UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ALINE RAMOS BARBOSA VIDA NUA: biopolítica na gestão da população de rua MARÍLIA – S.P. 2017 ALINE RAMOS BARBOSA VIDA NUA: biopolítica na gestão da população de rua Imagem 1 – Praça Princesa Isabel, com a estátua de Duque de Caxias, é a nova cracolândia, no centro de SP Joel Silva/Folha Press UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ALINE RAMOS BARBOSA VIDA NUA: biopolítica na gestão da população de rua Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais como pré-requisito para defesa e obtenção do título de Doutora. Trabalho realizado sob orientação do Prof. Dr. José Geraldo Alberto Bertoncini Poker (UNESP-FFC) e sob coorientação do Prof. Dr. Breitner Luiz Tavares (UnB-FCE). Barbosa, Aline Ramos. B238v Vida nua: biopolítica na gestão da população de rua / Aline Ramos Barbosa. – Marília, 2017. 211 f. ; 30 cm. Orientador: José Geraldo Alberto Bertoncini Poker. Co-orientador: Breitner Luiz Tavares. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, 2017. Bibliografia: f. 197-211 1. Pessoas desabrigadas. 2. Cuidados médicos. 3. Assistência social. 4. Biopolítica. 5. Direitos humanos. 6. Ética política. I. Título. CDD 320.157 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS BANCA EXAMINADORA DA TESE DE DOUTORADO DE ALINE RAMOS BARBOSA 17/08/2017 TITULARES _________________________________ Prof. Dr. José Geraldo Alberto Bertoncini Poker (UNESP-Marília; orientador) _________________________________ Profa. Dra. Isabel Pauline Hildegard Georges (IRD-Institut de recherche pour le développement, UFSCar-DS, USP-Cenedic) _________________________________ Prof. Dr. Marcos César Alvarez (USP) _________________________________ Prof. Dr. José Sterza Justo (UNESP-Assis) _________________________________ Prof. Dr. Luís Antônio Francisco de Souza (UNESP-Marília) SUPLENTES Profa. Dra. Taniele Cristina Rui (UNICAMP) Prof. Dr. Laércio Fidelis Dias (UNESP-Marília) Prof. Dr. Gabriel Cunha Salum (FADAP) O que nos move na vontade de produzir cuidado? Nenhum poder [...] deseja excluir absolutamente. Só exclui quando não tem opção. O poder opera incluindo. Só o poder mais tosco, caricato, deseja excluir. Todo poder oscila, alguns se travestem mais, se tornam mais refinados, e inteligentemente criam políticas de inclusão; esta prática é certamente algo extremamente interessante para um poder que quer crescer. E algum poder não quer crescer? E nós, queremos também incluir? Mas incluir o que, em que e para quê? Quem em nós quer ser incluído e incluído em quê? O que acontece com a perspectiva de autonomia dessa vida ao ser incluída? (FUGANTI, L. “Biopolítica e produção de saúde: um outro humanismo?”. Interface. v.13, supl.I, pp. 667-679, 2009). Dedico este trabalho aos meus pais, Lourdes e Reinaldo. Apesar do controle comum à maternidade e à paternidade, teceram uma rede de cuidado e de afeto ao meu redor, que me abriu possibilidades de ser e de fazer. E, acima de tudo, proporcionaram-me meios para a construção cotidiana de minha autonomia. AGRADECIMENTOS Encerramentos de ciclo sempre trazem reflexão sobre a trajetória percorrida. No caso de um doutorado, ainda mais: porque é o final de um processo enriquecedor, porém cansativo de estudos. Desta forma, é fundamental reconhecer todas as ajudas e todo o apoio que tive nesta caminhada. A vida acadêmica é feita de muitas negativas, com algumas boas alegrias e vitórias pelo meio. E esta é uma vitória – e das grandes! Mas não esqueço-me que, no meio deste caminhar, já ouvi que “Não sou boa pesquisadora, apenas escrevo bem” ou que “A minha contribuição consistia apenas em organizar coffe-breaks. E que era necessário mais”. Felizmente, também ouvi que “Ainda há muito a percorrer e muito a fazer!” e “Você sabe mais do que escreve. Escreva!”. Em meio a golpes duros na autoestima, agradeço – imensamente – à Carla Gandini Giani Martelli e ao Luís Antônio Francisco de Souza. Sem as falas de vocês, provavelmente, eu não teria seguido em frente. Este trabalho se deve, em grande medida, ao incentivo de vocês, em momentos cruciais. Porque, hoje, eu sei que eu deveria ter continuado. Mas, houve momentos de muita dúvida. E duvidei de mim mesma. Agradeço também ao meu orientador, José Geraldo Alberto Bertoncini Poker, que me acolheu no meio do processo dos estudos de doutoramento. Acolheu na acepção melhor da palavra: conversou comigo, me tranquilizou e foi sensível às minhas necessidades. Obrigada por me acompanhar nesta trajetória. Também não posso deixar de agradecer ao meu coorientador, Breitner Luiz Tavares, que foi igualmente disponível desde que nos conhecemos. Mesmo à distância, não perdemos o contato durante estes anos. E nossas conversas sempre me animaram a continuar. Seguir com a pesquisa e com a vontade de realizar um diálogo com as Ciências da Saúde. Agradeço igualmente aos professores José Sterza Justo e Luís Antônio Francisco de Souza pelas contribuições na banca de qualificação. Oportunidade em que pude participar de um debate de alta qualidade sobre o tema de minha pesquisa. A contribuição destes professores foi essencial ao formato que a tese tem agora. Agradeço, ainda, por aceitarem compor também a banca de defesa. Agradeço, especialmente ao Luís Antônio, por acompanhar meu trabalho desde quando ainda era uma primeira versão de projeto. Sua acolhida e diálogo constante, durante estes anos, sempre foram muito importantes. Agradeço à professora Isabel Georges, por sempre demonstrar interesse pela minha pesquisa e me incentivar. Agradeço também pela oportunidade de participar das reuniões do Laboratório Misto Internacional (LMI), porque pude aprender ainda mais nos debates ali realizados. E, também, a agradeço por aceitar compor a banca de defesa. Agradeço ao professor Marcos César Alvarez por aceitar compor a banca de defesa. Em pequenas trocas que já realizamos, pude perceber como podemos ter um profícuo diálogo, que só foi – e é possível – graças à sua generosa disponibilidade. Agradeço, desta maneira, a todas as contribuições da banca de defesa, porque elas muito me ajudaram a corrigir algumas questões essenciais para versão final deste trabalho e, acima de tudo, ajudaram a pensar questões de pesquisa que me indicam caminhos futuros a percorrer. Agradeço, ainda, aos professores Antônio Mendes da Costa Braga e Laércio Fidelis Dias por aceitarem compor a banca de qualificação como suplentes. Agradeço, ainda, à professora Taniele Rui e aos professores Laércio Fidelis Dias e Gabriel Cunha Salum por comporem a banca de defesa como suplentes. Agradeço às professoras Soraya Resende Fleischer, Yumi Garcia dos Santos, Ana Paula Serrata Malfitano, por conversas, sugestões e incentivos à esta pesquisa. Agradeço também ao professor Marc Bessin, pela oportunidade oferecida de estágio sanduíche no IRIS – Institut de recherche interdisciplinaire sur les enjeux sociaux (Sciences sociales, Politiques, Santé) vinculado à EHESS – École des hautes études en sciences sociales, que, infelizmente, não foi concretizada devido à interrupção de bolsas de doutorado sanduíche da CAPES. Igualmente, agradeço à professora Neiva Vieira da Cunha, por ter me auxiliado, desde Paris, no contato com o professor Marc Bessin. Agradeço, ainda, aos participantes e aos coordenadores dos grupos de pesquisa dos quais participei durante estes anos: GESP – Grupo de Estudos em Segurança Pública, vinculado ao OSP (Observatório de Segurança Pública), da UNESP de Marília; Grupo Processos Migratórios e Cidades Brasileiras, da UNESP de Marília; NaMargem – Núcleo de Pesquisas Urbanas, da UFSCar e vinculado ao CEM (Centro de Estudos da Metrópole) e ao CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Bem como aos Grupos de Trabalho do Seminário Nacional Sociologia e Política (UFPR) – nomeadamente, GT Sociologia da Saúde e GT Controle Social, Segurança Pública e Direitos Humanos – pela oportunidade de apresentar e debater partes desta tese, assim como pelas contribuições, que muito me auxiliaram. Agradeço aos parceiros de pesquisa e amigos de anos: Luciano Márcio de Freitas Oliveira e Mariana Medina Martinez, por manterem o diálogo, mesmo à distância. Também aos novos parceiros nos estudos do GESP: principalmente, Egor Vasco Borges, Silvio de Azevedo Soares e Danila Faria Berto, pelo diálogo e trocas constantes, além de amizade sólida construída. Ainda, agradeço aos amigos da Saúde Coletiva: Vanessa Daufenback Ramos, Michele Souza e Souza, Aisllan Diego de Assis e Ada Eliane Ojeda, pela generosidade em me ajudar no meu novo campo de estudos. Agradeço, também, às amizades cultivadas em Marília. Rede de afeto e cuidado mútuo, que me possibilitou viver na nova cidade: Érica Rosa Hatugai, Flávia Cândido da Silva, Cláudia Carolina Robles, Tauan Tridapalli, Annelise Faustino da Costa, Ana Carolina Lirani Mazarini, Guilherme da Silva Gorjon, Camila Rodrigues da Silva, Thiago Henrique de Almeida Bispo, Carlos Eduardo Machado, Franz Arnaldo Cezarinho. Assim como aos moradores e agregados da República Cornetas. Agradeço também às amizades de Jaboticabal: Joseni Boer Passolongo, Lássila Almeida, Vânia Fernandes, Roger De Lucca, Maria Cristina Marques Pedrinho, José Roberto Costa e Priscilla Padovani. Agradeço ainda à Eliete Travaini Lopes, por ter facilitado o acesso a todos os locais que foram necessários. Agradeço também aos residentes da Casa Transitória, que me aceitaram entre eles nos dias de pesquisa. Agradeço aos amigos de vida, dos muitos encontros que tive, e que estiveram presentes durante este processo: Karina Gomes Assis, Maria Angélica Petrini, Alexandre Almeida de Magalhães, Thales Estevão Felício Minelli, Evelyn Louyse Godoy Postigo, Fernanda Cristina Mello, Marina Buffa César, Camila Trebi Affonso, José Antônio da Silva Júnior, Simone Mestre, Sônia Mestre e Tânia Lima. Agradeço à minha família, sem a qual eu não seria quem sou. Pelo apoio e dedicação de sempre, agradeço aos meus pais, Lourdes e Reinaldo. Pelo incentivo, cuidado, apoio e conversas sobre pesquisa em Saúde, agradeço à minha irmã, Francine. Pelo incentivo constante – e por ter sido exemplo e demonstrado que era possível esta vida acadêmica às pessoas de nossa origem social – agradeço ao meu tio, Osvaldo. Por trazer novo fôlego, alegrias e esperança às nossas vidas, agradeço à minha sobrinha, Cecília. Por fim, agradeço à CAPES, pela concessão de bolsa de estudos. Esta pesquisa tornar-se-ia mais difícil de se concretizar sem este respaldo financeiro, especialmente, devido aos custos que pesquisas de campo demandam. Resumo Esta tese analisa o acolhimento intersetorial (Saúde e Assistência Social) para a população em situação de rua de um município de médio porte do interior paulista. Para tal intento, foi realizada uma pesquisa de campo no equipamento público denominado Casa Transitória “Adélia Portella Volpe” e na rede de acolhimento intersetorial da população em situação de rua, em Jaboticabal-SP. A partir das concepções de biopolítica, tanatopolítica e vida nua, esta tese analisa a gestão atual da população de rua. Para isso, são elencados os dados da pesquisa de campo, a análise documental e o contexto de guerra às drogas, evidenciado pelo Programa Crack – é preciso vencer, que articula Saúde, Assistência Social e Segurança Pública no plano nacional. Desta forma, a argumentação da tese se estrutura em duas perspectivas de análise: a. uma primeira mais “positiva” das políticas públicas, que as leva a sério e descreve suas características, impasses e limitações. Ou seja, uma análise do que denominei “políticas de governo”; b. uma segunda análise, mais pessimista, que faz a crítica do próprio limite do Estado em sua relação com a população. Então, apresenta a análise do dispositivo de gestão nas margens