UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP Faculdade de Filosofia e Ciências - Campus de Marília JÚLIA ÉRIKA MOREIRA BASTOS FUNDAMENTOS DA TEORIA DO REFLEXO: o processo do conhecimento com base na Grande Estética de Georg Lukács Marília 2025 JÚLIA ÉRIKA MOREIRA BASTOS FUNDAMENTOS DA TEORIA DO REFLEXO: o processo do conhecimento com base na Grande Estética de Georg Lukács Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília, para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais. Área de Concentração: Ciências Sociais. Orientador(a): Prof. Dr. Marcos Tadeu Del Roio. Marília 2025 Júlia Érika Moreira Bastos Fundamentos da teoria do reflexo: o processo do conhecimento com base na Grande Estética de Georg Lukács Texto de tese apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais como parte das exigências para a obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília. Área de concentração: Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Marcos Tadeu Del Roio. Marília 2025 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). JÚLIA ÉRIKA MOREIRA BASTOS FUNDAMENTOS DA TEORIA DO REFLEXO: o processo do conhecimento com base na Grande Estética de Georg Lukács Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília, para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais. Área de Concentração: Ciências Sociais. Data da defesa: 02/ 09/ 2024 Banca Examinadora: ______________________________________ Prof. Dr. Marcos Tadeu Del Roio UNESP - Faculdade de Filosofia e Ciências - Campus de Marília ______________________________________ Prof. PhD. Maria Susana Vasconcelos Jimenez Universidade Federal do Ceará - UFC ______________________________________ Prof. Dra. Patricia Laura Torriglia Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC ______________________________________ Prof. Dr. Claudinei Cássio de Rezende Pontifícia Universidade Católica - PUC ______________________________________ Prof. Dr. Anderson Deo Universidade Estadual Paulista - UNESP Rudá, queria lhe dar de presente um mundo melhor. Não podendo, lhe dedico o melhor do meu mundo profissional até este momento. AGRADECIMENTOS Agradeço ao professor Marcos Del Roio pelos momentos de orientação na Padaria Buongiorno, em Marília, e, posteriormente, pelos encontros online, quando retornei a Fortaleza. Também sou grata pelo apoio durante o longo e árduo processo de doutorado. Ao meu companheiro, Diego, a quem me refiro carinhosamente como “Di”, e à Antonia, “Toinha”, pelos cuidados dedicados ao Rudá nas minhas constantes ausências. Sem o compromisso e a atenção de vocês, esta pesquisa não teria sido possível. À Gabriela Nunes, psicóloga que me acompanha desde o período do mestrado e a quem devo mais do que consigo expressar. À minha família, agradeço pelo suporte financeiro com a babá aos sábados, o que me permitiu maior dedicação, pelos peculiares gestos de carinho e pela compreensão durante os momentos desafiadores dessa jornada. Ao professor Deribaldo Santos (Universidade Estadual do Ceará - UECE), que, em diferentes momentos, esteve atento às minhas demandas por auxílio, bem como ao grupo de estudos formado em seu entorno em tempos pandêmicos. Suas contribuições continuam sendo fundamentais para minha formação humana e científica. Ao Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade (GPTREES), cadastrado na plataforma Lattes do CNPq, ao qual se articula o Laboratório de Pesquisa sobre Políticas Sociais do Sertão Central (Lapps); ao Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário (IMO - UECE); e às linhas de pesquisa Marxismo e Formação do Educador e Educação, Estética e Sociedade (antes Marxismo, Educação e Luta de Classes - E-LUTA), dos Programas de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará (PPGE - UECE) e da Universidade Federal do Ceará (PPGE - UFC). Todos esses espaços fizeram e permanecem sendo parte da minha formação. Ao professor Sérgio Lessa (Universidade Federal de Alagoas - UFAL), à professora Milena Santos (UFAL) e ao Coletivo Veredas, sou grata pelas possibilidades formativas, intelectuais e políticas, além das boas relações constituídas. À Universidade Estadual Paulista (UNESP - Faculdade de Filosofia e Ciências/Câmpus de Marília) pelas experiências e oportunidades acadêmicas. Em particular, agradeço ao professor Leandro Galastri, que, além de abrir meus olhos aos estudos do marxismo na América Latina, se tornou para mim um exemplo de excelência em docência. Também sou especialmente grata ao professor Marcelo Totti, por ser um ideal de equilíbrio entre profissionalismo, bom humor e generosidade, dentro e fora da sala de aula. Ao Instituto Federal do Ceará (IFCE - Campus Crato), pela oportunidade de atuar como professora de Sociologia e de lá fazer amigos para a vida, entre eles Lorena Kelly e Demetrius Tahim, que tanto me incentivaram a concluir essa jornada. Ao Centro de Educação de Jovens e Adultos Adelino Alcântara Filho, na figura do professor-diretor Christian Moreira, pela oportunidade de trabalho e renda, mas também pela compreensão e apoio nos dias em que precisei me ausentar para finalizar esta pesquisa. Aos meus amigos Jesuana, Rômulo e Amanda, distantes fisicamente, mas sempre próximos ao coração, por todo o apoio emocional nesses últimos cinco anos. Às minhas irmãs de maternidade, Bárbara, Chica Galileia e Cléa, pelo apoio intelectual e político, além do compartilhamento de vida, que se fortalece a cada dia na cumplicidade cotidiana entre nós. Aos camaradas Elandia, Adriano, Adele e à professora Ruth de Paula, pelo pronto atendimento às questões relativas à pesquisa. Ao Serviço Social do Comércio (Sesc Fortaleza), na pessoa da funcionária da biblioteca Amanda Alves, espaço que me acolheu quase diariamente para os momentos de estudo que resultaram nesta tese. Agradeço também ao meu grupo de atividade física, que aqui represento pelos professores Yuri e Lucas, certamente responsáveis por me proporcionar energia para concluir esta caminhada. Aos colegas Olavo Holanda, Kauhana Moreira, Daniele Faria, Cleidiane Lima e Alberto, que, nos últimos momentos da elaboração desta análise, ofereceram auxílios técnicos essenciais para a concretização do projeto. À classe trabalhadora, grande mantenedora da universidade pública, na qual venho sendo formada desde o início da minha trajetória acadêmica, agora em nível de doutoramento. Gostaria de expressar minha sincera gratidão a todos que, de alguma forma, foram essenciais para que esta pesquisa, antes apenas uma ideia, se concretizasse nas linhas que seguem. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) (Código de Financiamento 001). “Ali onde termina a especulação, quer dizer na vida real, começa também a ciência real e positiva, portanto, a representação da ação prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens. As frases feitas acerca da consciência acabam, e o saber real passa a ocupar seu lugar.” (Marx; Engels, 2007, p. 49) “O senhor Antonio fica no terceiro andar, na sala do Dr. Assis Chatobriand. Ele deu-me revista para eu ler. Depois foi buscar uma refeição para mim. Bife, batatas e saladas. Eu comendo o que sonhei! Estou na sala bonita. A realidade é muito mais bonita do que o sonho.” (Carolina Maria de Jesus, 2014, p. 173) RESUMO O presente trabalho é um estudo fundamentado na ontologia marxiana-lukacsiana, com o objetivo de avançar na sistematização da teoria do reflexo de Georg Lukács, conforme apresentada na Grande Estética. Para tanto, a pesquisa desenvolve três fundamentos lukacsianos, preliminares e centrais, relacionados à investigação dos fenômenos sociais de recepção e representação da realidade objetiva. O primeiro fundamento identificado é a crítica histórico-dialética de Lukács a modelos de pensamento gnosiológicos. Nesse contexto, a análise se concentra em duas diferenças essenciais entre as teorias do conhecimento e do reflexo, relacionadas ao método e à vinculação com a classe social. O segundo fundamento — o princípio básico de tomar o trabalho, enquanto atividade fundante do ser social, como base ontológica para a análise do reflexo — é discutido em seguida. Essa análise inclui a apresentação de parte do processo histórico de formação do que nomeou-se reflexo original e da complexificação da consciência humana. Por fim, o terceiro fundamento examina as características do cotidiano e o reflexo que lhe é próprio, analisando suas semelhanças e divergências em relação ao pensamento científico e artístico. Conclui-se que esta investigação contribui, através dos três elementos analisados, com uma fundamentação dialética da teoria do reflexo, a qual pautada na ontologia do ser social. Palavras–chave: Trabalho; Reflexo; Teoria do reflexo; Grande Estética. ABSTRACT This study is based on Marxian-Lukácsian ontology and aims to advance the systematization of Georg Lukács's theory of reflection, as presented in The Great Aesthetics. To this end, the research develops three preliminary and central Lukácsian foundations related to the investigation of social phenomena concerning the reception and representation of objective reality. The first foundation identified is Lukács's historical-dialectical critique of gnoseological thought models. In this context, the analysis focuses on two essential differences between the theories of knowledge and reflection, related to method and class affiliation. The second foundation — the basic principle of considering labor, as the founding activity of social being, as the ontological basis for analyzing reflection — is discussed next. This analysis includes a presentation of part of the historical process of forming the original reflection and the complexification of human consciousness. Finally, the third foundation examines the characteristics of daily life and its specific form of reflection, analyzing its similarities and divergences in relation to scientific and artistic thought. It is concluded that this investigation contributes to a dialectical foundation of the theory of reflection, based on the ontology of social being. Keywords: Labor; Reflex; Reflex Theory; Grand Aesthetics. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Reprodução de fotografia da Mirin-rendeira Tainá Estêvão do município de Trairi, aos 11 anos. 72 Figura 2 – Árvore de parentesco dos grandes símios ou hominídeos. 76 Figura 3 – Reprodução de fotografia de Ota Benga e uma espécime de chimpanzé. 85 Figura 4 – A manufatura de um artefato olduvaiense, do tipo cutelo ou talhadeira, e as lascas resultantes. 94 Figura 5 – História do reflexo em alguns saltos e distinções 102 Figura 6 – Reflexo geral da realidade objetiva: ciência e arte como polos do cotidiano 122 Figura 7 – Reprodução de fotografia da Mestra Tarina e peça produzida em barro vermelho. 127 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 15 1.1 Tema e contextualização 15 1.2 Problema da pesquisa 22 1.3 Objetivos e justificativa 28 1.4 Método, metodologia e estrutura 29 2 CRÍTICA À TEORIA DO CONHECIMENTO 32 2.1 A diferença de caráter ontológico de princípios 33 2.2 A diferença de caráter ontológico de classe 44 2.2.1 O nascimento do indivíduo: reflexos da realidade em Romeu e Julieta 45 2.2.2 Elo entre o indivíduo burguês e a teoria do conhecimento 52 3 BREVE HISTÓRIA DA ORIGEM DO REFLEXO 61 3.1 Materialidade da razão histórica como fundamento primeiro 62 3.1.1 Realidade objetiva imediatamente refletida: a origem cronológico-fisiológica 65 3.1.2 Trabalho em sua relação com o surgimento da consciência: a origem ontológica 81 4 O SER DO REFLEXO COTIDIANO EM GEORG LUKÁCS 104 4.1 Cotidianidade por aproximação 105 4.2 Reflexo e cotidiano em Lukács 117 4.2.1 O caráter da imediatez no reflexo cotidiano 124 5 À GUISA DE CONCLUSÃO 140 REFERÊNCIAS 155 APÊNDICE A - Principais ancestrais fósseis da humanidade 162 APÊNDICE B - Principais hominídeos com objetivações resultadas das suas correspondentes atividades de trabalho 166 APÊNDICE C - Principais objetivações resultadas de atividade de trabalho 171 15 1 INTRODUÇÃO El fundamento de todo conocimiento justo de la realidad, ya se trate de la naturaleza o de la sociedad, es el reconocimiento de la objetividad del mundo exterior, esto es, de su existencia independiente de la conciencia humana (LUKÁCS, 1966c, p. 11). 