UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE MEDICINA REGINA CÉLIA DOS SANTOS Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Medicalização na infância: Uma análise crítica das significações de trabalhadores da educação e da atenção básica em saúde Orientadora: Prof a . Dra. Sueli Terezinha Ferrero Martin Botucatu 2017 Regina Célia dos Santos Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Medicalização na infância: Uma análise crítica das significações de trabalhadores da educação e da atenção básica em saúde Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de Botucatu, para obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva. Área de concentração: Saúde Pública. Linha de Pesquisa: Saúde Mental. Orientadora: Prof a . Dr a . Sueli Terezinha Ferrero Martin Botucatu 2017 FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA SEÇÃO TÉC. AQUIS. TRATAMENTO DA INFORM. DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO - CÂMPUS DE BOTUCATU - UNESP BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL: ROSEMEIRE APARECIDA VICENTE-CRB 8/5651 Santos, Regina Célia dos. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e medicalização na infância : uma análise crítica das significações de trabalhadores da educação e da atenção básica em saúde / Regina Célia dos Santos. - Botucatu, 2017 Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Medicina de Botucatu Orientador: Sueli Terezinha Ferrero Martin Capes: 40600009 1. Distúrbio da falta de atenção com hiperatividade. 2. Saúde pública. 3. Medicalização. 4. Psicologia social. 5. Infância. 6. Atenção primária à saúde. Palavras-chave: Infância; Medicalização; Psicologia Histórico-Cultural; Saúde coletiva; Educação; TDAH. Dedicatória Para Erick, João, Maria Clara, Miguel e Naiobi, sobrinhos amados, por deixar de brincar com vocês em função da dedicação a essa pesquisa nas férias, finais de semana e feriados. Para minha mãe que não conseguiu realizar seu sonho de fazer faculdade. Agradecimentos Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olhos meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastamos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. (Mãos dadas, Carlos Drummond de Andrade) São muitas as contribuições das pessoas para realizar uma pesquisa de mestrado. Umas mais relacionadas ao estudo, outras que nos fornecem amparo emocional, algumas têm os dois aspectos. Pessoas são imprescindíveis e o poema faz alusão a esse princípio de coletividade para nosso desenvolvimento. Aos colegas servidores do Centro de Convivência Infantil (CCI) “Pertinho da Mamãe”, da UNESP, por compreenderem meu afastamento para realizar as atividades do mestrado. De modo especial, à Inês, pelo aconselhamento em situações difíceis, e também à Elaine, Juliana e Marcia, por rirmos juntas quando estávamos cansadas ao final de mais um dia de trabalho. À Carol, pela alegria contagiante e por ter estendido a mão quando eu mais sofria em outro ambiente de trabalho. À Lilian, Jéssica Rosa, Paula, Murici, amigas de perto, por nos fortalecermos juntas e pela construção da mulher que cada uma quer ser. À Suzana Marcolino, pela amizade e por provocar em mim o interesse pela Psicologia Histórico-Cultural. À Carol Takeda, Priscila, Simone Cecília, Carol Ladeira, Mafê, Renato, Durvalino e Adriana, pela amizade sincera, um santo remédio. Aos meus irmãos Ana, Júlio e Luiz por compartilharem tantas coisas boas da vida. Especialmente, ao mano Paulo Cesar, por me incentivar no ingresso no mestrado e por compartilhar comigo as correntes crítica da educação e da história. À Sheila, Juliane e Ivonete. Também à Zenaide, pelas trocas carinhosas sobre nosso trabalho de ser professora. E ao Janio, por ler o texto e incentivar minha escrita. À minha mãe, dona Safira, por nos ensinar que o trabalho era um meio de sustento e de sobrevivência em uma sociedade desigual. Para nos dar condições dignas de vida realizou muitas atividades, cortando cana, varrendo rua, fazendo pão para vendermos, cozinhando e limpando o chão de muitos patrões, mas jamais deixou que abandonássemos a escola, pois o estudo, segundo ela, era algo bom e um meio de superar as duras condições impostas a nós, que ainda tão pequenos tivemos que trabalhar para ter moradia e alimentação. Ao Daniel, que chegou recentemente me dando carinho e fazendo comidas saborosas enquanto eu escrevia esta dissertação. À Mariana Nastri, Miriam Malacize, Sonia Fiorentini, Charles e Rachel, que me ajudaram em uma fase importante e de planejamento para ingresso no mestrado. Ao Danilo Tebaldi, a quem sou imensamente grata pelo trabalho que tem feito comigo. Aos amigos do Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicologia Histórico-Cultural e Saúde Coletiva: Andressa, Caio, Carol, Camila, Juliana Pizano, Jéssica Rosa, Renata Moraes, Melissa, Vitor, Juliana Cunha, Patrícia, Renata Lacerda e Nicelle pelas ricas contribuições de estudo para o meu projeto de pesquisa. Neste grupo sempre estive confortável para perguntar, debater e aprender junto. À professora Dionísia, pelo empréstimo de livros, pela amizade e pelo apoio psíquico aos trabalhadores que sofrem assédio moral no trabalho. Às professoras Juliana Pasqualini e Marilene Proença, que, por meio dos apontamentos na banca de qualificação, me fizeram avançar na pesquisa. Agradeço, sobretudo, pelo comprometimento, pois diante do contexto neoliberal de enxugamento dos recursos públicos na educação, inclusive para deslocamento, se fizeram presentes na qualificação e na defesa, possibilitando reflexões para o aprimoramento deste estudo. À Juliana Caldas pela revisão do texto. Aos trabalhadores da UNESP, em suas diferentes atividades e locais de trabalho: da biblioteca; da pós-graduação; da central de aulas; os docentes, que me possibilitaram os meios para que realizasse este mestrado e esta pesquisa. Aos trabalhadores das Unidades Básicas de Saúde e das escolas públicas que se dispuseram a participar da pesquisa, fornecendo dados e os relatos das entrevistas. Em alguns locais fui muito bem recebida e percebi que fizeram esforços para que meu trabalho pudesse ser realizado. Sou muito grata! À orientadora Sueli Terezinha pelo modo como nos orienta em nossas pesquisas, pelo respeito com nossos processos, sendo paciente e dedicada a cada dificuldade que encontramos no percurso da pesquisa. Sou grata pelo que aprendi e pela sua escolha comprometida e afetiva de ensinar. “19 de Novembro de 1957 Querido Senhor Germain: Deixei que passasse um pouco o movimento que me envolveu todos esses dias antes de vir- lhe falar de coração aberto. Acaba de me ser feita uma grande honra que não busquei, nem solicitei. Mas, quando eu soube da novidade, meu primeiro pensamento, depois de minha mãe, foi para você. Sem você, sem essa mão afetuosa que você estendeu ao menino pobre que eu era, sem seu ensino, sem seu exemplo, nada disso teria acontecido. Eu não faço questão dessa espécie de honra. Mas essa é ao menos uma ocasião para dizer-lhe o que você foi e é sempre para mim, e para assegurar-lhe que os seus esforços, o seu trabalho e o coração generoso que você coloca em tudo que faz, sempre de maneira viva com relação a um de seus pequenos discípulos que, não obstante a idade, não cessou jamais de ser seu aluno. Um abraço com todas as minhas forças. Albert Camus” 1 1 Carta de Albert Camus ao seu professor de escola primária após ser nomeado vencedor do prémio nobel de literatura em 1957. Resumo SANTOS, R.C. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e medicalização na infância: uma análise crítica das significações de trabalhadores da educação e da atenção básica em saúde. 2017. 150 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2017. Em nosso estudo discutimos a Medicalização na infância, compreendida como um processo que tem transformado questões que são de origem histórico-sociais em questões meramente biológicas. Devido a relação com a indústria farmacêutica e o campo biomédico propaga-se diferentes transtornos, ocultando expressões de sofrimentos e dificuldades do andar a vida geradas pelas condições de vida na sociedade capitalista. O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) encontra-se entre eles, que, de acordo com a literatura biomédica trata-se de transtorno mais comum na infância, atribuindo causa genética em que localizam no cérebro a origem de comportamentos hiperativos e de desatenção. Apesar de essa concepção biomédica ser hegemônica, há estudos apresentando um quadro de evolução dos encaminhamentos das escolas de crianças para as unidades de saúde. Esses estudos criticam o crescimento do diagnóstico desse transtorno na infância e apontam que tal fenômeno tem estreita relação com a concepção biomédica e a indústria farmacêutica, cuja relação se constitui na propagação de medicamentos e a construção do diagnóstico, resultando na medicalização da infância. Em nosso estudo compreendemos o fenômeno TDAH como um processo saúde-doença, questionando, portanto, a concepção que subjaz o determinismo biológico do transtorno. A relação biológico-social é definida como unidade indissociável no desenvolvimento, conforme os postulados da Psicologia Histórico-Cultural adotados em nossa pesquisa. Portanto, a atenção e o comportamento humano são desenvolvidos pela unidade biológico- social, ou seja, a visão biologicista é desmontada. Nosso objetivo foi analisar, a partir das falas dos trabalhadores da educação e da atenção básica em saúde, as significações sobre o diagnóstico e o tratamento em crianças com suposto TDAH. E deste modo compreender como estes profissionais explicam as determinações desse transtorno e suas expressões na escola e na saúde que tem levado à medicalização da infância. Realizamos a pesquisa em duas unidades básicas de saúde (UBS) e três escolas públicas, envolvendo desde a educação infantil, ao ensino fundamental I e II. Na primeira etapa da pesquisa foi aplicado questionário, realizada observação participante e registro dos dados e informações dos locais de pesquisa, bem como conversas com os participantes em diário de campo. Na segunda etapa, realizamos entrevistas semiestruturadas com três trabalhadores da área da educação e quatro da área da saúde para a construção dos núcleos de significação, que se constituem nesse trabalho como proposta metodológica de análise. Os núcleos de significação dos trabalhadores da educação foram delimitados em: a) Bagunceiras e desatentas que não aprendem, supostamente crianças portadoras do TDAH; b) Ensino: entre o gostar e a angústia no trabalho; c) A natureza do trabalho pedagógico atravessada pelo campo biomédico;d) Quando a dificuldade da aprendizagem não é normal. E dos trabalhadores da área da saúde emergiram os seguintes núcleos: a) TDAH caracterizando o comportamento da criança como desvios de aprendizagem; b) Do pré-diagnóstico ao diagnóstico; c) De hiperativas e olhar “sem foco” ao tratamento medicamentoso; d) A criança que não se comporta, que não se educa. A análise das significações indica que o discurso biomédico adentrou o espaço escolar para explicar as causas da dificuldade escolar e que 1) apesar dos profissionais da educação afirmarem o interesse pela atividade de ensinar, há um indicativo de que as condições e intensificação do trabalho têm facilitado para que esse discurso seja instituído; 2) A explicação biológica foi verificada como preponderante quando analisamos as expressões do TDAH na escola e na saúde em que se atribui aos comportamentos agitado, hiperativo e desatento como uma falha no cérebro, desconsiderando as relações de mediação do ato educativo. Isto é, crianças que deveriam ser educadas estão sendo medicalizadas. 