do Estado. E, desta forma, trabalha com a ideia de “políticas de Estado”. Ambas perspectivas, embora distintas, fazem parte de uma mesma análise. E, em qualquer uma das duas perspectivas, as políticas públicas destinadas para população em situação de rua não dão conta do que se propõem. A não ser o controle desta população, que reforça o dispositivo e em nada emancipa. Palavras-chave: População de rua; Intersetorialidade; Biopolítica; Tanatopolítica. Abstract This thesis analyses the intersectorial host institution (health and social assistance) for homeless population in a small town located near São Paulo. For this purpose, a field research was carried out on the public equipment called Casa Transitória (Halfway House) “AdéliaPortela Volpe” and on the intersectorial network of homeless people, in Jaboticabal-SP. From the conceptions of biopolitics, thanatopolitics and bare life, this thesis analyses the current management about homeless population. In this regard, it listed the field research data, documentary analysis and the war on drugs context, indicated by the Programa Crack – é preciso vencer (Crack Program – It needs overcome), that articulates Health, Social Assistance and Public Security at national level. Thus, the argument of the thesis has two perspectives: a. the first one is more “positive” about public policy, which understand seriously and describe its characteristics, problems and restrictions. In other words, an analysis I named “government policies”; b. the second, a more pessimist analysis, criticizes the limits of State in its relationship with the population. So, it presents an analysis of management device in the margins of the State. Both perspectives, although different, are part of the same investigation. And, both perspectives the public polices intended to homeless population does not get effective results. Except for the control of this population, which reinforce the device and does not emancipate anybody. Keywords: Homeless population; Intersectoriality; Biopolitic; Thanatopolitics. Résumé Cette thèse analyse l’accueil intersectoriel (Santé et Assistance Sociale) destiné à la population sans domicile fixe (SDF) d’une commune moyenne de l’intérieur de l’État de São Paulo. Pour ce faire, on a réalisé une recherche sur le terrain dans l’équipement public nommé Casa Transitória « Adélia Portella Volpe » (Maison Transitoire « Adélia Portella Volpe ») et dans le réseau d’accueil intersectoriel de la population sans domicile fixe, dans la ville de Jaboticabal – SP. À partir des conceptions de biopolitique, de thanatopolitique et de vie nue, cette thèse analyse la gestion actuelle de cette population. Pour ce faire, on répertorie les données de la recherche sur le terrain, de l’analyse documentaire et du contexte de la guerre aux drogues, mis en évidence par le Programa Crack – é preciso vencer (Programme Crack – il faut vaincre), qui articule les domaines de la Santé, de l’Assistance Sociale et de la Sécurité Publique dans le plan national. Ainsi, l’argumentation de la thèse se structure selon deux perspectives d’analyse : a. une première plus « positive » des politiques publiques, qui les prend au sérieux et décrit leurs caractéristiques, leurs impasses et leurs limitations, c’est-à-dire, une analyse de ce que j’ai nommé « politiques de gouvernement » ; b. une seconde analyse, plus pessimiste, qui fait la critique des limites de l’État dans sa relation avec la population. Alors, on présente l’analyse du dispositif de gestion en marge de l’État et, ainsi, on travaille avec l’idée de « politiques d’État». Ces deux perspectives, quoique distinctes, font partie d’une même analyse. Et, dans n’importe laquelle de ces perspectives, les politiques publiques destinées à la population sans domicile fixe n’atteignent pas les buts qu’elles se proposent, à l’exception de celui du contrôle de cette population, ce qui renforce le dispositif et ne l’émancipe aucunement. Mots-clés: SDF; Intersectorialité; Biopolitique; Thanatopolitique. LISTA DE SIGLAS AA – Alcoólicos Anônimos ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva ANPOCS – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais BPC – Benefício de Prestação Continuada CAPS – Centro de Apoio Psicossocial CAPS/AD – Centro de Apoio Psicossocial – Álcool e Drogas CAP’s – Caixas de Aposentadoria e Pensão CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde CEBRAP – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento CEM – Centro de Estudos da Metrópole CEP – Comitê de Ética em Pesquisa Centro Pop – Centro de Referência Especializado em População em Situação de Rua CETREM – Central de Triagem e Encaminhamento ao Migrante CdeR – Consultório de Rua CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social CnaR – Consultório na Rua CREAS – Centro de Referência Especializado CREAS-POP – Centro de Referência Especializado em População em Situação de Rua C.T. – Casa Transitória DAB – Departamento de Atenção Básica DST – Doença Sexualmente Transmissível ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente EHESS – École des Hautes Études en Sciences Sociales EJA – Educação de Jovens e Adultos ESF – Estratégia de Saúde da Família EPI – Equipamento de Proteção Individual GESP – Grupo de Estudos em Segurança Pública GT – Grupo de Trabalho HC – Hospital das Clínicas HPV – Human Papiloma Virus (Papiloma Vírus Humano) HST – Hospital Santa Tereza IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IML – Instituto Médico Legal INPS – Instituto Nacional de Previdência Social INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social IRIS – Institut de Recherche Interdisciplinaires sur les Enjeux Sociaux (Sciences Sociales, Politiques, Santé) LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social MDS – Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome MNPR – Movimento Nacional de População de rua MPAS – Ministério da Previdência e Assistência Social MS – Ministério da Saúde NA – Narcóticos Anônimos NOB/SUAS – Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social OSP – Observatório de Segurança Pública PBF – Programa Bolsa Família PNAS – Política Nacional de Assistência Social PMCG – Prefeitura Municipal de Campo Grande PSR – População em Situação de Rua RD – Redutor de Danos RSB – Reforma Sanitária Brasileira SAMU – Serviço de Atendimento Médico de Urgência SAUAD – Serviço de Atendimento aos Usuários de Álcool e Drogas SESAU – Secretaria Municipal de Saúde SNAS – Secretaria Nacional de Assistência Social SUS – Sistema Único de Saúde SUAS – Sistema Único de Assistência Social TCLE – Termo de Consentimento Livre Esclarecido UBS – Unidade Básica de Saúde UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UFPR – Universidade Federal do Paraná UFSCar – Universidade Federal de São Carlos UNESP – Universidade Estadual Paulista UPA – Unidade de Pronto Atendimento 13 SUMÁRIO Resumo ............................................................................................................................ 9 Abstract ......................................................................................................................... 10 Résumé ........................................................................................................................... 10 Lista de Siglas ............................................................................................................... 11 PARTE I – APONTAMENTOS INICIAIS ................................................................ 14 Introdução ..................................................................................................................... 15 Capítulo 1 – Sobre a pesquisa ...................................................................................... 25 Sobre as escolhas teóricas............................................................................................... 25 Sobre a pesquisa de campo ............................................................................................. 32 Capítulo 2 – Sobre a Casa Transitória ....................................................................... 46 Lei de instituição e Decreto de criação da Casa Transitória “Adélia Portella Volpe” ... 46 As instalações físicas da Casa Transitória “Adélia Portella Volpe” .............................. 48 O corpo de funcionários da Casa Transitória “Adélia Portella Volpe” .......................... 53 A rotina semanal da Casa Transitória “Adélia Portella Volpe” ..................................... 53 PARTE II – GOVERNO E GESTÃO DA VIDA ...................................................... 81 Capítulo 3 – Políticas Públicas e População em Situação de Rua ............................ 82 Breve histórico da população em situação de rua....................................................... 82 Dualidade na cobertura das políticas de Saúde .......................................................... 91 Intersetorialidade ........................................................................................................ 97 Recorte populacional das políticas públicas ............................................................. 102 Capítulo 4 – Saúde Pública e Gestão dos Pobres ..................................................... 114 A saúde como eixo articulador da gestão dos pobres ................................................... 115 Breve percurso histórico da saúde no Brasil ................................................................ 124 Reforma Sanitária e construção do SUS....................................................................... 135 PARTE III – ESTADO E MARGENS ..................................................................... 142 Capítulo 5 – Questão Social e exclusão social .......................................................... 143 Questão social como questão política ....................................................................... 144 Questão social como questão de polícia ................................................................... 145 Exclusão social e gestão de populações marginais ................................................... 146 Vadiagem e Mendicância ......................................................................................... 151 Capítulo 6 – Biopolítica, tanatopolítica e vida nua .................................................. 161 Biopolítica e Medicina Social....................................................................................... 166 Biopoder e biopolítica .................................................................................................. 174 Tanatopolítica ............................................................................................................... 180 Conclusões ................................................................................................................... 185 Referências .................................................................................................................. 