1.1 Tema e contextualização A presente tese aborda da teoria do reflexo, um tema de relevância no contexto da Grande Estética de Georg Lukács (1885 - 1971). No final do prólogo da referida obra, o próprio autor indica brevemente o percurso teórico que o leva a esse escrito. A marca inicial do percurso é 1911, quando elabora o “primer plan de una estética sistemática” (LUKÁCS, 1966a, p. 30), debruçando-se sobre o intento entre os anos de 1912-1914. Logo seria interrompido o que viria a ficar conhecida como Estética de Heidelberg — uma referência à cidade do sudoeste da Alemanha, que também deu nome à universidade que o jovem Lukács almeja, sem sucesso, vinculação profissional através da produção e apresentação do texto1. O húngaro passa primeiramente pela compreensão e apoio da estética kantiana. Depois, em movimento pela crítica àquela, segue em direção à estética hegeliana. Ambas, afinal, acabam por ser consideradas por ele suas “tendencias juveniles”. Na continuidade da descrição de seu trajeto, registra também A teoria do romance, escrita em 1914 e publicada pela primeira vez em 1920. Já no interlúdio que segue daí até a década de 30, do século XIX, dedicou-se a outras áreas de interesse, “la ética, la historia y la economía” (LUKÁCS, 1966a, p. 30). Sua adesão ao comunismo se dá em finais de 1918 (PATRIOTA, 2013), mas são a partir dos estudos empreendidos na década de 302 que volta a se dedicar à temática do estético e sua sistematização: Finalmente, dos decenios más tarde, a principios de los años cincuenta, pude pensar en volver, con una concepción del mundo y un método 2 No ano de 1930, Lukács tem contato com os Manuscritos de 1844, de Karl Marx (MARX, 1964). Estava exilado em Moscou e empreendia estudos conjuntos com Mikhail Lifschitiz (1905 - 1983), no Instituto Marx-Engels. É depois desse contato com o escrito que passa a haver, por parte do húngaro, uma preocupação com a “ontologia do ser social”. Esta mudança é reconhecida como uma “viragem” no pensamento marxista de Lukács por vários de seus comentadores (FREDERICO, 2014). 1 Lukács, entre 1906 e 1911, inicia intenso tráfego de idas e vindas entre o seu país de origem, a Hungria, e a Alemanha (OLDRINI, 2017, p. 62). A publicação de “A alma e as formas” (LUKÁCS, 2015b), por exemplo, ocorre em Berlim, naquele derradeiro ano. 16 completamente distintos, a la realización de mi sueño juvenil, y realizarlo con contenidos completamente distintos y con métodos totalmente contrapuestos (LUKÁCS, 1966a, p. 30 - 31). Esse empenho originará sua obra-prima no assunto. Estética: a peculiaridade do estético, publicada pela primeira vez em 19633. Na obra, Lukács tem como propósito aprofundar-se nas determinações da existência do complexo artístico “[...] à luz de premissas marxianas e materialistas, ao mesmo tempo em que recupera e redimensiona toda a tradição clássica, de Aristóteles a Hegel [...]” (PATRIOTA, 2013, p. 2). O pensador magiar faz recorrentes comparações do fato estético com outras formas de relações entre o homem4 e a realidade objetiva: com a atividade de trabalho, o comportamento cotidiano, exercício religioso, mágico, ético, etc. Afinal, o estético se situa numa realidade que é unitária, e essas conexões também o conformam. Mas, as analogias características não pegam de surpresa quem realiza uma leitura atenta, visto ser informação anunciada quando nas linhas iniciais do prólogo da Grande Estética: El libro que aquí se apresenta al público es la primera parte de una estética en cuyo centro se encuentra la fundamentación filosófica del modo peculiar de la positividad estética, la derivación de la categoria específica de la estética, su delimitación respecto de otros campos (LUKÁCS, 1966a, p. 11). 4 Ao adotar a expressão homem com a intenção de representar toda a humanidade, há o reforço da linguagem machista que desconsidera a importância da presença e das contribuições das mulheres. É nesse sentido que, assim como Elândia em nota de rodapé a sua dissertação, serão usadas neste trabalho expressões mais amplas para designar a humanidade como um todo (homens e mulheres) e não apenas o homem. Cf. DUARTE, Elândia Ferreira. Cinema e educação: uma crítica onto-materialista. 2019. 124 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico ou Profissional em 2019) - Universidade Estadual do Ceará, 2019. Disponível em: http://siduece.uece.br/siduece/trabalhoAcademicoPublico.jsf?id=82941. Acesso em: 17 de agosto de 2024. 3 Apesar de não estar entre as produções destacadas pelo autor, deve-se registrar sua Introdução a uma estética marxista: sobre a particularidade como categoria da estética, publicada inteiramente pela primeira vez em italiano, em 1957. Como Carlos Nelson Coutinho (1943 - 2012) e Leandro Konder (1936 - 2014) — tradutores dessa obra para o português, em sua primeira edição brasileira, no ano de 1968 — fazem lembrar, a publicação em alemão que estava ocorrendo em fascículos precisou ser interrompida por conta da participação de Lukács nos eventos húngaros de 1956. Observe-se que a publicação da Pequena Estética, como viria a ficar conhecida, ocorre quando Lukács já se dedicava à Grande Estética. Pois bem, há de se explicar que aquela foi projetada inicialmente como parte dessa, mas os resultados dos trabalhos se deram de tal modo que ela se tornou um escrito independente. Lukács deixa registrado no prefácio da Pequena Estética: “O presente estudo, portanto, só em um sentido bastante limitado há de ser considerado como um prolegomenon à minha estética: ele contém, todavia, a abordagem sumária e, no entanto, sempre monográfica de um dos problemas mais importantes de toda a estética. E é isso que pode justificar-lhe a publicação” (LUKÁCS, 1970, p. ix). 17 Logo, compreende-se com a leitura geral, que nas entrelinhas da obra, o autor fornece também significativos registros de seu entendimento a respeito da categoria do conhecimento, em sua natureza histórica. Não é ao acaso que Nicolas Tertulian (1929 - 2019) — romeno radicado na França e proeminente estudioso da produção de Lukács — abre um de seus escritos sobre a Estética5, que considera inclusive o “monumento mais expressivo dos textos publicados durante sua vida” (TERTULIAN, 2008, p. 189), ressaltando a importância da relação sujeito-objeto exposta neste registro. O significativo peso dado à questão da reflexão da realidade objetiva é algo que Lukács também expressa no prólogo da referida investigação. Fá-lo, por exemplo, ao lembrar o caráter de ser universal do “reflejo de la realidad”, já que pertencente a “todas las interacciones del hombre con su entorno” (LUKÁCS, 1966a, p. 22). Para interagir de diferentes maneiras com o mundo, os homens e mulheres necessariamente precisam refletí-lo. A produção de objetivações artísticas não se trata de uma exceção desse processo. Contudo, antes de cometer o equívoco de aparentar uma postura idealista, quanto ao tratamento da questão do comportamento consciente, como se a realidade objetiva não tivesse independência ou prioridade ontológica quanto à consciência, é necessário trazer à claridade uma categoria apenas latente nesses primeiros parágrafos: o trabalho. De início, já vale a ressalva por afirmar que trabalho, como pensado acima, não se identifica imediatamente com suas manifestações sociais particulares, como o são o trabalho servil na Idade Média, o trabalho escravo na Antiguidade, o trabalho assalariado na contemporaneidade ou qualquer outra. Aquela da qual aqui se trata é a atividade humana, genérica e concreta de produção de valor de uso pelo homem na história: Precisamente por isso, só na elaboração do mundo objetivo o homem se prova realmente ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica e operativa. Por ela, a natureza aparece como obra sua e sua realidade. O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem, na medida em que ele se duplica não só intelectualmente, como na consciência, mas, também operativamente (werktätig), realmente, e contempla-se por isso num mundo criado por ele (MARX, 2015, p. 313, grifos no original). 5 Para evitar qualquer confusão, anote-se que a partir de agora, ao se aludir à “Estética”, é à “Estética: a peculiaridade do estético”, e não à Pequena Estética ou a Estética de Heidelberg, que está sendo indicada. 18 Apesar do trabalho ser reconhecido por outros pensadores como categoria do humano, é em Karl Marx (1818 - 1883) que é compreendida sua correspondência à esfera do social em caráter de exclusividade. Pois é com este pensador que se delimita, pela primeira vez, o caráter teleológico do trabalho como algo também circunscrito ao que corresponde à sociedade humana, não ao complexo inorgânico, não ao orgânico, ou qualquer ser de existência abstrata. Assim, o trabalho é apresentado enquanto categoria fundante do ser social. Como confirma Lukács: [...] o conhecimento da teleologia do trabalho por Marx vai, portanto, por isso muito além das tentativas de solução de tão grandes predecessores, como Aristóteles e Hegel, porque para Marx o trabalho não é uma das muitas formas de manifestação da teleologia em geral, mas o único ponto em que uma posição teleológica, enquanto momento real da realidade material [...] (LUKÁCS, 2018b, p.16). Somente o ser humano é capaz de trabalhar. Isso não porque apenas ele tem necessidades a satisfazer, ou somente porque ele é capaz de transformar a natureza. Ora, os seres vivos de maneira geral possuem necessidades, e a simples transformação da natureza pode se dar não só por outros animais, mas por fenômenos climáticos e geológicos. Essa modificação ocorre desde o princípio formativo do cosmos — há aproximadamente 13,8 bilhões de anos, quando da transformação de energia nas primeiras partículas da existência — e tem sido uma constante desde então (TYSON; GOLDSMITH, 2015). Na verdade, só o homem é capaz de trabalhar porque, no ato de sanar suas necessidades transformando a natureza, apenas ele age de maneira radical e qualitativamente complexa ao previamente planejar a satisfação dessas necessidades, dito de outra forma, ao atribuir uma finalidade na ação a ser realizada. Nas palavras de Marx: No processo de trabalho a atividade do homem efetua, portanto, mediante o meio de trabalho, uma transformação do objeto de trabalho, pretendida desde o princípio. O processo extingue-se no produto. Seu produto é um valor de uso, uma matéria natural adaptada às necessidades humanas mediante transformação da forma. O trabalho se uniu com seu objetivo. O trabalho está objetivado e o objeto trabalhado. O que do lado do trabalhador aparecia na forma de mobilidade aparece agora como propriedade imóvel na forma do ser, do lado do produto. Ele fiou e o produto é um fio (MARX, 1983, p. 151, grifos nossos). 19 Vê-se daí, contudo, que “pretender” e “objetivar” são elementos fundamentais, mas não suficientes para dar conta da totalidade do processo. São necessários os meios para a realização adequada da atividade humana original. Para que se dê a dinâmica do trabalho é preciso submeter as forças naturais àquelas pretensões, as quais apenas desse modo podem ser de fato objetivadas. Atente-se que para que seja alcançado o domínio da legalidade da natureza pelo humano, antes, essas leis precisam ser investigadas e compreendidas. Isto posto, podem aí ser aplicadas sob novas circunstâncias com o trabalho (LUKÁCS, 2018b). Estar-se a tratar nesse detalhe da socialmente necessária atividade de conhecer ou refletir o mundo, bem como da aplicação do seu produto, o conhecimento ou reflexo6. Em maior aproximação à atividade de conhecer originada com o trabalho, pode-se afirmar dela [1] a apreensão do em-si natural e [2] o concomitante uso das possibilidades do conhecimento oriundo daí. Em sua dupla função, esse é o socialmente necessário processo de investigação dos meios (LUKÁCS, 2018b), o reflexo original7. Para caracterizar atividade de trabalho é preciso, portanto, que se torne real a prévia-ideação, por sua vez, possibilitada pelo subjugar dos meios indicados. Faz-se necessário que se concretize o movimento dialético entre teleologia e causalidade (LUKÁCS, 2018b), para utilizar-se de outros termos. Sozinha, a consciência não é suficiente para originar atividade de trabalho. É possível, por exemplo, que o gênero humano tenha a necessidade social de voar sem ter meios para realizar seu objetivo. Ora, desta maneira, seu exercício consciente em traçar determinado desejo não será objetivado, não se dará na realidade. Antes se perderá no abstrato, entre suspiros de “ah, se eu pudesse...”