UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes – Campus São Paulo GABRIEL DOS SANTOS DA SILVA CANNABIS MNEMOSYNE: fragmentos visuais da planta SÃO PAULO 2023 2 GABRIEL DOS SANTOS DA SILVA CANNABIS MNEMOSYNE: fragmentos visuais da planta Trabalho de conclusão de curso apresentado no curso de graduação de Bacharelado em Artes Visuais do Instituto de Arte da Unesp como requisito para obtenção do título de Bacharel em Artes. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo SÃO PAULO 2023 3 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. S586c Silva, Gabriel dos Santos da, 1996- Cannabis mnemosyne : fragmentos visuais da planta / Gabriel dos Santos da Silva. -- São Paulo, 2023. 157 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Maconha. 2. Cânhamo - Desenho. 3. Plantas cultivadas - História. 4. Imagens, ilustrações, etc. 5. Simbolismo. I. Romagnolo, Sérgio (Sérgio Mauro Romagnolo). II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 743.7 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 4 GABRIEL DOS SANTOS DA SILVA CANNABIS MNEMOSYNE: fragmentos visuais da planta Trabalho de conclusão de curso apresentado no curso de graduação de Bacharelado em Artes Visuais do Instituto de Arte da Unesp como requisito para obtenção do título de Bacharel em Artes. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo Trabalho aprovado em: 22/11/2023 BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo - Orientador Prof. Dr. Henrique Soares Carneiro - Universidade de São Paulo Me. Caio Netto dos Santos – Instituto de Artes da Unesp 5 “Drogas são objetos subjetivos, produzem subjetividades, são técnicas de si, moduladores humorais, cognitivos ou sensoriais, são plasmadores de estados mentais e corporais, servindo assim, na história das civilizações, como alguns dos mais eficientes instrumentos de criação de vivências e de experiências, cujos conteúdos, longe de ser apenas uma determinação farmacológica objetiva, são veículos para sentidos profundos, significados simbólicos e imaginários − além dos efeitos “puros” do fármaco, há um conjunto de efeitos culturalmente significativos.”1 Henrique Carneiro "A determinação daquilo que é socialmente relevante está em conexão com a posição política do intérprete."2 Peter Burguer 1 CARNEIRO, Henrique. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2018. P.17. 2 BURGUER, Peter Burguer. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Ubu Editora, 2017. P17. 6 RESUMO A pesquisa aborda as representações gráficas da cannabis ao longo da história a partir de vestígios, reproduções, fotografias, gráficos e símbolos que trazem a figura e os imaginários da planta em diversas mídias. Entendendo que as relações com registro e preservação cultural singularizam essa história, focalizo em certos eixos econômicos do globo a fim de rever através das imagens, as narrativas e motivações da ligação paradoxal de produção-proibição no desenvolvimento colonial. O trabalho introduz o centro de origem postulado, apresenta fragmentos de um período medieval e as representações gráficas, simbólicas e imagéticas que alguns territórios passaram a ter ao longo do tempo. Palavras-chave: Maconha; Cânhamo; Desenho; Plantas cultivadas; História; Imagens; Ilustrações; Simbolismo. 7 ABSTRACT This research delves into the graphic representations of cannabis throughout history, examining traces, reproductions, photographs, charts, and symbols that depict the plant's figure and imaginaries across various media. Recognizing how the connections with cultural recording and preservation distinguish this history, the focus lies on specific global economic axes to revisit, through these images, the narratives and motivations behind the paradoxical link between production and prohibition in colonial development. The work introduces the postulated center of origin, presenting fragments from a medieval period and the graphic, symbolic, and imagistic representations that certain territories acquired over time. Keywords: Marijuana; Hemp; Drawing; Cultivated plants; History; Images; Illustrations; Symbolism 8 LISTA DE ILUSTRAÇÕES FOTOGRAFIA FOTOGRAFIA 1 - Sala de leitura elíptica, pranchas do Atlas Mnemosyne ----------------- 14 MAPAS MAPA 1 - Deslocamentos da planta --------------------------------------------------------------- 15 MAPA 2 - Distribuição global da cannabis por volta de 1500 --------------------------------- 16 ILUSTRAÇÃO ILUSTRAÇÃO 1 - A representação do Kanji ---------------------------------------------------- 19 FIGURAS FIGURA 1 - Farmacopeia Pen-ts'ao Ching do Império Shen-Nung -------------------------- 22 FIGURA 2 - Song Mahezhi. Retrato da Imortal Magu ----------------------------------------- 23 FIGURA 3 - Dicionário Kanji, definição de "ma” ---------------------------------------------- 24 FIGURA 4 - Honzo zufu, manual ilustrado de plantas medicinais de kan-en iwasaki ----- 25 FIGURA 5 - Senshu no Hana Chigusa no hana. ------------------------------------------------- 26 FIGURA 6 - Senshu no Hana. Asa, Cannabis sativa -------------------------------------------- 27 FIGURA 7 - Bhang eaters before two huts ------------------------------------------------------- 28 FIGURA 8 - Assembly of fakirs preparing bhang and ganja ---------------------------------- 29 FIGURA 9 - Loja de bhang em Jaisalmer, Rajasthan ------------------------------------------- 30 FIGURA 10 - Desenho de Amenhotep I ---------------------------------------------------------- 31 FIGURA 11 - Fragmento egípcio. Deusa Seshat ------------------------------------------------ 32 FIGURA 12 - De Materia Medica, Dioscoride Pedanio ---------------------------------------- 36 FIGURA 13 - Manuscrito do final do século XII, Inglaterra ou norte da França ----------- 37 FIGURA 14 - Herbarius oder Gart der Gesundheit --------------------------------------------- 38 FIGURA 15 - Voynich manuscript ---------------------------------------------------------------- 39 FIGURA 16 - Cannabis sativa, le "canabs", "chanve fumelle" et "chanve male ------------ 40 FIGURA 17 - Cannabis sativa. Xilogravura. Leonhart Fuchs --------------------------------- 43 9 FIGURA 18 - Cannabis mas. and Cannabis foemina. Elizabeth Blackwell ----------------- 44 FIGURA 19 - Diocas: Espinafre; Cannabis. Robert Bénard ----------------------------------- 45 FIGURA 20 - Cannabis indica. Espécime coletado na Índia ---------------------------------- 46 FIGURA 21 - Denis Diderot. Chanvre, Premier travail à la campagne ---------------------- 54 FIGURA 22 - Colesworthey Grant. William Brooke O'Shaughnessy ------------------------ 60 FIGURA 23 - Gaetano Previati. Haschisch: fumatrici d'oppio -------------------------------- 61 FIGURA 24 - Honoré Daumier. Les Fumeurs de Hadchids ----------------------------------- 62 FIGURA 25 - Emile Bernard, Fumeuse de Haschisch ----------------------------------------- 63 FIGURA 26 - Cigarettes indiennes Grimault & cie. Paris ------------------------------------- 64 FIGURA 27 - Anúncio dos cigarros Grimault's nos jornais New Zealand ------------------- 65 FIGURA 28 - Chocolate Guerin-Boutron. Cartão comercial ---------------------------------- 66 FIGURA 29 - Maltos-cannabis. Bebida a base de malte e cânhamo -------------------------- 67 FIGURA 30 - Dr. Poppy's Wonder Elixir --------------------------------------------------------- 68 FIGURA 31 - Büchlein vom Hanf (livreto do cânhamo) --------------------------------------- 69 FIGURA 32 - Wilhelm Busch. Livro ilustrado Krischan mit der Piepe ---------------------- 70 FIGURA 33 - Wilhelm Busch. Max e Moritz ---------------------------------------------------- 76 FIGURA 34 - Colheita do cânhamo --------------------------------------------------------------- 78 FIGURA 35 - Secagem das fibras de cânhamo -------------------------------------------------- 79 FIGURA 36 - Processamento de cânhamo no distrito de Karachaevsky --------------------- 80 FIGURA 37 - A delegação soviética inspeciona um campo de cannabis na Roménia ----- 81 FIGURA 38 - Revista "Linho e Cânhamo" ------------------------------------------------------- 82 FIGURA 39 - Ivan Novikov. Konopel-Konopelka ---------------------------------------------- 83 FIGURA 40 - Cartaz sobre a colheita recorde de cânhamo na fazenda coletiva ------------ 84 FIGURA 41 - L. Zamakh. Expanda as áreas de cultivo de cânhamo em turfeiras ---------- 85 FIGURA 42 - S. F. Shishko. Cânhamo ------------------------------------------------------------ 86 FIGURA 43 - Bandeira do distrito de Kimovsky ------------------------------------------------ 87 FIGURA 44 - Broche "Mactepy konoplevodstva" ---------------------------------------------- 88 FIGURA 45 - Fontaine "Druzhba Narodov” ----------------------------------------------------- 89 FIGURA 46 - Cachimbos esculpidos em pedra, 200-400 a.C. -------------------------------- 95 10 FIGURA 47 - Sidney Smith Boyce. ‘Hemp (Cannabis Sativa) -------------------------------- 96 FIGURA 48 - Cortando cânhamo em Kentucky ----------------------------------------------- 101 FIGURA 49 - Agricultor com sua plantação em Michigan ----------------------------------- 102 FIGURA 50 - Billy Bitzer. A Pipe Dream ------------------------------------------------------- 103 FIGURA 51 - The Bachelor's Pipe Dream Man Smoking Tobacco Two Woman --------- 104 FIGURA 52 - Vidros de tintura de cannabis. Lilly, Parke Davis e Boericke & Tafel ----- 105 FIGURA 53 - Selos da Lei Tributária da Maconha -------------------------------------------- 106 FIGURA 54 - Maconha na prisão de Van Nuys, Los Angeles ------------------------------- 107 FIGURA 55 - Anúncio distribuído pelo Departamento Federal de Narcóticos ------------ 108 FIGURA 56 - Marihuana - Weed with Roots in Hell ------------------------------------------ 109 FIGURA 57 - Dwain Esper. Marihuana --------------------------------------------------------- 110 FIGURA 58 - Louis J. Gasnier. Reefer Madness ----------------------------------------------- 111 FIGURA 59 - Elmer Clifton. Assassin of Youth ----------------------------------------------- 112 FIGURA 60 - Ray Test. Marijuana - Devils Harvest ------------------------------------------ 113 FIGURA 61 - Sam Newfield. Divulgação do filme “The Devil's Weed” ------------------- 114 FIGURA 62 - Sam Newfield. Poster da versão teatral de “She Shoulda Said No!” ------- 115 FIGURA 63 - Raymond Evans. Hemp for Victory -------------------------------------------- 116 FIGURA 64 - Patrick Dowers (pseudônimo de Art Penn) -------------------------------------117 FIGURA 65 - Gary Grimshaw. Amorphia: the cannabis cooperative ----------------------- 118 FIGURA 66 - Joe Roberts. Vote yes on 19. California Marijuana Initiative --------------- 119 FIGURA 67 - Henry Diltz. David Crosby, “Flag Gun” --------------------------------------- 120 FIGURA 68 - Peter Tosh. Fotografias para o álbum "Legalize It" -------------------------- 121 FIGURA 69 - Biden anuncia no twitter perdão a condenados por posse de maconha ---- 123 FIGURA 70 - Grupo consumindo maconha em África no século XIX --------------------- 128 FIGURA 71 - Quatro fases do negro “Azeitão” fumando maconha ------------------------- 129 FIGURA 72 - Clube de diambistas brasileiros ------------------------------------------------- 130 FIGURA 73 - Cigarros Indios de cannabis indica, da Grimault ----------------------------- 131 FIGURA 74 - Maconha, a planta do diabo ------------------------------------------------------ 132 FIGURA 75 - Recortes jornalísticos ------------------------------------------------------------- 132 11 FIGURA 76 - O Veneno Africano. Reportagem do jornal “O Globo” ---------------------- 133 FIGURA 77 - Matéria do Estadão sobre a conferência "O mito da Maconha" ------------ 134 FIGURA 78 - O verão das latas ------------------------------------------------------------------ 135 FIGURA 79 - Andy Fickman. A Loucura De Mary Juana ------------------------------------ 136 FIGURA 80 - Plantação com milhares de pés é encontrada no sudoeste de Tocantins --- 137 FIGURA 81 - Apreensão de cultivo doméstico em Campo Limpo Paulista ---------------- 138 FIGURA 82 - Apreensão. 