197 14 PARTE I – APONTAMENTOS INICIAIS A primeira parte desta tese trata dos apontamentos iniciais. Chamei de apontamos iniciais a Introdução, o Capítulo 1 e o Capítulo 2. O primeiro capítulo é composto por considerações iniciais da pesquisa – como entrada de campo, escolhas metodológicas e teóricas – bem como considerações primeiras para entendimento da pesquisa e do texto. O segundo capítulo descreve a Casa Transitória “Amélia Portella Volpe”, local onde realizei a pesquisa de campo. Tal descrição é feita através de seu espaço físico, seu corpo de funcionários e sua rotina semanal. Estes apontamentos iniciais são de fundamental importância para entender de onde partem o olhar da pesquisa e as reflexões analíticas apresentadas nas outras duas partes desta tese. 15 INTRODUÇÃO Esta pesquisa teve como objetivo central acompanhar o acolhimento integral à população em situação de rua (PSR), com enfoque na intersetorialidade – especificamente entre Assistência Social e Assistência em Saúde – prevista tanto no SUS (Sistema Único de Saúde) como no SUAS (Sistema Único de Assistência Social), de forma a tentar entender e, depois analisar, o acolhimento intersetorial como uma forma de gestão expressa pelo dispositivo da biopolítica e tanatopolítica, que produz constantemente vida nua. Desta forma, esta pesquisa apresenta como método a pesquisa de campo, com observação participante e produção de diário de campo. O local que fornece dados empíricos às reflexões aqui apresentadas é o município do interior de São Paulo chamado Jaboticabal, localizado na mesorregião de Ribeirão Preto, a aproximadamente 350 Km da capital do estado. Como o município citado é classificado como de médio porte, com cerca de 70 mil habitantes, ele não se qualifica a receber verbas específicas do governo federal, via Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e/ou via Ministério da Saúde (MS). Estas verbas seriam de grande importância para auxiliar na implantação do Consultório na Rua (CnaR), equipamento do SUS – e também ligado aos SUAS – de atenção integral à saúde da PSR. A atenção integral à saúde da PSR faz parte de um progressivo crescente de políticas públicas destinadas à PSR, que começam a tomar corpo depois da I Pesquisa Nacional da População em Situação de Rua (2008) e da Política Nacional para Inclusão da População em Situação de Rua (2008). Primeiramente, vieram os CREAS-POP – que depois passaram a se chamar Centro Pop – equipamento da Assistência Social para acolhimento da PSR, cujo objetivo é ser “um espaço de referência para o convívio grupal, social e o desenvolvimento de relações de solidariedade, afetividade e respeito. Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, proporcionar vivências para o alcance da autonomia e estimular, a organização, a mobilização e a participação social”1. 1 Informações disponível em: . Último acesso em: 01/08/2017. 16 Mais recentemente, as políticas públicas têm se voltado para a Saúde. Importante ressaltar, que este enfoque tem como contexto o pânico moral2 ligado ao uso abusivo do crack e a proliferação e evidência de existência das cracolândias, seja nas cidades metropolitanas ou nas de interior. Desta forma, a primeira investida à saúde da PSR foi via Saúde Mental (álcool e drogas) por meio do Consultório de Rua (CdeR). Este consultório serviria de “porta de entrada” à rede CAPS (Centro de Apoio Psicossocial), especialmente para encaminhamento ao CAPS-AD (Centro de Apoio Psicossocial – Álcool e Drogas) e à rede de Saúde Mental. Depois amplia-se à atenção integral à saúde, por meio do Consultório na Rua (Cna). Os CnaR’s são formados por equipes “de saúde móveis que prestam atenção integral à saúde da população em situação de rua, considerando suas diferentes necessidades de saúde, e trabalham junto aos usuários de álcool, crack e outras drogas com a estratégia de redução de danos”. Sendo assim, diferentemente do CdeR, o CnaR é “porta de entrada” para o SUS e, desta forma, suas “equipes possuem profissionais de várias formações que atuam de forma itinerante nas ruas desenvolvendo ações compartilhadas e integradas às Unidades Básicas de Saúde, CAPS, Serviços de Urgência e Emergência e outros pontos de atenção”3. Como dito acima, o município onde realizei pesquisa de campo não se classifica na prerrogativa para receber verba dos MDS e MS para implantar o CnaR. Sendo assim, este se tornou um local fértil para acompanhamento das políticas públicas, onde são necessárias táticas cotidianas de gestão, para tentar acompanhar as diretrizes das políticas nacionais. Como garantir à PSR o acesso à Saúde? Como fazer a intersetorialidade funcionar na prática? Quais escolhas técnicas e políticas precisam ser tomadas? Todas estas questões são acompanhadas – e, pode-se tentar esboçar respostas – diante da tentativa experimental de CnaR, chamado “Saúde na Rua” e da “Ponte” realizada pela Casa Transitória – equipamento da Assistência Social de acolhimento à PSR – que é referência para PSR e gerencia a rede de atendimento. 2 O debate sociológico sobre pânico moral remonta à década de 1970, com a publicação de Folk Devils and Moral Panics (1972), de Stanley Cohen. De acordo com Higa e Alvarez (2017), embora o debate já existisse anteriormente, é com Cohen que vai ganhar enfoque primordial e, desta forma, pode ser entendido como um fenômeno que, de modo mais propício, surge “em momento de crise e instabilidade dos valores políticos e morais de uma sociedade. Na esteira do turbilhão de mudanças e incertezas, uma ameaça que visa ferir os valores morais dominantes é identificada e denunciada publicamente. A exposição da situação é feita por toda uma “narrativa do medo”, que faz uso de discursos carregados de terror, revolta e sensacionalismo. Juntamente com a identificação do mal, exige-se a imediata reação de combate ao mesmo” (HIGA; ALVAREZ, 2017:8). 3 Informações disponíveis em: . Último acesso em: 15 jul. 2017. 17 A pesquisa de campo consistiu em sua primeira incursão, meados de julho a meados de agosto de 2015, em acompanhar diariamente a rotina de atendimento da Casa Transitória. Esta escolha se deve ao fato de que a Casa Transitória é o equipamento de referência para população em situação de rua no município de Jaboticabal. Apesar de ser um equipamento da Assistência Social, é por meio da Casa Transitória que a população em situação de rua acessa também os serviços de saúde. Desta maneira, a Casa Transitória se mostrou local central para entender a dinâmica de acolhimento à população em situação de rua. As escolhas metodológicas desta pesquisa estão diretamente relacionadas com as hipóteses de pesquisa. Diante do contexto em que o crack ganha grande visibilidade na sociedade brasileira e, partindo do princípio, que na esteira deste movimento de combate ao crack estão as investidas em Saúde para a população em situação de rua, tenho como hipótese que a gestão da população de rua está mais direcionada ao controle estatal de populações perigosas4 e menos à dialética de direitos da PSR, embora, seja claro, que muitos destes serviços impactam positivamente na vida das pessoas que estão em situação de rua. Para entender essa rede de relações, de sentido e de atendimentos, apenas a pesquisa de campo (com observação participante e produção de diário de campo) poderia tentar apreender estas questões no cotidiano do atendimento, haja vista que, com a inserção em campo foi possível acompanhar o dia-a-dia do acolhimento à população em situação de rua em Jaboticabal-SP. Além disso, no entanto, foram acessados documentos institucionais do município (com acesso possibilitado pela pesquisa de campo) e da União (disponíveis na internet). E, também, é na presença intensiva no campo, que as pessoas envolvidas (interlocutores da pesquisa) confiaram em mim e, desta forma, não se incomodaram em me transmitir informações. Importante destacar que também não é apenas uma questão de confiança. A convivência com o atendimento cotidiano permitiu que eu pudesse me inteirar das questões mais ordinárias do dia-a-dia. Provavelmente, como comento mais à frente na rotina semanal da Casa Transitória, muitas questões passariam batidas, se a opção fosse 4 “A expressão “classes perigosas” parece ter surgido na primeira metade do século XIX. A escritora inglesa Mary Carpenter, por exemplo, em estudo da década de 1840 (...) utiliza a expressão claramente no sentido de um grupo social formado à margem da sociedade civil. Para Mary Carpenter, as classes perigosas eram construídas pelas pessoas que já houvessem passado pela prisão, ou as que, mesmo não tendo sido presas, haviam optado por obter o seu sustento e o de sua família através da prática de furtos e não do trabalho. Em suma, a expressão é utilizada aqui de forma bastante restrita, referindo-se apenas aos indivíduos que já haviam abertamente escolhido uma estratégia de sobrevivência que os colocava à margem da lei” (CHALHOUB, 1996:20). 18 fazer apenas entrevistas. Porque o cotidiano se torna tão naturalizado, que tudo que para mim que rendeu várias reflexões, para as pessoas do acolhimento nada mais são do que rotina que não tamanha atenção. Também, só a inserção em campo que me permitiu auxiliar no trabalho da Casa Transitória quando Joana saiu de férias e, desta forma, entender ainda mais minuciosamente a rotina da Casa. Como dito acima, a pesquisa na Casa Transitória foi uma opção porque é o local de referência para acolhimento da população em situação de rua em Jaboticabal. Mas, também, como havia tensões entre a Assistência Social e a Saúde, optei por estabelecer maior contato na Assistência Social e não ficar transitando entre duas secretarias municipais, o que poderia me render falta de confiança de ambos os lados. Desta forma, embora discuta a intersetorialidade no acolhimento à população em situação de rua, esta intersetorialidade foi apreendida desde o ponto de vista dos funcionários da Assistência Social em rede com os serviços de acolhimento da Saúde e demais eventuais áreas que precisaram ser acionadas, tais como Trabalho e Renda, Moradia, Segurança Pública, Educação, etc.. Embora, aparentemente, a pesquisa de campo lide apenas com questões específicas de casos específicos, estes casos não são isolados. Desde algum tempo, tem- se percebido comunicação entre os casos de pesquisa de campo e uma lógica nas pesquisas sobre Estado, sob a perspectiva da Antropologia e da Etnografia ou as Sociologia que tem como método a observação participante. Estas abordagens juntam- se a de Das&Poole (2008), já debatida acima, e entende que o Estado possui margens, que sustentam o seu centro e com ele se relacionam de maneira direita. E, desta forma, estruturam uma relação diferente com a população que ocupam esses espaços físicos e simbólicos5. Como dito acima, fiz pesquisa de campo em dois períodos de incursão: meados de julho a meados de agosto de 2015, por um mês ininterrupto, acompanhando diariamente o atendimento da Casa Transitória e circulando pela rede de acolhimento que envolve, entre outras possibilidades, CREAS e CAPS. Todo dia eu acompanhava o atendimento, conversava com os funcionários – principalmente da Casa Transitória, minha referência na pesquisa – e fazia anotações pontuais em meu caderno. Ao final do dia, anotava minhas observações em diário de campo. Quando isto não era possível, escrevia o diário de campo ainda durante aquela semana. 5 Ver introdução de Vieira da Cunha & Feltran (2013). 