. Quanto ao voo, foi assim do princípio das sociedades até a Idade Moderna, quando do desenvolvimento de investigações de meios que permitissem tal feito, ou seja, quando causalidade dada passa a causalidade, ontologicamente, posta pelo homem (LUKÁCS, 2018b). Com o desenvolvimento do pensamento científico em dado nível, os primeiros voos, até 7 No capítulo desta pesquisa Breve história da origem do reflexo, o debate a respeito do que se refere enquanto “reflexo original” será devidamente retomado. 6 Os termos em português, “reflexo” e “reflexão” possuem clara diferenciação em sua origem. “Reflexão” vem do latim tardio, “reflexio”, que de maneira geral, significa ato ou efeito de refletir. Já “reflexo” vem do latim, “reflexus”, trazendo o significado daquilo que é produzido por reflexão e que por isso é considerado refletido. Contudo, de maneira geral, nesta pesquisa, seguiremos a tradição dos estudos brasileiros sobre o assunto de não se fazer uma diferenciação sistemática quanto ao uso dos dois vocábulos. O que certamente não impede que no futuro não se dedique maior atenção a respeito. 20 então apenas sonhados, tornam-se realidade material, em sociedade. Enfim, só acompanhada da causalidade (já posta) é que a consciência, enquanto componente fundamental dessa dinâmica dialética, pode realizar o mundo humano, o mundo do trabalho. É através do trabalho que se produz o ser social. Mas, concomitantemente com ele, o homem se autocria. Faz ele a si mesmo ao, partindo de suas necessidades, produzir sua existência material — meios, produtos do trabalho e suas relações — e tudo aquilo que compõe o ser social: “O que eles [os indivíduos] são, coincide com a sua produção, tanto com o que eles produzem, quanto com o como eles o produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção” (MARX; ENGELS, 2007, p. 42, grifos dos autores). A partir dessa atividade, é preciso atentar-se que o novo sempre está presente. Há novidade no produto, pois a transformação realizada pelo homem traz, como resultado, algo antes não existente na natureza. E há o novo em potência, em necessidades e possibilidades que passam a existir e que, portanto, apontam para além do circunscrito na finalidade inicial estabelecida para aquela atividade (LUKÁCS, 2018b). Esse movimento de transformação da natureza, da sociedade e dos indivíduos, que é o trabalho, estabelece-se na história e, a partir dessa constante criação do novo, torna-se também ilimitado. Esse é o processo histórico dialético que se configura pano de fundo para todo desenvolvimento da teoria do reflexo8. A compreensão da dinâmica econômica de predominância e determinação da objetividade frente à subjetividade, e de unidade entre elas, todo esse movimento constatado no real, é fundamento para uma análise adequada do processo do conhecimento. No Lukács da maturidade e na presente investigação introduzida, de fato, capta-se a teoria do reflexo enquanto apreensão da relação entre sujeito e objeto naquilo que corresponde ao 8 Ou ao menos assim o deveria. Isso não é o que ocorre em diversos estudos associados ao marxismo vulgar. O registro vale na medida em que se faz importante marcar a diferenciação entre os dois conjuntos de estudos a respeito do reflexo no interior da história do marxismo, inconciliáveis em seus princípios teóricos e práticos. Sérgio Lessa auxilia com essa demarcação: “Como este termo [reflexo] foi apropriado pelo marxismo vulgar e dele se tornou quase sinônimo, a sua mera menção sugere uma tentativa de solução simplista e de baixo nível ao complexo problema da articulação entre objetividade e subjetividade. Isto não significa, no entanto, que esta seja a única concepção possível do reflexo. Lukács, em particular, jamais abandonou esta categoria, ao mesmo tempo que sempre recusou peremptoriamente as formulações a que a ela foram dadas pelo marxismo vulgar” (LESSA, 1997, p. 93). O reflexo como proposto pelo marxismo vulgar se dá enquanto cópia fotográfica da realidade e, portanto, mecânica. Dada a riqueza de elementos, complexidade, movimento e conexões do real, não há possibilidade de captação exata desse ser em si. Acabam por se deparar com fenômenos e elementos em suas particularidades. 21 comportamento humano de conhecer. Todavia, concebe-se ao mesmo tempo que essa relação é um ato histórico, e com ela o processo de conhecimento. Os princípios da interação subjetividade-objetividade e do reflexo são ontologicamente conectados à atividade de trabalho (LUKÁCS, 1966a): ação que envolve a produção e reprodução do humano segundo necessidades constitutivas na sociabilidade, e cujos resultados retornam a ela como respostas que enriquecem o mundo e os indivíduos (LUKÁCS, 2018b). Dito desse modo, pretende-se deixar claro algo que, em diferentes momentos desta análise, será retomado e complexificado: que existe uma prioridade do ser sobre o conhecer enquanto dinâmica que, dialética, é típica de toda organicidade social em sua essência. Ora, diferindo e se opondo à toda a tradição burguesa do idealismo filosófico, a compreensão marxiana do conhecimento capta, na relação humano-natureza, o ser conhecido como eixo essencial, tendo em vista sua autonomia com relação à consciência. Daí (também) poder-se falar em ontologia do ser social ao se referir à teoria marxiana do reflexo: não se trata apenas das questões do conhecer humano, mas essencialmente da organicidade social reconhecidamente histórica, da qual, aí sim, faz parte a produção de conhecimento. Questões que mesmo em alguma medida determinantes, são fundamentalmente determinadas por essa totalidade contraditória que é a sociedade (LENIN, 2011). Como práxis social humana, o ato de conhecer é determinado de maneira dialeticamente contraditória pelo contexto histórico que o cerca. Determinação essa que se trata ainda de influência indireta e, de certa forma, recíproca. Observe-se que a predominância da objetividade sobre a subjetividade em momento nenhum pode ser entendida como algum tipo de “determinismo” ou “economicismo”. Não se trata de uma hierarquia valorativa, mas de uma constatação ontológica — existe ser sem consciência, mas não consciência sem ser —, e ela não interfere na importância da razão nos processos humanos (LUKÁCS, 2018a, p. 582). Em síntese, a ação humana de apreensão e reprodução dos aspectos mundanos, realizada pela consciência no interior da dinâmica da relação sujeito-objeto, é essencialmente objetiva, pois ontologicamente constituída do trabalho — ato cujo predomínio essencial é de âmbito do ser. É a partir dessa 22 constatação que as análises a respeito do reflexo são assimiladas e expostas pelo pensamento ontológico-marxiano9. Conduzido às claras todo esse contexto, pode-se dizer do reflexo em geral (Spiegelung/ Widerspiegelung)10, atividade consciente de apreensão e representação da realidade objetiva, a qual ontologicamente autônoma à conscienciosidade, em direção aproximativa do ser precisamente assim desse real. Ou ainda como Sérgio Lessa faz ao parafrasear Marx e Engels “[...] que compreendiam o reflexo como atividade da consciência: uma atividade pela qual a consciência reproduz as determinações do existente” (LESSA, 2018, p. 17). A teoria do reflexo (Widerspiegelungstheorie) pode ser explicitada de maneira semelhante. No caso em questão, a realidade compreende o ser da própria reflexão. Com o perdão do pleonasmo, algo como reflexo do reflexo, tendo em vista que “teoria” refere-se ao modo de refletir os objetos (LUKÁCS, 1966a, p. 45). Enfim, reflexão consciente e objetiva da categoria do reflexo no seu ser por aproximação. 1.2 Problema da pesquisa Ao verificar-se os originais de Georg Lukács, levando-se em conta a maturidade tardia da obra lukácsiana11, identifica-se a presença da categoria do 11 Mais uma vez, toma-se como referência o itinerário teórico do pensador magiar pelo início do que costuma ser considerado o seu amadurecimento teórico, como assegurado também por Guido Oldrini (OLDRINI, 2017), situado naquela década de 1930. Desse modo, representam a escrita da Grande Estética (LUKÁCS, 1966a; 1966b), de Para a Ontologia do ser social (LUKÁCS, 2018b) e de seus 10 Sérgio Lessa, seguindo a tradição dos estudos sobre o assunto no Brasil, opta na tradução para o português de Para a ontologia do ser social (LUKÁCS, 2018a; 2018b), da editora Coletivo Veredas, por utilizar “reflexo” para os dois termos em alemão, “Spiegelung” e “Widerspiegelung” (LESSA, 2018). Sugere-se que um estudo aprofundado sobre essa questão não parece ser perda de tempo, no sentido de que se investigue a fundo a existência de possíveis delimitações específicas às categorias ou não. 9 Os termos “ontológico-marxiano”, “ontomarxiano” e possíveis variáveis, quando citados nesta investigação, referem-se ao método de análise científica do ser social desenvolvido essencialmente por Karl Marx, o qual fora acompanhado nessa empreitada por seu contemporâneo, companheiro intelectual e amigo pessoal, Friedrich Engels (1820 - 1895). Georg Lukács é, em conjunto com os outros dois, nome diretamente associado àquelas expressões, tendo em vista ser ele o pensador responsável pelo resgate do referido método em aproximação ao seu em si, no século XX. Isso porque, tanto contribui com o movimento de retorno à teoria de Marx nos seus aspectos originais, a partir disso, alumiando a fundamentação ontológica acerca da categoria trabalho e suas relações; quanto, no interior dessa compreensão, expõe a dinâmica do subjetivo, da consciência na teoria marxiana. Com raras exceções, Marx não se deteve a escrever sobre sua práxis de pesquisa (MARX, 2011). Já quanto ao intelectual húngaro, é claramente possível afirmar que se dedicou a esse problema. De forma tal que Para a ontologia do ser social e Prolegômenos para a ontologia do ser social estão entre suas obras que realizam um cumprimento qualitativo de tal tarefa (conf. LUKÁCS, Georg. Prolegômenos e Para a ontologia do ser social: obras de Georg Lukács: volume 13. Tradução de Sérgio Lessa. Maceió: Coletivo Veredas, 2018 e LUKÁCS, Georg. Para a ontologia do ser social: volume 14. Tradução de Sérgio Lessa. Maceió: Coletivo Veredas, 2018). 