34 pés de maconha dentro de casa em Nova Resende --------- 139 12 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO: Resgate Mnemosyne ------------------------------------------------ 09 2. POSSÍVEIS CAMINHOS --------------------------------------------------------------- 11 3. ATRAÇÃO DIVINA: territórios da Ásia antiga -------------------------------------- 13 4. FRAGMENTOS DA IDADE MÉDIA ------------------------------------------------- 29 5. ERA MODERNA: entre médicos, poetas e produtos--------------------------------- 43 6. PIPE DREAM PARA OS AMERICANOS -------------------------------------------- 85 7. BRASIL: cânhamo real, maconha marginal ------------------------------------------ 118 8. CONCLUSÃO ---------------------------------------------------------------------------- 135 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS LISTA DE FIGURAS 13 1 INTRODUÇÃO: Resgate Mnemosyne. Antes de embarcar na busca por linhas do tempo, revisar literaturas e conjunturas econômicas, a pesquisa se concentrava em uma investigação que percorria vários momentos e contextos na história rastreando representações da maconha. O que começou como uma exploração iconográfica, logo se transformou em uma busca por evidências e origens dessas imagens - enquanto também se revelava movimentos de repetição, formas e performatividades. Intuitivamente, a organização das imagens refletia uma referência introduzida nos meus primeiros anos de graduação, o Atlas Mnemosyne. Jorge Coli, em seu livro "O Corpo da Liberdade," atribui ao Atlas Mnemosyne de Aby Warburg uma qualidade singular, não como uma metodologia ou teoria da arte, mas como uma postura, uma “intuição que persegue a continuidade e metamorfose das formas em épocas e culturas muitos diversas”3. Nas pranchas do Atlas Mnemosyne de Warburg, o historiador da arte Georges Didi-Huberman observa a presença de "idéias fugazes", em que o foco do pensamento não reside em formas estagnadas, mas sim em formas transformadoras com assuntos de migrações perpétuas4. Assim como Warburg através do Atlas lida com a continuidade e metamorfose das formas através de diferentes épocas e culturas, Mnemosyne é resgatada por ser divindade personificada na memória, mas também uma janela para acessar a memória reivindicada e explorar as conexões intrincadas entre a humanidade e a planta. 3 COLI, Jorge. O Corpo da Liberdade. São Paulo: Cosac Naify, 2010. P.11. 4 DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas, ou, O gaio saber inquieto. São Paulo: UFMG, 2018. P.23. 14 Fotografia: Sala de leitura elíptica, pranchas do Atlas Mnemosyne, 1926 Fonte: Biblioteca Warburg, Hamburgo 15 2 POSSÍVEIS CAMINHOS Mapa 1: Deslocamentos da planta Fonte: Barney, An Historical Geography of Cannabis A cannabis é uma planta que adora o sol e tem uma geografia histórica muito ampla e difusa. Entre as teorizações que exploram os trajetos dos primeiros usos e popularização da planta na cultura humana, tem-se a evolução dela postulada na Ásia Central, próximo a Mongólia e o sul da Siberia, como sugere o mapa; no entanto, o sul da Ásia ou Afeganistão também são possiveis áreas do inicio da sua domestificação. Essas perspectivas surgem das evidencias arqueobotânicas que analisam a propagação do polém e das sementes, porém há registros documentados de escritos e representações gráficas da cultura do cultivo e utilização da cannabis em diversos lugares no mundo. Após disseminada no Oriente Médio e na Europa Central através de rotas comerciais, como a da seda, a cannabis entra na África Oriental através do Egipto e da 16 Etiópia, provavelmente transportada pelos comerciantes árabes, pois apesar de difusa no continente, seu uso cultural está históricamente associada às populações muçulmanas migrantes.5 Mapa 2: Distribuição global da cannabis por volta de 1500. Fonte: Chris, The african roots of marijuana. As linhagens genéticas Indica e Sativa têm suas dispersões biológicas motivadas por fatores próprios da região. O centro de origem evolutiva da Cannabis sativa sub. indica L. (Lamarck) foi em torno das montanhas Hindu Kush, próximo ao norte da Índia nas terras altas do Sul da Ásia, enquanto a Cannabis sativa sub. sativa L. (Linneo) se originou na região temperada da Ásia Central. 6 5 WARF, Barney. High Points: An Historical Geography of Cannabis, Geographical Review, 2014. University of Kansas, Lawrence. Disponível em Acessado em 23/08/2023. 6 DUVALL, Chris. The african roots of marijuana. Duke University Press, 2019. P.14-20. https://www.jstor.org/stable/43916077 17 3 ATRAÇÃO DIVINA: territórios da Ásia antiga A cannabis é considerada domesticada desde aproximadamente 12.000 a.C.7, atendendo às várias necessidades humanas, como estímulos a percepção, alívio de dores, alimentação, produção têxtil etc. As variações da cannabis é amplamente atribuída à seleção feita pela cultura humana ao longo do tempo. Na farmacopeia chinesa Pen Ts'ao do Império Shen-Nung (figura 1), datada há 2700 a.C., há registros do uso da planta para propósitos como, produção de fibras para tecelagem, papeis, fins narcóticos e terapêuticos por meio da extração de óleo das flores e das sementes. O Pen Ts'ao conta que “o cânhamo cresce ao longo dos rios e vales em T'ai-shan, mas agora é comum em todos os lugares”.8 O "Retrato da Imortal Magu" (figura 2) atribuído a Song Mahezhi (1131-1189) e feito em pergaminho, faz parte do acervo do National Palace Museum de Taiwan. A pintura esteve na exposição "Supernatural Tales of Gods and Ghosts: Paintings from the Museum Collection" em 2013, realizada no próprio museu, mostrando a tradição chinesa de pinturas com deuses e fantasmas, que vem de longa data. À medida que histórias envolvendo deuses e demônios se tornam populares na antiguidade, personagens como os Oito Imortais e a Donzela do Cânhamo ganham destaque em narrativas míticas.9 Magu (麻姑) em chinês, Mago em coreano e Mako em japonês, é uma deusa cosmogônica nos mitos de criação coreanos. Hwang Hye Sook a chama de "Grande Deusa" e propõe o conceito de "Magoísmo," uma matriz cultural antiga do Leste Asiático que se origina do culto a Magu como criadora, progenitora e governante. A mitologia de Magu também é mencionada em textos taoístas, como o "Shenxian zhuan" de Ge Hong, que conta diferentes versões de sua história. Magu é relacionada a festas e celebrações especiais, e sua 7 JIANG, Hong-En; LI, Xiao; ZHAO, You-Xing; FERGUSON, David K.; HUEBER, Francis; BERA, Subir; WANG, Yu-Fei; ZHAO, Liang-Cheng; LIU, Chang-Jiang; LI, Cheng-Sen. A new insight into Cannabis sativa (Cannabaceae) utilization from 2500-year-old Yanghai Tombs, Xinjiang, China. Journal of Ethnopharmacology, 2006. Disponível em Acesso em 30/06/2023. 8 LI HL, Lin H. An archaeological and historical account of cannabis in China. Econ Bot, 1974. P. 37-47. 9 Supernatural Tales of Gods and Ghosts: Paintings from the Museum Collection. National Palace Museum, Taipei, Taiwan. 2013. Disponível em Acesso em 01/08/2023. https://www.mutualart.com/Exhibition/Supernatural-Tales-of-Gods-and-Ghosts--P/4B18209E09A9098D https://www.mutualart.com/Exhibition/Supernatural-Tales-of-Gods-and-Ghosts--P/4B18209E09A9098D 18 imortalidade e ligação com o cânhamo a tornam uma figura especial na mitologia chinesa, sendo vista como uma protetora simbólica das mulheres.10 A interpretação logografica de Magu “麻姑” como a "Deusa/donzela do Cânhamo" é um tema que não há consenso. Os contos coreanos que conectam a Mago ao cânhamo, retratam como a tecelã cósmica que desce à região de Jinhae, em South Gyeongsang, para anunciar a temporada de tecelagem da fibra. Em outras narrativas, ela é vista como a gigante que cria ilhas e rochas, usando o cânhamo em seu tear. Os seguidores de Mago consideravam o cânhamo uma planta sagrada e o usavam de várias maneiras, incluindo na comida, nas roupas, como medicação e nos rituais. Além disso, o cânhamo também servia como moeda desde a dinastia de Joseon (2.333-232 a.C.), mostrando a relação linguística entre o cânhamo e Mago na língua coreana11. Na pintura, Magu, é retratada como uma jovem, com dedos finos e unhas longas, cabelo amarrado com alguns fios soltos. Ela carrega cabaças e uma cesta com fungos espirituais e flores, simbolizando fortuna, longevidade e auspiciosidade. Essa representação reflete sua descrição nas “Biografias de Divindades e Imortais” de Ge Hong (284-363) da dinastia Jin. O cânhamo é retratado no radical chinês 200, denominado “Ma” (figura 3). O kanji 麻, refere-se à cena em que feixes de cânhamo estão secando sob o beiral, é feito de duas pequenas árvores/plantas 木 sob um telhado ⼴ para simbolizar uma planta colhida e armazenada de forma protegida.12 Depois que o cânhamo é colhido, ele é amarrado em feixes e mergulhado na água, esse processo é chamado maceração. Após a secagem, o cânhamo pode ter suas fibras descascadas para tecer, fiar, torcer corda etc. 10 Magu 麻姑 Divinità Taoista Hemp Maiden. Chinese Hemp. Disponível em Acesso em 10/08/2023. 11 HWANG, Helen Hye-Sook. Mago The Creatrix from East Asia, and the Mytho-History of Magoism. Goddesses in Myth, History and Culture. Mago Books, 2018. P.05. 