3) Apesar desse discurso ser preponderante foi aferido socialmente que na educação esse entendimento do TDAH é vago e permeado de dúvidas e na saúde não há consenso quanto ao diagnóstico; há uma exclusividade do diagnóstico médico, desconsiderando outros saberes e práticas no tratamento como os da psicologia e da fonoaudiologia. Concluímos, a partir dessa pesquisa, que há uma tarefa a ser realizada em torno do ato de ensinar e que requer compreender e superar as explicações biológicas sobre o desenvolvimento e aprendizagem, concebendo, assim, que atenção e comportamento regulado se desenvolvem por mediações sociais e não como um fenômeno biologicamente determinado. Palavras-chaves: Saúde Coletiva, Educação, Infância, Medicalização, TDAH, Psicologia Histórico-Cultural. Abstract SANTOS, R.C. Attencion Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) and medicalization in childhood: a critical analysis of meanings from education and primary health care workers 2017. 150 f. Thesis (Master) – Faculty of Medicine of Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2017. In our study, we discuss the Medicalization of childhood, understood as a process that has been transforming questions that are historical-social in origin into merely biological questions. Due to the connection with the pharmaceutical industry and the biomedical field, different disorders are disseminated, concealing expressions of suffering and difficulties of going through life created by life conditions in capitalist society. The Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) is among them, and is, according to the biomedical literature, more common throughout childhood, attributing a genetic cause in which the brain is reputed to be the origin of hiperactivity and inattention behavior. Even though this biomedical conception is hegemonic, there are studies showing the evolution of referrals from children schools to health units. These studies criticize the raise of diagnosis of this disorder during childhood, and point out that this phenomenon has a close link with the biomedical conception and the pharmaceutical industry, a relationship based on medication propagation and construction of diagnosis, resulting in the medicalization of childhood. In our study, we consider the ADHD phenomenon a health-illness process, questioning, thus, the subjacent conception of the disorder's biological determinism. According to the cultural- historical psychology postulates adopted in our research, the biological-social relationship is defined as an inseparable unity in the development process, therefore, the attention and the human behavior are developed by the biological-social unity, in other words, the biologistic framework is dismounted. Our objective was to analyze the meanings about diagnosis and treatment in children allegedly bearer of ADHD, starting with the speeches of education workers and primary health care workers. And this way we aim to understand how these workers explain the determinations of this disorder and its expressions in the education and health fields that have been leading to the medicalization of the childhood. We conducted the research in two basic health units (BHU) and three public schools, from elementary school to secondary education. On the first phase of the research, a questionnaire was applied, participant observation was conducted, and collection of data, informations about the local of research and conversations with the participants, registered in a field journal, was performed. On the second phase, we conducted semi-structured interviews with three workers from the education sector and four workers from the health sector for the construction of the nuclei of meanings, which constitutes the methodological proposition of analysis of this research. The nuclei of meanings from education workers were delimited as: a) Rowdy and inattentive children that don't learn, children allegedly bearer of ADHD; b) Education: between work's liking and distress; c) The nature of pedagogical work traversed by the biomedical field; d) When the learning disability is not normal. And from the workers from the health sector emerged the following nuclei: a) ADHD characterizing children's behavior as learning deviations; b) From pre-diagnosis to diagnosis; c) From hyperactive and “unfocused” gaze to pharmacological treatment; d) The misbehaved child, that doesn't learn. The analysis of meanings indicates that the biomedical discourse penetrated the school space in order to explain the causes of learning difficulties and that 1) even though the education workers affirm their interest in the educational activity, there is an indicative that the conditions and intensification of work have been facilitating the institution of this discourse; 2) when the ADHD expressions in the education and health sectors were analyzed, the biological explanation was verified as preponderant, which attributes agitated, hyperactive and inattentive behavior to a brain flaw, disregarding the mediation relations of the act of educating. In other words, children that should be being educated are being medicalized. 3) Even though this discourse is preponderant, it was socially verified that in the education field this understanding of ADHD is vague and riddled with doubts, and in the health field there is no consensus about the diagnosis; they reveal that there is exclusivity of medical diagnosis, disregarding other fields and practices of knowledge on the treatment, like those of psychology and phonoaudiology. With this research, we conclude that there is a task to be performed regarding the act of educating and that it requires the understanding and overcoming of biological explanations of the development and learning processes, conceiving, thus, that attention and regulated behavior evolve through social mediation and not as a biologically determined phenomenon. Keywords: Collective Health, Education, Childhood, Medicalization, ADHD, Cultural- historical Psychology. Listas de abreviaturas e siglas ABP Associação Brasileira de Psiquiatria ABRASME Associação Brasileira de Saúde Mental ACS Agente Comunitário de Saúde ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária APA Associação Americana de Psiquiatria AVC Acidente Vascular Cerebral BRATS Boletim Brasileiro de Avaliação em Tecnologia em Saúde CCI Centro de Convivência Infantil CEP Comitê de Ética em Pesquisa CID Classificação Internacional de Doenças CNS Conselho Nacional de Saúde CPFL Companhia Paulista de Força e Luz CVS Centro de Vigilância Sanitária DSM Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DPEE Diretoria de Educação Especial ECA Estatuto da Criança e do Adolescente EMEFEI Escola Municipal de Ensino Fundamental e Educação Infantil ENSP Escola Nacional de Saúde Pública ESF Estratégia Saúde da Família EUA Estados Unidos da América FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz FMB Faculdade de Medicina de Botucatu HTPC Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística MEC Ministério da Educação NASF Núcleo de Apoio à Saúde da Família NIMH National Institute of Mental Health OMS Organização Mundial da Saúde ONU Organização das Nações Unidas PSE Programa Saúde na Escola QI Quociente de Inteligência RAPS Rede de Atenção Psicossocial SECADI Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão SUS Sistema Único de Saúde TA Transtorno de Aprendizagem TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TDAH Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade TO Terapia Ocupacional TOC Transtorno Obsessivo Compulsivo TSH Hormônio Estimulante da Tireoide UBS Unidade Básica de Saúde UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNICAMP Universidade Estadual de Campinas UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância Lista de quadros Quadro 1 – Caracterização das unidades escolares e de saúde quanto a quantidade e tipo de atendimento.....................................................................78 Quadro 2 – Dados de caracterização dos trabalhadores.........................................................81 Quadro 3 - Caracterização dos participantes das entrevistas..................................................90 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 15 1. DA MEDICALIZAÇÃO DA VIDA À MEDICALIZAÇÃO NA INFÂNCIA ................... 18 2. TDAH: UM FENÔMENO BIOLÓGICO OU HISTÓRICO – SOCIAL? ........................... 39 3. O DESENVOLVIMENTO DA ATENÇÃO E DA REGULAÇÃO DA CONDUTA, SUPERANDO O DETERMINISMO BIOLÓGICO ................................................................ 48 4. OBJETIVOS ......................................................................................................................... 64 5. MÉTODO ............................................................................................................................. 65 5.1 Local da pesquisa ...................................................................................................... 67 5.2 Participantes .............................................................................................................. 67 5.3 Procedimentos do trabalho em campo ...................................................................... 69 5.4 Análise dos resultados ............................................................................................... 71 5.5 Aspectos éticos .......................................................................................................... 76 6. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ............................................................... 78 6.1 Contextualização dos locais de pesquisa................................................................... 78 6.2 Sistematização dos dados da primeira etapa da pesquisa......................................... 80 6.2.1 Trabalhadores das escolas............................................................................. 81 6.2.2 Trabalhadores das Unidades de Saúde ......................................................... 86 6. 3 Análise das entrevistas ............................................................................................ 89 6.3.1 Caracterização dos participantes.................................................................. 90 6.3.2 Núcleos de significação – Trabalhadores da área da educação .................... 93 I Bagunceiras e desatentas que não aprendem, supostamente crianças portadoras do TDAH ............................................................................................................... 93 II Ensino: entre o gostar e a angústia no trabalho ................................................. 97 III A natureza do trabalho pedagógico atravessada pelo campo biomédico ...... 102 IV Quando a dificuldade da aprendizagem não é normal .................................... 105 6.3.3 Núcleos de significação dos trabalhadores da saúde .................................. 110 I TDAH caracterizando o comportamento da criança como desvios de aprendizagem ....................................................................................................... 111 II Do pré-diagnóstico ao diagnóstico .................................................................. 115 III De hiperativas e olhar “sem foco” ao tratamento medicamentoso ................. 121 IV A criança que não se comporta, que não se educa ........................................ 123 6.4 Diferenças e semelhanças das significações sobre TDAH entre os trabalhadores da saúde e educação ........................................................................................................... 128 7. CONCLUSÃO: PELA DEFESA DO ATO DE ENSINAR ............................................... 133 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 135 APÊNDICES .......................................................................................................................... 