23 reflexo em seus escritos mais expressivos do período. Na Estética, à qual o marxista magiar dedica-se a escrever quatro bons tomos em intervalo de pouco mais de uma década, nota-se, referente ao assunto, o termo “Widerspiegelung” e, mesmo que pouquíssimas vezes utilizado, também “Spiegelung” (LUKÁCS, 1981a; 1981b). Da mesma forma ocorre nos dois volumes de Para a ontologia do ser social, cuja redação em alemão é concluída em finais de 1968 (LUKÁCS, 2018a; 2018b) Curiosamente, nos Prolegômenos para a ontologia do ser social, cuja finalização da escrita ocorre no mesmo ano de morte de Lukács, 1971, dos dois termos em alemão citados, apenas “Spiegelung” é usado (LUKÁCS, 2018a). A Grande Estética, entre as três, possui um destaque quanto ao tema, pois essa obra traz a teoria do reflexo como sua “pedra angular” (TERTULIAN, 2008, p. 60), ou seja, algo crucial para a sustentação de toda a exposição. Nicolas Tertulian é assertivo ao localizar o conteúdo da teoria do reflexo, disposta na Grande Estética, como marco contrapositivo ao correspondente em História e consciência de classe (LUKÁCS, 2003), publicação esta de 1923, portanto, anterior ao contato lukácsiano com os Manuscritos de 1844 (MARX, 1964). Diz o seguinte a esse respeito: [...] o sistema estético final está de tal forma impregnado de postulados retirados do campo da "ontologia do ser social" e da antropologia filosófica, que podemos afirmar que toda discussão da estética de Lukács está necessariamente fadada a voltar ao debate sobre uma fenomenologia do espírito em seu conjunto. O teórico estava convencido de que só a apropriação e o domínio de uma concepção bem mais leve e flexível que trata da gênese das formas da consciência - concepção fundamentada na interação sujeito-objeto, portanto nitidamente mais dialética e, consequentemente, realmente objetiva do que aquela impregnada de hegelianismo na época de História e consciência de classe - permitiu a elaboração de sua Estética final (TERTULIAN, 2008, p. 189 - 190, grifos do autor). O “sistema estético final” não equivale aos seus momentos anteriores, mas a um salto à Estética. O amadurecimento e a complexificação de sua concepção de mundo se revelam também na explanação lukacsiana sobre a consciência, a qual lhe é presente. Uma apreensão direcionada para fora, “realmente objetiva” e não limitada à dialética do idealismo objetivo, e capaz de reproduzir mais fidedignamente a conexão sujeito-objeto em sua essência de ser social. Em complemento, é possível firmar, mais um pouco, a ideia de que a Estética Prolegômenos (LUKÁCS, 2018a), resguardadas as devidas especificidades de cada obra, o auge desse amadurecimento. 24 faz parte do processo que passa por uma “refundação” (PAULO NETTO, 2023) do trabalho teórico lukácsiano: [...] o Lukács que, numa clara inflexão do seu pensamento, desenvolverá a sua obra apreendendo o trabalho como constitutivo da sociabilidade, tomando – como Marx e Lênin – o conhecimento enquanto reflexo ideal do mundo objetivo no cérebro dos homens, infirmando de vez a tese da identidade sujeito/objeto no processo do conhecimento [...] (PAULO NETTO, 2023, p. 24, grifos do autor). A Estética, como apresentada até agora e, no detalhe, composta pelo problema material do conhecimento, toma parte distinta na sustentação para a realização desta pesquisa sobre fundamentos da teoria do reflexo12. Obviamente, nem de longe esta investigação tem pretensões de dar conta da série de elementos sobre o assunto presente ali — imagine-se, em extensão e profundidade, a riqueza de positividades, negatividades, continuidades, descontinuidades, contraditoriedades e conexões existentes, possíveis e novas. Com o cuidado de dar, ainda assim, um adequado tratamento ao tema, é preciso delinear uma questão particular à qual se dedicar. Por conseguinte, esta análise tem como central responder à seguinte pergunta: quais são os fundamentos da teoria do reflexo, iniciais e decisivos, expostos por Lukács na Grande Estética? Observe-se que através dela é feita uma significativa delimitação do problema. Em primeiro lugar, cientes da complexa e dialética trajetória teórica do autor, estabelece-se um limite pelo interesse específico na teoria do reflexo, como proposta da fase de maturidade lukácsiana. Agora, sobre o caso dos fundamentos identificados na Estética e discorridos nesta pesquisa: [1] os fundamentos devem ter um caráter formal de início, o que faz com que os mesmos se restrinjam aquilo que julga Lukács ser preliminar ao seu propósito maior, ou seja, relacionados aos conhecimentos necessários prévios ao debate específico do fato estético e; [2] do ponto de vista do conteúdo, veja que os fundamentos devem caracterizar não 12 Nesta análise há reconhecimento de quatro autores mais diretamente envolvidos com a compreensão substancial do movimento de princípio, desenvolvimento e atualidade da teoria do reflexo: Karl Marx, Friedrich Engels (mesmo reconhecidas suas limitações a respeito), Vladimir Lenin e Georg Lukács. O último, por motivos óbvios, e o primeiro entre eles, serão os autores predominantemente utilizados. Observe-se, no entanto, que haverá uma dedicação excepcional. No tópico de início do capítulo Breve história da origem do reflexo é utilizada amplamente a teoria do reflexo de Alexei Leontiev. Essas observações juntas buscam chamar atenção ao aspecto de a realização desta tese ser com base em Lukács, especialmente aquele da Estética, mas de forma tal que não haja inflexibilidade quanto à abordagem de outros pensadores que possam vir a contribuir com a pesquisa. 25 qualquer aspecto, mas aqueles axiais para a teoria do reflexo lukácsiana. A partir desses requisitos de delimitação do problema, apresentam-se os fundamentos a serem trabalhados. A começar, faz-se necessário dizer que os três fundamentos, reconhecidos segundo aquelas condições, foram localizados a partir do capítulo de abertura da Estética lukacsiana, Los problemas del reflejo en la vida cotidiana. O primeiro deles, a ser elaborado respectivamente no capítulo Crítica à teoria do conhecimento desta análise, foi inspirado na constante atitude questionadora de Lukács, em relação ao que se refere direta e seguidamente como “epistemología burguesa”, “pensamiento burgués”, “idealistas burgueses”, etc (LUKÁCS, 1966a). O padrão gnosiológico (CHASIN, 2009) presente e predominante no pensamento do mundo hodierno é caracteristicamente típico da teoria do conhecimento, tendo esta como aspecto ontológico geral o de interpor prioridade à razão em detrimento ao ser. Isto fica evidente ao analisar os princípios de diferentes correntes filosóficas características do período. Seja entre os racionalistas Descartes (1596-1650), Espinosa (1632-1677), Malebranche (1638-1715) e Leibniz (1646-1716); empiristas como Francis Bacon (1561-1626), Hobbes (1588-1679), Locke (1632-1704), Berkeley (1685-1753) e Hume (1711-1776); ou criticistas, a começar por Immanuel Kant (1724-1804); a questão do método, no sentido de caminho a ser percorrido para o alcance do conhecimento, é ponto de primazia a movimentar suas reflexões. Mesmo cientes dos limites dessa generalização, é real que isso aconteça em detrimento ao objeto a ser conhecido. A definição de Urbano Zilles (1995) sobre do que se trata a teoria do conhecimento, vai ao encontro dessa argumentação: [...] disciplina filosófica que indaga pela possibilidade, origem, essência, limites, pelos elementos e pelas condições do conhecimento. Os de língua neolatina também a chamam de gnosiologia. Preocupa-se, antes de tudo, em encontrar a possibilidade de um critério de certeza do conteúdo do conhecimento, ou seja, da adequação entre o objeto do conhecimento e seu conceito, i. e., da correspondência do pensamento com a realidade por ela intencionada (ZILLES, 1995, p. 11, grifos do autor). A realidade seria preeminentemente intencionada pelo pensamento, não o contrário, o pensamento resultado (dialético) da realidade. Entre aqueles que Lukács acusa de epistemólogos da burguesia, basicamente, a prioridade das indagações sobre “o que é o ser?” dão lugar para aquelas que dizem “como 26 conhecer?”. E nesse processo em que o compromisso com a realidade objetiva vem em segundo plano, cada uma daquelas correntes trará, significativas vezes, respostas abstratas na tentativa de compreendê-la. Cada um daqueles autores supracitados desenvolverá suas singularidades teóricas, ao ponto que o filósofo magiar, na esteira de Marx, propõe respostas críticas voltadas à universalidade. Em um texto cuja problemática do conhecimento, também estudada por aquelas teorias, toma parte expressiva de sua estrutura, a crítica histórica e dialética de Lukács, na Grande Estética, a tais modelos de pensamento, torna-se algo fundamental. Nas entrelinhas dessa obra, o pensador defende a sua exposição geneticamente contraposta à correntes teóricas idealistas sobre o conhecimento, e deixa aparente ao menos dois aspectos que dizem respeito a esse antagonismo: o diferente princípio ontológico presente entre os dois conjuntos teóricos — idealismo e materialismo histórico-dialético — e o caráter diferencial de cada um quanto à associação de classe social. Ambos serão analisados no referido capítulo desta tese. O segundo fundamento da teoria do reflexo lukácsiana, de início e importância marcante, não poderia deixar de ser notado, pois envolve a essência da ontologia do ser social. Trata-se do fato da teoria sobre o reflexo, em geral e na particularidade da teoria de Lukács, ter no trabalho o modelo de atividade ontológica da sociabilidade humana. A Estética é acompanhada, mesmo quando não de forma explícita, da apreensão da atividade de trabalho enquanto “lo que separa al hombre del animal” (LUKÁCS, 1966a, p. 39). Vale reaver neste ponto a ideia de que conhecer a realidade é atividade exclusivamente humana necessária para sua própria existência, não somente biológica, mas fundamentalmente social. Isso fica exposto de forma clara se, primeiramente, percebe-se a necessidade de traçar objetivos com relação às ações produtivas envolvidas aí. Em seguida, se também ficar claro que, por si, isso não basta. Que para os homens e mulheres que pretendem saciar suas necessidades, apenas o traçar objetivos não é suficiente. Ora, nesse processo, determinar fins é um esforço consciente essencial, mas não ato absoluto de garantia de realização do seu empenho: “Os elementos simples do processo de trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios” (MARX, 1983, p. 150). Estes últimos, simultaneamente essenciais ao processo, são de interesse 27 singular deste escrito, e sobre eles já fora sublinhado: para utilizar meios é preciso conhecê-los. Todos os outros modelos de reflexos sociais estudados na estética lukacsiana, e seus correspondentes comportamentos, são geneticamente oriundos dessa dinâmica do trabalho. As ações e pensamentos humanos são portanto históricos em si, bem como em suas consequências indiretas, ligadas a eles como novidade — as objetivações constituídas socialmente retornam à sociedade para acrescentá-la, inclusive, através da realização das possibilidades, não necessariamente traçadas de início (LUKÁCS, 1966a). É justo o conjunto desse imbricamento entre trabalho e reflexo, que forma outro dos fundamentos identificados enquanto de caráter preliminar na Grande Estética. Decorre desse reconhecimento a tentativa de apreensão histórica da origem do reflexo, desenvolvida no capítulo Breve história da origem do reflexo, correspondente a esta pesquisa. Agora, ao terceiro e último fundamento a ser anunciado. O surgimento na história do reflexo original com o trabalho dá-se concomitantemente no tempo, e ontologicamente posterior ao do reflexo cotidiano. A cotidianidade é o terreno no qual a vida comunitária dos homens e mulheres acontece, e só a partir dela é que o extraordinário pode ser estabelecido. Significa dizer: a vida e pensamentos típicos do dia a dia são solo comum do qual se destacam, paulatinamente, outras formas de reflexo, até mesmo as mais elevadas evidenciadas por Lukács tais como a ciência e a arte (LUKÁCS, 1966a). É partindo dessa conexão com a base cotidiana que o alcance e apresentação da compreensão do artístico na Estética se dá em constante comparação da arte com outras formas de recepção e reprodução da realidade, entre elas, o próprio reflexo comum: No puede siquiera imaginarse una real génesis histórico-sistemática del reflexo científico o del artístico sin la aclaración de estas interacciones [com a vida cotidiana]. Por eso es imprescindible, para captar filosóficamente los problemas que aquí se plantean, no perder nunca de vista en nuestras consideraciones la doble interacción con el pensamiento de la vida cotidiana ni la peculiaridad específica y en desarrollo de las dos formas diferenciadas (LUKÁCS, 1966a, p. 35). O cotidiano e o pensamento que lhe acompanha são assim aspectos iniciais fundamentais à teoria do reflexo lukácsiana. Problema a ser discutido no capítulo intitulado O ser do reflexo cotidiano em Georg Lukács. 