12 Magu 麻姑 Divinità Taoista Hemp Maiden. Chinese Hemp. Disponível em Acesso em 10/08/2023. https://麻.com/it/pages/magu-%E9%BA%BB%E5%A7%91-taoist-deity-hemp-maiden https://麻.com/it/pages/magu-%E9%BA%BB%E5%A7%91-taoist-deity-hemp-maiden https://麻.com/it/pages/magu-%E9%BA%BB%E5%A7%91-taoist-deity-hemp-maiden https://麻.com/it/pages/magu-%E9%BA%BB%E5%A7%91-taoist-deity-hemp-maiden 19 Ilustração 1: A representação do Kanji Fonte: Chinese Hemp O kanji 麻 em japonês é um símbolo versátil que pode se referir tanto à planta da cannabis quanto aos seus derivados. No Japão, o cânhamo desempenhou um papel fundamental ao longo da história, sendo utilizado como matéria-prima para têxteis, alimentos e medicamentos, além de ser a base para objetos rituais empregados por sacerdotes xintoístas. O xintoísmo, considerado o coração espiritual do Japão e intrinsecamente ligado à sua identidade nacional e história, incorpora o cânhamo em suas tradições. A exposição "Cannabis Japonica: Shinto & the Spirit of 麻"13, realizada entre 2022 e 2023 no Hash Museum, em Amsterdam, explora a complexa relação do Japão com o cânhamo, destacando como o kanji 麻 reflete a versatilidade desse elemento na cultura japonesa. Mesmo diante da proibição social e legal da cannabis no Japão, a exposição enfatiza a sua função espiritual, especialmente em rituais de purificação do xintoísmo, que visam conectar as pessoas com os kami - as forças vitais da natureza. Na mostra há xilogravuras da folha de cannabis feitas pelo pintor Kono Bairei (figuras 5 e 6), no século 19, ilustradas na publicação de Senshu no Hana (One Thousand Varieties of Flowers), no centro da exposição há um santuário doméstico japonês, kamidana, proveniente do prestigiado santuário xintoísta Ise Jingu, onde os kami recebem oferendas regulares, em respeito às tradições xintoístas japonesas. A exposição também exibe uma coleção exclusiva de objetos de cânhamo feitos sob medida pela oficina Yamakawa em Kyoto, incluindo um shimenawa, uma corda trançada tradicional feita de fibras de cânhamo, que 13 Cannabis Japonica: Shinto & the Spirit of 麻. Hash Marihuana & Hemp Museum. Amsterdam – Barcelona, 2023. Disponível em Acessado em 10/08/2023. https://hashmuseum.com/en/whats-on/cannabis-japonica-shinto-and-the-spirit-of-hemp/ https://hashmuseum.com/en/whats-on/cannabis-japonica-shinto-and-the-spirit-of-hemp/ 20 demarca um espaço sagrado para os kami. Destaque também é dado a um sino de cânhamo utilizado para purificar visitantes e despertar os kami. No livro "The Encyclopedia of Psychoactive Plants" de Christian Ratsch (1998), são apresentados centenas de nomes utilizados ao longo de milhares de anos e em várias regiões para se referir à cannabis., seja de forma popular, medicinal ou para outros fins. De acordo com o etnobotânico estadunidense Terence McKenna, a cannabis tem sido denominada de diversas formas, “Ela é chamada de kunubu numa carta assíria datada experimentalmente como sendo de 685 a.C.; cem anos mais tarde, é chamada de kannapu, raiz do termo grego e latino cannabís. É bang, beng e bbnj; é ganja, gangíka e ganga. É asa, para os japoneses, é dagga para os hotentotes; também é keif, keef, kerp e ma.”14 Ele ainda pontua que a multiplicidade de nomes pelos quais a cannabis é conhecida em diferentes línguas e culturas não apenas reflete sua história cultural e sua presença ubíqua, mas também evidencia seu poder de evocar a faculdade criativa da linguagem poética da alma15. Na Índia Antiga, por volta de 1400 a.C., o uso da cannabis no xamanismo e nas práticas de yoga estabelecia uma conexão espiritual com os deuses. Os Bramanes, por volta de 700 a.C., utilizavam-na para meditação e concentração, buscando compreender os complexos textos sagrados, como o Rig Veda e o Atharva Veda16. Nesse contexto, ela é considerada uma erva sagrada associada a Shiva, uma das divindades supremas reverenciadas no hinduísmo, que a considerava um presente divino. Shiva, conhecido como "o destruidor e regenerador da energia vital" e aquele que promove o bem. Ele também é reconhecido como o criador do yoga, uma ciência irmã do ayurveda, devido ao seu poder de promover transformações físicas e emocionais nos praticantes. Os documentos clássicos da farmacologia do ayurveda, como o Dravya Gunas, descrevem a cannabis dívida em três partes distintas: ramos, flor e resina. A planta é atribuída a uma ampla gama de benefícios para vários sistemas do corpo humano, incluindo o circulatório, nervoso, digestivo, respiratório, urinário, reprodutivo e dérmico, além das suas propriedades analgésicas, sedativas, afrodisíacas e muitas outras. A cannabis 14 MCKENNA, Terence. O Alimento Dos Deuses. Record. Nova Era, 1992. P.179. 15 Ibidem. P. 179-81. 16 Clarke, R. C., & Merlin, M. D. Cannabis: evolution and ethnobotany. Berkeley, University of California Press, 2013. P.272. 21 desempenhou um papel significativo na forma de uma bebida chamada Bhang, na pintura “Bhang eaters before two huts”, do The San Diego Museum of Art (figura 7), diversos contextos de uso são apresentados. O Bhang era feito a partir da moagem de folhas e flores da cannabis até se tornar uma pasta, para ser adicionada nos alimentos e bebidas, é amplamente comercializado e consumido em rituais religiosos e festividades como Maha Shivaratri e Holi (figura 5). No antigo Egito, também há registro que sugerem a presença do cânhamo na sua cultura. No desenho de Amenhotep I (figura 6), datado há 1075-656 a.C., feito sobre tecido composto de fibra de cânhamo, ou até mesmo pela sugestão de representação da folha do cânhamo na iconografia da deusa Seshat (figura 7), o símbolo levanta muitas literaturas e especulações, mas sem dados históricos que confirmem com precisão uma conexão direta, ambas peças estão preservadas no Brooklyn Museum, em NYC. 22 Figura 1 - Farmacopeia Pen-ts'ao Ching do Império Shen-Nung. Fonte: Kaya Mind 23 Figura 2 - Retrato da Imortal Magu, Song Mahezhi. 1131-1189. Pergaminho, 124,4 x 62 cm. National Palace Museum, Taiwan. Fonte: The National Palace Museum 24 Figura 3 - Dicionário Kanji, definição de "ma". Fonte: YW11.com 25 Figura 4 - Honzo zufu, manual ilustrado de plantas medicinais de kan-en iwasaki, 1828. Fonte: Hemp Today Japan 26 Figura 5 - Kono Bairei. Chigusa no hana. Impressão em xilogravura coloridas. Senshu no Hana (One Thousand Varieties of Flowers), Kyoto, 1890. Fonte: Hash Marihuana & Hemp Museum 27 Figura 6 – Kono Bairei. Asa, Cannabis sativa. Impressão em xilogravura colorida. Senshu no Hana (One Thousand Varieties of Flowers), Kyoto, 1890. Fonte: Herb 28 Figura 7 - Pemji. Bhang eaters before two huts, 1790. The San Diego Museum of Art. Fonte: The San Diego Museum of Art 29 Figura 8 - Assembly of fakirs preparing bhang and ganja, Large Clive Album, século 17- 18. Victoria & Albert Museum, London, UK. Fonte: MeisterDrucke 30 Figura 9 - loja de bhang em Jaisalmer, Rajasthan. Fonte: The Print 31 Figura 10 - Desenho de Amenhotep I, 1075-656 a.C. Cânhamo, 83,8 × 184,2 cm. Fonte: Brooklyn Museum 32 Figura 11- Fragmento egípcio. Deusa Seshat, 1919-1875 a.C. Calcário, 52,5 x 59 cm. Museu do Brooklyn, Fundo Charles Edwin Wilbour, 52.129. Fonte: Brooklyn Museum 33 5 FRAGMENTOS DA IDADE MÉDIA A cannabis é mencionada por Dioscórides (59-79 d.C.) em "Matéria Médica" (figura 12), um compêndio com informações sobre cerca de 500 plantas, representando o conhecimento europeu sobre a vegetação por um período de um milênio e meio17. Na versão encontrada em Istambul em meados do século X, disponível na Biblioteca e Museu Morgan em Nova Iorque18, a cannabis é descrita como tendo duas variedades, a "selvagem" e a "doméstica", nas quais os caules da planta eram utilizados na fabricação de cordas e tecidos, enquanto as sementes eram empregadas em usos farmacêuticos, abrangendo desde o alívio de dores até estímulos sexuais19. Entre uma série de miniaturas de um manuscrito datado no final do século XII e registrado na coleção de Sloane MS20, no catálogo de iluminuras do Museu Britânico em 1975, há uma página dedicada a cannabis (figura 13), com uma ilustração da planta em fase vegetativa, quatro folhas e informações de uso em escrita protogótica. Em 1485, Peter Schoffer publicou uma versão revisada e expandida de um livro de plantas medicinais em alemão, conhecido como "Herbarius zu Teutsch" (Jardim da Saúde). Esta edição apresentou 435 capítulos, com xilogravuras consideradas notáveis que serviram como base para representações botânicas por quase meio século, entre elas, a representação da cannabis com escritos fazendo referência a etimologia “Canapus” em latim, grego e árabe 21. O Código ou Manuscrito Voynich, descoberto na Polônia em 1912, datado no começo do século XV, reúne uma série de escritos em língua protorromânica com ilustrações associadas ao conhecimento botânico, astrológico e farmacológico. A descriptografia dos escritos ainda é um desafio por ter fortes influências de uma língua persa clássica derivada do árabe, mas o conteúdo do texto pode ser visto como uma reminiscência de textos maniqueístas ou gnósticos Através de tabelas de transliteração, em estudos realizados na Universidade de Edimburgo, as propostas de traduções confirmam 17 CARNEIRO, Henrique. O Saber Fitoterápico Indígena e Os Naturalistas Europeus. P.2. 18 Medieval & Renaissance Manuscripts. Disponível em Acessado em 23/07/2023. 19 BENET, Sula. Early Diffusion and Folk Uses of Hemp. Em “Cannabis and Culture”, ed. por Vera Rubin, 45–46. Paris: Mouton. 1975. 20 Detailed record for Sloane 1975. Catalogue of illuminated manuscripts. Library British. Disponível em Acessado em 25/07/2023. 21 Herbarius oder Gart der Gesundheit. Technische Universität Braunschweig. Braunschweig, Alemanha. Disponível em Acessado em 25/07/2023. https://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/record.asp?MSID=8792 http://www.digibib.tu-bs.de/?docid=00040121 34 uma página dedicada a cannabis (figura 15), nela há informações botânicas e etimológicas acompanhada de uma retórica com fortes influências gnósticas, em que a cannabis não é recomendada e frequentemente associada a negatividades malignas 22. O pintor francês Jean Bourdichon criou centenas de páginas de pinturas por volta de 1508 para o manuscrito iluminado "Les Grandes Heures d'Anne de Bretagne", encomendado pela duquesa Ana de Bretanha23. Atualmente, este livro está preservado na Biblioteca Nacional da França e se destaca por suas páginas decoradas com bordas douradas, apresentando flores, plantas, insetos e pequenos animais. O manuscrito começa com um brasão francês, seguido por pinturas de trechos dos evangelhos, retrato de Ana de Bretanha em oração, calendário sazional e zodíaco. Nas páginas 184 (folio 88r) e 189 (folio 90v), a cannabis femea e a cannabis macho (figura 16) aparece entre as demais espécies de plantas com descrição em latim sobre informações da natureza da planta e uso, o livro luxuoso é dos manuscritos iluministas mais importantes da França por se apresentar como antologia daquele contexto.24 Em 1542, é publicado “De historia stirpium commentarii insignes” de Leonhart Fuchs (ou, Comentários notáveis sobre a história das plantas). O livro, em latim, descreve cerca de 497 plantas e suas propriedades medicinais com mais de 500 xilogravuras. Até início do século XVI a literatura botânica, tanto textos como ilustrações, baseavam-se fortemente no trabalho de Dioscórides, embora os primeiros compêndios tenham disseminado o conhecimento, conforme os estudos de fitoterapia avançam as exigências estéticas da representação das plantas passam a ser maiores. Então que Leonhart Fuchs se destaca, mudando drasticamente a qualidade de ilustração botânica. Seu objetivo era reproduzir cada planta como se estivessem vivas, ele afirmou em sua epístola dedicatória que “uma imagem expressa as coisas com mais segurança e as fixa mais profundamente na mente do que as simples palavras do texto”. Fuchs pretendia incluir plantas que conhecia com propriedades medicinais reconhecidas, organizando-as em ordem alfabética pelos 22 The Cannabis Page of the Voynich Manuscript, J. Michael Herrmann. University of Edinburgh, 2018. Disponível em Acessado em 25/07/2023. 23 Les Grandes Heures d'Anne de Bretagn, 2020. Bibliothèque nationale de France. La BnF dans mon salon. Disponível em Acessado em 25/08/2023. 