142 15 APRESENTAÇÃO Durante o trabalho de professora de educação infantil comecei a presenciar situações nas quais colegas da profissão ao relatar comportamentos das crianças caracterizando as mesmas como sendo agitadas e desatentas, afirmando “essa criança não é normal” e em algumas crianças supondo, inclusive, ocorrer o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Tal classificação era realizada e justificada por esses profissionais sem nenhum embasamento teórico e científico. Notei que tal procedimento inadequado produzia consequências danosas à criança, já que a mesma passava a ser vista no espaço com dificuldades de aprendizagem que pouco haveria de ser feito, em função desses comportamentos e pela suposição de possíveis doenças, uma certa anormalidade da criança. Ao participar de encontros com outros profissionais da área educacional ouvi relatos de educadores atuando em diferentes níveis de que havia para seus colegas de trabalho uma crença de que o uso de medicamentos contribuía no processo de aprendizagem, sendo encarado como algo positivo. Nesses encontros esses mesmos professores revelavam incomodar-se com essa tendência de rotular as crianças inquietas e com dificuldade de aprender em “doentes”. Esses relatos começaram a se tornar mais comuns entre meus colegas de trabalho sobre a agitação e outros comportamentos como sendo não normal, uma patologia, portanto pouco a ser compreendido a partir de reflexões pedagógicas. É a partir dessas questões e contexto do trabalho que senti necessidade de estudar sobre isso, pois me incomodava a necessidade de rotular a criança pequena mais agitada em não normal, bem como a ideia de “averiguação médica” ou suposições de transtornos. Portanto meu projeto de pesquisa e o meu ingresso no mestrado em saúde coletiva surgiram desse contexto no qual o discurso médico vinha adentrando o espaço escolar como inquestionável, silenciando o acúmulo teórico-prático de compreensão da criança e seu processo de aprendizagem a partir das mediações. Nesse quadro de medicalização, consequentemente do crescimento do diagnóstico e uso de metilfenidato, comercialmente chamado de Ritalina® ou Concerta®, para tratamento do TDAH na população infantil, evidenciava um quadro de necessidade de estudo para mim. Queria entender como se produzia os encaminhamentos para averiguação médica da existência do transtorno na criança. 16 No início surgiram algumas questões, quando ainda não havia um projeto formulado, tais como: Como não querer comportamentos infantis hiperativos se a sociedade em que está inserida se configura por aceleramento do tempo e ritmo de trabalho, impondo cada vez mais exigências de produtividade? Por que é tão intolerável a criança inquieta e ou desatenta na escola? Por que as dificuldades relacionadas ao comportamento de indisciplina e falta de atenção nas atividades, classificados em comportamentos agitados e desatentos, passaram a ser patologias e passíveis de tratamento medicamentoso? Não havia possibilidade dessas questões serem refletidas com os demais colegas de trabalho, porque nos períodos destinados a refletir e realizar o planejamento da educação infantil havia outros assuntos que exigiam encaminhamentos prioritários. Os limites de discussão sobre esse assunto entre os demais professores estavam dados pela concepção de ensino punitiva e classificatória das crianças. No ano de 2013 quando fiz a disciplina de Saúde Pública e Saúde Mental, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, no intuito de entender o contexto de crescimento dos transtornos e medicalização da vida, realizei leituras para organizar projeto de pesquisa. Nesse ano tinha uma aluna de cinco anos que era classificada como “desatenta”, “agitada”, “não normal”. Essa criança, aos olhos de alguns profissionais estava limitada a fracassar na vida escolar. Essa imposição às possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento dessa criança foi combustão para que eu me dedicasse ao ingresso no mestrado, e especialmente oferecer a ela o melhor de mim como professora. Nesse sentido quero destacar que a necessidade de pesquisar surgiu da relação com o trabalho de ensinar de tal modo que o ingresso no mestrado se tornou uma rica possibilidade de estudo e inestimável aprendizado para compreender o fenômeno do TDAH e o processo de medicalização da educação junto com meus colegas do Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicologia Histórico-Cultural e Saúde Coletiva. Nesse estudo busquei conhecer como os trabalhadores da educação encaminham crianças com suposto TDAH e como os trabalhadores da saúde realizam o diagnóstico do transtorno. O objetivo da pesquisa foi analisar, a partir de trabalhadores da educação e da atenção básica em saúde, as significações sobre o diagnóstico e o tratamento em crianças supostamente com TDAH, tendo em vista compreender como estes profissionais explicam as determinações desse transtorno e suas expressões na escola e na saúde que podem levar à medicalização da infância. Para tanto organizamos a coleta de dados em duas etapas de 17 pesquisa e interpretação teórica dos dados, tendo como método de análise a Psicologia Histórico-Cultural, fundamentada no materialismo histórico e dialético. De modo a elucidar como se dá esse processo de medicalização da infância organizamos a discussão do primeiro capítulo da dissertação com vista a apresentar as concepções biomédicas que fundamentam o TDAH e as concepções críticas que discutem as relações históricas do processo de patologização da vida e que, em consonância com os interesses econômicos da indústria farmacêutica, vem sendo aprofundado. Portanto requer ser analisado a partir das relações de produção na sociedade capitalista. Considerando que para a infância o fenômeno TDAH é a expressão mais importante desse processo, nos propomos a debater a partir da questão: Um fenômeno biológico ou histórico – social? Em nosso estudo identificamos que as explicações sobre esse transtorno se dividem em dois campos de concepções. Um campo reúne fundamentos sobre o transtorno como determinação biológica, isto é, explicado como falha no cérebro que tem origem genética. A criança nasceu com essa predisposição a desenvolver tal patologia. O outro reúne estudos críticos que questionam o viés meramente biológico e apresentam um conjunto de elementos que afirmam ser um transtorno controverso que tem levado a uma crescente medicalização das crianças. Convergimos com análises elaboradas para além dos sintomas a ele relacionados. Sendo esses sintomas atribuídos a uma patologia da aprendizagem e por afirmar o diagnóstico em crianças trazem implicações para ocultação as questões complexas da educação escolar. Assim, a partir da compreensão do transtorno como um fenômeno histórico- social, nos propomos a explicar como a atenção e o comportamento regulado da criança é desenvolvido por meio de mediações sociais. E desse modo, nos opomos a abordagens biologicistas do campo biomédico que propaga a crença de que a falta de atenção e o comportamento não regulado na criança decorre de uma falha ou déficit cerebral. E consequentemente, essa visão implica em desinvestimento pedagógico na criança já que a criança só obterá atenção e controle do corpo por meio farmacológico. Diante os objetivos elencados para pesquisa organizamos a sua realização em duas etapas em que os dados coletados e os relatos dos trabalhadores da educação e da saúde, através das entrevistas realizadas nas escolas e unidades de saúde, permitiram compreender as significações que esses trabalhadores atribuem ao conhecimento e diagnóstico do transtorno, bem como o tratamento. 18 1. DA MEDICALIZAÇÃO DA VIDA À MEDICALIZAÇÃO NA INFÂNCIA A medicalização da vida é definida como um conjunto de práticas, atos, serviços que são apresentados como soluções aos sofrimentos e às diversas dificuldades relacionados ao viver. Apesar dessas intempéries e dores serem causadas pelas relações sociais e pelas condições concretas de vida, são transformadas em explicações e classificadas em patologias, sendo passíveis de tratamento por diversos profissionais da saúde e recebendo prescrições medicamentosas pelo campo médico. Diversas situações em que os sujeitos vêm expressando dificuldades de inserção nos ambientes de trabalho e escola, em diferentes etapas e ciclos da vida, outrora compreendidas como processos do viver estão cada vez mais sendo explicadas a partir de conceitos do campo biomédico. A compreensão desse campo se restringe às propriedades do corpo biológico, ou seja, busca-se classificações nominalmente propagadas como transtornos. Portanto a ênfase é dada à explicação biológica e não à abordagem das condições concretas de vida que propiciam o surgimento e desenvolvimento dessas dificuldades. Apesar dessas situações não requerer necessariamente a prescrição medicamentosa, porém são prescrições que impactam em explicações no modo como as pessoas passam a compreender e conduzir a vida. Afirma-se, portanto, um conjunto normativo e de padrões na vida em sociedade. Para efeitos de maior clareza do fenômeno da medicalização, Eidt, Tuleski e Franco (2014) propõem a distinção entre medicação e medicalização, fazendo uma ressalva de que não há uma negação aos medicamentos, pois eles são avanços científicos nos tratamentos para sofrimento e dor. Desse modo, medicar na saúde é uma prática clínica e cada medicação responde a um tipo de tratamento de doenças. Já a medicalização aparece como um conceito a partir de estudos críticos à ciência médica pelas explicações biologizantes e pela condução normativa da vida associada à prescrição medicamentosa e o uso de outros procedimentos do campo médico. Com isso ressaltamos que a medicalização não é sinônimo de medicar, pois esta é uma prática médica histórica. Em nosso estudo discutimos a medicalização como um conceito que se refere a um processo que vem se impondo no modo de explicar e conduzir a vida, 19 sendo que esse processo pode ou não se utilizar da prescrição medicamentosa. É certo que para compreender o processo de medicalização destacamos o importante papel da indústria farmacêutica na produção de medicamentos e propagação de transtornos ao explicar as dificuldades da vida como um limite do corpo biológico. De modo geral, assinalamos que a medicalização da vida é compreendida como um processo que tem transformado diferentes aspectos do viver de origem histórico-social em determinação meramente biológica (MOYSES, 2008; GAUDENZI; ORTEGA, 2012; ALMEIDA; GOMES, 2014). Moysés (2008, s/p) define que a “medicalização é fruto do processo de transformação de questões sociais, humanas, em biológicas. Aplicam-se à vida as concepções que embasam o determinismo biológico, tudo sendo reduzido ao mundo da natureza”. O processo de medicalização da vida é interpretado à luz das formulações do Movimento da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica pela sua função de adequação social. Em vez da análise do processo saúde-doença, tornando compreensiva a historicidade do sujeito e apreendendo os aspectos desse processo de modo mais amplo, que proponha ações diversas no âmbito de relações do sujeito, a medicalização acaba por buscar sua adaptação ao ambiente social, em vista dos padrões sociais a serem alcançados, ditados pelo sistema capitalista (COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2001). Para melhor compreensão de como é constituído o atual processo de medicalização, apresentamos a seguir as relações desse processo pela concepção biomédica. E, posteriormente, as concepções críticas que explicam como esse processo está articulado com a indústria farmacêutica e com o aumento dos perfis patológicos descritos a cada revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), resultando numa espécie de captura da subjetividade humana pelo modo capitalista de produção. 