28 Por fim, demarcado desse modo, deve ser desenvolvido na tese o problema dos três fundamentos apresentados, de maneira tal que isso deixe suas contribuições ao sistematizar da composição expositiva da teoria do reflexo contida no sistema estético lukácsiano, particularmente na Grande Estética. 1.3 Objetivos e justificativa O objetivo geral desta pesquisa é avançar na sistematização da teoria do reflexo contida na Grande Estética, de Georg Lukács. Especificamente, pretende-se: [1] examinar diferenças fundamentais entre as teorias do conhecimento e do reflexo; [2] analisar a estruturação do reflexo original com base em sua relação com o trabalho; e [3] caracterizar o reflexo cotidiano em algumas aproximações e alguns distanciamentos com o pensamento científico e artístico. A relevância desta pesquisa pode ser apreendida a partir de uma breve análise da diferenciação entre a categoria do reflexo e seu pretenso significado enquanto um modo de “espelhamento” da realidade. A tradição de pesquisas lukácsianas no Brasil costuma fazer a opção pelo termo “reflexo” em detrimento do seu significado mais literal do alemão (Spiegelung/ Widerspiegelung), “espelhamento”. Um exemplo atual desse pretenso embate pode ser citado a partir da disparidade entre as duas traduções da Ontologia (LUKÁCS, 2018a; LUKÁCS, 2018b) de Lukács no Brasil. Os tradutores que compuseram o trabalho para a editora Boitempo, com primeira edição da obra em dois volumes, entre os anos de 2013 e 2014, optaram pela palavra “espelhamento”. Já a versão do Coletivo Veredas, publicada mais recentemente, em 2018, e cujo principal tradutor foi Sérgio Lessa, optou por “reflexo”. Esta, segundo Lessa, é categoria situada entre aquelas que já contam “com traduções assentadas e consolidadas, que passaram pela prova do tempo e que não representam nenhum óbice à compreensão do texto traduzido” (LESSA, 2018, p. 17). Além disso, existe uma questão de diferença de conteúdo entre as duas terminologias — espelhamento e reflexo — que superaria qualquer formalidade relativa a maior proximidade à língua alemã. É essa diferença que importa que seja minimamente tocada. Como deixa claro Celso Frederico (FREDERICO, 2005), a distinção remete ao contexto do I Congresso dos Escritores Soviéticos, ocorrido em 1934, em 29 Moscou. Este, oficializou o denominado “realismo socialista” como modelo estético a ser seguido. Ocorre que o entendimento de “reflexo” adotado no congresso naquele ano se baseava na exposição leniniana, presente em Materialismo e empiriocriticismo, a qual foi publicada em 1909 - escrito anterior aos estudos em Hegel (1770 - 1831) e, portanto, não dialético. Não por acaso, do mesmo ano do congresso é o texto de Lukács, Arte y verdad objetiva (LUKÁCS, 1966c). Ora, em franca oposição ao conclave, neste texto, o húngaro traz à tona o debate em torno da categoria reflexo, contudo, já atualizado através da leitura dos Cadernos filosóficos de Lênin (1870 - 1924), leitor de Hegel. Lukács teve contato com este texto em 1931 (FREDERICO, 2005). Ali, Lênin é preciso ao se posicionar averso ao materialismo mecanicista, e dá a entender que a verdade, apesar de ser objetiva, não pode ser reduzida à impressão inicial da realidade, que é preciso ir à essência. A palavra “espelhamento” transporta no seu significado em português essa herança de significado de um materialismo mecanicista grosseiro. Uma imagem espelhada gera um “reflexo” fotográfico, mecânico de uma realidade que não pára, que está em constante movimento. Não há câmera fotográfica nenhuma que tenha o poder de apreendê-la em toda sua riqueza! O reflexo é sócio-histórico. E se o reflexo é social, o espelhamento, não, pois apenas cópia. A discussão sobre a categoria do reflexo ainda sofre na atualidade de todo um preconceito relacionado à problemática abordada acima. De modo que o simples mencionar da categoria exige toda uma explicação a respeito do seu contexto (LESSA, 2018). A teoria do reflexo lukácsiana, balizada no próprio Marx, deixa clara a resolução desse problema. Sendo a contribuição por sua sistematização importante no sentido de ampliar para o debate o uso dialético da categoria do reflexo. É assim que esforços de investigação da natureza deste trabalho se justificam: pela necessidade de expressar dada peculiaridade no tratamento de temáticas envolvendo a teoria do reflexo. Uma preocupação com a maior aproximação possível da realidade, de sua essencialidade, que relaciona-se dialeticamente com a origem do trabalho e do ser social. 1.4 Método, metodologia e estrutura Como já deve estar esclarecido a essa altura, na base da pretensa pesquisa aqui anunciada está à teoria-método inaugurada por Karl Marx e, 30 posteriormente no tempo, resgatada por Georg Lukács através do seu empenho em se dedicar à ontologia marxiana, a ontologia do ser social. Nesta, o entendimento da realidade social se dá atravessado pela atividade exclusivamente humana de reproduzir em simultâneo a si, indivíduo, e a própria sociedade. Essa atividade é o trabalho. São nesses termos, investigado em seu caráter universal e ontologicamente a partir do trabalho, que se reflete aqui o processo do conhecer. Em face do exposto, algumas poucas observações na sequência. O método marxiano é aqui compreendido enquanto teoria que remete a um novo estatuto ontológico do conhecimento (CHASIN, 2009). Para ele, a regular separação entre teoria e método de pesquisa, característica dos preceitos da ciência moderna, não se adequa: em Marx e na ontologia marxiana que remete ao original, tratar do método de pesquisa é algo realizado ao mesmo tempo, e no consonante espaço da abordagem da sedimentação teórica que diz respeito à exposição. Realizada assim, a pesquisa busca garantir a prioridade de apreensão do objeto no seu ser, com a preocupação de desvelar a “essência da reprodução do ser social” (LESSA, 2014, p. 36). Desta feita, considera-se já explanado acima, as principais indicações teórico-metodológicas de pesquisa, a partir da ontologia marxiana, especialmente quando referenciada à categoria “trabalho” e sua centralidade no complexo do ser social, bem como a relação dialética entre ser e consciência, com prioridade ontológica do ser. À estas informações, acrescente-se apenas duas condições referentes à metodologia de pesquisa (à metodologia, não ao método): têm-se na pesquisa teórico-bibliográfica a maior parte da técnica utilizada; e em seu auxílio, o exercício da leitura imanente, ou seja, do estudo que possibilita uma extração dos clássicos — com destaque para a Estética — daquilo que seus autores realmente expuseram. São evitados, desse modo, desvios interpretativos pessoais durante a leitura: “É a conquista de uma relação com o texto, na qual conseguimos dele extrair o que ele contém, não os nossos limites ou potencialidade subjetivas, ideológicas” (LESSA, 2014, p. 68). Enfim, sobre a questão do método, os esforços presentes nesta análise “no quieren ser más que una aplicación, lo más correcta posible, del marxismo a los problemas” propostos (LUKÁCS, 1966a, p. 14). Por fim, não se pode dispensar o registro de que o texto base utilizado nesta pesquisa foi a tradução castelhana das Ediciones Grijalbo, realizada por 31 Manuel Sacristán (1925 - 1965)13. Isto porque em 2019, período de início do percurso doutoral, ainda não havia sido publicada a tradução para o português realizada por Nélio Schneider e editada pela Boitempo, o que só ocorreria em 2023. No entanto, dadas intercorrências que acabaram por necessariamente prolongar o tempo para o desenvolvimento da pesquisa, em dado momento, essa edição passa a ser utilizada como apoio. A tese está estruturada em cinco capítulos. Este primeiro, como já elucidado, sua parte introdutória. Outros três capítulos subsequentes, nos quais inicia-se de fato a explanação mais aprofundada dos fundamentos da teoria do reflexo presentes na Grande Estética. No capítulo Crítica à teoria do conhecimento é abordado o fundamento da crítica histórico-dialética de Lukács a modelos de pensamentos gnosiológicos. A análise é pautada em observar duas diferenças essenciais entre as teorias do conhecimento e do reflexo, relacionadas ao método e à vinculação de classe. O terceiro capítulo da tese, Breve história da origem do reflexo, descreve o segundo fundamento, o princípio básico de tomar o trabalho, atividade fundante do ser social, a base ontológica para análise do reflexo, e o analisa ao apresentar parte do processo histórico de formação do reflexo original e da complexificação da consciência humana. O quarto capítulo nomeado O ser do reflexo cotidiano em Georg Lukács explora o terceiro fundamento, identificado nas características do cotidiano e do reflexo que lhe é próprio. Este é investigado em suas semelhanças e divergências com o pensamento científico e artístico. No último capítulo desta tese, discorre-se de forma analítica os resultados investigativos. 13 Foi um influente intelectual e ativista político ibérico, conhecido por sua crítica ao marxismo e ao capitalismo. Atuou como dirigente dos partidos comunistas PSUC e PCE, durante a ditadura de Franco, mas se afastou em 1969, antecipando a crise do marxismo após 1968. Sacristán se concentrou na análise da crise ecológica do século XXI, argumentando que a estrutura capitalista é responsável pela degradação ambiental e defendendo uma transformação radical das relações sociais. Combinando filosofia e ciência, ele também examinou a cultura popular e a consciência coletiva, enfatizando a liberdade como essencial para o progresso humano e alertando para os perigos da ciência orientada pelo capitalismo e pela indústria bélica. Seus textos recentes oferecem uma crítica atualizada sobre a relação entre a humanidade e a natureza. 32 2 CRÍTICA À TEORIA DO CONHECIMENTO Eis teu ouro, veneno mais nocivo para as almas dos homens, que mais crimes tem cometido neste mundo sujo, do que essas pobres drogas misturadas que não podes vender. Dei-te veneno; não tu a mim. Adeus [...]. (Shakespeare, 2017, p. 110). Sobretudo por um fator esta exposição deve ser captada enquanto uma pequena crítica. Sua pequeneza refere-se à delimitação do espaço reservado para ela. Em seu todo, esta não é uma pesquisa sobre a teoria do conhecimento14. Sua crítica é, na verdade, uma espécie de ponto de inflexão que busca desmascarar diferenças fundamentais entre aquela teoria e a que corresponde o estudo do reflexo. Isto se justifica porque ambas — mesmo cada qual regida por princípios de ser particulares que as tornam abissalmente diferentes — propõem-se problematizações relacionadas à consciência, em específico, ao ato tipicamente humano de conhecer o seu entorno. Não é, portanto, incomum a confusão entre uma e outra. A teoria do reflexo, no entanto, não se identifica e nem se encaixa como setor ou variação da teoria do conhecimento, no sentido moderno tradicional da palavra, a ela só podendo referir-se em contraposição crítica. Busca-se com este capítulo dirimir qualquer dúvida nessa direção, ficando para tal devidamente registrados alguns esclarecimentos que se espera serem suficientes. É com o pretenso exercício da crítica onto-materialista que ficarão explícitas a seguir ao menos duas dessas diferenças essenciais. Em primeiro lugar, 14 A origem dessa expressão, segundo Nicola Abbagnano (ABBAGNANO, 2007), é uma invenção do século XVIII. Os alemães Alexander Baumgarten (1714 - 1762) e Karl L. Reinhold (1757 - 1823) — cujos termos cunhados como referência foram Gnoseologie e Erkenntnistheorie, respectivamente — estão entre os seus principais propagadores. Obviamente os estudos sobre a matéria do conhecimento na história da filosofia, no entanto, são muito anteriores a isso, remetendo ainda à filosofia antiga: “Os pré-socráticos exprimiram-se com o princípio de que ‘o semelhante conhece o semelhante’, pelo qual Empédocles afirmava que conhecemos a terra com a terra, a água com a água, etc. (Fr. 105, Diels). Podem ser consideradas variantes desse princípio tanto a afirmação de Heráclito, ‘o que se move conhece o que se move’ (Aristóteles, De an., I, 2, 405 a 27), quanto Anaxágoras, segundo o qual ‘a alma conhece o contrário com o contrário’ (Teofr., De sens., 27). [...] Mas foram Platão e Aristóteles que estabeleceram em bases sólidas essa interpretação do conhecimento” (ABBAGNANO, 2007, verbete “conhecimento”). Para simplificar a discussão, é preciso dizer que, compreende-se neste capítulo, “teoria do conhecimento” como termo utilizado de maneira generalista para se referir ao conjunto de pesquisas filosóficas sobre o tema do conhecimento, a partir de uma fundamentação teórico-gnosiológica característica, em específico, da Modernidade. Nesse sentido, equivale ao termo “gnosiologia”, também utilizado aqui. Um ou outro termo, suas aspirações são sintetizadas quando Lukács afirma que consistem em “[...] assinalar, gnosiologicamente, que não pode ser atribuído aos nossos conhecimentos sobre o mundo material qualquer significado ontológico” (LUKÁCS, 2018a, p. 339). Essa assertiva certamente será objeto de problematização a ser desenvolvido neste texto. 