24 Ibidem. https://www.bnf.fr/fr/mediatheque/les-grandes-heures-danne-de-bretagne 35 nomes gregos das plantas25. Nas páginas da Cannabis sativa (figura 17), um é lado dedicado às informações sobre propriedades e referenciando outros compêndios, no outro, uma ilustração precisa e rica em detalhes da planta isolada, diferentemente dos seus antecessores. Mais tarde, Elizabeth Blackwell (1707–1758), considerada a primeira herbalista britânica, criou "A Curious Herbal" com publicações semanais entre 1737-39. Seus desenhos iniciais de ervas medicinais chamaram a atenção de médicos renomados da época, o que a incentivou a continuar seu trabalho ao longo de vários anos, se dedicando a desenhar, gravar e colorir as ilustrações26. Na página dedicada à cannabis (figura 18), a ilustração demonstra um dos focos dos estudos botânicos da época: o sistema sexual das plantas. Nesse contexto, a cannabis masculina e feminina são representadas de forma isolada, com detalhes sobre a divisão das folhas, flores e sementes. Outras ilustrações botânicas seguem o estilo de Elizabeth, como a de Robert Bénard, para o “Encyclopédie méthodique” de 1791, que mostrava uma planta de espinafre na parte superior e uma planta de cannabis na parte inferior da página (figura 19), isso devido à classificação de ambas como plantas dioicas, indicada pelo botânico sueco Carl Linnaeus, quem também introduziu o sistema moderno de nomenclatura binomial por meio de sua obra "Systema naturae" em 1735 e nomeou a espécie como sendo Cannabis sativa L. (de Linnaeus). Já em 1886, uma amostra da cannabis (figura 20) é catalogada no Herbier de Lamarck no Muséum national D'histoire Naturelle, em Paris, se trata do reconhecimento de uma nova espécie da cannabis recolhidas da Índia, batizada pelo biólogo Jean-Baptiste Lamarck como Cannabis indica. . 25 FUCHS, Leonhart. De Historia Stirpium Basel: 1542. Glasgow University Library Special Collections Department, 2022. Disponível em Acessado em 30/08/2023. 26 MADGE, Bruce. Elizabeth Blackwell - the forgotten herbalist? Blackwell Science, 2001. Disponível em Acessado em 30/08/2023. https://www.gla.ac.uk/myglasgow/library/files/special/exhibns/month/oct2002.html https://www.summagallicana.it/lessico/g/galega%20biografia%20Elisabeth%20Blackwell.pdf 36 Figura 12 - Dioscoride Pedanio. De Materia Medica. Turquia, Istambul, meados do século X. Pierpont Morgan Library, New York Fonte: The Morgan Library & Museum 37 Figura 13 - Manuscrito do final do século XII, Inglaterra ou norte da França. Coleção Sloane MS, 1975. Catálogo de Manuscritos Iluminados. Biblioteca Britânica do Museu Britânico. Fonte: The Public Domain Review 38 Figura 14 - Peter Schoffer. Herbarius oder Gart der Gesundheit (Jardim da Saúde), 1485. Technische Universität Braunschweig. Braunschweig, Alemanha. Fonte: Technische Universität Braunschweig 39 Figura 15 - Voynich manuscript, 1400-1599. Europa central. Coleção geral. Beinecke Rare Book and Manuscript Library, Yale University. Fonte: Yale University Library 40 Figura 16 - Cannabis sativa, le "canabs", "chanve fumelle" et "chanve male". Les Grandes Heures d'Anne de Bretagne, 1505-1508. Fonte: Bibliothèque nationale de France - Gallica 41 42 43 Figura 17 - Leonhart Fuchs, Cannabis sativa. Xilogravura. Publicado em De historia stirpium commentarii insignes ("Comentários notáveis sobre a história das plantas"), Basileia, 1542. Fonte: Wellcome Trust Corporate Archive 44 Figura 18 - Elizabeth Blackwell. Cannabis mas. and Cannabis foemina. Ilustração para “A Curious Herbal”. Gentleman's Magazine, 1737. Fonte: MeisterDrucke 45 Figura 19 - Diocas: Espinafre; Cannabis. Robert Bénard. Encyclopédie méthodique. 1791. Fonte: Hash Marihuana & Hemp Museum 46 Figura 20 - Cannabis indica. Espécime coletado por Pierre Sonnerat na Índia e agora no Herbário Lamarck. Muséum national d'Histoire naturelle, Paris. 1886. Fonte: Muséum national d'Histoire naturelle 47 5 ERA MODERNA: entre médicos, poetas e produtos. A "Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers," produzida por Denis Diderot e Jean le Rond d'Alembert entre 1751 e 1772, foi uma obra composta por 17 volumes de texto e 11 volumes de placas, contendo mais de 74.000 artigos escritos por mais de 130 colaboradores, abrangendo uma variedade de campos do conhecimento27. Através de uma abordagem sistemática inovadora - decorrente do pensamento iluminista da época -, a Enciclopédia exemplifica os objetivos de segmentar o conhecimento humano em métodos, como é o caso da agricultura até a produção têxtil do cânhamo. No capítulo dedicado a este processo, intitulado "CHANVRE, Premier travail à la campagne" (CÂNHAMO, Primeiro trabalho no campo), são descritas em ilustrações as etapas envolvidas que vai da colheita a secagem, separação das fibras utilizadas na fabricação de cordas e tecidos (figura 21). Embora os tecidos utilizados na pintura em tela atualmente sejam feitos de linho, algodão ou cloreto de polivinila, sua origem histórica é o cânhamo28. A utilização das fibras do cânhamo no contexto da tecelagem estabelece uma trama singular com sua aplicação no âmbito artístico, considerando que o cânhamo foi um insumo primordial para a produção de tecidos antes da difusão massiva do algodão. As propriedades físicas do material como, qualidades antibacterianas, resistência estrutural, longevidade, impermeabilidade ao mofo, alta capacidade de suportar tração e radiação ultravioleta, bem como superior produtividade em relação ao linho e ao algodão pela dispensa de agrotóxicos e menor demanda hídrica durante o cultivo, viabilizou uma interrelação duradoura. O termo “oil on canvas", tradicionalmente associada à técnica da pintura a óleo, revela uma confluência inclusive etimológica: "canvas"29 é oriundo do vocábulo latino "cannapaceus", que tangencia a concepção de algo confeccionado a partir das fibras de cânhamo. 27 The ARTFL Encyclopédie. The University of Chicago. Disponível em . Acessado em 02/09/2023. 28 ELNASHAR, Elsayed Ahmed. Compact Force Effects of Canvas Stretched Woven Fabrics and the Angle- view on the Philosophy of Painting "Ages" of Artist's Sergi Cadenas. American Journal of Art and Design, 2020. Disponível em Acessado em 02/09/2023. 29 “Canvas”. The Lexis of Cloth and Clothing Project. The University of Manchester. Disponível em Acessado em 15/09/2023. https://encyclopedie.uchicago.edu/ https://www.sciencepublishinggroup.com/journal/paperinfo?journalid=106&doi=10.11648/j.ajad.20200501.11 https://www.sciencepublishinggroup.com/journal/paperinfo?journalid=106&doi=10.11648/j.ajad.20200501.11 48 Já as propriedades médicas e terapêuticas da planta desperta grande interesse na Europa moderna em meados do século XIX. O médico irlandês William Brooke O'Shaughnessy (figura 22), da Universidade de Calcutá, na Índia, desempenhou um papel fundamental na disseminação do conhecimento sobre as propriedades medicinais da cannabis ao publicar diversos relatos de tratamentos médicos realizados com a planta em humanos e animais, sobretudo os cães. Sua contribuição para o uso terapêutico da cannabis no mundo europeu foi consolidada em 1840, quando publicou um ensaio intitulado "Caso de tétano curado com preparo de cânhamo" nas atas da Sociedade Médica e Física de Bengala. Posteriormente, em 1845, o psiquiatra Jean Jacques Moreau publicou em Paris sua pesquisa intitulada "Du hachisch et de l'aliénation mentale: études psychologiques", a qual narrava os costumes hindus que envolviam o consumo da planta por meio de cachimbos e outros dispositivos de fumo. Essa descrição estimulou a adoção da cannabis para fins medicinais, mas simultaneamente também inspirando artistas que a utilizaram como fonte de criatividade, como o notável “Le Club des Haschischins" em Paris, composto por Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Théophile Gautier, Gérard de Nerval e Alexandre Dumas, em torno do psiquiatra Jacques-Joseph Moreau. Ademais, muitos outros grupos esotéricos almejavam explorar estados alterados de consciência por meio do consumo da planta, dessa forma, ambos os médicos pioneiramente promoveram discussões acerca da aceitabilidade e utilização da cannabis na cultura ocidental moderna. No artigo “Drogas: Experimentações estéticas e literárias”30, o autor explora a influência de Arthur Rimbaud na poesia, destacando sua ligação com o haxixe. Rimbaud, foi um poeta rebelde desde a infância, fugiu para Paris durante a guerra franco-prussiana e adotou um estilo de vida boêmio, mas também imerso no consumo de flores de cannabis, haxixes etc. Inspirado por Baudelaire, ele criou um programa poético apocalíptico, defendendo a exaltação dos sentidos como virtude. Rimbaud em Paris ridicularizava o movimento parnasiano, vivia uma conexão conturbada com Paul Verlaine enquanto participava do clube com os demais poetas, essas experiências foram fundamentais para a 30 PECCIOLI, R. Marcelo. Drogas: Experimentações estéticas e literárias. São Paulo, Aurora: revista de arte, mídia e política. São Paulo, 2013. P.107-126. 49 criação de poemas notáveis como "Manhã de Embriaguez" e "Vogais", em que faz referência ao consumo e marca sua breve carreira poética, encerrada aos 19 anos. Em uma passagem de “Paraísos Artificiais”, Baudelaire descreve os efeitos do consumo como um processo de autoconhecimento: “O cérebro e o organismo sobre os quais opera o haxixe oferecerão apenas seus fenômenos comuns, individuais, aumentados, é verdade, quanto ao número e à energia, mas sempre fiéis às suas origens. O homem não escapará à fatalidade de seu temperamento físico e moral: o haxixe será, para as impressões e os pensamentos familiares do homem, um espelho que aumenta, mas um simples espelho.”31 No entanto, o autor recomendava cautela ao experimentar o haxixe, aconselhando que fosse feito em ambientes propícios, alertando para os extremos de alegria e dor. Baudelaire, descreveu experiências diversas, mas transita em um inesperado moralismo, fazendo alusões ao cristianismo e propondo uma cruzada contra o uso de drogas. Ele não se encaixou no estereótipo de "maldito" por não desafiar as moralidades, ao contrário, alertou para supostos perigos morais do haxixe, considerando-o um veneno do espírito. Por fim, ele se posicionou a favor do proibicionismo, elogiando a proibição do haxixe pelo Estado egípcio, argumentando que tais drogas poderiam minar a vontade do indivíduo e tornar inútil a estimulação da imaginação.32 “No Egito, o governo proíbe a venda e o comércio do haxixe, pelo menos no interior do país. (...) O governo egípcio tem razão. Jamais um Estado racional poderia subsistir com o uso do haxixe. Este não produz nem guerreiros nem cidadãos. Na verdade, o haxixe é proibido ao homem sob pena de degradação e morte intelectual, de transformar as condições primordiais de sua existência e romper o equilíbrio de suas faculdades com o meio. Se 31 BAUDELAIRE, Charles Pierre. As flores do mal. O Teatro Serafim. Tradução de Alexandre Ribondi, Vera Nobrega e Lúcia Nagib. Porto Alegre: L&PM, 2011. P.14. 32 PECCIOLI, Marcelo Romani (2012). Drogas: experimentações estéticas e literárias. Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, 2013. 