1.1 Processo de medicalização e a concepção biomédica A medicalização está diretamente associada à concepção biomédica, cuja compreensão do sujeito-paciente se restringe ao corpo biológico, não estabelecendo conexões com a cultura em que o sujeito está inserido. Consequentemente, essa concepção e suas 20 práticas acarretam maior demanda de assistência no Sistema Único de Saúde (SUS), implicando mais custos em serviços, tratamentos e medicamentos (TESSER, 2006a). À luz das interpretações sobre a medicalização de Ivan Illich (1926-2002) e das formulações de Michel Foucault (1926-1984), Gaudenzi e Ortega (2012) discorrem sobre os impactos do discurso médico na vida das pessoas que criam uma dependência da medicalização e da medicina no que se refere a tratamentos e explicações sobre os atos e modos de conduzir a vida. Desse modo, a sociedade passa a ser organizada a partir dos ditames da medicina moderna como forma de controle social. Assim, a medicalização do social está associada à gestão da saúde da população como mecanismo de controle e exercício de poder sobre a vida social. Para Tesser (2006a, p.62), a medicalização se institui como “um processo de expansão progressiva do campo de intervenção da biomedicina por meio da redefinição de experiências e comportamentos humanos como se fossem problemas médicos”. O processo atual de apropriação das dimensões da vida pelo modelo biomédico teve início a partir da consolidação da ciência médica no final do século XIX, tendo como objetivo adentrar “o corpo até níveis cada vez mais profundos para a consecução da moderna cruzada humana contra a doença, chegando até, como nos dias atuais, ao nível genético e molecular” (ALMEIDA; GOMES, 2014, p. 159). Quanto ao papel que cumpre a biomedicina no processo de medicalização, Tesser (2006b) assinala duas importantes áreas que impactam e alimentam o processo de medicalização da vida: o preventivo e o terapêutico. O papel preventivo é criticado na medida em que se torna ditame prescritivo e que não se integra ao universo experimentado pelo sujeito. São “técnicas, valores e ideologias que reforçam a dependência institucional, o consumo farmacêutico e de procedimentos especializados” e que se desdobra em “desvalorização da autonomia e de outros saberes ou valores próprios do doente ou de outras referências filosóficas ou culturas diversas” (TESSER, 2006b, p.352). Em seu aspecto terapêutico, ou seja, o que se refere ao diagnóstico e às diferentes intervenções terapêuticas, a interpretação biomédica ganha força na medida em que o sujeito-paciente se apropria dessa explicação médica, impactando e afetando fortemente sua própria autonomia nos cuidados com sua saúde. No entanto, as possibilidades de alterar essa conduta prescritiva e imperiosa, requer investir na mudança do modelo na atenção básica em saúde, abrindo para outras 21 práticas terapêuticas, evitando a medicalização e promovendo a autonomia do sujeito (TESSER, 2006b). É certo que as duas áreas, acima citadas, são importantes e se articulam na constituição do fenômeno da medicalização como hegemônico na saúde e associado ao poder econômico e político. Atrelada aos interesses das indústrias farmacêuticas na propagação de transtornos e medicamentos, a medicalização cumpre a função de redefinir o modo de se viver impactando no desenvolvimento dos sujeitos na medida em que busca adaptá-los a padrões sociais exigidos para a finalidade produtiva capitalista que requer corpos atentivos e silenciados. O campo biomédico, para Tesser (2006b), exerce suporte científico e clínico para o processo de medicalização, no entanto, Almeida e Gomes (2014) afirmam que é justamente por ter avanços científicos referentes a tratamentos e cura que a legitimidade desse campo é facilmente instituída como prescrições para o modo de conduzir a vida. A crítica à concepção biomédica, cuja interpretação dos fenômenos sociais do viver é explicada como determinação natural, e sua associação aos interesses econômicos das indústrias farmacêuticas não são um tema novo no Brasil. Segundo Luchmann e Rodrigues (2007), o Movimento da Luta Antimanicomial e as propostas elaboradas no final da década de 1970 pela Reforma Psiquiátrica apresentavam críticas quanto a essa associação de fomento à medicalização da sociedade. A concepção biomédica tem papel importante no processo de medicalização da vida, mas esse papel é realizado de modo articulado com outros agentes como a indústria farmacêutica e o DSM. Seus papéis são discutidos pelas concepções críticas, bem como na relação do movimento das contradições do modo capitalista de produção. 1.2 Processo de medicalização e as concepções críticas Na consolidação dessa ordem de padronização e redefinição de comportamentos por meio de enquadramento a perfis patológicos, cabe à indústria farmacêutica cumprir um papel econômico junto a instituições, patrocinando pesquisas e campanhas para a ampliação dos diagnósticos e para a produção de medicamentos. Assim, a hegemonia político- epistemológica da biomedicina, associada à indústria farmacêutica, expande-se na propagação 22 de fármacos e difusão de transtornos atendendo a seus interesses lucrativos (ITABORAHY; ORTEGA, 2013). Nos embates travados pela Reforma Psiquiátrica e pelo movimento da Luta Antimanicomial, a medicalização recebe críticas por ser uma imposição da indústria farmacêutica pelo seu apelo propagandista e por ter forte influência tanto na esfera política como na esfera institucional e nos profissionais de saúde (COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2001). Sem dúvida, a indústria farmacêutica, como um ramo do capital, tem lucros exorbitantes na produção de medicamentos, como alertam Itaborahy e Ortega (2013); na propagação de patologias, conforme Gaudenzi e Ortega (2012), e na divulgação de transtornos, na indissociabilidade atribuída à propagação do Metilfenidato e no diagnóstico e tratamento do TDAH, de acordo com Ortega et al (2010). Quanto a esse processo de medicalização e propagação dos medicamentos, a que se referem Itaborahy e Ortega (2013), veiculado pela indústria farmacêutica e associado aos ditames do campo médico no aumento dos diagnósticos, recorremos à passagem de Marx (1859/1978, p. 111) sobre a relação entre a produção e o consumo no modo de produção capitalista: “a produção produz o consumo ao criar o modo determinado do consumo, e o estímulo para o consumo, a própria capacidade de consumo sob a forma de necessidade”. Ao criar a necessidade de consumo do medicamento no sujeito, esse passa a internalizar que é portador de uma patologia, de um transtorno. Nesse sentido, Brzozowski e Caponi (2010) esclarecem que ao internalizar que é doente, o sujeito tem sua subjetividade afetada, porque começa a se ver como portador de um transtorno socialmente legitimado, tendo suas potencialidades limitadas pelo modo como começa a se perceber no mundo. Ou seja, como apontado por Marx (1859/1978, p. 110) sobre a relação entre produção e consumo: “A produção não produz, pois, unicamente o objeto do consumo, mas também o modo de consumo, ou seja, não objetiva, como subjetivamente. Logo, a produção cria o consumidor.”. Desse modo, destacamos a passagem de Marx (1859/1978) para a compreensão da relação entre produção, consumo e a atual propagação dos transtornos, em que se forja, portanto, a necessidade de consumo de fármacos e a criação de medidas medicalizantes. 23 Almeida e Gomes (2014) sugerem que examinemos a determinação da medicalização a partir das relações capitalistas de produção e trabalho para além do papel da indústria farmacêutica, que é bastante importante, porém, não é o principal. Nesse sentido, os autores propõem um caminho de análise da medicalização à luz da interpretação da determinação histórico-social do processo saúde-doença articulado a outros processos sociais. Apesar das contestações dos que se colocam contra a “medicalização” da sociedade e seus efeitos iatrogênicos, os aumentos das doenças antes mencionadas não se explicam a partir da prática médica. Deve-se buscar a explicação não na biologia ou na técnica médica, mas nas características das formações sociais em cada um dos momentos históricos. [...] o caráter social da doença e que permite também um aprofundamento nos determinantes sociais do perfil patológico é a análise das condições coletivas de saúde em diferentes sociedades, no mesmo momento histórico. (LAURELL, 1982, p. 5) O processo de medicalização ou de patologização 2 oculta a determinação do processo saúde-doença como expressão individual e coletiva (COLLARES; MOYSÉS, 1994). As indagações que permitem revelar o fenômeno de medicalização se dirigem ao movimento das contradições do modo de produção capitalista, que exige corpos produtivos, competitivos e atentivos em ritmos cada vez mais acelerados, para a finalidade produtiva. Os elementos históricos do processo de medicalização tiveram sua gênese nas transformações realizadas a partir do século XIX. Ações de higienização, moralização e normatização sobre o corpo foram realizadas com a finalidade de padronizar e garantir as relações de trabalho no meio urbano de cidades da Europa. Essas transformações interferiram na definição de saúde e nas bases do processo que atualmente conhecemos como medicalização. Tais mudanças históricas criaram as condições para o processo de medicalização (ALMEIDA; GOMES, 2014). A intervenção estatal no campo da saúde-doença passa a transferir-se progressivamente do plano coletivo para o individual. Dois aspectos serão 2 Segundo Collares e Moysés (1994, p.26), “mais recentemente, com a criação/ampliação de campos do conhecimento, novas áreas, com seus respectivos profissionais, estão envolvidas nesse processo. São psicólogos, fonoaudiólogos, enfermeiros, psicopedagogos que se vêm aliar aos médicos em sua prática biologizante. Daí a substituição do termo medicalização por um outro mais abrangente - patologização -,uma vez que o fenômeno tem-se ampliado, fugindo dos limites da prática médica.”. 24 determinantes para essa reorientação. Em primeiro lugar, à medida que as transformações no meio urbano e nas condições de vida anteriormente descritas propiciam uma importante redução das taxas de morbimortalidade, garantindo a disponibilidade de força de trabalho em quantidade suficiente, diminui a necessidade material dessas práticas coletivas. Paralelamente a isso, o desenvolvimento das forças produtivas com a revolução industrial possibilitará um avanço científico-tecnológico da medicina em graus jamais vistos, ampliando progressivamente sua capacidade de intervenção no corpo orgânico. (ALMEIDA; GOMES, 2014, p. 159) Se por um lado a concepção biomédica no desenvolvimento do modo de produção capitalista possibilitou avanços nos tratamentos de cura no campo da saúde, por outro, a partir do determinismo biológico, ao explicar todas as questões do viver, vem acumulando rearranjos normativos e executando prescrições de saúde, garantindo a estratégia capitalista de produção que requer corpos atentivos, produtivos e controlados. Desse modo, ao não evidenciar as contradições do sistema e a determinação do processo saúde-doença, o maior número de categorias diagnósticas vem sendo criado pelos manuais, expresso em cada revisão do DSM, respondendo à estratégia capitalista de colocar o sujeito em ritmo de produtividade nos ambientes de trabalho desde a escola. É sabido que a compreensão do indivíduo, fundamentada em uma concepção meramente biológica, que desloca o sujeito de sua historicidade, é hegemônica e resulta em diversos encaminhamentos para unidades de saúde configurando o processo de medicalização. Porém, outra perspectiva de compreensão do indivíduo, a partir da interpretação das condições histórico-sociais de vida, a exemplo de outros referenciais formulados nos princípios da Reforma Psiquiátrica e do Movimento da