. Bach (1753), Leopold Mozart (1756), Türk (1789), Koch (1802), Asioli (1809), Corri (1810), Hummel (1828), Spohr (1832), Kalkbrenner (1835), Riemann (1884), Garcia (1894) e outros. 44 de hastes similarmente às ligaduras, em notas finais (o que alguns autores pesquisados por Brown indicam e outros condenam) e outros fatores, como por exemplo, a primeira de um grupo de notas repetidas. Em relação às formas de realização dos acentos indica o acento agógico relacionado ao tempo, quando a nota acentuada é ligeiramente alongada em relação às outras e o acento percussivo relacionado à dinâmica, em que a nota acentuada é mais forte que as outras. Sobre articulação, em relação ao fraseado, o autor diz que sua função é bastante similar à acentuação e que elas estão fortemente ligadas, especialmente na definição da estrutura da obra musical, e que a articulação pode ser observada atuando em dois níveis: o estrutural e o expressivo. No nível estrutural está a articulação da frase musical e das seções, enquanto na questão da expressão, a articulação apropriada de notas individuais e figuras musicais é necessária para dar vida à ideia musical. Brown diz que a música era predominantemente percebida ao longo do período (clássico e romântico) como uma linguagem, embora uma linguagem que, como a poesia, apelasse mais para os sentimentos do que para o intelecto. Nesse entendimento das frases musicais como estruturas, os músicos estabeleciam uma analogia com a linguagem falada e escrita, e o discurso musical com a retórica, comparando, por exemplo, uma sessão musical com uma sentença na língua escrita/falada que finalizaria com um ponto (.), e unidades menores por (:) (;) e as frases que seriam separadas por vírgula (,). Já sobre a articulação no nível expressivo trata dos staccato, legato, non-legato, sciolto e vários tipos de ligaduras. Brown dedica ainda um capítulo para falar de técnicas específicas do arco (cordas friccionadas) relacionadas diretamente à articulação. Nas escolhas em relação ao tempo, Clive Brown trata historicamente da determinação d o andamento geral da peça. Fala sobre como as interpretações das nomenclaturas de andamento são, até certo ponto, imprecisas, pessoais e subjetivas. Discute sobre a forma inevitável como a música não adere à pulsação mecanicamente constante, detalhando a forma como os “desvios”, as modificações no tempo musical, fazem parte das intenções expressivas do músico intérprete. Fala sobre a opção de se tocar absolutamente “a tempo” ou fazer uso do rubato, das modificações na pulsação básica da música, ritardando (ou rallentando) e accelerando e das suas implicações quando se toca em grupo. Fala da ideia presente no século XVIII e início do XIX da modificação do tempo de uma nota, ou de um pequeno grupo delas, sem alteração do tempo base, e da gradual aceitação durante o século XIX das mudanças no 45 tempo base como demanda da expressão musical. Brown dedica ainda quatro capítulos, sempre tratando do período clássico-romântico, de “embelezamentos” e improvisações como ornamentos, vibrato e portamento. Um terceiro trabalho de onde podemos extrair uma classificação dos elementos práticos da performance é o de Eva e Paul Badura-Skoda (BADURA-SKODA, 2010). O livro tem capítulos dedicados diretamente aos elementos práticos da performance, que tratam de dinâmica, das questões de tempo e ritmo e da articulação. No capítulo 8, os autores tratam da expressão com uso da dinâmica, da expressão com uso da articulação, de nuanças rítmicas expressivas e da expressão harmônica. Na discussão sobre o uso expressivo da dinâmica, eles usam um gráfico que expressa bem a complexidade do uso expressivo da dinâmica e como esta vai muito além do que a grafia musical permite indicar na partitura, mesmo quando o compositor a detalha. Figura n. 5: Gráfico de dinâmica expressiva (BADURA-SKODA, 2010, p. 292). Fica evidenciado na contraposição dessas três visões, como aconteceria com muitas 46 outras similares, que não há uma definição e terminologia unívoca a respeito do assunto. Não há uma norma de conceitos nem de nomenclatura sobre as diversas formas que o músico pode manipular o evento sonoro na intenção de materializar suas intenções interpretativas. Bianchi não lista, por exemplo, o termo acentuação entre os cinco elementos de sua visão, estando ela incorporada no elemento articulação. Brown, quando fala de articulação e fraseado no item articulação estrutural, trata da questão que Bianchi chamaria de pontuação, usando ambos inclusive a analogia com a comunicação verbal. É indiscutível, porém, que o músico utiliza, de forma mais ou menos consciente, essas ferramentas em cada uma das notas que toca e que, dentro do universo da pedagogia musical, o professor necessariamente estabelecerá uma plataforma de comunicação com seus alunos sobre esse assunto, que é central na sua aula. Mesmo que o professor não estabeleça formalmente com seus alunos os conceitos e nomenclaturas particulares que ele utilizará, ele tratará do assunto sempre que este for de práticas interpretativas. Lucas Robatto, no texto a seguir, faz uma colocação importante sobre a terminologia dos procedimentos práticos musicais. No âmbito das práticas interpretativas (em contextos culturais diversos), os músicos simplesmente “sabem” os limites do seu campo de atuação, “sabem” o que um intérprete/performer deve fazer, mesmo que não sejam capazes de verbalizar estes saberes. Ou seja, a prática interpretativa prescinde de uma terminologia clara, até mesmo para nomear o que ela é. Daí depreende-se que a necessidade de conceituação não é uma demanda da prática, mas sim da geração de discursos estruturados sobre esta prática, tal como são os discursos acadêmicos ou a institucionalização desta