19 Ao final da pesquisa de campo, reuni todas as informações em um documento de word único, que chamei de Diário de Campo Completo. Depois de formatar e revisar as anotações, imprimi os diários de campo e, desta forma, pude analisar as questões ali levantadas. A análise foi iniciada cerca de 3 meses depois da pesquisa de campo, devido a outros compromissos acadêmicos e a necessidade de afastamento físico e mental das questões de campo. Ao voltar às anotações, pude analisar com melhor aproveitamento. Fazer pesquisa de campo também é uma incursão emocional, que requer equilíbrio e amadurecimento de ideias e emoções para sua análise posterior. As categorias de análise foram desenvolvidas diante da pesquisa de campo e não diante de questões teóricas primeiras. Manteve-se a inclinação de análise com inspiração em Foucault e a discussão sobre margens do Estado, mas os temas foram escolhidos diante dos acontecimentos cotidianos da pesquisa de campo. Desta forma, questões de gênero, de marcadores sociais da diferença, da singularidade do trabalho da Assistência Social, das redes de acolhimento, dos limites das políticas públicas apareceram depois da incursão ao campo ou reforçaram algumas intuições de pesquisa presentes desde o projeto. Diante das categorias, que foram classificadas de acordo com cores de canetas e anotações nas margens das páginas, os temas presentes na pesquisa de campo foram classificados e agrupados de acordo com afinidades. A partir destas questões, a qualificação foi estruturada, com vistas também ao texto final. Escolhi fazer uma descrição densa da pesquisa de campo, da Casa Transitório e da rotina de atendimento. Nesta descrição, aparecem já algumas questões que são mais fortemente analíticas e que serão retomadas em capítulos específicos para a discussão. Ainda, é necessário ressaltar que, nesta tese, utilizo analiticamente o conceito de dispositivo de Foucault. O dispositivo é um mecanismo essencial para pensar a gestão das populações. De acordo com Agamben (2009), em entrevista de 1977, Foucault chega próximo de uma definição do conceito: [...] com o termo dispositivo, compreendo uma espécie – por assim dizer – de formação que num certo momento histórico teve como função essencial responder a um urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função eminentemente estratégica [...] O dispositivo está sempre inscrito num jogo de poder e, ao mesmo tempo, ligado aos limites do saber, que derivam desse e, na mesma medida, condicionam-no. Assim, o dispositivo é: um conjunto de estratégias de relações de força que condicionam certos tipos de saber e por eles são 20 condicionados (Dits et écrits, v.III, p.299-3000 Apud Agamben, 2009:28). O dispositivo tem uma função estratégica na medida em que tem uma lógica de ações, que são pautadas por conhecimentos científicos (saberes) e por estes conhecimentos são influenciados. Neste sentido, analisar para as políticas públicas com este olhar, nos permite propor uma análise que vai desde as leituras das normativas nacionais – dada por documentos oficiais, portarias e legislação em geral – como também pensar as ações cotidianas da gestão no nível municipal. Tanto a estrutura da Saúde como da Assistência Social é tripartite, ou seja, dividida entre os entes federados. Esta estrutura se deve ao tamanho do território nacional, que gera a necessidade de diretrizes nacionais, mas aplicações às realidades locais. Desta forma, município tem central importância na gestão das políticas públicas sociais (Saúde e Assistência Social), sendo da competência dos estados auxiliar onde os municípios não abrangem toda a demanda, assim como repasse de verba, que também são feitas via União6. Desta forma, pensar políticas públicas como parte de um dispositivo de gestão se mostra uma boa opção de análise, haja vista que a estrutura das políticas públicas no Brasil é escalonar, ou seja, com regras, condutas e ações que estão presentes nos três níveis da federação (município, estado e União). Desta forma, estes três níveis precisam ser levados em consideração, principalmente, porque o poder circula entre os três níveis. De acordo com Foucault (2005), o poder não pode ser tomado como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo, ele deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, uma coisa que só funciona em cadeia e, desta forma, trata-se de apreender: [...] o poder em suas extremidades, em seus últimos lineamentos, onde ele se torna capilar; ou seja: tomar o poder em suas formas e em suas instituições mais regionais, mais locais, sobretudo no ponto em que esse poder, indo além das regras de direito que o organizam e o delimitam, se prolonga, em conseqüência, mais além dessas regras, investe-se em instituições, consolida-se nas técnicas e fornece os instrumentos de intervenções materiais, eventualmente até violentos [...] (FOUCAULT, 2005: 32). 6 Para melhor discussão desta estrutura, ver a Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2004) e a Lei N.º 8.080/1990, que regulamenta o SUS. 21 Além disso, pensamos, então, o dispositivo e a governamentalidade em seus em suas diferente escalas: O que queria fazer – e era esse o objeto da análise – era ver em que medida se podia admitir que a análise dos micropoderes ou dos procedimentos de governamentalidade não está, por definição, limitada a uma área precisa, que seria definida por um setor de escala, mas deve ser considerada simplesmente um ponto de vista, um método de decifração que pode ser válido para a escala inteira, qualquer que seja a sua grandeza. Em outras palavras, a análise dos micropoderes não é uma questão de escala, não é uma questão de setor, é um questão de ponto de vista. Bom. Era essa, por assim dizer, a razão do método (FOUCAULT, 2008b: 258). Desta forma, a pesquisa de campo realizada serve de embasamento empírico para reflexões sobre o dispositivo de gestão da população de rua, analisado enquanto um setor e seus diversos níveis escalonares. Assim, o recurso de diário de campo (nível municipal) e legislações/normativas/documentos oficiais (níveis estadual e federal). Pensamos o setor em suas teias de sabres e poderes internos ao nível local, que apresenta a Prefeitura, a Secretaria de Saúde, a Secretaria de Assistência Social, o CREAS e a Casa Transitória. Também, como se trata de um dispositivo, é indispensável pensar como os saberes se formam e, sendo assim, uma discussão sobre saúde, assistência social é feita. Algo próximo da ideia de genealogia – embora eu não tenha tido acesso a bases de dados ou tempo suficiente para tal empreitada – mas, uma discussão no eixo diacrônico, pensando a constituição dessas áreas de políticas públicas, bem como o campo de saber da Saúde Coletiva. Assim, também são pensadas as questões jurídicas, tanto do ponto de vista de garantia de direitos da população de rua – com o MNPR e a PNPR – como as situações de violação de direitos humanos, como no caso de internações compulsórias ou a tradição de punição e arbitrariedade sobre mendigos e a vadiagem e mendicância. Ao pensar estes níveis escalonares e constituição de saberes – que impactam na circulação de poderes – podemos amarrar a argumentação de que esta tese não considera que a população de rua seja excluída, mas sim compõem as margens do Estado, onde os limites entre legal e ilegal são borrados7. E para onde se direcionam, ao 7 Ou legal e extralegal (MAGALHAES, 2012). Ver este texto, para discussão sobre megaeventos e remoções no Rio de Janeiro. 22 contrário do que se pensa, as maiores intervenções estatais. Neste caso, Assistência Social e Saúde, como também Segurança Pública, dada pelo contexto de guerra às drogas. Ainda é preciso destacar, que devido à uma entrada privilegiada de pesquisa de campo – realizei pesquisa de campo em Jaboticabal a convite da Secretária de Assistência Social e da Diretora de Proteção Especial – meu olhar de pesquisa voltou-se para a estrutura do acolhimento da população em situação de rua de Jaboticabal-SP. Desta maneira, mais do que o Estado visto por baixo8, adoto a ideia de ver o Estado em ação, ou seja, como as políticas públicas são operacionalizadas no cotidiano da gestão. Ou, dito de outros maneira, entender o Estado como formado por suas margens (DAS; POOLE,2008). Segundo Santos e Georges, inspiradas em Hughes (1957), entender como agem os agentes de execução que estão distantes de centros políticos e econômicos, numa tentativa de “dar conta da indefinição e redefinição permanente de suas fronteiras” (GEORGES; SANTOS, 2016:23). Neste sentido, a proposta desta tese é fazer uma sociologia política das políticas públicas destinadas ao acolhimento da PSR. Por isso que lança mão de pesquisa de campo, com observação participante e análise documental. A análise documental proporciona o entendimento das normativas da política públicas e a pesquisa de campo com observação participante permite apreender como essas políticas são executadas em seu cotidiano de município de médio porte. Em minha experiência de pesquisa de campo, não houve nenhum Doc (FOOTE WHITE, 2005), ou seja, não há nenhum informante privilegiado e sim um acesso privilegiado aos diferentes níveis de gestão no âmbito municipal, lugar onde se concretizam as políticas públicas. Todavia, este trabalho integra a perspectiva de pesquisas recentes, que adotam a pesquisa etnográfica como método de pesquisa, de forma a tentar captar situações, tensões e delimitações cotidianas, que não seriam perceptíveis em outras técnicas qualitativas, como entrevistas, por exemplo. Além disso, pesquisas assim realizadas – no Brasil e no mundo – apresentam similaridade sobre constituições de periferias9. Embora minha pesquisa tenha sido realizada no centro da 8 Cefaï (2010), que diz respeito aos trabalhos antropológicos que pensam o Estado a partir das pontas e, portanto, o enxergam desde baixo, ou seja, como a sociedade recebe as políticas do Estado. 9 Segundo Cunha & Fentran (2013): “[...] pesquisas recentes reconhecem transformações muito intensas nas dinâmicas privada, social e política das periferias urbanas, cujas consequências estão longe de ser suficientemente estudadas, embora desafiem diferentes disciplinas das ciências sociais, como a sociologia e a antropologia urbanas, do trabalho, da religião, da família, da política e da cultura, além da ciência 23 cidade de Jaboticabal-SP, ela teve como objeto de intervenção uma população periférica e está inserida no contexto de mudanças recentes nas periferias. Por fim, no decorrer da tese aparecerão três tipos de termos para se referir à população em situação de rua: (1) população em situação de rua, com referência ao termo êmico dos assistentes sociais e da política nacional destinada a este segmento da população; (2) população de rua: quando a referência for os estudos populacionais e reflexões teóricas sobre Estado e como se forja uma população, nos termos foucaultianos e, por fim, (3) morador(es) de rua: quando o enfoque é no indivíduo e também no processo de sujeição e subjetivação, também inspirados em Foucault. *** Diante destas questões, a presente tese está dividida em três partes, compostas, ao todo, por 6 capítulos. A primeira parte desta tese trata dos apontamentos iniciais. Chamei de apontamos iniciais a Introdução, o Capítulo 1 e o Capítulo 2. O primeiro capítulo é composto por considerações iniciais da pesquisa – como entrada de campo, escolhas metodológicas e teóricas – bem como considerações primeiras para entendimento da pesquisa e do texto. O segundo capítulo descreve a Casa Transitória “Amélia Portella Volpe”, local onde realizei a pesquisa de campo. Tal descrição é feita através de seu espaço físico, seu corpo de funcionários e sua rotina semanal. Estes apontamentos iniciais são de fundamental importância para entender de onde partem o olhar da pesquisa e as reflexões analíticas apresentadas nas outras duas partes desta tese. A segunda parte desta tese reúne os Capítulo 3 e 4. O Capítulo 3 – Política Públicas e População de Rua – faz um balanço das políticas públicas destinadas à população de rua, além de apontar problemas na própria ideia de população, que torna homogêneo o que não é. E, neste sentido, gera problemas cotidianos na operacionalização das políticas públicas, quando a heterogeneidade aparece e causa conflitos diversos. O Capítulo 4 – Saúde Pública e Gestão dos Pobres – faz uma retomada das políticas públicas em Saúde, ou seja, da Saúde Pública, seja em seus aspectos mais gerais históricos ou em sua dinâmica peculiar brasileira. Neste capítulo, argumenta-se que é possível afirmar que a Saúde se constitui como eixo articulador da gestão dos política, preocupada com a construção democrática, as políticas públicas e os processos decisórios” (p.11). 