33 o caráter ontológico de prioridade do ser frente ao conhecer inerente à teoria do reflexo, não presente na teoria do conhecimento. Essa discussão é marcadamente desenvolvida já no ponto inicial, e se estende implicitamente por todo o capítulo. Em sequência, deve ser verificada a hipótese de vinculação da teoria do conhecimento com o interesse da classe burguesa — o que, em definitivo, não se mostra ser o caso da teoria do reflexo. Destarte, a busca por disparidades fundamentais acaba por rebater na questão do antagonismo de classe. Para ir ao encontro da possível conexão entre burguesia e gnosiologia é imperativo a busca pela própria história dessa teoria na Modernidade. Neste excurso, a proeminência social da consciência/sujeito — em oposição ao ser/objeto — fica evidente. Daí a categoria do indivíduo, enquanto uma dimensão dessa consciência, torna-se fundamental para a investigação. Sob essa perspectiva, no tópico dois, é examinada a noção de individualidade, o que de fato acaba por gerar interessantes informações na direção pretendida. Vale registrar que o exame é feito através da análise do clássico Romeu e Julieta enquanto reflexo realista — que diz respeito à verdade objetiva do seu tempo — em especial, daquilo que trata a formação da noção do indivíduo moderno, caráter da obra reconhecido pelo cânone da crítica literária. Depois de estruturalmente verificado o nascimento da noção de indivíduo na Modernidade conectado ao surgimento do indivíduo burguês, resta expor, por fim, o elo realmente existente entre esse e a teoria do conhecimento: o liberalismo. Essas são problematizações que transcorrem no capítulo apresentado a seguir, mais precisamente, no segundo tópico. 2.1 A diferença de caráter ontológico de princípios Levando-se em conta o montante histórico de estudos empreendidos sobre a razão e o conhecimento, é costumeiro encontrar em manuais, livros de história da filosofia, ou outros materiais específicos, a afirmação de que esses estudos se situam, majoritariamente, na Modernidade. Segundo defendem os estudiosos da teoria do conhecimento, isso se dá porque só neste período o conjunto desses estudos teria se estabelecido “como disciplina própria” (ZILLES, 1995, p. 11), tornando-se mesmo o “problema fundamental de la filosofía moderna” (CASSIRER, 1965, p. 7). Aquela assertiva encontrada em manuais, etc., pode até ser verdadeira. Ocorre que, introduzida sem uma investigação mais contundente de 34 suas determinações histórico-materiais, conclusões assim tendem a justificar os fenômenos — conscientemente ou não — embasadas por fatores limitados a uma discussão de caráter subjetivo idealista. Como se a origem do referido fenômeno, o da ampla expressão de pesquisas sobre a consciência na Modernidade, fosse puramente determinada por um surgimento simultâneo e espontâneo de ideias, ou pela simples vontade dos estudiosos daquele período. A respeito desse assunto, confirma Georg Lukács: Quando se pretende estabelecer e compreender as conexões dos problemas filosóficos a partir do assim chamado desenvolvimento imanente da filosofia, chega-se necessariamente à distorção idealista das suas principais conexões, mesmo quando existe por parte dos historiadores o conhecimento necessário ou quando há neles, subjetivamente, a maior boa vontade e empenho para com a objetividade (LUKÁCS, 2020, p. 27 - 28). O fato da Modernidade caracterizar-se pela expressão dos debates acerca da consciência é um problema abordado por Lukács. Na introdução de sua Para a ontologia do ser social (LUKÁCS, 2018), ele discute essa questão associada inclusive à exposição da Antiguidade e ao Medievo enquanto espaços históricos de debates nos quais há manifestação prioritariamente ontológica do ser, contudo, de uma “ontologia religiosa”. Elenca esse fenômeno social de forma cuidadosa, apresentando a relação entre diferentes complexos — como o cotidiano, a religião, a filosofia, dentre outros. Traz contribuições sobre a gênese da ontologia na Antiguidade grega, delimitando o caráter religioso da ontologia que inicia em Platão e toma parte da filosofia de vários outros pensadores, culminando mais a frente em uma ontologia religiosa na Idade Média. O húngaro chega a problematizar, em um sentido genuíno de complexificação compreensiva da realidade, que na própria história da Modernidade existe uma polarização com uma “nova ontologia” fundada nos avanços das ciências da natureza. [...] Na filosofia burguesa avança, em medida que se intensifica, uma polarização por si. Por um lado, emergem linhas de pensamento que, de Hobbes a Helvétius, de Espinosa a Diderot, participam e desenvolvem a herança como um todo do Renascimento, que conduzem com consistência, até o fim, a nova ontologia — sempre reforçada pelas seguidas realizações da ciência. Por outro lado, aparecem, mesmo sob o impacto dos grandes acontecimentos mundiais, pensadores significativos e influentes que desejam dar fundamento teórico e gnosiológico ao cinismo belarminiano da política da igreja. Basta indicar — por todas dissimilaridades mesmo em questões de princípio — Berkeley e Kant. [...] Em ambos os casos — à maneira da ciência isolada — é deixado gnosiologicamente imperturbado o 35 funcionamento do conhecimento da natureza em sua imanente objetividade prática, por uma recusa — do mesmo modo gnosiológica — de toda “ontologização” de seus resultados, de todo reconhecimento da existência dos objetos em si, independente da consciência cognoscente; com o que novamente, do ponto de vista do nosso problema, é o mesmo se é falado de uma consciência humana real ou de uma “consciência em geral”. (LUKÁCS, 2018a, p. 338 - 339). Afinal, deixa claro como tanto gnosiologia, quanto a ontologia burguesa contradizem absolutamente aquela proposta por Marx, a qual está fundamentada na atividade humana essencial, o trabalho. Fato é, entre a “consciência humana real” e a “consciência em geral”, permanece o posicionamento de predominância do conhecer frente ao ser. Afirmar, de um lado, a filosofia ontológica de prioridade do ser como marca típica dos períodos nos quais se estabeleceram os modos de produção antigo e feudal e, do outro, afiançar a centralidade da razão, no momento de origem do início do capitalismo, como característica de uma Modernidade carregada de filosofias de orientação gnosiológica, é algo que já se expressava — mesmo que não nestes termos — entre os clássicos da teoria do conhecimento. Sobre a viragem que entra para a história da filosofia como Revolução Copernicana de Kant (1724 - 1804), filósofo citado acima por Lukács, observe-se o que diz o próprio alemão: Até agora se supôs que todo o nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos; porém todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, através do que ampliaria o nosso conhecimento, fracassaram sob esta pressuposição. Por isso tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento, o que concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori dos objetos que deve estabelecer algo sobre os mesmos antes de nos serem dados. O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico que, depois das coisas não quererem andar muito bem com a explicação dos movimentos celestes admitindo-se que todo o exército de astros girava em torno do espectador, tentou ver se não seria melhor que o espectador se movesse em torno dos astros, deixandos estes em paz (KANT, 1980, p. 12, XVI, grifos do autor). A Crítica da razão pura (KANT, 1980) foi escrita e publicada pela primeira vez em 1781, com direito a uma segunda publicação em 1787 revisada pelo autor. Fato é, Immanuel Kant é um filósofo do século XVIII. Este, antes de ser o “Século das Luzes”, é a centúria de consolidação do capitalismo. A Revolução Copernicana na filosofia é acompanhada, portanto, de outras que lhe são ontologicamente anteriores, como as revoluções burguesas e boa parte do início da Revolução 36 Industrial. O simples remeter à grandiosidade dos possíveis desdobramentos dessas conexões já supõe, aportados no método desta pesquisa, insuficiências na justificativa kantiana para tal mudança metodológica como posto na citação. Na perspectiva do pensador, a ciência de Nicolau Copérnico (1473 - 1543) conquista sua vitória na compreensão da dinâmica dos corpos celestes, ao retirar o “espectador” — a Terra, mundo das consciências — de sua letargia. E no seu lugar, fixar o objeto “sol", o qual fica “em paz” da perturbação dos pensadores da metafísica, ontologias antiga e medieval. É desse modo, através de uma analogia abstrata, que uma ciência da natureza, como a astronomia, torna-se exemplo para o exercício da filosofia nos moldes propostos por Kant. Ainda assim, por serem as palavras de Kant expressão objetiva conformada daquele momento, a citação acaba por ser um belo exemplo de anunciação daquela mudança histórica da centralidade reflexiva do ser para a consciência, típica da Modernidade. É necessário o cuidado de se realizar pesquisas sobre o conhecimento levando-se em conta a conexão dialética entre o pensamento e sua determinação pela totalidade social. Nesse sentido, se destaca neste excurso a citação que segue: A tese de que “o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral”, de que todas as relações sociais e estatais, todos os sistemas religiosos e jurídicos, todas as ideias teóricas que aparecem na história só podem ser compreendidos quando tiverem sido compreendidas as condições materiais de vida da época de que se trata, e se tenha sabido explicar tudo aquilo por estas condições materiais [...]