Luta Antimanicomial, fornece elementos de compreensão do indivíduo em sua historicidade, tendo como pressuposto a diversidade humana e a singularidade do sujeito. Os elementos de interpretação da relação entre o atual processo de medicalização da vida e a concepção de saúde hegemônica são apresentados pelo Movimento da Luta Antimanicomial e pela Reforma Psiquiátrica com críticas em torno de como a saúde mental vem sendo realizada no tratamento dos sujeitos. Outro paradigma de compreensão do sujeito em seu sofrimento e adoecimento psíquico é proposto contrapondo-se às ideias que 25 fundamentam a medicalização e o isolamento como únicas ações terapêuticas (COSTA- ROSA; LUZIO; YASUI, 2001). Em vez de questionamentos que conduzem a reflexão sobre as relações sociais, as condições concretas de vida, em torno das dificuldades e da inadaptação dos sujeitos que se expressam em angústia, dores físicas, sofrimentos psíquicos, classificando-os em perfis patológicos, as dificuldades de adaptação às normas e à inserção nos ambientes sociais e de trabalho, nas diferentes faixas etárias, desde a escola, são enquadradas como categorias diagnósticas. Almeida e Gomes (2014) destacam que o papel da indústria farmacêutica e os atos e serviços do campo biomédico cumprem funções importantes no processo de medicalização. Porém, eleger a indústria farmacêutica e a biomedicina como principais agentes, como comumente alguns estudos vêm apontando, pode ocultar as determinações desse processo. Segundo os autores, o atual processo de medicalização deve ser interpretado pelo movimento das contradições do modo capitalista de produção se o que se busca não é a aparência do fenômeno, mas suas múltiplas determinações. Nesse sentido, a ampliação dos limites patológicos expressos nas diferentes versões do DSM tem relação com o aumento crescente das categorias diagnósticas nesse modo de produção (ALMEIDA; GOMES, 2014). De acordo com Antunes e Alves (2004), o modo de produção capitalista, desde sua origem, demandou o envolvimento do proletário por meio da captura de sua subjetividade. A exploração intensificada dos que vivem da venda da força de seu trabalho requer que esses trabalhadores sejam polivalentes e multifuncionais, além de que, tal exigência é requerida no mesmo contexto em que há perda significativa de direitos e de sentido no trabalho. Tais mudanças processadas no mundo trabalho impõem [...] uma nova orientação na constituição da racionalização do trabalho, com a produção capitalista, sob as injunções da mundialização do capital, exigindo, mais do que nunca, a captura integral da subjetividade operária (o que explica, portanto, os impulsos desesperados – e contraditórios – do capital para conseguir a parceria com o trabalho assalariado). (ANTUNES; ALVES, 2004, p.345, grifo dos autores) E desse modo se estendendo: 26 Dos serviços públicos cada vez mais privatizados, até o turismo, no qual o “tempo livre” é instigado a ser gasto no consumo dos shoppings, são enormes as evidências do domínio do capital na vida fora do trabalho, que colocam obstáculos ao desenvolvimento de uma subjetividade autêntica, ou seja, uma subjetividade capaz de aspirar a uma personalidade não mais particular nem meramente reduzida a sua “particularidade”. A alienação/estranhamento e os novos fetichismos que permeiam o mundo do trabalho tendem a impedir a autodeterminação da personalidade e a multiplicidade de suas qualidades e atividades. (ANTUNES; ALVES, 2004, p. 349, grifo dos autores) Assim, o que produz sofrimento, angústia, desatenção, agitação como negações dessa relação trabalho/capital é transformado em categorias patológicas e passíveis da normatividade biomédica e prescrição medicamentosa. De modo a compreender esse contexto, Almeida e Gomes (2014) nos fornecem elementos para interpretação dessas expressões, sendo elas a negação das relações capital/trabalho e ao mesmo tempo ser apreendidas como outra dimensão importante da medicalização. A ampliação dos limites patológicos é expressão do atual processo de medicalização, uma vez que, a cada revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), as manifestações ora compreendidas como normais da vida, produzidas no processo social capitalista, são consideradas anormais e ampliadas em classificações diagnósticas (ALMEIDA; GOMES, 2014). Sena (2014) e Caponi (2014) também questionam as versões do DSM como legitimadoras do processo de explosão de diagnósticos e patologização da vida. A Segunda Guerra Mundial, para Sena (2014), demarcou um período importante em que pesquisas da ciência médica foram produzidas em torno dos efeitos do pós-guerra, proporcionando formulações teóricas, metodológicas e terapêuticas, reorientando o campo da psiquiatria na ampliação de diagnósticos. O autor destaca a quantidade de diagnósticos criados correspondentes às versões e aos anos dos DSM no pós-guerra: DSM-I, primeiro manual oficial da APA, surgiu em 1952, com 106 diagnósticos psiquiátricos; o DSM-II, em 1968, apresentava 182 diagnósticos; o DSM-III, publicado em 1980, continha 265 diagnósticos, e sua revisão, em 1987, estendeu-se para 292 diagnósticos. O DSM-IV foi 27 editado, em 1994, com 297 diagnósticos, e o recém publicado DSM-5, de 2013, apresenta 300 categorias. (SENA, 2014, p. 98) Na quinta versão do DSM, o número de categorias diagnósticas aumentou, podendo chegar até 365 diagnósticos, dependendo do tipo de contagem. O autor questiona essas novas categorias como imposição de novos padrões de normatividade ampliando os limites do que é considerado anormal: O novo compêndio traz, por exemplo, entre outras novidades: o Transtorno de Acumulação (código 300.3) como um transtorno obsessivo-compulsivo caracterizado pela dificuldade persistente de se desfazer de pertences; e Disforia de Gênero (código 302.6), como um diagnóstico global de incongruência acentuada entre o sexo experimentado/expresso e o gênero designado de uma pessoa. Esses exemplos e muitos outros nos fazem refletir sobre o que é normal e anormal, patológico e saudável, doença e saúde, doença mental e saúde mental e sobre a ideologia subjacente à formulação, formatação e adoção dos compêndios empíricos DSMs produzidos pela psiquiatria. (SENA, 2014, p. 103) Na mesma linha de crítica aos manuais e suas atualizações e ao aumento de diagnósticos e perfis patológicos, Caponi (2014, p. 759) questiona o papel legitimador do DSM como documento oficial e que se impõe como “ficha diagnóstica” para a medicalização da vida de adultos e crianças, o que, segundo a autora, limita os questionamentos e conflitos e reduz a “possibilidade de pensar os sofrimentos como decorrentes de circunstâncias concretas de vida, que seria preciso modificar ou alterar”. Concordamos com as afirmações de Sena (2014) quanto à crescente transformação do que é normal em categorias patológicas pelos manuais e com Almeida e Gomes (2014), que ressaltam que a determinação desse processo se encontra no movimento das contradições da vigência do capital. E conforme abordam Antunes e Alves (2004) é um processo do modo capitalista de produção de permanentemente busca da captura da subjetividade do trabalhador. Em diferentes períodos históricos, a normatividade que exclui e isola mantém um papel perverso que impõe a segregação social, a exemplo de como se tratou a loucura ao 28 longo do tempo. A sociedade dividida em classes, que se estrutura pela desigualdade social, ora isola os sujeitos do convívio social, classificando-os como loucos, ora medicaliza a propagação dos transtornos, ampliando os limites patológicos. Desse modo, podemos entender a segregação e o processo de medicalização como atos e prescrições realizados pelas sociedades economicamente e socialmente desiguais e que se constituem como práticas de violência e silenciamento dos sujeitos por meio de instituições. Machado de Assis (1839-1908) aborda a loucura na obra O alienista, publicada em 1882, na qual narra a perseguição do personagem de Simão Bacamarte a indivíduos cuja singularidade e particularidade eram compreendidas como traços de loucura. E, desse modo, prendeu quase toda a população da pequena cidade de Itaguaí colocando todos em uma instituição e, assim, isolando-os do convívio social. Embora seja uma obra literária, o escritor apresenta o problema da loucura como centro temático do conto e nos conecta ao momento histórico em que viveu. Segundo Amarante e Torre (2010, p. 154), a crítica de Machado de Assis feita à sociedade é sagaz e não poupa críticas às convenções sociais e às prescrições médicas amparadas pelo discurso cientifico, “atento aos fenômenos sociais, aponta para o processo de medicalização inerente ao campo da loucura e distúrbios mentais e do poder ‘despótico’ que contém o saber psiquiátrico”. Se na Idade Média a “Nau de loucos” era um modo de higienizar a sociedade, segregando os sujeitos e colocando-os em embarcações à deriva, em Machado de Assis nos é revelado o aprisionamento da loucura em instituições – período em que também ocorrem as transformações pós-revolução industrial. Tais instituições foram criadas para isolar a loucura e tratá-la pelos atos e prescrições da ciência médica: “O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal” (ASSIS, 1882/1995, p. 12). O mecanismo de diferenciação utilizado para classificar em categorias diagnósticas, tanto os sujeitos em sofrimento e adoecimento mental, quanto aqueles inadaptáveis, é elemento do atual processo de medicalização que teve sua gênese nas transformações do meio urbano ocasionadas pelo advento da industrialização. Desse modo, historicamente, é observado que a relação entre “captura integral da subjetividade” dos trabalhadores (ANTUNES; ALVES, 2004) e os atuais atos e serviços da https://pt.wikipedia.org/wiki/1839 https://pt.wikipedia.org/wiki/1908 29 medicalização se convergem em um processo perverso, que é inerente ao sistema capitalista, e limita o desenvolvimento de uma vida dotada de sentido e autodeterminada pelo sujeito. 3 No entanto, diversas pesquisas não buscam explicitar as relações entre sofrimentos e angústias com as condições concretas de vida. De acordo com Amarante e Torres (2010), fomentam a medicalização social e seguem em parceria com as instituições na propagação dos transtornos e medicamentos: Muitas pessoas que se encontram com alguma forma de sofrimento ou de mal-estar social, por sentirem-se rechaçadas, rejeitadas, inoportunas e tantas outras possibilidades, identificam-se com determinados diagnósticos na medida em que, no momento em que passam a ser consideradas doentes, deixam de ser culpadas por suas características, as quais consideram que incomodam os demais. Outras situações de angústia, insatisfações, tristeza, entre outras, podem ser facilmente medicalizáveis. Desta forma, as pesquisas epidemiológicas podem ter muito mais um significado de produção de comportamentos patológicos do que de auferição de patologias no meio social. Muitas pessoas se apresentam como ‘depressivas’, ‘portadoras de pânico’ e ‘bipolares’. Quando a OMS anuncia que, em 2020, existirão milhões de pessoas com depressão no mundo, não estaria, na verdade, construindo este cenário? Quando a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em cooperação com o Ibope, divulga uma pesquisa que aponta para o fato de que 5 milhões de crianças têm sintomas de transtornos mentais, não estaria contribuindo para a medicalização da infância? Como podemos verificar a metodologia? A pesquisa recebeu apoio financeiro da indústria farmacêutica, já que os recebe abundantemente para seus congressos e publicações? Não é um fato surpreendente o Ibope realizar uma pesquisa científica, que precisa passar por comitês de Ética e garantir uma série de aspectos, tais como sigilo? Na página da ABP não há qualquer referência a esses aspectos (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA, 2008). Por que o Ibope e não uma universidade? Por que não recursos dos editais do CNPq? O Brasil é um dos países onde ocorre a maior medicalização da infância em todo o mundo. (AMARANTE; TORRE, 2010, p. 157) 3 Para Antunes e Alves (2004), “trabalhadores” são aqueles que vivem da venda da força de trabalho, independente de qual ramo, englobando, inclusive, os que estão no trabalho informal. 