50 existisse um governo interessado em corromper os seus governados, bastaria encorajar o uso do haxixe.”33 Em um contexto não muito distante, o pintor italiano Gaetano Previati, dedicado ao estilo neo-impressionista também decide abordar o tema de forma considerada ousada para a época com correspondências em passagens baudelairianas. Em "Haschisch: fumatrici d'oppio" (figura 23), a cena é caracterizada pelo estilo típico de Previati, com luminescências cromáticas que criam contrastes e evidenciam partes da anatomia das figuras femininas. Os cigarros, que são a origem do 'êxtase', fazem com que quatro mulheres apareçam relaxadas, enquanto a quinta, contra a luz ao fundo, segura uma bandeja onde possivelmente há mais haxixe.34 Mas os tabus e preconceitos relacionados ao fumo pela associação com cultura indiana ou árabe não inibiu a circulação e transformação da cannabis em produtos ao longo do século XIX e no início do século XX, ao contrário, tinha-se derivados da cannabis em extratos, tinturas e cigarrilhas, como é o caso de Cigarettes indiennes Grimault (figura 26) que circulava no comércio como indicação médica “contra a bronchite chronica das crianças (...) asthma, na tísica laryngea”35, Dr. Poppy's Wonder Elixir (figura 30) recomendado como bebida matinal, Maltos Cannabis (figura 29) divulgado nos jornais e revistas dinamarqueses como "uma excelente bebida para o almoço, especialmente para crianças e jovens" e "um medicamento saudável que foi usado com grande sucesso contra doenças pulmonares, anemia, catarro gástrico, escrófula, neurastenia, astenia e emaciação"36. Ao passo que na história infantil Max & Moritz de 1864, do caricaturista alemão Heinrich Christian Wilhelm Busch, no capítulo oito republicado em Nova Iorque em 1962, como “VIII - The boy and the pipe: the story of the disobedient boy whould smoke his father's pipe. (tradução inglês Abby Langdon Alger)”37, Busch narra em quadrinhos a história de Krischan mit der Piepe (Krischan e o cachimbo), uma criança que desobedece 33 BAUDELAIRE, Charles Pierre. As flores do mal. O Haxixe: VI. Tradução de Alexandre Ribondi, Vera Nobrega e Lúcia Nagib. Porto Alegre: L&PM, 2011. P.101. 34 Haschisch: fumatrici d'oppio. Patrimonio culturale dell'Emilia Romagna, 2020. Disponível em Acessado em 17/08/2023. 35 CARLINI, Elisaldo Araújo. A história da maconha no Brasil. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 2006. 36 DECORTE, T.; POTTER, G. R.; BOUCHARD, M. (Eds.). World Wide Weed: Global Trends in Cannabis Cultivation and its Control. 2011. P.80. 37 BUSCH, Wilhelm. edit. e trad. KLEIN, Arhur H. Max and Moritz, with many more mischief-makers more or less human or approximately animal. Dover Publications, Inc. New York, 1962. https://bbcc.ibc.regione.emilia-romagna.it/pater/loadcard.do?id_card=49581 51 ao pai e fuma seu cachimbo escondido (figura 32), logo em seguida a fumaça gera uma cena de desordem bem caricata e surge então uma figura assombrando e perseguindo o garoto como punição depois surge a mãe acalmando a cena. A ilustração, apesar de caricata e satírica, exporia de forma menos despretensiosa as consequências da desobediência infantil se não fosse pela figura secundária, mas não menos importante, a figura que surge do cachimbo para assustar o garoto. Nitidamente se trata da representação de um corpo negro num dos seus piores estereótipos, não muito diferente do que viria a ser depois os blackface na cultura norte-americana. Já as fibras de cânhamo na Alemanha desempenharam um papel vital na vida cotidiana do Segundo Reich, como retratado no livreto de poemas sobre o cânhamo “Büchlein vom Hanf. Gedichte von H. Jäde, Zeichnungen von C.W. Müller” (The Little Book of Hemp, Poems by H. Jäde, illustrations by C.W. Müller, 1889) (figura 31). Atualmente, o livreto faz parte das exposições do Hash Marihuana & Hemp Museum em Amsterdã38 e descreve a importância do cultivo do cânhamo na região da Alsácia, contribuindo para a economia alemã recém unificada - embora as ilustrações transmitam uma visão romântica da vida rural, o processamento do cânhamo era um trabalho árduo realizado por famílias inteiras. Mas após a Segunda Guerra Mundial, o cultivo do cânhamo na Alemanha tornou-se praticamente irrelevante devido à competição com fibras importadas, como algodão, juta e as novas fibras sintéticas. Em 1982, uma mudança na lei proibiu completamente o cultivo de cânhamo, forçando Martin Butter, o último produtor de cânhamo da Alemanha, a interromper a produção. Somente 14 anos depois, a proibição foi suspensa em resposta a protestos e demandas por parte de entusiastas da cannabis, cientistas e grupos ambientais. Desde então, o cânhamo foi redescoberto como uma cultura importante na Alemanha, proporcionando aos agricultores uma oportunidade valiosa. Paralelamente, no início do século XX o governo russo instaura a expansão da semeadura do cânhamo como projeto de restauração econômico soviético (figura 34-37). Isso porque, anteriormente, uso generalizado de cabos metálicos nas indústrias diminuiu significativamente a demanda pelas cordas de cânhamo e, como a exportação de linho e algodão já haviam superado a de cânhamo para produção têxtil, os camponeses foram forçados a dar preferência ao cultivo de batatas por proporcionar uma alimentação mais 38 Hemp in Germany. Little book about hemp. Hash Marihuana & Hemp Museum. Disponível em Acessado em 25/09/2023. 52 estável em condições de escassez aguda de outros alimentos no período pós- revolucionário39. Após o término da Primeira Guerra Mundial, o autor russo Ivan Novikov lança um notável livro infantil de poemas em 1926 (figura 38), intitulado "Konopel- Konopelka” (Cânhamo – Cannabis). O tema central é a instrução do cultivo de cânhamo para as futuras gerações. Através da poesia, Novikov narra as inúmeras aplicações do cânhamo e ressalta os profundos vínculos culturais que planta mantém com a humanidade, além dos poemas, o livro também inclui canções relacionadas para a compreensão da relação entre a planta e a cultura ao longo das estações do ano40. Na Biblioteca Nacional Pushkin da República da Mordóvia , no Museu de Arte Multimídia de Moscou, fotos da colheita ao processamento fazem parte do acervo histórico dessa memória econômica. O projeto "História da Rússia em Fotografias", desenvolvido com o apoio da Yandex (mecanismo de pesquisa e portal web da Rússia) e do Ministério da Cultura da Federação Russa, traz uma coleção de fotografias tiradas no território por quase um século e meio, a partir de 1840 (figura 41). Seja em uma pequena pintura de paisagem em papel (figura 42), nos cartazes de incentivo da União de Designers da Bielorrússia (figura 40), nos cartazes sobre a colheita recorde de cânhamo na fazenda coletiva "Power of Labor", do distrito de Kromsky (figura 41), ou até mesmo com a revista “Linho Cânhamo” de 1933 (figura 38) produzida e distribuída pelo governo soviético, podemos ter insights da importância da planta nas políticas pública da época; os incentivos ao cultivo era tão significativo que agricultores com bons resultados recebiam broches com inscrição de “Mestre Fazendeiro de Cânhamo” (figura 44). No distrito de Kimovsky, em 1778, foi aprovada pelo Supremo uma bandeira com referência à planta, cuja descrição dizia: “Escudo, campo prateado com preto abaixo da terra, do qual crescem três épicas de cânhamo, mostrando que a circunferência desta cidade, entre outras obras, é abundante em cânhamo” (figura 43). A fonte "Druzhba Narodov", construída em Moscou na década de 50 (figura 45) com o objetivo de representar a identidade e a "Amizade do Povo" na União Soviética, apresenta dezesseis figuras feitas de bronze e ouro. Cada mulher está vestida de maneira distinta, representando 39 SERKOV, V.A.; SMIRNOV, A.A.; ALEXANDROVA, M.R. The history of hemp in Russia / История коноплеводства в России. Oil Crops Scientific and Technical Bulletin of All-Russian Research Institute of Oil Crops by the Name of Pustovoit V.S., 2018. 40 Teach the Children, 1926. The Canna Chronicles, 2019. Disponível em Acessado em 05/10/2023. 53 as antigas repúblicas, e elas formam um círculo ao redor de um grande feixe de plantas, entre várias é possível identificar folhas de cannabis. 54 Figura 21 -Denis Diderot. Chanvre, Premier travail à la campagne. Encyclopédie, ou Dictionnaire des sciences, des arts et des métiers, 1751-72. Fonte: The Herb Pantagruelion 55 DESCRIÇÃO DAS FIGURAS41 Figura1: “Routoir” onde o cânhamo é colocado (ao fundo). Várias pessoas estão cobrindo-o com tábuas e colocando pedras em cima para mantê-lo submerso na água. Figura 2: Um trabalhador passa o cânhamo por uma máquina para separar as sementes que ficaram. Figura 3: O "haloir", uma cabana onde o cânhamo é colocado sobre estacas acima de um fogo para secar. Figura 4: Uma mulher está trabalhando no cânhamo, separando a casca da fibra. Figura 5: Um trabalhador quebra as fibras de cânhamo entre as mandíbulas de uma máquina. Figura 6: Um trabalhador bate no cânhamo com uma ferramenta chamada "espadon" sobre uma placa vertical. Figura 7: Um trabalhador sacode o cânhamo contra uma placa para soltar as fibras. Figura 8: Outro trabalhador realiza a mesma operação em outra placa vertical. Figura 9: A base da placa onde a máquina da Figura 2 está apoiada. Ela é pesada com pedras para evitar que caia. 41 Tradução livre de: Chanvre dans l’Encyclopédie de Diderot et d’Alembert. The Herb Pantagruelion, 2021. Disponivel em Acessado em 08/10/2023 56 Equipamentos utilizados para extração da fibra 57 58 DESCRIÇÃO DAS FIGURAS42 Figura 1, 2, 3: Penteadores; alguns deles penteiam o cânhamo em um pente inicial e outros em pentes finais. Esses pentes estão colocados em grandes mesas, sustentadas por cavaletes e fixadas na parede. Figura 4: Um penteador passa a sua porção de cânhamo pelo ferro “A” para aperfeiçoar o meio da fibra e remover as partes não desejadas que o pente não conseguiu tirar. Figura 5: Um trabalhador esfrega o meio da sua porção de cânhamo em um "frottoir" para terminar de aperfeiçoar essa parte. Na parte inferior da placa, temos mais informações sobre o maquinário: Figura 6: Representa um grande pente com 42 dentes de 12 a 13 polegadas de comprimento. Ele é usado para criar pentes menores. Figura 7: Mostra um pente inicial com o mesmo número de dentes, mas com 7 a 8 polegadas de comprimento. Figura 8: Apresenta um pente final com o mesmo número de dentes, mas com 4 a 5 polegadas de comprimento. Figura 9: Mostra um pente fino com 36 dentes. Figura 10: Descreve um ferro separado do poste a que está fixado na ilustração. A peça curva que atravessa o poste em B é fixada com uma rosca e uma porca. C mostra outra forma de fixá-lo, usando uma peça dupla que atravessa a peça curva e a impede de sair. Figura 11 e 12: Apresentam um plano e um corte do "frottoir". 42 Tradução livre de: Chanvre dans l’Encyclopédie de Diderot et d’Alembert. The Herb Pantagruelion, 2021. Disponivel em Acessado em 08/10/2023. 59 43 43 (tradução livre: Os efeitos narcóticos do cânhamo são popularmente conhecidos no sul da África, América do Sul, Turquia, Egito, Ásia Menor, Índia e nos territórios adjacentes dos malaios, birmaneses e siameses. Em todos esses países, o cânhamo é usado de várias formas, pelos dissipados e depravados, como o agente pronto para uma intoxicação agradável. Na medicina popular dessas nações, a encontramos extensivamente empregada para uma infinidade de afecções. Mas na Europa Ocidental, seu uso como estimulante ou remédio é igualmente desconhecido. Com exceção do experimento, como uma brincadeira, do egípcio "Hasheesh", por alguns jovens em Marselha, e do uso clínico do vinho de cânhamo por Mahneman, conforme mostrado em um extrato subsequente, fui incapaz de rastrear qualquer aviso do emprego desta droga na Europa.) 