24 pobres. Desta maneira, a segunda parte desta tese leva a sério (VIVEIROS DE CASTRO, 2002) as políticas públicas. Ou seja, tomamos como verdadeiras as intenções descritas nos documentos oficiais e acompanhamos como ocorre sua implementação. A terceira e última parte desta tese é composta pelos Capítulos 5 e 6 e pelas Conclusões. O Capítulo 5 continua a discussão, já iniciada no Capítulo 4, sobre questão social e exclusão social, na perspectiva de margens do Estado, ou seja, descrevendo uma historicidade da gestão dos pobres que culmina sempre em repressão. Desta forma, apresentamos uma discussão sobre questão social e seu aspecto de questão de polícia, bem como a relação com vadiagem e mendicância. O Capítulo 6, sobre biopolítica, tanatopolítica e vida nua, discute este três conceitos, com base em relatos etnográficos apresentados em seu início, para destacar que a população em situação de rua de rua não é excluída e sim, ao contrário, tem várias intervenções estatais em sua vida cotidiana. Se na segunda parte desta tese a crítica está relacionada aos limites das políticas públicas, que são levadas a sério. Na terceira parte, as políticas públicas são tomadas como construção que, de saída, não promoverão emancipação social ou igualdade. Isto porque, nesta abordagem, apostamos na interpretação de ação do Estado como disciplina, biopolítica, tanatopolítica e controle. Desta forma, embora partindo de perspectivas diferentes, a segunda e terceira partes desta tese fazem parte de uma mesma análise: as políticas públicas de gestão da população de rua não dão conta do que se propõem, isto porque, diante da lógica estatal de composição da hegemonia no centro a partir das margens, impõe uma constituição onde até há espaço para cuidado, mas sobretudo, elaboram políticas de controle. 25 CAPÍTULO 1 – SOBRE A PESQUISA Sobre as escolhas teóricas Esta pesquisa parte de uma dupla inquietação: teórica sobre questão social no Brasil – tema já abordado em sua perspectiva histórica na dissertação de Mestrado –; e, também, sobre contexto atual que coloca o uso abusivo do crack como tema central para entender uma ampla rede de intervenções estatais diante de populações e corpos de pessoas em situação de rua. O tema da população em situação de rua também não é recente para mim. Iniciei meu contato com incursões noturnas às ruas de Americana, quando adolescente, para distribuir sopa. Depois, anos mais tarde, transformei esta questão em meu objeto de estudo na Iniciação Científica. Desta pesquisa inicial, derivou minha pesquisa monográfica de Trabalho de Conclusão de Curso no Bacharelado em Ciências Sociais (UFSCar)10 e também projeto de Mestrado que, por inúmeros motivos, foi engavetado. Todavia, foi retomado agora no Doutorado, em outro formato, e com contribuições do tema estudado durante o Mestrado. Do ponto de vista das políticas públicas, o olhar direcionado à população em situação de rua é recente. Uma das principais argumentações no meu projeto de Mestrado se referia à ausência de censo específico para contabilizar esta população. A questão era: como pensar uma política pública eficiente para uma população que não sabemos quem é ou qual tamanhos tem? Este é o tema de livro sobre população em situação de rua intitulado “População em situação de rua: quem é, como vive, como é vista”, fruto de uma experiência de pesquisa no município de São Paulo11. Depois de movimentação na Assistência Social e de engajamento político do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), há, finalmente, o Censo Nacional da População em Situação de Rua (2008)12 e, daí, derivam algumas normativas para 10 Fiz Iniciação Científica sob orientação da Profa. Dra. Norma Felicidade Valencio. Entre os anos de 2015 e 2016. No final de 2007, sob orientação da Profa. Dra. Vera Alves Cepêda, apresentei a monografia intitulada “População de Rua em São Carlos-SP: aspectos sobre exclusão social, contratualismo e cidadania”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais e como resultado de estudos primeiros na Iniciação Científica (PIBIC/CNPq). 11 VIEIRA, Maria Antonieta da Costa et al. (2004). 12 Mais informações em: BRASIL. MINISTÉRIO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. META – Instituto de Pesquisa de opinião. Sumário Executivo Pesquisa Nacional de População em Situação de Rua. Brasília, 2008. 26 políticas públicas direcionadas especificamente à população em situação de rua. Mais recentemente, o aspecto da atenção integral à saúde da população em situação de rua toma corpo e é publicado o “Manual sobre o cuidado à saúde da população em situação de rua” (2012)13, juntamente com as portarias que definem a implantação e o funcionamento do Consultório na Rua (CnaR)14. O Consultório na Rua, diferentemente do Consultório de Rua, está ligado à atenção básica e, portanto, tem enfoque na atenção integral à saúde da população em situação de rua. Formado por uma equipe multidisciplinar, o atendimento acolhe várias questões, seja de ordem da Saúde Mental – casos que eram atendidos pela Consultório de Rua e que são encaminhados à rede CAPS (Centro de Apoio Psicossocial) – ou questões como machucados nos pés, tratamentos dentários, tuberculose e doenças crônicas comuns à população em geral, como hipertensão e diabetes. Todavia, um detalhe importante na construção de políticas públicas se faz necessário ressaltar: as iniciativas de Consultório na Rua são preconizadas – ao menos, em seu primeiro processo de implantação – para municípios com população a partir de 300 mil habitantes. Desta forma, esta pesquisa buscar entender os mecanismos e estratégias cotidianos existentes nas ramificações das políticas públicas que são empregados para um município de médio porte – neste caso, Jaboticabal-SP – lança mão para poder seguir os condicionantes da política nacional, mesmo sem contar com verba destinada para tais equipamentos específicos ao acolhimento em Assistência Social e Saúde, respectivamente, Centro-POP e Consultório na Rua. Desta forma, além do embasamento empírico das políticas para população em situação de rua, esta pesquisa tem como norteadores teóricos: questão social, margens do Estado (Das&Poole), assim como população e biopoder (Foucault) e tanatopolítica e vida nua (Agamben). Estas questões teóricas primeiras, que já apreciam no projeto, vão também dialogar com temas como higienismo, eugenismo e suas relações com a 13 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção Básica. Departamento de Atenção Básica. Manual sobre o cuidado à saúde da população em situação de rua. Brasília-DF, 2012. 14 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2012. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua, Portaria nº 123, de 25 de janeiro de 2012. Define os critérios de cálculo do número máximo de equipes de Consultório na Rua (eCR) por Município e Portaria nº 1.238, de 25 de junho de 2014. Fixa o valor do incentivo de custeio referente às Equipes de Consultório na Rua nas diferentes modalidades. Há, ainda, a Nota Técnica Conjunta/2012, que dispõe sobre a adequação dos Consultórios de Rua e Implantação de Novas Equipes de Consultório na Rua frente às diretrizes de funcionamento das equipes de Consultório na Rua, estabelecidos pelas portarias 122 e 123, de 25 de janeiro de 2012. 27 construção de uma Saúde Pública contemporânea, imbricações que se tornaram mais evidentes depois da pesquisa de campo. E, sendo assim, partindo da análise do Programa Crack: É preciso vencer, podemos inferir como a gestão da população em situação de rua está fortemente associada a, pelo menos, três tecnologias de intervenção: Assistência Social, Saúde Pública e Segurança Pública. Isto porque, é necessário pensar estas políticas de saúde em contexto atual de guerra às drogas15. Todavia, estes entrelaçamentos não datam apenas dos dias atuais, mas que são perceptíveis, em perspectiva história, na punição da vadiagem e da mendicância, como formas de controle das populações nos espaços públicos de outrora. Mas, que também se encontram presente no cotidiano, nas formas de abordagem da Assistência Social e da Saúde, que fazem uso do poder da Segurança Pública, no caso de internações compulsórias e fuga de pacientes com doenças de notificação compulsória16. O contexto atual e a população em situação de rua Nos últimos anos o debate sobre saúde para população em situação de rua (PSR) ganhou força no cenário nacional, diante de duas questões práticas: i. o aumento do consumo de crack, associado à PSR e ii. as políticas públicas que, diante da intersetorialidade no acolhimento, tentam dar contas dessas novas demandas. Sendo assim, a partir de 2011 temos o primeiro documento oficial (Portaria 122, de janeiro de 2011) que define a criação do Consultório na Rua (CnaR), equipamento do Sistema Único de Saúde, com vínculo também na Assistência Social, que faz a busca ativa17 de usuários que compõem a população em situação de rua. Diante disto, o objetivo desta pesquisa é entender como as recentes das políticas públicas para PSR se articulam, visando ao atendimento integral à saúde da PSR, levando em consideração a 15 O contexto de guerra às drogas é essencial para pensar as políticas de Saúde e de Assistência Social relacionadas com o tema. Isto porque, devido à construção preconceituosa a respeito do tema e o pânico moral que o cerca (ver nota de rodapé 2, desta tese) faz com que “a discussão sobre a política criminal de drogas encontra-se no núcleo de diversos outros temas, tais como racismo, higienização social, violência de gênero, violência estatal, marginalização e criminalização da pobreza” (CAMARGO; BORDIN, 2017:2). 16 Segundo a Portaria no. 204, de 17 de fevereiro de 2017, notificação compulsória é definida como “comunicação obrigatória à autoridade de saúde, realizada pelos médicos, profissionais de saúde ou responsáveis pelos estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, sobre a ocorrência de suspeita ou confirmação de doença, agravo ou evento de saúde pública”. 17 A “busca ativa” é prevista tanto pelo SUS como pelo SUAS. Está pautada em ações de busca dos usuários no território de permanência dos mesmos. Ou seja, ao invés da população em situação de rua procurar a Unidade Básica de Saúde (UBS), o Consultório na Rua (CnaR) busca a população em situação de rua, por ser uma unidade móvel de atendimento em Saúde. 28 intersetorialidade18, prevista tanto no Sistema Único de Assistência Social (SUS) como no Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Como hipóteses de trabalho, argumentamos que o debate sobre saúde para população em situação de rua aparece em cenário nacional apenas quando esta população ganha visibilidade ao ser associada ao consumo de crack19 e, portanto, estar no centro da discussão sobre drogas. Dessa forma, embora a gramática do discurso das ações governamentais gravite em torno da questão da cidadania e do direito ao acesso ao cuidado integral e, por conseguinte, à ampliação de direitos de cidadania para a população de rua, argumentamos outra possível consequência: a outra versão do cuidado é o controle das populações perigosas20 do espaço urbano, especialmente as que ocupam os espaços públicos. Diante disto – como já venho argumentado21 e também autores como Taniele Rui (2014) também apontam – este debate pode contribuir para a discussão teórica sobre questão social no Brasil contemporâneo. Todavia, pode ser enriquecido com a discussão sobre margens do Estado (DAS; POOLE, 2008), que lança um novo olhar para as populações consideradas excluídas. Esta hipótese de trabalho se junta a outros autores, que têm pensado o urbano no Brasil contemporâneo22. 