30 A subjetividade na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, fundamentada nos pressupostos do materialismo histórico e dialético, é forjada no processo de humanização pela apropriação da cultura material. Portanto, a experiência humana de um determinado indivíduo nos marcos do gênero humano é única, irreplicável e desenvolvida no conjunto das suas relações sociais. A “subjetividade, portanto, é constituída por fatores internos e externos, na qual a forma de o indivíduo se perceber está relacionada com o modo como os homens estabelecem as relações sociais em um contexto específico, decorrente de condições histórico- sociais.”. (AITA; FACCI, 2011, p.39) Nesse sentido, o processo de medicalização aplicado a perfis patológicos cada vez mais ampliados pelas versões atualizadas dos manuais desconsidera a dimensão subjetiva e singular do indivíduo em sua historicidade na apropriação das condições concretas de vida. Ou seja, através das prescrições, a medicalização segue impondo, por meio dos discursos e práticas médicas, a busca pelo controle das emoções e pela regulação do comportamento. Observa-se, portanto, que no capitalismo, regime em que são cobrados ritmo e volume de produtividade desde a escola, a patologização tem a função de classificar e padronizar os comportamentos a fim de silenciar os conflitos surgidos nessa ordem social, assim impossibilitando aos sujeitos e à sociedade aprofundar as questões sobre o atual modo de produção da vida. A seguir, investimos na discussão de como se dá a medicalização em uma importante etapa da vida: a infância. Apresentamos os aspectos desse processo que adentram o espaço escolar, consequentemente atribuindo à criança a responsabilidade por não aprender, encaminhando-a aos serviços de saúde. 1.3 Medicalização da infância Atualmente, as dificuldades de aprendizado são interpretadas como diagnósticos e recebem prescrições medicamentosas ou outros procedimentos do campo biomédico visando a um corpo atentivo e controlado desde a escola, o que transforma o espaço pedagógico em espaço clínico. 31 Características como desatenção, isto é, dificuldade de focar a atenção em determinada atividade de estudo, combinadas à atitude agitada e inquieta da criança, levam a classificá-la com um transtorno e buscar, por meio das ordens do campo biomédico e da prescrição medicamentosa, o controle do comportamento e a busca atentiva. Nesse sentido, as dificuldades do ensino, temas e práticas organizativas do campo educacional perdem espaço para o discurso médico, uma vez que a validade desse discurso, por alegar cientificidade no conteúdo, institui-se como inquestionável e supervalorizado (CALIMAN, 2008; BRZOZOWSKI; CAPONI, 2010). A medicalização da infância, para Moysés (2008), adentra o espaço escolar e em vez dos elementos pedagógicos serem debatidos a partir de princípios das áreas das ciências humanas, ocorre interferência médica, visto que os posicionamentos associados ao campo da biomedicina classificam a criança com dificuldades de aprendizagem, nomeando-as de transtorno. Para a autora, em vez de indagações e reflexões acerca das dificuldades e revisão de métodos de ensino que possibilitem aproximar a educação escolar do contexto da criança e, com isso, levar em consideração os elementos sociais adjacentes ao processo de ensino- aprendizado, recorre-se à medicalização. Garcia, Borges e Antonelli (2014) analisam a medicalização no âmbito escolar como um processo de padronização e de controle sobre o corpo por meio do discurso e da intervenção médica. A medicalização instaura um processo explicativo que não mais questiona a escola, o método ou as condições de aprendizagem e de escolarização. Busca-se na criança, em áreas de seu cérebro, em suas condutas e na dinâmica familiar as causas das dificuldades de aprendizagem e, consequentemente, a justificativa para a suposta incapacidade de acompanhamento dos conteúdos escolares. (GARCIA; BORGES; ANTONELLI, 2014, p. 542) Entre os transtornos de aprendizagem que tentam explicar cientificamente porque se dá a dificuldade da criança em aprender, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é a expressão mais importante do processo de medicalização na infância. Apesar de ser previsto o tratamento com psicoterapia e o aconselhamento familiar, a 32 prescrição medicamentosa é a principal opção no tratamento das crianças diagnosticadas pelo TDAH (BARBARINI, 2010; CARVALHO; BRANT; MELO, 2014). A produção e o consumo de metilfenidato têm aumentado em função de ser esse medicamento o mais usado no tratamento do referido transtorno, sendo o psicoestimulante mais prescrito para uso nos períodos escolares. Recebe as denominações comerciais de Ritalina® e Concerta®, respectivamente produzidos pela Novartis e pela Janssem. O Brasil é o segundo país que mais consome metilfenidato e devido ao seu efeito de controle do comportamento recebe a denominação de “droga da obediência” (ANVISA, 2012; PIRES, SILVA, 2013). Entre 1990 e 2006, houve um aumento de 1.200% na produção mundial de metilfenidato. O Brasil, em 2006, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), relatório de 2008 apresentado pelos autores, fabricava 226 kg e importava 91 kg: “o crescimento na produção e no consumo no Brasil, em tão pouco tempo, faz com que a compreensão sobre os usos do metilfenidato em território nacional se torne uma questão imprescindível para ações em saúde que envolva tal medicamento” (ORTEGA et al, 2010, p. 500). Segundo dados divulgados na nota técnica do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, a importação do metilfenidato teve um aumento expressivo nos últimos anos no Brasil. No ano de 2012 foram importados 578 kg e no ano seguinte, 2013, foi registrada a importação de 1.820 kg. E o consumo do psicoestimulante tem maior taxa de uso entre as crianças e jovens em atividades escolares, buscando-se um corpo atentivo e silenciado, por meio do efeito “zumbi” que produz. Dados indicam que o metilfenidato é possivelmente utilizado por crianças e adolescentes em processo de escolarização que fazem uso reduzido do medicamento no período de recesso escolar, mas que o seu consumo cresce concomitantemente ao longo do ano escolar, como aumento nas épocas onde há eminência de reprovação escolar. (FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE, 2015, p. 7) Outro psicoestimulante utilizado no tratamento das dificuldades de aprendizagem tem como princípio ativo a Lisdexanfetamina e está disponível no mercado farmacológico 33 como Venvanse®, produzido pela Shire. 4 Outra substância aprovada para o tratamento do TDAH é Atomoxetina, princípio ativo da Stratteran®, fabricado pela Eli Lilly. (FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E SOCIEDADE, 2015). Para a Anvisa, o atual quadro de medicalização revela uma recorrência de distorções e equívocos no uso destes medicamentos: [...] como “droga da obediência” e como instrumento de melhoria do desempenho seja de crianças, adolescentes ou adultos. Em muitos países, como os Estados Unidos, o metilfenidato tem sido largamente utilizado entre adolescentes para melhorar o desempenho escolar e para moldar as crianças, afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente (ANVISA, 2012, p. 13). Os usuários do metilfenidato geralmente são considerados inadaptados, pois produzem e estudam de maneiras diferentes do esperado na escola e em casa. Rotulados de desobedientes são enquadrados clinicamente em perfis patológicos, pois “os fenômenos contingentes à existência humana vêm sendo diagnosticados como transtornos psiquiátricos e neuroquímicos” (CARVALHO; BRANT; MELO, 2014, p. 599). Na análise documental dos relatórios do Unicef, feita por Lemos, Galindo e Rodrigues (2014), consta que o processo de medicalização vem transformando em doenças e transtornos o que se considera como desvios sociais. E, nesse sentido, por meio das práticas dessa instituição, a medicalização visa à formação de sujeitos dóceis. Para atingir seus efeitos de conjunto, as disciplinas medicalizantes operam em articulação com a economia política e os saberes que oportunizam efetuar as reflexões e os cálculos de investimento e retorno a fim de possibilitarem o maior crescimento do Estado com os menores custos possíveis (LEMOS; GALINDO; RODRIGUES, 2014, p. 206-207). Crianças e adolescentes no discurso do Unicef “são subjetivados como patológicos e inseridos em uma rede que promove o silenciamento de seus sofrimentos e a sua segregação, frequentemente recorrendo a índices que se valem de categorias psiquiátricas e de dados sobre violência ou vulnerabilidade” (Ibidem, p. 209). 4 Conforme relato em entrevistas com professores, os medicamentos Ritalina® e Concerta®, com princípio ativo do metilfendidato, podem ser fornecidos pelo SUS, desde que mediante receita médica, inclusive o recente e mais caro Venvanse®. 34 Esta abordagem também é observada entre profissionais da educação devido à tendência de reprodução do discurso médico como solução aos problemas de ensino- aprendizagem. De acordo com o estudo realizado por Garcia, Borges e Antonelli (2014), com professores da educação infantil, esse quadro de medicalização cada vez mais ganha espaço: Instaura-se um processo explicativo que não mais questiona a escola, o método ou as condições de aprendizagem e de escolarização. Busca-se na criança, em áreas de seu cérebro, em suas condutas e na dinâmica familiar as causas das dificuldades de aprendizagem e, consequentemente, a justificativa para a suposta incapacidade de acompanhamento dos conteúdos escolares. Isso permite que a escola mantenha práticas educativas que emolduram condutas e modos de aprender dentro dos padrões escolares de normalidade (GARCIA; BORGES; ANTONELLI, 2014, p. 557). Outro estudo que apresenta a tendência de intervenção do discurso médico em meios escolares foi realizado por Lorenzi, Rissato e Silva (2012) em uma escola pública com professores de ensino fundamental. Neste estudo foi analisado como esses professores se apropriaram do discurso sobre o TDAH e quais as implicações dessa apropriação na prática educativa. Destaca-se que a significação que esses profissionais dão aos comportamentos dos alunos, centrada no discurso médico-científico, implica diretamente a forma como avaliam as crianças. Mediante isso, as autoras afirmam a necessidade de “refletir sobre quem são essas crianças que chegam até a escola e que recebem esse diagnóstico e sobre como queremos nos relacionar com elas. O foco na doença não irá retirar do professor sua importante tarefa de mediador de uma relação de ensino-aprendizagem” (LORENZI; RISSATO; SILVA, 2012, p. 94). O professor e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Paulo Amarante, defende que a interferência do Estado ao regular o uso desse tipo de remédio é de fundamental importância, porque o direito à saúde não pode ser diminuído frente aos interesses mercadológicos das indústrias farmacêuticas. Ao conceder entrevista para o portal da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), questionou as empresas que têm tido cada vez mais espaço para um campo da saúde que fomenta a medicalização da população. Em contraponto ao processo de medicalização, tem crescido a organização de coletivos e fóruns de discussões, a exemplo do Fórum sobre Medicalização da Educação e da 35 Sociedade, que reúne pesquisadores e diversos profissionais da educação e da saúde com o objetivo