60 Figura 22 - William Brooke O'Shaughnessy, 1837. Colesworthey Grant. Fonte: India Review 61 Figura 23 - Gaetano Previati. Haschisch: fumatrici d'oppio, 1887. Óleo sobre tela, 150 x 80 cm. Galleria d'Arte Moderna Ricci Oddi. Fonte: Patrimonio culturale dell'Emilia Romagna 62 Figura 24 - Honoré Daumier, Les Fumeurs de Hadchids, 1845. Litografia. Coleção Rosenwald. Fonte: Musée d'Orsay Publicada na revista ilustrada de Paris Le Charivari. Ilustração da série “Les Beaux Jours de la Vie”, (Os belos dias da vida, pág. 69)44, do pintor, gravador e caricaturista francês Honoré Daumier, publicado entre 1843-46. Acompanha o texto: “LES FUMEURS DE HADCHIDS. - Ah! quel plaisir oriental je begin à éprouver... il me parece que je trotte sur un chameau!... - Et moi... je crois recevoir.. un bastonnade!”45 44 University of North Dakota. UND Art Collections Repository. Disponível em < https://commons.und.edu/uac-all/3339/, < https://commons.und.edu/daumier-prints/439/> acessado em < 06/08/2023 >. 45 tradução livre: “O FUMADOR DE HAXIXIS. - Ah! que prazer oriental começo a sentir... parece-me que estou montado num camelo!... - E eu... acho que estou levando... uma surra!” https://commons.und.edu/uac-all/3339/ https://commons.und.edu/daumier-prints/439/ 63 Figura 25 - Emile Bernard, Fumeuse de Haschisch, 1900. Óleo sobre tela. Musée d'Orsay. Fonte: Estadão 64 Figura 26 - Cigarettes indiennes Grimault & cie. Paris. Fonte: Te Ara - Encyclopedia of New Zealand 65 Figura 27 - Anúncio dos cigarros Grimault's nos jornais New Zealand, em 1882 e no Evening Post, em 1904. Fonte: Le Chanvre - Botanique Illustrée 66 Figura 28 - Chocolate Guerin-Boutron. Cartão comercial, impressão em gravura, edição “Le chanvre: La toile, les cordes, huile de chènevis”, 1890. Fonte: Cannabis: A Complete Guide 67 Figura 29 - Maltos-cannabis. Bebida a base de malte e cânhamo. Anúncio. Produzida entre 1892-1912. Suécia, Dinamarca, Noruega. Fonte: Hash Marihuana & Hemp Museum 68 Figura 30 - Dr. Poppy's Wonder Elixir, 1800-1950. Australia. 46 Fonte: Hash Marihuana & Hemp Museum 46 Placa de metal esmaltada anunciando o Dr. Poppy's Wonder Elixir. Medicamento a base de extrato de cannabis, começou na Austrália no final de 1800 e continuou até a década de 1950. Foi recomendado como uma bebida matinal para passar o dia. Tradução livre: “Um copo pela manhã é garantido para aliviar os sintomas e deixar uma sensação agradável.” 69 Figura 31 - Büchlein vom Hanf (livreto do cânhamo), 1889. Hash Marihuana & Hemp Museum. Fonte: Projekt Gutenberg 70 Figura 32 - Wilhelm Busch. Livro ilustrado Krischan mit der Piepe (Krischan e o cachimbo), 1864. Fonte: Lambiek comix 71 72 73 74 75 76 Figura 33 - Wilhelm Busch. Max e Moritz, 1865. Fonte: Lambiek comix 77 Figura 34 - Colheita do cânhamo. Biblioteca Nacional Pushkin da República da Mordóvia Fonte: The National Library of Russia 78 79 Figura 35 - Secagem das fibras de cânhamo. Biblioteca Nacional Pushkin da República da Mordóvia. Fonte: Russiain Photo 80 Figura 36 - Processamento de cânhamo no distrito de Karachaevsky, na província de Bryansk, 1929. Moskovskiy Dom Fotografii. Museu de Arte Multimídia de Moscou. Fonte: Dzen.ru 81 Figura 37 - A delegação soviética inspeciona um campo de cannabis na Roménia, 1951. Fonte: Dzen.ru 82 Figura 38 - Revista "Linho e Cânhamo", 1933. Fonte: Dzen.ru 83 Figura 39 - Ivan Novikov. Konopel-Konopelka, 1926. Editora do Estado da URSS. Fonte: Tradução literária 84 Figura 40 - Cartaz sobre a colheita recorde de cânhamo na fazenda coletiva "Power of Labor" (distrito de Kromsky, região de Oryol): 218 quintais foram coletados em 32 hectares. sementes e 1024 c. confia. O pôster foi publicado pela editora Orlovskaya Pravda. Fonte: Live Journal 85 Figura 41 - L. Zamakh. Expanda as áreas de cultivo de cânhamo em turfeiras! 1954. Cartaz. União Bielorrussa de Designers. Kromskoy, Rússia. Fonte: Live Journal 86 Figura 42 - S. F. Shishko. Cânhamo, 1940, óleo sobre papel cartão, 27,7x29,5 cm. Fonte: Live Journal 87 Figura 43 - Bandeira do distrito de Kimovsky. Aprovado pelo Supremo em 8 de março de 1778, a descrição original diz: “Escudo, campo prateado com preto abaixo da terra, do qual crescem três épicas de cânhamo, mostrando que a circunferência desta cidade, entre outras obras, é abundante em cânhamo.” Fonte: Geraldika ru 88 Figura 44 - Broche "Mactepy konoplevodstva" (Mestre Fazendeiro de Cânhamo), URSS. Fonte: THTC Figura 45 - Fontaine "Druzhba Narodov", 1954. Dezesseis figuras douradas representando as antigas repúblicas da União Soviética. 89 Fonte: Stylishmaze 90 6 PIPE DREAM PARA OS AMERICANOS Os primeiros vestígios da cannabis registrado na América do norte remonta a tempos pré-históricos. Em 1891, o etnólogo William Henry Holme, do Instituto Smithsonian, encontrou resíduos da flor e haxixe nos artefatos conhecidos como Death Mask Mound da cultura Hopewell, por volta de 400 a.C. na região do Ohio47 (figura 46). Nas viagens dos vikings pela América, além do cânhamo utilizado nas velas e cordas, a semente também era transportada em longas estadias e para casos de naufrágio48. Os indícios de cânhamo, flor ou haxixe em artefatos de diversas culturas são frequentemente encontrados e revelados pelos arqueólogos. As plantações de cannabis tiveram forte presença durante a expansão territorial ao longo do século XVIII e XIX. Os registros das primeiras plantações de cânhamo no estado de Kentucky são datados por volta de 1775 (figura 48) nas terras de Bluegrass. No início do século XIX, houve uma crescente de fábricas para tecidos e cordas e, antes da metade do século, só as fazendas de Kentucky produzia toneladas de fibras de cânhamo. O sistema de trabalho com mão de obra escravizada exigia uma cota diária de produção, em que atingindo-se meta os trabalhadores recebiam alguns centavos. Após a Guerra de Secessão quando a mão de obra escravizada é abolida, a produção cai quase pela metade, visto que o domínio das técnicas de plantação até tecelagem era majoritariamente da população negra em condições de escravidão49. A cultura do cânhamo foi uma das primeira introduzidas na América do norte, como aponta Sidney Smith Boyce no “Hemp (Cannabis Sativa): A Practical Treatise on the Culture of Hemp for Seed and Fiber, with a Sketch of the History and Nature of the Hemp Plant”, publicado em 1900 em Nova Iorque (figura 47). No tratado, com uma série de fotografias dos agricultores nos campos de cultivo ilustrando esse momento ostensivo, conta histórias e técnicas do uso do cânhamo como uma grande potência agrícola multifuncional, destacando inclusive no cultivo voltado para produção de sementes utilizadas em manufaturas diversas. Mas as técnicas de processamento das fibras utilizadas pelos americanos eram inferiores comparadas a tecnologia russa, o que as tornavam 47 NELSON, Robert A. A History of Hemp: Chapter 2 Hemp in America. Disponível em Acessado em 15/09/2023. 48 ROBISON, Rowan. O grande livro da Cannabis: um guia completo de seu uso industrial, medicinal e ambiental. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1999. P.88-100. 49 NELSON, Robert A. A History of Hemp: Chapter 2 Hemp in America. Disponível em Acessado em 15/09/2023. http://www.rexresearch.com/hhist/hhist2.htm#refs http://www.rexresearch.com/hhist/hhist2.htm#refs 91 inadequadas para aplicações navais, mas, é onde então a produção de cânhamo americana se dedica a produção têxtil, como lonas e linhos, produtos em óleo, tinturas outros usos domésticos50 (figura 52). Antes do American Dream, o Pipe Dream51 era a realidade americana com as experiências do ópio. Michael Starks52 discute como que até a década de 1920, o consumo da cannabis era associado ao haxixe fumado em narguilés como influência oriental, e, confundindo as formas de uso e seus efeitos com o ópio. O tema de pessoas fumando e com aparições é presente em cartões postais (figura 50) aos primeiros experimentos no cinema (figura 51). À medida que o uso de maconha se espalhava do México para o sudoeste dos Estados Unidos, ela começa a aparecer em filmes ambientados no Velho Oeste, em que se retratavam cowboys cometendo atos violentos após fumar maconha. Durante o século XIX, o censo do governo dos Estados Unidos apurava a quantidade de cânhamo colhido, sobretudo nas plantações realizadas com mão de obra escravizada no Sul e nas fronteiras do país53. Nos estados do norte abolicionista, a demanda pelo cânhamo e pela flor da cannabis era tão alta que os agricultores corriam o risco de prisão por não cultivarem suficiente para atender às necessidades das cidades. Mas essa multifuncionalidade do cânhamo na aplicação fabril e seus potenciais como biocombustível, se tornava também uma ameaça e alta concorrência que impediria o avanço da indústria petrolífera e madeireira nos interesses de aumentar a lucratividades, pesquisas e produção de plásticos à base de petróleo e papéis com as monoculturas de eucaliptos e pinus. Além do mais, como aponta Henrique Carneiro54, a experiência do proibicionismo através da Lei Seca, entre 1920 e 1934: “(...) fez surgir as poderosas máfias e o imenso aparelho policial unidos na mesma exploração comum dos lucros aumentados de um 50 Borougerdi, Bradley J. Cord of Empire, Exotic Intoxicant: Hemp and Culture in the Atlantic World, 1600- 1900. University of Texas at Arlington, 2014. 51 Expressão utilizada pelo The Chicago Daily Tribune, em dezembro 1890: "It [aerial navigation] has been regarded as a pipe-dream for a good many years." Referente ao uso do ópio nos EUA. Disponível em Acessado em 25/09/2023. 52 STARKS, Michael. Cocaine Fiends and Reefer Madness: An Illustrated History of Drugs in the Movies. Pipes Dream, P. 31. Berkeley High, Berkeley, CA. Cornwall Books, 1982. 53 HERER, Jack. O Rei está Nú. Notas Históricas Americanas, Resenha Histórica sobre o Cânhamo. 1998. P.2-10. 54 CARNEIRO, Henrique. As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XXI. Revista Outubro, IES, São Paulo, vol. 6, 2002, pp.115-128. 92 comércio proibido, que fez nascerem muitas fortunas norteamericanas, como a da família Kennedy, por exemplo. O fenômeno da Lei Seca se repete no final do século XX, numa escala global, com uma dimensão muito mais gigantesca de um comércio de altos lucros geradores de uma violência crescente. O consumo de drogas ilícitas cresce não apesar do proibicionismo também crescente, mas exatamente devido ao mecanismo do proibicionismo que cria a alta demanda de investimentos em busca de lucros” O uso da cannabis foi amplamente difundido como um medicamento patenteado durante os séculos XIX e XX, sendo descrito pela primeira vez na Farmacopeia dos Estados Unidos em 185055. Mas a transição de alguns produtos legais para a ilegalidade é impulsionada pelas leis americanas com resultados lucrativos. Em 1937, é promulgado a Lei do Imposto sobre a Maconha cujo objetivo é cobrar uma taxa sobre o cultivo, distribuição, produção de manufaturas e qualquer outro negócio ou prescrição que envolva maconha56, com selos e notas que indicam valores de um a cinco dólares (figura 53). Após a aprovação da lei de 1937, a cannabis foi removida da Farmacopeia dos Estados Unidos em 1942, e as penalidades legais para posse aumentaram em 1951 e 1956 com a promulgação das Leis Boggs e de Controle de Narcóticos, respectivamente, culminando na proibição sob a lei federal com a Lei de Substâncias Controladas de 1970. Entre os registros das primeiras apreensões neste período, uma série de fotos irônicas de policiais boquiabertos com um vaso de maconha que é enviado para a prisão de Van Nuys em 1951 (figura 54), foi matéria de jornais em Los Angeles57. Mas no anúncio distribuído pelo Departamento Federal de Narcóticos dos EUA entre 1935 e 1970 (figura 55), temos uma demonstração gráfica de começa operar essas intenções esteticamente. 