. “Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência (ENGELS, s. d., p. 305 - 306, grifos nossos). A citação busca sintetizar o método materialista histórico-dialético. Seu princípio é pela busca das causas históricas dos fenômenos sociais, sejam eles da consciência ou exteriores a ela. Do caso elencado como ponto de partida deste tópico, por exemplo, devem ser refletidas as reais determinações que possibilitam a hegemonia da teoria sistematizada sobre o conhecimento no debate filosófico moderno. Observe-se, no entanto, que essa correlação entre causas e fenômenos não se trata de uma conexão meramente lógica. Antes é uma correspondência da ordem do ser: fenômenos sociais são históricos no sentido em que originados, direta ou mesmo muito indiretamente, do interesse em sanar necessidades socialmente estabelecidas através de ações humanas efetivas na natureza, e no mundo dos homens e mulheres. O entendimento de Engels se dá em conformidade com a 37 categoria do trabalho (LUKÁCS, 2018b), e reflete o justo “reconhecimento marxiano da objetividade como propriedade originária dos entes” (VAISMAN, 2015, p. 155). Ele se mostra essencial para a compreensão crítica do problema do conhecimento, e por isso toma parte fundamental na teoria do reflexo. Dada a própria natureza da gnosiologia — de prioridade da consciência frente ao ser — não é possível encontrar nela presente esse cuidado para com a compreensão dos fenômenos conscientes. Observe-se mais de perto. As palavras de José Chasin (1937 - 1998) são certeiras ao afirmar que “a rigor, não há uma questão de método no pensamento marxiano” (CHASIN, 2009, p. 89). Diz isso pois pressupõe a referida questão como problema de ordem gnosiológica, que em Marx, é resolvido no campo ontológico. Isto, paradoxalmente, faz aquele problema perder sua configuração de princípio. Não haver uma questão de método em Marx nesse sentido criticado, no entanto, não equivale a dizer que não existe um método em seu pensamento. Não será possível adentrar diretamente aqui no rico debate sobre a “teoria das abstrações” em Marx, como proposto pelo marxista brasileiro acima referenciado. Contudo, há algo de fundamental a se sublinhar: o caráter ontológico do pensamento marxiano. Marx é apontado por Georg Lukács como sendo o principal autor a se debruçar sobre a ontologia do ser social (LUKÁCS, 2018a), em outras palavras, a pensar o ser da sociabilidade humana em sua especificidade, em si, fundamentada em bases materiais15. Basicamente, a defesa de Lukács sobre o Mouro é a de que ao desenvolver uma crítica da economia política, o mesmo expôs, mesmo sem discorrer diretamente sobre isso, uma ontologia do ser social, a qual aponta que o gênero humano se faz e se organiza em sociedade, em todas as épocas, através da nutrição de suas condições de existência produtivas e reprodutivas. A atividade humana que garante, de maneira essencial, a satisfação dessas necessidades, é o trabalho, ação de transformação objetiva da natureza a partir das finalidades postas pela razão histórica. O resultado do trabalho, ou em outras palavras, as realizações humanas são novas formas de objetividade que antes não se encontravam na natureza, e expressam como os homens e mulheres, de um certo tempo, vivem e, ontologicamente antes disso, quem eles são. Portanto, no sentido ontológico marxiano, trabalhar e ser em sociedade dão no mesmo (LUKÁCS, 2018b). Para 15 Lukács traz uma profunda discussão sobre esse assunto no último capítulo do primeiro volume de sua Ontologia, Os princípios ontológicos fundamentais de Marx (LUKÁCS, 2018a, p. 559- 612). 38 Marx e, em sua esteira, Lukács, o gênero humano é o que ele faz, e compreender isso é fundamental para o entendimento do método desses autores, pois ambos partem deste pressuposto histórico em suas análises. Ocorre que, ao se afirmar o “objeto” não se está necessariamente a negar o “sujeito”, para utilizar expressões gnosiológicas. Pelo contrário, reconhecer a organicidade de base objetiva da realidade é, ao mesmo tempo, apropriar-se da função social concreta da razão, pois dela faz parte. No real, destacam-se de suas contribuições um aspecto fundamental do processo de trabalho. A consciência se manifesta e se exprime de forma concreta na atividade humana fundamental, na realização do objetivo social então posto. Com maiores detalhes, é possível dizer que a objetificação só é possível porque o fim foi [1] previamente ideado na consciência, e porque [2] as causalidades envolvidas foram também dominadas por ela16. É nesta segunda assertiva que se encontram as particularidades do debate do conhecimento no processo de trabalho, fundamento ontológico de todas as outras atividades humanas. Da condição de conhecer as propriedades causais da natureza pode-se dizer que é necessária, pois está essencialmente ligada à manutenção da própria sobrevivência do ser humano. O conhecer é concreto! O estudo da dinâmica desse comportamento original de pensamento e seus desdobramentos — os quais acompanham a complexificação histórica do mundo do trabalho — é o que se nomeia teoria do reflexo. Ela diz respeito à compreensão das categorias que expressam “formas de ser” (MARX, 2011, p. 59) do processo de conhecimento em conexão com a totalidade social, seguida da sistematização dessas determinações. Um dos pressupostos fundamentais da teoria do reflexo é reconhecer no real a existência da “precisa separação dos objetos, que existem independentes do sujeito, e dos sujeitos, os quais, em uma aproximação mais ou menos correta, podem representá-los através de atos de consciência e fazê-los uma sua posse espiritual” (LUKÁCS, 2018b, p. 29, grifos nossos). Essa separação, a qual se dá na concretude, é o que possibilita o sujeito observar e reproduzir o reflexo da realidade 16 Ao mesmo tempo, e dialeticamente, o trabalho é determinante do seu próprio ser. “Apenas no trabalho, no pôr de finalidades e seus meios, passa a consciência, com um ato auto-controlado, a posição teleológica, não apenas a se adaptar ao entorno” (LUKÁCS, 2018b, p. 27), ou seja, torna-se consciência típica do humano. No terceiro capítulo desta pesquisa, são postos mais detalhes sobre essa dinâmica. 39 na consciência. Dito de outra forma, sendo algo diferente do objeto e tendo capacidades para tal, pode então reproduzi-lo. No reflexo da realidade, a representação destaca-se da realidade retratada, se coagulando em uma “realidade” própria na consciência. Pusemos a palavra realidade entre aspas já que na consciência a realidade é apenas reproduzida; surge uma nova forma de objetividade, mas nenhuma realidade e — precisamente ontologicamente — é impossível que o reproduzido seja o mesmo do reproduzido, muito menos idêntico a ele. Ao contrário. Ontologicamente o ser social se divide em dois momentos heterogêneos que, do ponto de vista do ser, não apenas estão contrapostos entre si heterogeneamente, como são absolutamente opostos: o ser e seu reflexo na consciência. (LUKÁCS, 2018b, p. 30). Ao que se referem os propósitos deste ponto da pesquisa, note-se que essa separação — ser e ser refletido na consciência — faz do “em si" do próprio reflexo categoria que exprime a prioridade ontológica da objetividade. Revela-se uma atividade consciente que tem como resultado algo que não se iguala à objetividade. Em verdade, dá-se em consequência dela. Dito de outro modo, o reflexo não é o ser. Diz sobre ele. Gera impressões objetivas com base nele. Mas essas ideias não são a própria realidade. Mesmo sendo atividade da qual não se pode prescindir, a categoria afirma em si a prioridade ontológica do ser. Para aprofundar um pouco mais a discussão do caráter ontológico da teoria do reflexo, observe-se, em seguida, a explanação sobre o realismo. Ao referir-se à teoria do reflexo é preciso ter em mente a generalidade da expressão. Quer dizer, no seu interior existem diferentes modalidades de reflexo da realidade, cada qual com suas devidas determinações. Como enuncia Lukács, em sua Grande Estética (LUKÁCS, 1966a), há o reflexo típico da atividade original de trabalho, do cotidiano, da prática religiosa e científica. Isso para listar alguns. Gostaria de colocar em destaque, neste momento, no entanto, o reflexo estético. A obra de criação artística [...] enquanto constitui uma forma de reflexo do mundo exterior na consciência humana, está inserida na teoria geral do conhecimento professada pelo materialismo dialético. É certo que a obra de criação artística, dada as suas peculiaridades, constitui uma parte singular, com características próprias, da teoria materialista dialética do conhecimento, na qual vigoram normas absolutamente diversas das de outros campos abrangidos pela referida teoria (FREDERICO, 1997, p. 94). O destaque ao reflexo estético se dá na medida em que, no interior da sua dinâmica, encontra-se, com certa precisão, uma das mais significativas expressões 40 do reflexo: o realismo. Como o sociólogo lukácsiano Celso Frederico deixa transparecer a seguir, é claramente possível associar o posicionamento crítico literário de Lukács com a ideia de desvelamento da realidade, ou seja, com o conhecimento do seu “em si”, através da apreensão do reflexo estético: “[...] estuda o fenômeno artístico prioritariamente na ótica do que julgava ser a teoria marxista do conhecimento” (FREDERICO, 1997, p. 32). É ao realismo que também se refere aí. Em outras palavras, o realismo artístico é a representação estética da vida em sua inteireza pela arte autêntica. Ele é caráter da verdadeira arte, e pode ser apreendido tanto por fruição, por parte de quem aprecia, quanto pelo crítico de arte, cada qual segundo determinações específicas. Celso Frederico, novamente, reitera como objetivo de grandes literatos como Shakespeare (1564-1916), Goethe (1749-1832), Balzac (1799-1850) e Tolstói (1828-1910): “a reprodução artística da realidade”, ou seja, “a fidelidade ao real, o esforço apaixonado para reproduzi-lo na sua integridade e totalidade” (FREDERICO, 1997, p. 94). Já se compreende que é ao realismo defendido por Lukács a que ele se refere. Apesar de ser constantemente comparado a escolas literárias (naturalismo17 e expressionismo, por exemplo), o realismo resgatado aqui não corresponde a uma delas. Trata-se antes de um método estético próprio da autêntica arte, que possibilita à obra artística a representação, para categorizar, do “típico social” em seus movimentos, relações, contradições; enfim, do conjunto da vida humana em sua real inteireza18. O “típico” próprio do pensamento marxiano — e, por extensão, do que pode ser tomado enquanto sua respectiva Estética — é “um exemplar que exprime, com a máxima clareza, a verdade de sua espécie. Ele é um ser específico, singular, que, ao mesmo tempo, concentra as tendências mais essenciais da espécie (universal) em questão” (FREDERICO, 1997, p. 50, grifos do autor). Ele bem representa o caráter de realismo no campo estético. 18 Observe-se: não o “tipo ideal” de Max Weber (1864-1920), o qual implica uma criação para efeito de pesquisa científica que é, no horizonte, abstrata. Nem algo baseado na apreensão de dados estatísticos que, também limitados, sozinhos, não podem dar conta da realidade que representam. Crítica esta que pode se interpor ao “tipo médio” de Émile Durkheim (FREDERICO, 1997). 17 Problematiza Lukács sobre o reflexo não se tratar de uma fotocópia do real, ou seja, identificada com ele: “De acuerdo con sus dogmas, la reflexión burguesa sobre el arte identifica el realismo con el naturalismo, muchas veces, de un modo ingenuo y declaratorio, pero otras muchas con la intención de evitar, con el fantasma del naturalismo, toda investigación concreta del arte como reflejo de la realidad” (LUKÁCS, 1966b, p. 12). 41 Poder-se-ia caracterizar o realismo também por suas referências ao narrativo, mas dados os necessários limites impostos a este texto, as observações expostas se reservarão à questão da tipicidade. Em suma, o realismo, em especial no aspecto levantado, insere-se na teoria do reflexo daquilo que cabe ao artístico: A concepção marxista do realismo é a do realismo da essência artisticamente representada. Ela representa a aplicação dialética da teoria do reflexo ao campo da estética. E não é acidental que o conceito de tipo seja aquele que com maior clareza evidencia tal peculiaridade da estética marxista. Por um lado, o tipo fornece uma solução para a dialética essência-fenômeno — solução específica da arte, que não se aproveita em qualquer outro campo — e, por outro lado, o tipo remete sempre aquele processo histórico-social do qual a melhor arte realista constitui o fiel reflexo (FREDERICO, 1997, p. 99, grifos do autor). Dito desse modo, existem algumas considerações a se frisar. O interesse desta parte do excurso, como dito antes, é o de afiançar a preocupação, imposta pela realidade, em dar conta da compreensão dos fenômenos sociais relacionados ao conhecimento, tomando suas formas de ser com prioridade ontológica frente ao próprio conhecer — algo que não ocorre, por natureza, nas pesquisas realizadas no interior da teoria do conhecimento. Tendo esse propósito em vista, observa-se que uma análise do básico no reflexo estético auxilia notavelmente nesse sentido. A categoria do reflexo geral, ao mesmo tempo que não identificada com o ser, é determinada pelo caráter do real em si. Esse realismo que se lhe impõe, no caso do complexo estético, afirma-se, através da categoria do típico, uma representação de ser singular em determinada obra de arte, a qual de forma simultaneamente dialética, expressa também o ser do social, como apenas a arte é capaz de fazer. O propósito do artístico não se mostra autodeterminado — o que poderia ser exemplificado através do puro gozo do belo, como defendido pela estética abstrata. Sua função social é dizer, o mais aproximado possível, daquilo que é na realidade. Guardadas as devidas nuances, isso se estende aos diferentes tipos de reflexo e, portanto, caracteriza a sua teoria como um todo. O debate sobre a obra de arte como reflexo da realidade não é algo, obviamente, originado em Lukács19. Mas o resgate que faz do problema do interior 19 Hegel em seus Cursos de Estética, organizados para publicação por seu aluno Heinrich Hotho, mesmo que carregados de seu idealismo (objetivo), não foge a esse entendimento ao afirmar, por exemplo, que a “impressão que elas [as obras de arte] provocam é de natureza reflexiva” ou ainda “que a obra de arte coloca diante de nós as forças eternas que regem a história” (HEGEL, 2001, p. 34). Outros, como logo será passível de exemplificação, foram bem anteriores ao alemão. 