de compreender o crescimento de patologias na educação e lutar contra esse processo, organizando debates e materiais. Também é observada a criação de propostas de trabalho com as crianças consideradas desatentas e hiperativas em uma perspectiva centrada no desenvolvimento da atenção e na mudança comportamental sem a admissão dos ditames do campo biomédico que decorrem em diagnóstico de TDAH. E respondendo à demanda desses coletivos, dois importantes municípios, Campinas e São Paulo, criaram dispositivos que regulamentam o consumo do metilfenidato em crianças. O governo municipal de Campinas criou um protocolo de uso do metilfenidato (CAMPINAS, 2013) e o governo municipal de São Paulo emitiu portaria sobre o tema (SÃO PAULO, 2014). Vê-se que a patologização na educação, rotulando a criança como incapaz de aprender sem o tratamento médico, retira do professor seu papel imprescindível de mediador no processo de ensino-aprendizagem para o desenvolvimento da atenção e o domínio da conduta. Todo o investimento pedagógico que pressupõe desafios diante da diversidade em sala de aula é transposto para a clínica médica. Portanto, a criança mais agitada, mais inquieta e que não consegue aprender é classificada como portadora de um transtorno. O investimento educacional ao invés de ser dado na ênfase da relação humana entre professor e aluno, é alterado pelo uso do fármaco, que é prioritariamente eleito como a solução diante das dificuldades de indisciplina na escola e do controle do comportamento das crianças. Ou seja, quem não se comporta como esperado e não tem sua atenção focalizada é diagnosticado como alguém que tem uma alteração fisiológica ou química no cérebro. No entanto, essa escolha afeta a formação da subjetividade da criança, pois atua no modo como ela se vê e como é vista socialmente. Como já apontado anteriormente, para Brzozowski e Caponi (2010), esse tipo de classificação de crianças desatentas e inquietas, com dificuldades de aprendizagem e de controle da conduta como sendo patologias, leva-as também a desenvolver respostas diretamente associadas ao ditame médico, ou seja, começam a responder como portadoras dos transtornos, pois internalizam que são doentes. E, desse modo, as instituições são responsáveis por esse processo que torna a criança refém de um processo de medicalização de seu comportamento, alterando consideravelmente a subjetividade no modo como a criança se vê e como é vista socialmente. 36 Diante desse quadro de patologização que tem levado à medicalização da infância, cabem algumas indagações: Como a criança tem sua escuta atendida na escola, na família? Como ela é compreendida quando recebe encaminhamento das unidades escolares para os serviços de saúde? Esta compreensão passa pelo entendimento de que é ela um sujeito singular constituído por suas experiências? (BARBARINI, 2010, 2014; KAMERS, 2013) Conforme argumenta Barbarini (2010, 2014), os encaminhamentos decorrentes de observações avaliativas sobre o comportamento das crianças constituem em práticas de estigmatização sobre as crianças. Por serem classificadas como hiperativas, desatentas, agressivas, impulsivas, recebem encaminhamentos para avaliar diagnóstico de transtorno mental. As dificuldades dos professores para orientar a atenção e o comportamento das crianças nas atividades de estudo se constituem em desafios para a educação escolar, porém esses processos da escolarização devem ser amparados em reflexões acerca das condições concretas em que se produz a vida e não em soluções produzidas pelo campo médico a partir de prescrições medicamentosas, pois, assim: [...] o sofrimento psíquico da criança é interpretado como um transtorno neurobiológico com signos inespecíficos, constituindo uma perigosa transformação do campo da psicopatologia na infância: o apagamento do sujeito em sua dimensão psíquica, histórica e social – em que a medicina se eleva à condição divina. (KAMERS, 2013, p. 156) Para não incorrermos em conceber a criança como um sujeito fragmentado, assinalamos outra relação entre a pedagogia e a psicologia como necessária para a interpretação dos desafios da educação e para o desenvolvimento da criança. A concepção de desenvolvimento histórico-cultural adotada e defendida em nosso estudo e a que se refere à abordagem de desenvolvimento infantil, conforme nos esclarece Pasqualini (2013): [...] somente se produz como resultado dos processos educativos. Ao mesmo tempo, a compreensão das leis que regem o desenvolvimento psíquico constitui uma condição fundamental para o próprio processo pedagógico, na medida em que o ensino incide sobre diferentes níveis de desenvolvimento psíquico da criança. Compreender o funcionamento infantil a cada período do desenvolvimento e o vir a ser desse desenvolvimento se coloca como condição para o planejamento e condução do processo pedagógico. 37 Psicologia e pedagogia devem, portanto, ser pensadas em unidade. (PASQUALINI, 2013, p. 73) O domínio da atenção e a regulação do comportamento são processos psíquicos do desenvolvimento da criança. Desconsiderar a singularidade da criança e suas condições histórico-sociais, bem como as leis que regem o desenvolvimento humano nos processos de aprendizagem impede perspectivas de mudança tanto para aqueles que ensinam como para quem aprende. Assim, a relação entre desenvolvimento e aprendizagem é apreendida para o trabalho de ensinar na educação escolar, cuja relação é explicada por Martins (2010) à luz dos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural: [...] o desenvolvimento humano ocorre na relação com a própria vida do indivíduo: relação com a atividade, tanto aparente quanto interna. Assim, o lugar ocupado pela criança nas relações sociais, suas condições reais de vida, é a primeira coisa que deve ser notada quando buscamos compreender as determinações do desenvolvimento do psiquismo. (MARTINS, 2010, p. 35) Em concordância com o pensamento da autora, destacamos que o discurso adotado na educação escolar oriundo do campo médico em um aspecto impossibilita a compreensão do sujeito a respeito de sua historicidade, e também, em outro aspecto, afeta a formação da subjetividade da criança, uma vez que ao absorver os ditames médicos na escola e o uso do medicamento, impede a criança de superar as dificuldades fundamentais para seu desenvolvimento – concepção adotada para nosso estudo – mediada pelas relações sociais e seu meio cultural. Isto é, o desenvolvimento da criança deve ser potencializado e não limitado, conforme imposto pela medicalização. A prescrição medicamentosa para que a criança tenha um desempenho atentivo e um comportamento regulado na escola não só afeta seu desenvolvimento como, sobretudo, tira um direito presente no artigo 7º do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA): “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.”. (BRASIL, 1990) Nesse sentido, o processo de medicalização impossibilita o desenvolvimento defendido nesta dissertação como direito da criança em formação. Tal como nos alerta Leite 38 (2015), crianças que deveriam apenas ser educadas estão sendo medicalizadas. No capítulo seguinte investiremos em compreender o denominado transtorno a partir dessa questão: TDAH é um fenômeno biológico ou histórico- social? 39 2. TDAH: UM FENÔMENO BIOLÓGICO OU HISTÓRICO – SOCIAL? No capítulo anterior apresentamos o fenômeno TDAH como uma das expressões mais importantes da medicalização da infância, explicitando, desse modo, que a atual propagação do transtorno expressa um contexto em que se busca nos atos, práticas normativas e prescrições medicamentosas a resolução para dificuldades e sofrimentos decorrentes do viver, o que, consequentemente, traz impactos no desenvolvimento da criança. Entre os diversos estudos que apresentam críticas ao processo de medicalização das crianças e dos encaminhamentos às unidades de saúde com origem nas queixas escolares, destacamos o relatório da Anvisa (2012), bem com as pesquisas de Eidt (2004), Baldini e Leite (2006), Eidt e Ferraciolli (2007), Caliman (2008, 2009), Ferreira (2009), Barbarini (2010, 2014), Brzozowski e Caponi (2010), Ortega et al (2010), Lorenzi, Rissato e Silva (2012), Collares e Moysés (1994), Moysés (2013a), Itaborahy e Ortega (2013), Kamers (2013), Eidt e Tuleski (2010), Eidt, Tuleski e Franco (2014), Carvalho, Brant e Melo (2014), Garcia, Borges e Antoneli (2014), Leite e Rebello (2014), Cord et al (2015), analisam o TDAH como um transtorno controverso. Os elementos abordados nesses estudos enfatizam que as dificuldades do ensino são associadas à falta de atenção da criança nas atividades escolares e têm avaliado a criança como agitada e dispersa. Esses comportamentos transformados em sintomas em um processo de construção de patologias que pressupõe que não aprender em tempo determinado, de acordo com padrões e avaliações - muitas vezes externo a organização do trabalho pedagógico da escola - e não se comportar conforme normas estabelecidas são comportamentos classificados como doença na infância. Identificamos que as explicações sobre o TDAH se dividem em dois campos de concepções. Um campo reúne fundamentos sobre o transtorno como determinação biológica ou como falha no cérebro e com origem genética. O outro reúne estudos críticos que questionam o viés meramente biológico e apresentam um conjunto de elementos que afirmam ser um transtorno controverso que tem levado a uma crescente medicalização das crianças. 40 Nesse sentido, nosso esforço de análise converge para estudos críticos do fenômeno TDAH que se referem a ele como expressão do processo de medicalização da educação, portanto, nossa compreensão, conforme sustenta Barbarini (2010, 2014), é para além dos sintomas a ele relacionados. Para Ferreira (2009), o crescimento de diagnóstico do TDAH em crianças matriculadas nas escolas esconde algo mais complexo, porque impede que reais questionamentos de ordem institucional venham à tona, como a falta de gerenciamento adequado dos problemas em ambiente escolar, a grande quantidade de alunos por sala, proporcionando um desgaste maior do profissional também decorrente de uma jornada extensa de trabalho: O diagnóstico psiquiátrico do TDAH, ao situar o fracasso escolar enquanto manifestação engendrada no corpo do aluno, funciona como instrumento de significação para a disciplina e para a desatenção e media as relações que se estabelecem entre professor, aluno e família. (FERREIRA, 2009, p. 5) Contudo, segundo a pesquisadora, na mesma medida que cabe aos profissionais de saúde difundir esse discurso psiquiátrico fundamentado na biomedicina, o qual propõe o ajuste dos sujeitos a uma determinada ordem, também participam desse processo a escola e seus agentes, aos quais cabe o papel e o lugar de tornar mais explícitos os sintomas do transtorno. A compreensão do processo de ensino fundamentada pelo discurso biomédico tem consequências para a formação do desenvolvimento da criança, “quando se pensa o sujeito escolar, têm desdobramentos importantes que não apenas definem a história escolar de cada um, mas também contribui com a configuração de uma história de vida que passa a ser marcada pela incapacidade e não pela possibilidade” (GARCIA; BORGES; ANTONELLI, 2014, p. 544). Na perspectiva dos biologicistas, o TDAH é caracterizado como um transtorno neurobiológico resultado da complexa interação entre fatores genéticos e ambientais. Segundo Baldini e Leite (2006), os critérios clínicos para diagnosticar o referido transtorno são caracterizados pela tríade sintomatológica de desatenção, hiperatividade e impulsividade, percebida como mais comum na infância. 