18 Pensar atualmente a gestão em Saúde no Brasil requer o exercício de entender as relações entre as políticas sociais e a descentralização política apontada por Arretche (2000). Além disso, como a saúde passou a ser considerada “resultado de vários fatores determinantes e condicionantes, como alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, transporte, lazer, acesso a bens e serviços essenciais”, a gestão em saúde deve articular em várias esferas de governo e “desenvolver ações conjuntas com outros setores governamentais, como meio ambiente, educação, urbanismo etc., que possam contribuir, direta ou indiretamente, para a promoção de melhores condições de vida e da saúde para a população” (PEREIRA et al., 2004: 9). Dessa forma, “a prática da intersetorialidade na saúde propõe um diálogo e ações complementares entre setores diversos, sem desconsiderar a necessidade de integrar ações dentro de cada setor. Ou seja, pode-se dizer que ao buscar a intersetorialidade, espera-se encontrar ações conjuntas que perseguem o mesmo objetivo entre setores diferentes; entre o público e o privado e entre a sociedade civil e o Estado em instâncias nas quais essas dicotomias ainda persistem” (AZEVEDO et al, 2012: 1336). 19 Embora em pesquisas recentes seja diagnosticado que a incidência de consumo de crack na cracolândia é menor do que o consumo de pó (cocaína) e bebidas alcoólicas. 20 “A expressão “classes perigosas” parece ter surgido na primeira metade do século XIX. A escritora inglesa Mary Carpenter, por exemplo, em estudo da década de 1840 (...) utiliza a expressão claramente no sentido de um grupo social formado à margem da sociedade civil. Para Mary Carpenter, as classes perigosas eram construídas pelas pessoas que já houvessem passado pela prisão, ou as que, mesmo não tendo sido presas, haviam optado por obter o seu sustento e o de sua família através da prática de furtos e não do trabalho. Em suma, a expressão é utilizada aqui de forma bastante restrita, referindo-se apenas aos indivíduos que já haviam abertamente escolhido uma estratégia de sobrevivência que os colocava à margem da lei” (CHALHOUB, 1996:20). 21 Em texto apresentado no “II Seminário Interno do projeto de pesquisa As margens da cidade Grupos urbanos ‘marginais’, política e violência em três territórios do estado de São Paulo” (BARBOSA, 2013). 22 Destaco aqui a produção do grupo NaMargem – Núcleo de Pesquisas Urbanas (UFSCar), do qual fiz parte entre os anos de 2010 e 2014. Mas, também outras produções, que, por exemplo, em momentos 29 Dessa forma, além de buscar entender as extensões mais capilares da gestão da população de rua e, portanto, como o poder circula na esfera municipal de acolhimento à PSR, esta pesquisa também tem como pano de fundo o Programa Crack – é preciso vencer, que articula nacionalmente as esferas do cuidado, da prevenção e da autoridade23. Embora com atenção às normativas nacionais e manuais de cuidado, bem como pensando as articulações nacionais do Programa Crack – é preciso vencer, interessa-me entender como todas essas teias de saber-poder (Foucault) se articulam no nível municipal e, dessa forma, esta pesquisa está embasada em pesquisa de campo realizada no município de Jaboticabal-SP, em duas grandes incursões: um mês durante o ano de 2015, quando acompanhei diariamente o acolhimento à população em situação de rua na Casa Transitória de Jaboticabal-SP e, no decorrer do ano de 2016, período em que me mudei para o município. O local da pesquisa de campo A pesquisa de campo foi realizada no município de Jaboticabal, localizado no interior do estado de São Paulo. Com área territorial de 707 km² e população de 73.084 (94.7% urbana, 5,3% rural), Jaboticabal, passou a apresentar, a partir de 2010 o IDH de 0,778, considerado alto24. Segundo a Secretaria de Assistência Social25, de acordo com levantamento realizado em 2013, 110 pessoas em situação de rua foram entrevistadas. Foi utilizado o mesmo questionário do Levantamento Nacional da População em Situação de Rua. Em 2014, um Banco de Dados foi criado e é alimentado pelas Equipes de Abordagens (diurna e noturna) com preenchimento da ficha de abordagem, sempre que uma nova pessoa é abordada. Foram cadastradas 138 pessoas desde o ano de 2014 até o momento diferentes aglutinaram-se no GT Sobre Periferias da ANPOCS. Coletânea de trabalhos deste GT pode ser acessada em Vieira da Cunha & Feltran (2013). 23 Segundo a página do Observatório Crack, é preciso vencer , o “cuidado” são “ações para estruturar redes de atenção de saúde e de assistência social para o atendimento aos usuários de drogas e seus familiares” e, portanto, integram tal eixo: Consultório na Rua, Unidade de Acolhimento Adulto, Unidade de Acolhimento Infantil, Leitos em enfermarias especializadas, Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Comunidades Terapêuticas, Serviço Social na Rua, Centro Pop, Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS. O eixo da “prevenção” são “ações para fortalecer vínculos familiares e comunitários e reduzir fatores de risco para o uso de drogas”. Sendo assim, compõem esse eixo os Centro Regionais de Referência e a Capacitação de profissionais e sociedade civil. Por último, o eixo da “autoridade”, que são “ações para reduzir a oferta de crack e outras drogas ilícitas, pela repressão ao tráfico, crime organizado e pela garantia de condições de segurança. Informações disponíveis em: . Último acesso em: 17.03.2015. 24 Dados disponíveis em: . Acesso em: 06.04.2015. 25 Dados enviados por e-mail pela Secretaria Municipal de Assistência Social. 30 de realização de pesquisa (em 2015). Dentre estas pessoas, algumas são trecheiras26, outras já saíram da situação de rua ou foram encaminhadas para a Casa Transitória e outras permanecem. A capacidade de atendimento da Casa Transitória é de 20 pessoas. No momento inicial da pesquisa, encontravam-se acolhidas 19 pessoas do sexo masculino. O município também não dispõe de Serviço de Acolhimento para mulheres. As mulheres são encaminhadas para o CETREM (Centro de Triagem do Migrante) em Ribeirão Preto. Segundo a diretora de proteção especial, a maioria não quer sair da situação de rua em consequência da dependência. Também, não há no município o Serviço de Albergue. Só uma ONG que oferece uma sopa à noite de segunda a sábado. Ainda, o município fez convênio com duas Comunidades Terapêuticas (atendimento masculino em Barrinha e atendimento feminino em Taquaritinga). E a diretora de proteção especial, no início da pesquisa, definira o trabalho do acolhimento à PSR de Jaboticabal como “abordar e oferecer oportunidade de tratamento”. Além disso, o serviço de acolhimento em Saúde começava, no ano de 2015, a ser estruturado no município, com o equipamento Saúde na Rua27, uma espécie experimental de Consultório na Rua. O que chama atenção neste caso é que os Consultórios na Rua são preconizados, em sua fase inicial de implantação, para municípios com mais de 300 mil habitantes, para depois ser uma experiência adotada em municípios menores. Neste caso, o município de Jaboticabal fica à frente desta iniciativa e a implementa antes mesmo de ser obrigatória pelas normativas da União. Sendo assim, torna-se um município interessante para estudo de caso: apesar de município menor, ainda sem a obrigatoriedade de implementar o equipamento da Saúde, instala um serviço de acolhimento em Saúde. 26 Há uma classificação interna à própria população em situação de rua: trecheiros e pardais. Trecheiros são os que ficam em fluxo permanente entre as cidades. Pardais são os fixos no território de um município. Sobre estas distinções êmicas e modos de vida de cada grupos, ver Martinez (2011). Para estudo sobre trecheiros e errância/nomandismo como formas de viver e construção de subjetividades, ver Justo (2011; 2012). 27 Saúde na Rua é um atendimento destinado à PSR em Jaboticabal, uma espécie de Consultório na Rua experimental. Ele se utiliza de um ônibus com aparato de saúde, seja cadeira de dentista, ou local reservado para consultas, anotações, coleta de materiais de exame e banheiro. Tal ônibus precisa estar ligado à energia elétrica. Desta forma, utiliza o ponto de energia existente no posto de combustível localizado na marginal da cidade, próximo ao local de consumo de crack que ficou conhecido como Cracolândia de Jaboticabal. Em inúmeras vezes este local foi referenciado como a ponte também. 31 A pesquisa e pequena introdução bibliográfica Esta pesquisa se justificou pela importância em estudar um tema recente como as políticas destinadas à PSR, principalmente em contexto urbano e com relação à emergência social ligada às práticas de consumo abusivo de crack, que geram conflitos e integram o centro da discussão contemporânea sobre questão social no Brasil: [...] os conflitos decorrentes de intervenções ostensivas nos espaços de consumo de droga se complexificam e se intensificam, configurando um momento histórico que não torna exagero dizer que o crack, seus usuários e seus espaços de consumo estão no centro da questão social brasileira contemporânea” (RUI, 2014: 27). Embora o enfoque desta pesquisa não seja o uso abusivo do crack e a corporalidade abjeta do noia, como no estudo de Rui, é possível atentar para a questão de metonímina que transforma todos os moradores de rua em usuários de crack. Dessa forma, por essa associação recorrente – que nem sempre encontra correspondência na prática – e por ocupar os mesmos espaços de consumo de crack e de circulação dos noias, a população em situação de rua ocupa uma miríade de posições nas marginalidades: [...] o uso do crack revela apenas uma face da mesma pessoa, que pode ser considerada por outros serviços de atenção como “morador(a) de rua”, “menino de rua”, “travesti”, “profissional do sexo”, entre inúmeras outras identidades contingenciais e políticas; trata-se de um fenômeno bastante recorrente, apreendido por Néstor Perlongher (2008) como “contatos entre as marginalidades” (RUI, 2014: 55). E é neste debate, então, que podemos tentar contribuir para entender melhor as capilaridades do poder, que circula entre os funcionários que compõem as políticas públicas, mas também entre os usuários28. Desta forma, ao contrário de tendências de outras perspectivas em Sociologia, a análise de populações marginais que aqui se realiza, vai ao encontro de pesquisas como as relacionadas com a introdução de Das e Poole (2008), a saber: pesquisas sobre as margens do Estado29. Que, ao invés de se 28 Oliveira (2012) demonstra as hierarquias finas entre a população em situação de rua de São Carlos-SP. Estas hierarquias foram levadas para as assembleias do equipamento de acolhimento à época e, dessa forma, influenciaram as decisões e construção conjunta do atendimento no município. 