42 da estética marxiana é valioso20. Em sua Estética, em meio a análise das “formas llamadas abstractas” de reflexo estético da realidade objetiva — ritmo, simetria, proporção e ornamentística, partícipes da dinâmica de gênese daquele tipo de reflexo na história — ele coloca a mímesis enquanto categoria “decisiva” (LUKÁCS, 1966b, p. 7). Segundo recorda a respeito, a Antiguidade em momento que “la doctrina del reflexo no presentaba aún el estigma del materialismo sino que [...] constituía un elemento fundamental del idealismo objetivo” (LUKÁCS, 1966b, p. 8) já reconhecia, através de pensadores como Platão (428/427 a.C - 348/347 a.C) e Aristóteles (384 a.C - 322 a.C), a mímesis como fato elementar da vida, do pensamento e da atividade artística. Em sua Poética, este último é categórico ao tratar das “coisas primeiras” sobre o assunto: A epopéia [sic], a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte da aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações [...] Pois tal como há os que imitam muitas coisas, exprimindo-se com cores e figuras (por arte ou por costume), assim acontece nas sobreditas artes: na verdade, todas elas imitam com o ritmo, a linguagem e a harmonia, usando estes elementos separada ou conjuntamente. Por exemplo, [...] com o ritmo e sem harmonia, imita a arte dos dançarinos, porque também estes, por ritmos gesticulados, imitam caracteres, afetos e ações (ARISTÓTELES, 1979, p. 241, 1447a, grifos nossos). São aludidas, ao menos, expressões artísticas de música, literatura e dança. Na citação, o Estagirita afirma também a assertiva do reflexo estético enquanto imitação da realidade. De modo semelhante, diz Lukács da mímesis como um dos “modos de reflejar la realidad objetiva”, no caso específico, dotado da peculiaridade de promover a “conversión de un reflejo de un fenómeno de la realidad en la práctica de un sujeto” (LUKÁCS, 1966b, p. 7). A centralidade da racionalidade no sistema de Aristóteles — expressa nas suas conhecidas máximas sobre a peculiaridade do ser humano se assentar na razão, no ser político, encontradas, em especial, em sua Política (ARISTÓTELES, 1998) e na Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES, 1979) — é o que fundamentalmente impede, segundo Georg Lukács (LUKÁCS, 1966b, p. 8), uma maior aproximação do entendimento aristotélico com a compreensão autêntica da dinâmica de reflexão embutida na mímesis. Distanciam-se aí os entendimentos de Aristóteles e Lukács a respeito da imitação. 20 Recorde-se que Marx e Engels nunca sistematizaram a questão estética, apenas deixaram diferentes registros parciais ou missivos a esse respeito (FREDERICO, 1997, p. 81). Os estudos lukácsianos sobre a estética marxista se complexificaram significativamente a partir da década de 1930 do século passado, como já mencionado. 43 Retome-se: o reflexo, e portanto a mímesis, são tratados pelo húngaro como categoria de ordem ontológico-material, as quais se originam e desenvolvem essencialmente com o trabalho, por sua vez, essencialmente anterior à razão. O papel da imitação é fundamental para a transmissão de experiências da produção e reprodução humana dos mais velhos para os mais jovens, as quais permitem ir muito além das respostas oriundas de reflexos incondicionados21 (LUKÁCS, 1966b, p. 7 - 9). A mímesis, no que se refere ao estético, é um modo de reflexo da realidade e sua relação com o realismo se dá na justa medida em que representa uma das práticas mais originais de representação autêntica da realidade, pelo ser humano, através da arte. Para ilustrar com um exemplo da concretude, recorde-se brevemente uma das peças shakespearianas, A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (SHAKESPEARE, 2019). A passagem abaixo refere-se à fala de Hamlet ao se dirigir aos atores no ato de montagem da peça que, encenada, pretende analisar a reação do rei Cláudio ao assistir o assassinato do pai do próprio Hamlet: Adaptem a ação à palavra, e a palavra à ação, com o cuidado de não perder a naturalidade. Pois todo exagero deturpa a representação, cuja finalidade é, tanto em sua origem como agora, servir de espelho para a natureza: mostrar a virtude em sua essência, ao escárnio sua própria imagem e ao século e à geração seu vulto e efígie22 (SHAKESPEARE, 2019, p. 84). 22 Dado tratar-se de escrita de língua inglesa do final do século XVI e início do XVII, portanto, de acessibilidade específica; e por, além disso, carregar em sua tradução para o português o termo “espelho” o qual é causa de calorosas discussões entre os tradutores marxistas no Brasil que debatem a teoria do reflexo, segue para consulta trecho do original: “[...] suit the action to the word, the word to the action; with this special [observance, that you] o’erstep not the modesty of nature: for anything so overdone is from the purpose of playing, whose end, both at the first and now, was and is, to hold, as ‘twere, the mirror up to nature; to show virtue her own [image], scorn her own image, and the very age and body of the time his form and pressure” (SHAKESPEARE, 2001, p. 67 - 68), grifos nossos). 21 Os reflexos incondicionados, segundo Ivan Pavlov (1849 - 1936), são respostas a determinados estímulos, as quais possuem a particularidade de serem de ordem natural/inata e automática, não requerendo, portanto, um aprendizado anterior. Pavlov estudou esses reflexos em seus experimentos clássicos com cães, onde observou que certos estímulos, como o cheiro da comida, naturalmente provocavam respostas fisiológicas, como a salivação. Outros exemplos de reflexo incondicionado são o de piscar os olhos em resposta a um vento muito forte ou a contração da pupila no caso da entrada em um lugar bem mais iluminado. Nos experimentos de Pavlov, ele demonstrou que, além dos reflexos incondicionados, era possível criar reflexos condicionados através do aprendizado associativo. O seu experimento mais divulgado envolvia associar um estímulo neutro, ou seja, indiferente (como o som de uma campainha), com um estímulo incondicionado (como a comida). Após várias repetições em que os dois estímulos eram postos em conjunto, cães começavam a salivar apenas com o estímulo neutro. Este fenômeno ficou conhecido como condicionamento clássico ou pavloviano. 44 Ora, se o interesse de Hamlet é por descobrir se o então rei Cláudio era de fato o assassino do irmão, pai do príncipe, observando para tanto a ausência, ou presença, de manifestação de um sentimento de culpa durante a apresentação, a peça precisa ser realista nos termos acima discutidos. Em outras palavras, precisa a imitação alcançar o íntimo da contradição dos acontecimentos reais, o fratricídio em sua expressão pessoal e social, para que assim seja garantida a expressão real de sentimento, indiferença ou a suspeita comoção: “E com a peça irei escarafunchar a consciência do rei” (SHAKESPEARE, 2019, n.p). No destaque da citação acima, portanto, Shakespeare acaba por apresentar algo da sua própria compreensão do que seja a reflexão artística em modo mimético: apresentar ao público a essência contraditória do humano. Aprofundada a compreensão do princípio onto-material próprio da teoria do reflexo através da exposição de alguns preceitos gerais do reflexo artístico — dado o devido destaque às categorias do realismo, do típico e da mímesis —, este é momento para reatar o que está reservado ao próximo espaço: examinar o autêntico reflexo da realidade do início da história da individualidade moderna disposto em Romeu e Julieta (SHAKESPEARE, 2017), transcrevendo para um texto científico a relação desse fenômeno com a totalidade social, em algumas de suas determinações e conexões estruturais. Ao que concerne em específico à literatura, como se pode esperar a partir da discussão exposta até aqui, o realismo faz daquela um vasto campo de investigação da realidade (LUKÁCS, 2010b, p. 80). Ao inspirar-se no entendimento estético lukácsiano de que uma literatura autêntica reflete a essência do movimento histórico do seu tempo, através do desenvolvimento de personagens típicos (FREDERICO, 1997), far-se-á, no desenvolvimento a seguir, um exercício de caracterização, mesmo que inicial, da individualidade de princípios da Modernidade, através de nome de referência como o é Shakespeare. Nesse sentido, ver-se-á na prática investigativa como o campo da literatura pode ser um belo aliado. 2.2 A diferença de caráter ontológico de classe No início do Manifesto do partido comunista, Karl Marx e Friedrich Engels argumentam como o antagonismo entre classes é algo presente durante o 45 estabelecimento das diferentes sociedades. Algo, excetuando-se o período do Comunismo Primitivo, inerente ao movimento do ser social: A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre de corporação e jornaleiro, numa palavra, opressor e oprimido, estiveram em constante oposição um contra o outro. Realizavam uma luta ininterrupta, ora escondida, ora aberta, uma luta que sempre terminou ou numa reconstrução revolucionária da sociedade inteira ou na ruína de ambas as classes em luta (MARX; ENGELS, 2017, p. 14 - 15). A gnosiologia não está alheia a esse contexto. A suspeita levantada neste ponto é de uma possível ligação histórica entre a teoria do conhecimento e a burguesia. Não há de ser, contudo, uma linha de convergência direta entre as duas, mas antes uma relação processual e mediada. Ao perquirir-se o em si da gnosiologia, não é preciso muito esforço para verificar a clara predominância teórico-social da consciência/sujeito em contraste ao ser/objeto. Mas é a partir de então que a noção do indivíduo, faceta dessa consciência, torna-se crucial para esta investigação. A individualidade em formação na Modernidade é o objeto inicial da análise que segue. 2.2.1 O nascimento do indivíduo: reflexos da realidade em Romeu e Julieta A obra de Shakespeare é um fenômeno típico da Inglaterra de fins do século XVI e início do XVII, momento em que passa a se estabelecer cada vez mais, do interior do Renascimento, noção do individual que se configura como o indivíduo moderno. Essa não se dá solta na realidade, regida pelo acaso. Pelo contrário, como todo fenômeno, ela possui raízes no real. Qual “outro” indivíduo aponta na nova configuração social enquanto dominante que não o da classe burguesa? Argumentado assim, faz sentido falar em um surgimento do indivíduo burguês. Certamente que o escritor inglês dispensa maiores apresentações, mas quanto à sua obra, para efeito desta pesquisa, é interessante destacar algumas informações e passagens do escrito utilizado nesta análise. Romeu e Julieta (SHAKESPEARE, 2017), como ocorre com outros textos shakespearianos, fora baseado em outros dois escritos que circulavam naquele período: versos de A trágica história de Romeu e Julieta (1562), de Arthur Bro