55 Mary Barna Bridgeman; Daniel T. Abazia. Medicinal Cannabis: History, Pharmacology, And Implications for the Acute Care Setting, 2017. National Library of Medicine. Disponível em Acessado em 25/06/2023. 56 The Marihuana Tax Act, 1937. Disponível em Acessado em 25/09/2023. 57 Los Angeles Examiner Collection, 1920-1961. University of Southern California Digital Library. Disponível em Acessado em 29/09/2023. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5312634/ https://www.druglibrary.org/schaffer/hemp/taxact/mjtaxact.htm 93 Neste contexto, como reflete o pesquisador Yuri Sá Oliveira em um de seus artigos58, a proibição e a regulamentação das substâncias rapidamente se convertem em um sistema moral que expressa intolerância em relação às pessoas que as consomem. Em diálogo, Max Shulman59 analisa em sua dissertação como o teatro e o cinema refletiram aos apelos nacionais por reformas nas políticas de drogas, promovendo novas narrativas sobre o vício que apoiavam a crescente proibição. Essas narrativas se originaram na Era Progressista e, persistiram nas décadas de 1920 e 30 contribuindo para a percepção do vício em drogas como uma ameaça à estabilidade familiar e à autonomia individual. São tramas com representações marcadas pelo esforço de influenciar o pensamento e o comportamento social, ligando-se à formação da identidade da classe média e destacando a dependência como uma consequência da não conformidade com as normas nacionais. As narrativas de drogas frequentemente começavam com o viciado já profundamente envolvido na dependência, discutindo uma inocência perdida e o momento da queda. Mas Shulman, aponta como os filmes "Reefer Madness" (figura 58), "Assassin of Youth"(figura 59) explora a trajetória e os danos causados pelo uso de narcóticos em uma nova estrutura. Os filmes dos anos 1930, passam também a introduzir o personagem central antes de sua dependência, acompanhando a transformação do novato ao viciado confirmado, em uma sequência de sedução, primeiros usos sob a influência de pessoas aparentemente amigáveis até o abuso de confiança da vítima. Quando o cinema sonoro chega para revolucionar a indústria, a maconha estava gradualmente se popularizando entre todos, além dos círculos de trabalhadores mexicanos, músicos de jazz e as comunidades marginalizadas. Nesta época, os escândalos de sexo e drogas envolvendo as estrelas de Hollywood, somado as cenas ousadas nos diversos filmes distribuídos, levaram a uma pressão intensa para a censura, resultando na introdução do Código de Produção de Filmes em 1930, o mesmo ano em que os filmes sonoros se tornaram populares. Starks aponta como Hollywood certamente teria explorado o assunto da maconha de forma mais potente se não fosse pela censura severa e, sobretudo, pelos departamentos do governo federal estarem trabalhando para convencer o público americano 58 SOUSA, Yuri Sá Oliveira. A maconha: fragmentos de um campo plural e polêmico. A perspectiva psicossocial no estudo das drogas / org. Maria de Fátima de Souza Santos, Renata Lira dos Santos Aléssio, Angela Maria de Oliveira Almeida. Brasília, DF. Technopolitik, 2016. P. 26. 59 SHULMAN, Max. The American Pipe Dream: Drug Addiction on Stage, 1890-1940. Tufts University, 2016. 94 de que a maconha era a raiz de muitos males, como traz nos filmes "Assassin of Youth", “Reefer Madness”, “Marijuana - Weed with Roots in Hell”, retratando as paixões descontroladas provocadas pelo uso de maconha60. Décadas depois, o assunto retorna em “The Devil's Weed”, também lançado com o nome “She Shoulda Said No!”, 1949 em versão teatral (figura 62). À medida que os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial, a demanda de trabalho dos estaleiros navais expandiu-se para atender às demandas da guerra. Os navios de guerra da marinha dos EUA exigiam uma quantidade de cordas que demandava aumentar a produção local, uma vez que os materiais para fazer cordas se tornaram mais difíceis de importar durante em plena guerra. Então todos os recursos possíveis eram utilizados para suprir a enorme quantidade fabricação de cordas para marinha, inclusive o cânhamo, e para incentivar a essa produção, o Departamento de Agricultura dos EUA lançou em 1942 um curta-metragem intitulado "Hemp for Victory" (figura 63) – anos mais tarde transformado em ilustração pelo Patrick Dowers (figura 64). O filme explicava os usos do cânhamo e encorajava os trabalhadores agrícolas a cultivá-lo o máximo possível para ajudar no esforço de guerra, dirigido por Raymond Evans, ele apresenta o cultivo bem como a produção de cordas no estaleiro naval de Charlestown. Já durante na década de 1970, o consenso cada vez mais crescente de que as punições criminais para a maconha eram contrárias ao interesse público, somado as autoridades médicas e legais contestando essa lógica, então surge a Proposition 19, em 1972, também conhecida como California Marijuana Initiative (CMI), com diversas campanhas, incluindo artistas musicais (figuras 65-66) com slogan “Yes on 19”. Se aprovado, a proposta era revisar as leis da California sobre cultivo, transporte ou posse de maconha, no entanto a projeto foi duramente derrotado na câmara61. Não muito distante, na Jamaica, em 1976, Peter Tosh posa em um campo de cultivo de maconha para o seu primeiro disco solo, “Legalize It” (figura 68). Enfim, no dia 02 de outubro de 2022, o presidente Biden anuncia perdão as pessoas condenadas por posse de maconha nos EUA (figura 69). 60 STARKS, Michael. Cocaine Fiends and Reefer Madness: An Illustrated History of Drugs in the Movies. Pipes Dream, P. 31. Berkeley High, Berkeley, CA. Cornwall Books, 1982. P. 31-52. 61 California Marijuana Initiative. Ann Arbor District Library. Disponivel em Acessado em 28/09/2023 95 Figura 46 – Cachimbos esculpidos em pedra, 200-400 a.C. Cultura Hopewell. Escavado na Mound City, Ohio. The British Museum Fonte: The British Museum 96 Figura 47 - Sidney Smith Boyce. ‘Hemp (Cannabis Sativa): A Practical Treatise on the Culture of Hemp for Seed and Fiber, with a Sketch of the History and Nature of the Hemp Plant, 1900. Nova Iorque. Fonte: The Canna Chronicles 97 98 99 100 101 Figura 48 - Cortando cânhamo em Kentucky, 1775. Coleção De Cartões Postais. Biblioteca Digital De Kentucky. Fonte: Kentucky Digital Library 102 Figura 49 - Agricultor com sua plantação em Michigan, 1910. Fonte: Reddit 103 Figura 50 - Billy Bitzer. A Pipe Dream, 1905. Fonte: Youtube 104 Figura 51 - The Bachelor's Pipe Dream Man Smoking Tobacco Two Woman, 1905. Cartão Postal. Fonte: Ebay 105 Figura 52 – Vidros de tintura de cannabis. Lilly, Parke Davis e Boericke & Tafel estão entre as principais empresas farmacêuticas que comercializavam o extrato de Cannabis até 1942 quando a Cannabis sativa e C. indica foram excluídas da Farmacopeia dos Estados Unidos . Fonte: Indianapolis Monthly 106 Figura 53 - Selos da Lei Tributária da Maconha a partir de 1937, exigido para cultivo, distribuição, importação e exportação da planta. Fonte: U.S. Customs and Border Protection Fonte: U.S. Customs and Border Protection 107 Figura 54 - Maconha na prisão de Van Nuys, Los Angeles. 1951. Fotografias p&b, 10x13 cm. Fonte: University of Southern California 108 Fonte: Drug Policy Central (tradução livre: “Cuidado! Jovens e idosos, pessoas de todas as esferas da vida! Este (cigarro de maconha) pode ser entregue a você por um estranho amigável. Ele contém a droga assassina 'Maconha' – um narcótico poderoso no qual se esconde o Assassinato! Insanidade! Morte! Aviso! Os traficantes de drogas são astutos! Eles podem colocar um pouco dessa droga no “chá” [desenho de um bule] ou no coquetel ou no cigarro de tabaco. Escreva para obter informações detalhadas, incluindo 12 centavos em postagem e custo de postagem. Endereço: Associação Interestadual de Narcóticos”) Figura 55 - Anúncio distribuído pelo Departamento Federal de Narcóticos dos EUA entre 1935 e 1970. Serigrafia, 56,8 x 72cm. 109 Figura 56 - Marihuana - Weed with Roots in Hell, 1935-36. The William H. Helfand Collection, 1989. Fonte: Philadelphia Museum of Art 110 Figura 57 - Dwain Esper. Marihuana, 1936. Fonte: IMDB 111 Figura 58 - Louis J. Gasnier. Reefer Madness, 1936. Fonte: IMDB 112 Figura 59 - Elmer Clifton. Assassin of Youth, 1937. Fonte: IMDB 113 Figura 60 - Ray Test. Marijuana - Devils Harvest 1942. Fonte: Commons Wikimedia 114 Figura 61 - Sam Newfield. Divulgação do filme “The Devil's Weed”, também lançado com o nome “She Shoulda Said No!”, 1949. Fonte: Commons Wikimedia 115 Figura 62 - Sam Newfield. Poster da versão teatral de “She Shoulda Said No!”, 1949. Fonte: Commons Wikimedia Figura 63 - Raymond Evans. Hemp for Victory. Curta-metragem de propaganda do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, 1942. 116 Fonte: Hash Marihuana & Hemp Museum 117 Figura 64 - Patrick Dowers (pseudônimo de Art Penn). Ilustração com transcrição do documentario "Hemp for victory", 1995. Fonte: Zip Comic 118 Figura 65 - Gary Grimshaw. Amorphia: the cannabis cooperative, 1972. Yanker poster collection, Library of Congress. Fonte: Library of Congress 119 Figura 66 - Joe Roberts. Vote yes on 19. California Marijuana Initiative, 1972. Fonte: Library of Congress 120 Figura 67 - Henry Diltz. David Crosby, “Flag Gun”, 1970. Fonte: Henry Diltz 121 Figura 68 - Peter Tosh. Fotos em campo de cultivo para o álbum "Legalize It", 1976. Fonte: Pan African Music 122 Figura 69 – Biden anuncia no twitter perdão as pessoas condenadas por posse de maconha nos EUA. Fonte: Twitter @POTUS (President Of The United States) 123 7 BRASIL: cânhamo real, maconha marginal “No Brasil, é a escravidão que define a qualidade, a extensão, e a intensidade da relação física e espiritual de três continentes que lá se encontram: confrontando um ao outro no esforço épico de edificar um novo país, com suas características próprias, tanto na composição étnica do seu povo quanto na especificidade do seu espírito – quer dizer, uma cultura e uma civilização com seu próprio ritmo e identidade”62 Abdias do Nascimento nos indica como o ponto de partida para invasão e a constituição do Brasil enquanto nação e identidade se iniciam simultaneamente com presença negra e, o quanto o africano escravizado construiu as fundações da sociedade brasileira “com a flexão e a quebra da sua espinha dorsal quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a própria espinha dorsal daquela colônia”63. Neste contexto a cannabis já era parte do cenário; foi trazida nas embarcações pelos colonos através das sementes e fibras de cânhamo, em cordas e velas, mas também nos porões dos navios, pelos africanos escravizados64 que fumavam a planta em território africano (figura 70) - como aponta o relato65 de dois colonizadores portugueses em expedição à África centro-ocidental66. 62 NASCIMENTO, Abdias do, 1914-2011. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Cap. II – Escravidão: o mito do senhor benovolente. 3ªed. São Paulo, Perspectivas, 2016. P.57-59. 63 Ibidem. P.59. 64 CARLINI, Elisaldo Araújo. A história da maconha no Brasil. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 2006. 