29 Segundo Das e Poole (2008), a Antropologia é a disciplina privilegiada para estudar o estado a partir de suas margens, pois é a disciplina que busca interlocução com aquelas populações que são marginalizadas dentro das estruturas políticas e econômicas, em domínios coloniais e pós-coloniais. Sendo assim, uma antropologia das margens oferece uma perspectiva única de compreensão do Estado, não porque captura 32 preocupar com descrições que analisam determinadas populações pela negativa – no caso de população de rua, como os que não tem casa, não tem emprego, não tem família – preocupa-se em tentar entender como essas populações se relacionam com o Estado e quais formas de gestão acionam, pois estão longe de ser excluídos. Se a princípio se pensava que ali nas margens do Estado haveria falta de estado, podemos dizer que há excesso. Este trabalho, então, pretende contribuir para o entendimento da sociedade brasileira contemporânea, no tocante à gestão de crises, principalmente por ter como pano de fundo a discussão sobre gestão da pobreza, das ruas e controle social de populações perigosas. Dessa forma, além de adotar uma perspectiva inspirada em Foucault de análise de como o poder circula30 entre agentes diversos do Estado e usuários de serviços de Saúde e de Assistência Social – com base na pesquisa de campo de inspiração etnográfica realizada em Jaboticabal-SP – considera-se que este é um momento propício para resgatar o debate sobre questão social: o problema do crack traz a visibilidade para o debate em Saúde para PSR e mobiliza ao menos três tipos de gestão governamental (“cuidado”, “prevenção” e “autoridade”). Sobre a pesquisa de campo A primeira impressão muito clara ao adentrar na SESAU (Secretaria de Saúde do município de Campo Grande) é o tamanho do lugar. Pergunto por Marina31 na recepção do local, e, surpreendentemente para mim, as pessoas ali não a conhecem. Estava acostumada com o tramitar em secretarias menores, como de São Carlos, onde tinha impressão que todos se conheciam. Perguntam-me sobre qual área ela seria e eu não entendo a pergunta. Digo apenas que era do consultório de rua. Alguém fala “ah, o pessoal que vai para rua... Acho que eles são da atenção básica”. Neste momento eu entendo a pergunta. “Sim, são da atenção básica”, penso comigo. Alguém me indica o bloco e eu caminho até lá. Saio em frente a um estacionamento, com vários blocos ao redor, muitos carros. Realmente, aquela secretaria era grande. Entendia porque toda a negociação de pesquisa era mais burocrática. Era uma capital. Em alguma medida, tudo era bem mais impessoal (Diário de Campo, 01/11/2013). práticas consideradas exóticas, mas porque sugere que as ditas “margens do Estado” são supostos necessários para o Estado, da mesma forma que a exceção é para a regra. 30 Na Aula de 14 de janeiro de 1976 de Em defesa da sociedade, Foucault discorre sobre problemas e indicações de método para trabalhar com os estudos sobre poder. Ver discussão mais à frente (p.28). 31 Os nomes que aqui aparecem são fictícios. Com exceção de cargos públicos notórios, como o de secretária de Assistência Social e diretora de Proteção Especial. 33 Naquele momento, ao adentrar a SESAU/PMCG (Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Campo Grande-MS) eu não sabia ainda que me impressionaria não apenas com o tamanho físico da secretaria e com a impessoalidade nas relações, eu estava adentrando em um emaranhado de requisitos burocráticos para realização da pesquisa. Comitês de ética – discussão nova no meio das Ciências Sociais32 – ofícios, pedidos formais de autorização de pesquisa, conversas por telefone, assinar termo de compromisso depois de meses de negociação para, ao final, não conseguir uma assinatura final na folha de rosto gerada pela Plataforma Brasil após cadastro do projeto de pesquisa. A impressão era que eu perdera quase um ano da minha vida (e do prazo de pesquisa) numa negociação infrutífera. Mas, depois sobre muito refletir, entendi que este era um momento de pesquisa importante de ser relatado: havia limites e impasses para quem pretende pesquisar as políticas públicas. Como bem lembrado por Cefaï (2013), podemos adentrar apenas dentro dos limites impostos. E há limites. Felizmente, se algumas portas se fecham, outras se abrem. E pude realizar minha pesquisa de campo em outro município. Agora no interior do estado de São Paulo. Onde outras especificidades locais enriqueceram minhas reflexões sobre o tema de pesquisa. *** Meu interesse de pesquisa sobre moradores de rua nasceu com experiências anteriores com estas pessoas. Quando era adolescente participei de um grupo religioso que estregava sopa na cidade de Americana. Depois de um evento mais drástico – o suicídio de um dos homens para quem sempre entregávamos sopa – chegamos à conclusão que era necessário, além da entrega do pão, fazer algo que se ligasse mais às necessidades de espírito daquelas pessoas. Foi assim que passamos a conversar ainda mais com aquelas pessoas em situação de rua. E também foi dessa forma que tomei contato com as primeiras trajetórias de rua. Uma experiência desse impacto não passa desapercebida em nossa vida. A partir daquele momento, sempre pensava nas condições de vida nas ruas. Chuva boa para dormir? Apenas para quem tinha a possibilidade de se abrigar. Alteridade é imposta de 32 O debate é recente na Sociologia, mas tem encontrado espaço nos grandes encontros das Ciências Sociais, como a reunião da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e a Reunião Brasileira de Antropologia (RBA). Destaque para o dossiê sobre o assunto que saiu na Revista Brasileira de Sociologia (RBS), organizado por Soraya Vargas Côrtes (presidente da SBS à época). Referência: Revista Brasileira de Sociologia. Vol 03, No. 05. Jan./Jun./2015. 34 uma maneira radical e tudo na nossa vida domiciliada parece composta de excessos materiais. Foi assim que me atentei para quem, comumente, é invisibilizado socialmente. Foi dessa forma que lembrei da existência de moradores de rua quando fui estudar impactos das chuvas nos transeuntes e nos fluxos da cidade33. Toda uma pesquisa de Graduação virou continuação em projeto de pesquisa de Mestrado. Mas, a vida acadêmica tem suas idiossincrasias e o projeto inicial não virou dissertação. Todavia, os objetos de pesquisa também nos escolhem e, sendo assim, continuei a pesquisar o tema paralelamente. Por convite de Luciano Oliveira e Mariana Martinez realizamos um minicurso sobre População em situação de rua, projeto de extensão que agrupou estudantes da UFSCar e funcionários da gestão de São Carlos e até de cidades vizinhas. Experiência importante que abriu caminho para uma relação mais próxima de pesquisadores do tema. Juntou-se a nós o Luiz Fernando Pereira. Tínhamos, então, uma espécie de Grupo de Trabalho permanente. Participamos juntos de um grupo de estudos urbanos na UFSCar34. Esta relação com estes pesquisadores qualificou o debate sobre a questão da população em situação de rua. Cada um tinha experiência em uma abordagem na discussão. O Luciano, ainda, tinha passagem pela gestão, que enriquecia muito nosso entendimento sobre as tramas institucionais das políticas voltadas para população em situação de rua (PSR). Para sacramentar todas as nossas experiências trocadas e colocar para conversar com os momentos distintos de pesquisa de campo sobre um mesmo tema numa mesma cidade, escrevemos um artigo35. Uma das experiências mais interessantes e trabalhosas da vida acadêmica. Mas, que pretende contribuir para o debate sobre o tema. Depois, eu fui ser professora substituta na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e dessa forma entrei em contato com o Consultório na Rua (CnaR). 33 Durante a graduação em Ciências Sociais tive bolsa de Iniciação Científica (PIBIC-CNPq) para estudar o impacto das chuvas em transeuntes e situações de desastres ligados às chuvas. Diante de pesquisa de campo fiz uma tipologia de afetados: (1) os que estavam na rua; (2) os que trabalhavam na rua; (3) os que moravam nas ruas. Dessa pesquisa, senti necessidade de abordar melhor o assunto “moradores de rua” e entender quais políticas públicas existiam para atender as suas necessidades. Nesse período ainda não havia os estudos recentes e os estudos da década de 1970 eram de mais difícil acesso. Todavia, o começo dos anos 2000 foi muito importante politicamente. E eu pude acompanhar grande parte dessas discussões políticas e avanços nas políticas públicas. 34 NaMargem – Núcleo de pesquisas urbanas. Participei deste grupo entre os anos de 2010 e 2014. Agradeço imensamente a todas as trocas acadêmicas e fraternais que ali realizamos. A influência dessa passagem pelo grupo na minha vida acadêmica e pessoal é importantíssima. 35 MARTINEZ, M, M.; PEREIRA, L. F.P.; BARBOSA, A, R. OLIVEIRA, L. M. F; PAZZINI, D. P.“A produção e a gestão da população de rua: a trajetória de Luciene”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. 7(4). OUT/NOV/DEZ - pp. 741-767. 35 Ministrei um curso de Antropologia Urbana. E, em aula sobre PSR, uma aluna me procurou no intervalo da aula para comentar que em Campo Grande começara a articulação para implantar o Consultório na Rua. Ela é funcionária da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Campo Grande. Foi assim que resolvi incorporar nas minhas reflexões sobre moradores de rua a questão da saúde. Saúde sempre fora algo de interesse pessoal e intelectual. Tenho uma irmã, que é muito próxima a mim, que é enfermeira e pesquisadora na área. Além disso, em épocas de UFSCar, estudei Paulo Freire com um grupo da residência multiprofissional em Saúde da Família. As questões de saúde, então, sempre estiveram presentes em minha trajetória. Mas, como destacado acima, era uma novidade e essa novidade trazia todo um novo campo de saber (e poder) que exigia procedimentos metodológicos com aprovação em comitê de ética. A questão que se impôs: a pesquisa de campo em Ciências Socais deveria ser considerada pesquisa como seres humanos em equivalência dos estudos experimentais das áreas de Saúde? Para mim era claro que não. Para o comitê de ética, formatado diante dessa área e com formulários que não fazem menor sentido à pesquisa em Ciências Sociais, sim. Era preciso passar por todo um processo de negociação, recolhimento de assinaturas, questionários pré-montados e prever – o que parece um absurdo às pesquisas etnográficas – quais perguntas seriam feitas aos interlocutores e quais possíveis situações de risco o campo apresentaria. Há aqui um embate entre as áreas, mas, fundamentalmente sobre epistemologia e metodologia. As consideradas ciências duras seguem uma formatação específica de pesquisa. Com métodos inflexíveis, recortes anteriores, formulários que precisam ser preenchidos e, teoricamente, imparcialidade na pesquisa36. Fica claro para essas ciências quem é objeto e quem pesquisa. De um longo debate ao estatuto científico das Ciências Humanas, nossa dureza não se encontra no rigor inflexível da metodologia, mas em uma revolução epistemológica37, que considera os próprios seres humanos objetos de pesquisa. Mais do que isso: é a interação entre eles – e deles com nós pesquisadores – que nos importa. Sendo assim, essa descrição de entrada no campo indispensável para trabalhos etnográficos e de observação participante, e esta descrição já nos qualifica em 36 Bourdieu discorre sobre o campo científico, como um campo de poder e quais influências na produção do conhecimento científico. Ver: BOUDIEU (1976). A suposta imparcialidade de ciência também é importante para a discussão sobre Eugenia, que será abordada durante a tese. Pietra Diwan (2014) chega a afirmar que a Eugenia é uma « pseudociência » exatamente porque não corresponde à imparcialidade almejada e propagada, apenas serve de argumento para intervenção nos corpos. 37 Laplantine (2003) discorre sobre isso nas mudanças de olhar da Antropologia. Esta discussão pode ser estendida também às Ciências Humanas. 