41 As referências para diagnosticar as crianças com TDAH, segundo Barbarini (2014), são definidas pelas publicações do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), sobretudo pela quarta versão, elaborada pela Associação Psiquiátrica Americana (APA) e, conforme Sena (2014), pela Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, décima versão (CID–10), publicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Ambos reconhecidos internacionalmente como referência no diagnóstico para os diferentes transtornos (SENA, 2014). Atualmente, a quinta versão do DSM, publicada em 2013, passou a ser a referência atualizada. Nessas publicações, o TDAH é compreendido segundo a concepção biologicista, que o fundamenta como um tipo de transtorno associado à dificuldade de atenção e hiperatividade na realização de atividade. E, conforme o CID–10, é caracterizado por grupo de transtornos de comportamentos emocionais que ocorrem durante a infância e a adolescência: F 90 – Transtornos hipercinéticos; F 90.0 – Distúrbios da atividade e da atenção; e F 90.1 – Transtorno hipercinético de conduta. Em estudo realizado por Dorneles et al (2014), de viés biologicista, os autores reafirmam que o TDAH, a desatenção e os comportamentos de agitação, impulsividade afetam a vida escolar das crianças resultando em dificuldades de aprendizagem que podem ser divididas em comportamentais e intelectuais. São crianças que “apresentam dificuldade de engajamento em tarefas, constantemente prolongando o início de uma atividade, além de evitarem o treino repetitivo e não desenvolverem habilidades de forma automática quanto seus pares sem TDAH” (DORNELES et al, 2014, p. 760). Para Rossi e Rodrigues (2009), o TDAH também é caracterizado pela observação dos sintomas de comportamentos hiperativos e desatentos nas crianças. Afirmam que o mesmo tem origem nos fatores neurológicos e genéticos e que são os sintomas que explicam e dão o diagnóstico do transtorno. Os fatores ambientais e sociais não são causais, mas podem impactar na persistência dos sintomas ao longo da vida adulta. A partir da coleta de dados realizada em sala com professores e no Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) em duas escolas de ensino fundamental, sugerem as autoras que os professores precisam se apropriar dessa definição, considerando que o objetivo proposto para a pesquisa foi [...] informar, ensinar e orientar o professor sobre o que é TDAH, suas causas, diagnóstico, prevalência, enfim, tudo o que esclareça o professor sobre o assunto e, tão importante quanto, fornecer subsídios, por meio de técnicas cognitivo-comportamentais, para que ele possa atuar (fornecer 42 ajuda, incentivo e apoio) com esse aluno que apresenta comportamentos inadequados e/ou dificuldades escolares. (ROSSI; RODRIGUES, 2009, p. 216-217) Do mesmo modo que Rossi e Rodrigues (2009) dão ênfase aos sintomas na caracterização do TDAH, Azevedo, Caixeta e Mendes (2009) realizaram estudos de caráter epidemiológico no campo da neuropsiquiatria infantil e reiteram que o diagnóstico é essencialmente clínico e são observados comportamentos de desatenção, de hiperatividade e de impulsividade, avaliados no ambiente escolar e relatados pela família. No relatório da Anvisa (2012), o TDAH é explicado como um transtorno neurobiológico do comportamento na infância e relacionado à dificuldade de aprendizagem. Também é esclarecido no documento que, apesar de não existir exame laboratorial que possa prever a manifestação desse transtorno como uma dificuldade de aprender da criança, a venda do metilfenidato aumenta nos períodos letivos e diminui durante as férias escolares. Os encaminhamentos das escolas para averiguação médica, conforme o relatório informa, em sua maioria são originados de queixas dos professores e os relatos da família contribuem para o fechamento do diagnóstico em TDAH. A interpretação neurobiológica, para Caliman (2008), torna o transtorno mais aceito socialmente a partir dos anos 1990, devido ao foco das pesquisas sobre o cérebro ter se intensificado nessa década, que ficou conhecida como “década do cérebro”, validando, desse modo, seu discurso científico. A partir de então, a explicação de disfunção no cérebro como causadora de uma desordem da atenção e do comportamento que afeta a aprendizagem torna- se uma patologia do indivíduo iniciada na infância (CALIMAN, 2008). Porém, para Lorenzi, Rissato e Silva (2012), há controvérsias em torno do discurso da existência do TDAH, como sendo uma patologia da dificuldade de aprendizagem, seja pela explicação de desordem neuroquímica ou pela definição a partir do quadro de desatenção e comportamentos hiperativos e impulsivos. Nas formulações de críticas acerca do referido transtorno, questionam a crescente necessidade de nomear e classificar comportamentos, transformando avaliações referentes às variações de conduta e focalizando a atenção em patologias na infância. A crítica feita por Brzozowski e Caponi (2010) se refere à legitimação institucional do TDAH desde o DSM, passando por clínicas médicas e escolas. Para os 43 autores, a nomeação e classificação tão precoce do indivíduo como uma pessoa doente, que não é “normal”, em que a criança é incapaz de realizar atividades sem uso de medicamento, pode afetar sua autoimagem. Para Caliman (2008, 2009), a interpretação exclusivamente neurobiológica revela análises aparentes e superficiais do TDAH e o transforma em um dos transtornos mais controversos e questionados por outras áreas do conhecimento como a neuroética e as humanidades. Com isso, a interpretação de determinação biológica do transtorno contribui substantivamente para a crescente medicalização da educação. Em pesquisas efetuadas por Eidt (2004; s/d) e Eidt e Tuleski (2010), destaca-se o crescente uso do metilfenidato no tratamento do transtorno e, segundo Moysés (2013a; 2013b), não há estudos sobre os efeitos e futuras consequências do seu uso em crianças. Porém, a recente publicação do Ministério da Saúde (BRASIL, 2015) cita o levantamento feito pelo Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo (CVS/SES/SP) nos 553 casos notificados do uso do metilfenidato. Foi analisado que o uso do medicamento em crianças menores de seis anos causou reações de sonolência, lentidão de movimento e atraso no desenvolvimento. Outros eventos cardiovasculares, entre taquicardia e hipertensão, e transtornos psíquicos, depressão, psicose, além de dependência do medicamento. Distúrbios neurológicos também foram observados como reações, discinesia, espasmos e contrações musculares involuntárias. As pesquisas que afirmam a existência do TDAH pelo viés biológico não mencionam as reações do metilfenidato para a saúde da criança. Buscam, a partir do aumento de prevalência, que se refere à proporção de ocorrência na população, sustentar evidências da existência do transtorno. Entre esses estudos, destacamos os artigos de Vasconcelos et al (2003); Andrade e Scheuer (2004); Araújo, Mattos e Pastura (2007); Fontana et al (2007); Biscelgi et al (2013) e Dorneles et al (2014). Dorneles et al (2014) destacam que a prevalência mundial para crianças e adolescentes é estimada em 5,29%. E a prevalência nacional, para Arruda (2011), é de 4,1%, sendo maior nas crianças de classes sociais mais baixas, estimando aproximadamente que 2,9 milhões de crianças e adolescentes diagnosticados com TDAH não têm acesso ao tratamento. 44 Nas crianças pobres, a determinação biológica do transtorno é explicada pelo uso de tabaco e álcool na gestação. Ou seja, a origem do transtorno está relacionada às condições de vida da mãe e a criança desenvolve o transtorno na gestação (ARRUDA, 2011). O estudo de mesma concepção, ao afirmar que entre as crianças pobres há uma prevalência maior do transtorno, é feito por Fontana et al (2007) que realizaram pesquisas em escolas brasileiras apresentando uma prevalência do TDAH de 13% em quatro escolas públicas que atendem uma população socialmente desfavorecida no município de São Gonçalo - RJ. O estudo abrangeu crianças de 6 a 12 anos e utilizou, essencialmente, os critérios do DSM-IV. Em outro estudo, de Araújo, Mattos e Pastura (2007), realizado em um colégio de aplicação federal no Rio de Janeiro, em uma amostra de 381 alunos obteve-se uma prevalência de 6,8%, sendo o desatento o tipo mais predominante e o transtorno associado, opositor e desafiador, mais comum na amostra. Dessa afirmação nos cabe uma ressalva, sendo um colégio que atende crianças e adolescentes, da primeira a oitava série do ensino fundamental, não seria esperado alunos questionadores, inquietos, em vez de categorias patológicas denominadas de “opositor” ou “desafiador”? Essa questão será mais trabalhada no capítulo seguinte desta dissertação, isto é, como a regulação da conduta é desenvolvida, a partir de uma contribuição teórica na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural sobre o domínio da conduta pela criança. Outra pesquisa que teve como referência o DSM foi realizada por Vasconcelos et al (2003) em uma escola pública do ensino básico, no município de Niterói – RJ. Professores e familiares (responsáveis pelas crianças) preencheram um questionário de 18 sintomas definidos a partir do DSM- IV e se obteve uma prevalência de 17% para o diagnóstico de TDAH em um total de 403 crianças. Apesar de ampla variação da prevalência em pesquisas brasileiras sobre TDAH, entre 5,8% a 17,1%, esses dados são utilizados nos estudos de perspectiva biologicista como científicos para legitimar sua ocorrência na população. A ampla variação de prevalência em pesquisas acerca do transtorno, conforme Azevedo, Caixeta e Mendes (2009), fundamentados na abordagem biologicista, é explicada em função das diversas metodologias adotadas nas pesquisas. Porém, essa ampla variação é 45 um elemento questionável e, segundo o Boletim Brasileiro de Avaliação em Tecnologia em Saúde (Brats), são pesquisas de baixa qualidade: As pesquisas analisadas pelo Brats foram identificadas como tendo baixa qualidade metodológica, com indícios superestimados, viés de publicação, tempo de acompanhamento muito curto, número significativo de estudos financiados ou com seus investigadores filiados à indústria farmacêutica e baixa generalização. As evidências sobre a eficácia e segurança do tratamento como o metilfenidato em crianças e adolescentes, em geral, têm baixa qualidade metodológica, curto período de seguimento e pouca capacidade de generalização. (BRASIL, 2015, s/p) Outro documento que revela a ampla variação como um elemento questionável e que justificou a sua elaboração se refere às “Recomendações do Ministério da Saúde para adoção de práticas não medicalizantes e para publicação de protocolos municipais e estaduais de dispensação de metilfenidato para prevenir a excessiva medicalização de crianças e adolescentes” (BRASIL, 2015). Embora sejam documentos importantes para o trabalho em saúde e que destacam a necessidade de rever métodos nessas pesquisas, há estudos que afirmam a necessidade de tratamento precoce do transtorno, a exemplo do realizado por Andrade e Scheuer (2004) no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Nessa pesquisa, os familiares e professores participaram como fonte de informação do diagnóstico e avaliação sobre o consumo do metilfenidato e sua eficácia no tratamento das crianças diagnosticadas. Segundo os autores, o transtorno é muito comum na infância e com início precoce e de evolução crônica. Concluíram que, nas observações e avaliações da escola e da família sobre as 21 crianças pesquisadas, ocorreu 100% de melhora no fator hiperatividade. Atendendo o mesmo objetivo de apresentar um estudo indicando a antecipação do tratamento na infância, Biscegli et al (2013) realizaram uma pesquisa de caráter quantitativo em pré-escolares de creche, com crianças entre 4 e 5 anos, no município de Catanduva – SP. Afirmaram que a prevalência de TDAH foi de 6,01% para um total de 133 crianças. Segundo os autores, o diagnóstico e o tratamento precisam ser realizados nessa faixa etária porque contribu