65 “Surpreendidos por uma medonha trovoada, seguida de chuva diluvial, conservamo-nos acampados, com grande satisfação dos nossos, que, em meio de uma nuvem de espesso fumo, enchendo completamente os fundos, passavam de boca em boca o cachimbo carregado de tabaco, muito abundante nas terras dos Bondos; substituindo-lhes pouco depois a mu-topa, em que se consome a fatal liamba (Cannabis sativa). Os fumantes se sentam em derredor de um amplo braseiro, d’onde tiram com pequenas tenazes o carvão para começar a operação. O primeiro que a conduz aos lábios, depois de ter quatro ou cinco vezes aspirado o precioso fumo, estendendo os beiços e chupando sôfrego, desata num vivo acesso de tosse, o qual parece tanto mais satisfatório quanto mais próximo esteve da sufocação. O cachimbo é logo entregue ao imediato, que continua o processo e fica estatelado, roncando de modo singular. A água dentro do chifre borbulha, deixando passar as bolhas de fumo, que produzem ruído especial. Em breve um vacarme de urros nada permite ouvir-se. Os circunstantes, com a boca cheia de saliva, que expelem a miúdo, prosseguem na faina, rindo, falando, excitados pela ação perturbadora do cânhamo. Inspira na verdade dó ver semelhante cena. Mas como impedi-la, se para eles é isto um dos maiores deleites em que podem empregar o tempo? A princípio intentamo-lo; mas infrutífero esforço, porque, fugindo para o mato, faziam clandestinamente!” (CAPELO; IVENS, 1881. P. 26-27). 66 SOUZA, J.E.L.S. Sonhos da diamba, controles do cotidiano: uma história da criminalização da maconha no Brasil republicano. EDUFBA: CETAD/UFBA. Salvador, 2015. P. 173. Disponível em Acessado em 28/09/2023. https://doi.org/10.7476/9788523220235 124 Em um texto de Gilberto Freyre67, há menção do uso da planta associado a religiosidade africana: “os negros trouxeram a maconha para o Brasil e aqui cultivaram como planta meio mística, para ser fumada em candomblés e xangôs, pelos babalorixás e pelos seus filhos. Também como planta afrodisíaca”. Apelida pelos colonos como fumo d’Angola, a perspectiva depreciativa que tinham sobre essa forma uso é relatado pela diplomacia britânica como, “os preguiçosos e dissolutos iriam gozar a santidade do dia à moda africana, deitados ao sol e, se puderem, bebendo e fumando haxixe, como os semi- selvagens da Serra Leoa”68. Mas em relato da planta utilizada no quilombo de Palmares69, diziam-se que, “nos momentos de tristeza, de banzo, de saudade da África, os negros tinham à mão ali a liamba, de cuja inflorescência retiravam a maconha que pitavam por um canudo de taquari atravessando uma cabaça de água onde o fumo se esfriava”. A relação com a palavra trava um embate com pontos de vistas distintos sobre a mesma planta70, em que a “palavra se apresenta, portanto, como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais.”71 Os diversos nomes utilizados para a planta, como “diamba”, “liamba”, “pango”, muitas vezes indicam etimologias e regionalidades, a palavra “maconha” aponta sua origem do quimbundo makaña, formando também um anagrama com a palavra “cânhamo”72. 67 FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Editora Nacional. São Paulo, 1979. P39. 68 TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A história das drogas e sua proibição no Brasil: da Colônia à República. Tese (doutorado) - FFLCH USP. São Paulo, 2016. P.49. 69 SOUZA, J.E.L.S. op. cit. P. 183. 70 DA SILVA, Carolina. G. Uma reflexão bakhtiniana sobre a palavra e seus sentidos: signo ideológico, significação e tema em perspectiva dialógica. Cadernos do IL, [S. l.], n. 52, p. 440–460, 2017. Disponível em Acesso em 28/09/2023 71 BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006. P.66. Apud. DA SILVA, Carolina G., 2017. P. 442. 72 CARLINI, Elisaldo Araújo. op. cit. P.315. 125 O historiador Maximiliano Mac Menz em seu artigo “Os escravos da Feitoria do Linho Cânhamo” 73, indica que após o reinado de D. João V no Brasil secar as minas de ouro e deixá-las sob a tutela inglesa, o cânhamo foi uma das estratégias do sistema escravagista em resposta aos desafios econômicos. O fortalecimento da produção agrícola e comercial constituiu a Real Feitoria de Cânhamo, no final do século XVIII, no distrito de Canguçu da Freguesia de Rio Grande, extremo-sul da América Portuguesa, mas focada apenas no plantio sem a produção de cordas. Essa condição é destacada pelos historiadores como um ponto de importância fundamental do projeto escravista da era moderna, em que se precisava manter uma retaguarda “natural”. Contudo, Menz conclui que o fracasso administrativo, solo inadequado e inexperiências, apenas fortaleceu a resistência ao regime de plantation. Ainda nos registros do contexto da coroa portuguesa, no texto “Diambismo” de Heitor Péres, no livro “Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros”, publicado em 1958 pelo Serviço Nacional de Educação Sanitária do Ministério da Saúde, há registros de diversos clubes de diambismo pelo Brasil (figura 71 e 72) e, em uma passagem sobre o clube do vale do Mearim, no Maranhão, um cântico nas rodas de fumo diz: “ó diamba, saramba Quando eu fumo a diamba - Fico com a cabeça tonta - E com as minhas pernas zamba Fica zamba, mano? (pergunta um) Dizõ, dizõ (respondem os outros).” Ele narra também um episódio em que a rainha Carlota Joaquina de Bourbon, esposa de D. João VI, sentindo próxima a morte pediu ao empregado Felisbino: “Traga-me aquêle pacotinho de fibras de diamba do Amazonas, com que despedimos para o inferno tantos inimigos”. Os "cigarros índios" (figura 73), popularmente prescrito contra a asma, bem como os analgésicos, sedativos e afrodisíacos a base de cannabis, seguiram disponíveis 73 MENZ, Maximiliano Mac. Os escravos da Feitoria do Linho Cânhamo: trabalho, conflito e negociação. Afro-Asia, Salvador, 2005. P.157. 126 nas melhores farmácias do país para elite até o século XIX74. Em 1908, "Formulário e Guia Médico” escrito por Pedro Luiz Napoleão Chernoviz enfatizava o poder psicoativo da maconha, sobretudo associando o seu consumo à "degenerescência" étnica negra. Na primeira metade do século XX, ocorre mudanças significativa na abordagem da maconha no campo da medicina, com a prevalência de uma perspectiva racista. Henrique Carneiro aponta que embora a maconha tivesse um histórico de uso médico tradicional, a ciência médica oficial passou a vê-la como um elemento degenerativo da saúde, moralidade e pureza racial, combatendo-a com argumentos baseados em um racismo "higienista" e "eugenista". Médicos ocupando cargos políticos, como Rodrigues Dória, ex-presidente do Estado de Sergipe entre 1908 e 1911, passaram a denunciar o uso da maconha como um hábito característico dos afrobrasileiros, estigmatizando-a e associando-a a elementos degenerativos da saúde, moralidade e pureza racial. “Essa visão de Dória, considerando a maconha como um análogo do ópio, prevaleceu no campo da medicina brasileira, resultando no abandono dos antigos usos dos derivados de cânhamo presentes nas farmacopeias. A planta passou a ser vista como um hábito escravizador e prejudicial, com potencial para causar delírios, loucura transitória e até mesmo permanente. Assim, o vício foi inoculado como um castigo imposto pela "raça subjugada" aos vencedores [Apud. Barbosa, 2012].”75 Durante sua participação no 2º Congresso Científico Panamericano, realizado em Washington, EUA, em 1915, Rodrigues Dória revisitou o tema do ópio como uma forma de retaliação do asiático contra o seu dominador europeu, o contexto alarmista incorporou a maconha na discussão do ópio relacionando-a com uma “herança africana”: “A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas intemperante, se em determinadas circunstâncias prestou grandes serviços aos brancos, seus irmãos mais adiantados em civilização, 74 Lang, Marina. Fumaça na nuvem: a busca por “maconha” no Google e no Facebook. FFLCH-USP. São Paulo, 2015. P.34-36. 75 CARNEIRO, Henrique. Proibição da Maconha: racismo e violência no Brasil, Cahiers des Amériques latines, 2019. Disponível em Acessado em 25/08/2023. 127 dando-lhes, pelo seu trabalho corporal, fortuna e comodidades, estragando o robusto organismo no vício de fumar a erva maravilhosa, que, nos êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez as areias ardentes e os desertos sem fim da sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que o afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva.”76 O estigma de “droga” foi a principal via de conhecimento e motivação para a repressão da planta na sociedade. Segundo o historiador, o conceito de droga apresenta uma dualidade na história cultural contemporânea, sendo visto tanto como um fantasma do mal quanto como um emblema da saúde, destacando que a droga é retratada como um remédio, uma forma de magia ou milagre, sendo vista como um alimento dos deuses, mas também como um fruto proibido77. A questão conceitual, a expansão comercial, somada aos projetos eugenistas, tornam a maconha manchetes em diversos jornais como um perigo nacional (figura 73-77) e sempre associadas a figura ao corpo negro de modo depreciativo. Atualmente, entre tantos acontecimentos e informações relacionados a maconha, o tema da apreensão e tráfico ganham grandes destaques nas mídias e um interessante é o caso conhecido como “Verão das Latas” de 1987 (figura 78) - inclusive documentado em filme dirigido por Tocha Alves e Haná Vaisman. Os tripulantes de um navio que havia saído do Panamá, ido até a Austrália para se abastecer de toneladas maconha enlatadas rumo aos Estados Unidos, despejam toda a carga após um conflito em alto mar e as latas vem parar ao longo do litoral brasileiro. Já nos anos 2000, o filme da década de 30 “Reefer Madness” (figura 79) é refeito em musical humorístico. Dirigido pelo Andy Fickman, a versão irônica da primeira versão chega ao Brasil com o título de “A Loucura De Mary Juana”, prometendo “uma diversão colorida e cheia de energia”. 76 RODRIGUES, Dória. Os Fumadores de Maconha. Efeitos e Males do Vício da Maconha. Coletânea de Estudos Brasileiros. Rio de Janeiro. Serviço Nacional de Educação Sanitária/Ministério da Saúde, 1958. P.01- 14. 77 CARNEIRO, Henrique (2019) op. cit. P. 14. 128 Figura 70 - Grupo consumindo maconha em África no século XIX. Jorge Emanuel Luz de Souza. Sonhos da diamba, controles do cotidiano. Fonte: Sonhos da diamba, controles do cotidiano 129 Figura 71 - Quatro fases do negro “Azeitão” fumando maconha. Ramos, O negro brasileiro Fonte: Ramos, O negro brasileiro 130 Figura 72 - Clube de diambistas brasileiros. Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros, 2. ed, Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do IBGE, 1958. Ministério da Saúde, Serviço Nacional de Educação Sanitária. Fonte: História de Alagoas 131 Figura 73 - Cigarros Indios de cannabis indica, da Grimault, vendidos no Brasil em 1881. Fonte: Agência Senado 132 Figura 74 - Maconha, a planta do diabo. Texto de Luiz Alipio de Barros e fotos de José Medeiros. Sobre o vício da maconha, em Alagoas. Jornal O Cruzeiro, fevereiro de 1947. Fonte: Revista, O Cruzeiro Figura 75 - Recortes jornalísticos Fonte: KORYTOWSKI 133 . Figura 76 - O Veneno Africano. Reportagem do jornal “O Globo” em 1956. Fonte: O Globo 134 Figura 77 - Matéria do Estadão sobre a conferência "O mito da Maconha", realizado na Faculdade de Medicina da