36 relação à ética. São nossos pares, com acessos a essas informações da pesquisa de campo, que balizam a ética de pesquisa38. De qualquer forma, além desse debate sobre ética de pesquisa e nossa posição frente à cobrança de passagem de projeto de pesquisa por comitês de ética – que em si não seria um problema, se houvesse uma formatação específica para as Ciências Humanas39 – ainda há os impasses e relações de poder entre pesquisador e gestão. No meu caso, houve uma negociação frustrada ao final de quase um ano. Somou-se a isso uma greve que paralisou o funcionamento do Comitê de Ética da UNESP-FFC (Marília), que transformou o período de tramitações institucionais em algo de maior duração. Estes parecem ser dois impasses em pesquisa de Ciências Sociais em Saúde e que tem sido discutidos por pesquisadores da área: a relação com o comitê de ética e o acesso às instituições que pesquisamos. Em Seminário realizado na UnB40, este debate apareceu de forma contundente. E, além dos problemas usuais que são comentados, como a formatação dos Comitês de Ética baseados em Ciências da Saúde, também foi questionada os entraves às aulas que dependiam de respostas desses comitês que demoravam mais do que o semestre letivo e, portanto, destruíam toda a possibilidade de campo antropológico em Saúde durante a Graduação como recurso didático e metodológico em uma disciplina semestral. O outro nível de problemas também é registrado por outros autores. Sobre pesquisa a respeito do Samussocial em Paris e as permissões institucionais, Daniel Cefaï escreve: Algumas dessas operações de pesquisa nos foram autorizadas e outras – como o acompanhamento das reuniões dos funcionários, com a exceção do briefing antes das maraudes noturnas – nos foram vedadas. Cada instituição delimita, assim, um perímetro aberto à investigação: em nosso caso, uma decisão vinda da direção tornou possível esta pesquisa, mas foram estabelecidos limites por causa de microrresistências de quadros intermediários (CEFAÏ, 2013:273). Dessa forma, é necessário pensar sobre essas relações de poder nas instituições e também dessas instituições com os pesquisadores. Como somos encarados pelos nossos interlocutores técnicos, que são especializados nos temas que pesquisamos? Taniele Rui 38 Tal questão é discutida na coletânea de FLEISCHER&SCHUCH (2010). 39 Há o Comitê específico em Ciências Humanas na UnB – CEP/IH. Foi uma forma encontrada de atender às demandas por passagem em comitês de ética, porém, assegurando a análise por profissionais também de formação em Ciências Humanas. 40 Antropologia e Mediadores no Campo das Políticas de Saúde, Brasília, 2014. 37 (2014) descreve toda a negociação da entrada de campo, tanto no acompanhamento das equipes de redução de danos em Campinas como na ONG que atua na Cracolância, em São Paulo. Se na segunda a relação foi menos formal e rapidamente conseguiu acompanhar o serviço, na primeira teve que passar por todo um ritual de negociações que culminou, em última fase, na sua apresentação à equipe e pedido de autorização para a mesma. Depois de conversas sobre a pesquisa e explicações sobre o método etnográfico, ela ouviu de um dos redutores é uma menina, não entendo essa preocupação toda (RUI, 2014:45). Sendo assim, o que nossa presença representa? Por vezes, parece-me uma ameaça ao conhecimento dos gestores. Uma espécie de vigília sobre aplicações corretas das diretrizes nacionais das políticas públicas. Ou, então, somos apenas observadores que não impõem preocupação. É certo que, independentemente do papel que assumimos em relação às diretrizes nacionais das políticas públicas, elas existem e as relações são complexas. De acordo com Cefaï: “uma ação pública só é implementada via estratégias políticas, cálculos econômicos e reorganizações administrativas, onde interesses divergentes vão entrar em conflito” (2013:271). Diante disso, temos outras questões importantes para se observar e que influenciam na pesquisa de campo: as relações intra e interinstitucionais. Além das questões das políticas públicas nacionais, que possuem implantação nas localidades e, portanto, por esta característica de descentralização política e federalismo41, há ainda os impasses relacionados aos financiamentos das políticas e como os gestores e setores sociais se articulam para receber os recursos da União. *** Ela me conta que já trabalhou como RD e que já esteve ligada ao CAPS, mas que não conseguia contratar um agente social. Para todos os profissionais ligados ao CnaR em Campo Grande, a única possibilidade é o concurso. O único profissional que pode ser contrato é o médico. Os demais conseguem ser contratados apenas em casos específicos, como o combate à dengue. Marina demonstrou muita preocupação com essas tramitações burocráticas. Ainda em sua sala, já falara que a equipe estava descontente com o trabalho, porque não haviam recebido uma remuneração que deveriam receber (não entendi muito bem, mas tive impressão que era referente a um plantão noturno). Dessa forma, a 41 Ver: ARRETCHE&MARQUES (2003). 38 equipe não havia aparecido para reunião de equipe que ocorre toda sexta-feira pela manhã (Diário de Campo, 01/11/2013). Já em primeira conversa com a responsável pelo Consultório na Rua em Campo Grande, pude perceber os possíveis dilemas da gestão. Há pequenas relações de poder internos na instituição que se transformam em entraves na prática. Neste caso, é clara a dificuldade para forma uma equipe. Segundo normas da Prefeitura Municipal de Campo Grande (PMCG), os funcionários precisam ser concursados. A contratação diferenciada é permitida apenas em casos de emergência, como o combate à dengue. Sendo assim, formar uma equipe tão específica é algo bem trabalhoso. É necessário recrutar dentro do quadro de funcionários, treinar, selecionar as pessoas habilitadas a trabalharem com temas sensíveis. E, neste caso retratado por Marina, a preocupação era clara: depois de meses de trabalho e recrutamento, ela corria o risco de perder a equipe porque os pagamentos de plantões noturnos não tinham sido feitos. Dessa forma, a equipe recusava-se a ir trabalhar, enquanto o pagamento não fosse realizado. Nada mais justo. A maior questão ali era: o que fazer diante do risco de perder uma equipe especializada, com meses de treinamento investidos? Esta era a preocupação que tomava conta de Marina naquele dia de conversa. Mesmo assim, ela me explicou várias questões e traçou um panorama do município de Campo Grande. Chegamos ao refeitório, pegamos umas cadeiras que estavam em cima da mesa. Sentamos e ela inicia a fala sobre o equipamento de Campo Grande. Sua primeira ressalva é destacar que existe diferença entre consultório de rua e consultório na rua. O primeiro era um equipamento ligado fundamentalmente à Saúde Mental. O segundo, um equipamento ligava à Atenção Básica e, portanto, mais abrangente que o primeiro, pois integra outras necessidades de saúde da população em situação de rua. Diz ainda que as portarias que dão base ao Consultório na Rua (CnaR) são 122 e 123 e que a modalidade de Campo Grande é a 2, embora ainda não se conte com o agente social de RD (redutor de danos) (Diário de Campo, 01/11/2013). Esta diferença entre os dois consultórios é essencial. Não apenas porque demonstra uma inclinação diferente ao tratar a questão de saúde para moradores de rua, que deixa de ser associada à saúde mental, mas também como institucionalmente cada equipamento se liga a uma área do Ministério da Saúde, o que envolve mais ou menos prestígio e também diferentes mecanismos de financiamento de políticas públicas. Por isso a importância em discutir intersetorialidade no atendimento à saúde da população 39 em situação de rua. Porque este tema envolve também um diálogo com a intrasetorialidade e integralidade, conceitos importantes para a Saúde Coletiva e a Assistência Social e, portanto, fundamentais para o acolhimento nestes equipamentos. Em debate no Grupo de Trabalho “O desenho de políticas e direitos em saúde – Mediações pelos caminhos do Estado” no Seminário Antropologia e mediadores no campo das políticas de saúde42, uma gestora do Ministério da Saúde, ligada ao Departamento de Atenção Básica (DAB/MS), me comunicou que havia uma disputa entre as áreas, interna e externamente, no que diz respeito ao CnaR. Em primeiro lugar, internamente, no DAB, a questão era onde investir mais recursos, no Consultório na Rua ou no Mais Médicos. Ambos têm abrangência nacional, mas o segundo possui um espectro de atendimento maior, já que se direciona para a população em geral e não uma população em específico, como a população em situação de rua e o CnaR. Externamente, havia a diferença de financiamentos entre a Atenção Básica e a Saúde Mental. Também há diferenças de prestígio entre as áreas e de dimensão de atendimento. Dessa forma, a Atenção Básica precisa dividir a sua atenção entre todos os serviços que integram a atenção primária (UBS, UPA, ESF, etc.), ao passo que a Saúde Mental tem como foco de atendimento a Saúde Mental, distribuída entre fundamentalmente as diversas modalidades de CAPs (Centro de Apoio Psicossocial). Sendo assim, os recursos para o CnaR precisam ser divididos entre toda a rede da Atenção Básica, que é maior do que a de Saúde Mental, que é mais específica e mais complexa. Não é se estranhar, então, que a migração de Consultório de Rua (Saúde Mental) para Consultório na Rua (Atenção Básica), embora preconizado pelo MS, encontre resistência nas prefeituras que já implantaram o Consultório de Rua. E ainda, além dos entraves característicos das políticas públicas e seus mecanismos de implantação, ainda há as próprias descontinuidades ou incoerências entre o que se preconiza como uma política – no caso do exemplo a seguir, de redução de danos – e as necessidades de gestão dos corpos insalubres, com condutas desviantes43: A menina entrou em contato com ela no “murão do Tira” (bairro Tiradentes). Segundo relatos da Marina, este é um dos locais de Campo Grande conhecidos por ser Cracolância. Lara, de 26 anos, 42 Evento realizado na UnB, entre os dias 2 e 4 de abril de 2014. Nesta oportunidade apresentei o paper “Gestão das ruas e questão social no Brasil contemporâneo: A experiência do Consultório na Rua no Mato Grosso do Sul”. 43 Ver BARBOSA (2014). 40 entrou em contato com a equipe quando já estava grávida. Conseguiram que ela fizesse pré-natal. Estava tudo certo. Segundo Marina, a Lara fez a aproximação e costumava dizer “Minha mente quer, mas meu corpo não deixa”, em relação a uma possível internação. Depois de inúmeras conversas e tentativas, Marina contou que não havia mais alternativas e precisou entrar com pedido de intervenção judicial. “Eu sou totalmente contra internação compulsória, sou redutora de danos, mas era necessário”. Comentou ainda que em conversa com a Lara argumentou que ela [Lara] tinha a escolha de continuar utilizando o crack, mas que o bebê não tinha escolha e que, por conta disso, não restava outra solução. A crise com isso era evidente. Ela relatou que no dia que foram buscar Lara, ela tentara fugir, correu. Marina disse que não correu atrás, porque imaginou que não conseguiria alcança-la e que assim, ela ainda conseguiria não cair e tudo mais. Pois era uma grávida correndo. O oficial de justiça comentou que em casos como esses, ele deveria fazer a lei ser cumprida e que, portanto, iria com policiais. Assim se fez. Internação. No momento que eu estava conversando com Marina, ela recebeu uma ligação sobre este caso. O parto tinha ocorrido bem. Mas, agora outras instâncias de intervenção: o conselho tutelar iria buscar a criança naquela tarde. A preocupação de Marina era saber para qual abrigo a criança iria. E tentar consolidar o pacto que fizera com Lara de visitas para a filha. Eu perguntei se estava relacionado com a amamentação. Ela disse que não, porque logo Lara tomaria remédios fortes. Depois disse que sim, que tinha a questão da amamentação. Achei a informação meio confusa, mas prosseguimos na conversa. Comentou que de uma próxima vez, não iria com o oficial de justiça buscar qualquer pessoa, que já esperaria no local de recepção (hospital, clínica, etc.). Argumentou que era ruim para equipe, por conta do vínculo que sofria danos, além de ser uma experiência que causa muito sofrimento à equipe... Ela relatou, então, como este caso mexia com ela. Que tentava pensar nos casos de sucesso, como de um casal que tinha sífilis e que tinham convencido os dois a se tratarem. Os dois. E outras pequenas conquistas. Mas, a internação compulsória e