UNIVERSIDADE ESTAUDUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUISTA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN DEPARTAMENTO DE ARTES E REPRESENTAÇÃO GRÁFICA LUIZA MATIAS DE ASSIS ANTROPOLOGIA LÚDICA COM CRIANÇAS: PERCEPÇÕES CULTURAIS ATRAVÉS DA LEITURA DE IMAGENS EM LIVROS INFANTIS BAURU 2024 LUIZA MATIAS DE ASSIS ANTROPOLOGIA LÚDICA COM CRIANÇAS: PERCEPÇÕES CULTURAIS ATRAVÉS DA LEITURA DE IMAGENS EM LIVROS INFANTIS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais, habilitação em Licenciatura, da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design – FAAC, UNESP/ Campus de Bauru, como requisito parcial para a conclusão da graduação, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Rosa Maria Araújo Simões. BAURU 2024 Assis, Luiza Matias de Antropologia lúdica com crianças: Percepções culturais através da leitura de imagens em livros infantis / Luiza Matias de Assis. -- Bauru, 2024 93 p. : tabs., fotos Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura - Artes Visuais) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru Orientadora: Rosa Maria Araújo Simões 1. Antropologia. 2. Arte-educação. 3. Livro infantil. 4. Educação Infantil. I. Título. Luiza Matias de Assis ANTROPOLOGIA LÚDICA COM CRIANÇAS: PERCEPÇÕES CULTURAIS ATRAVÉS DA LEITURA DE IMAGENS EM LIVROS INFANTIS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais, habilitação em Licenciatura, da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design – FAAC, da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como requisito parcial para a conclusão da graduação. BANCA EXAMINADORA: _______________________________________ Prof.ª Dr.ª Rosa Maria Araújo Simões FAAC/UNESP – Orientadora _______________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria do Carmo Monteiro Kobayashi FC/UNESP _______________________________________ Prof.º Dr.º Vitor Marcelino da Silva FAAC/UNESP Bauru, 11 de dezembro de 2024. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, à minha mãe, Magali, que garantiu meu acesso ao ensino superior e minha permanência na faculdade através do seu constante apoio financeiro e emocional. Sem ela, não teria sido possível apresentar este trabalho. Obrigada por acreditar em mim. Ao meu companheiro Bruno, pelo suporte e afeto de sempre, tanto à distância quanto presencial, no ouvir, no conversar, no acalmar e no ajudar. Muito obrigada. Ao Vitor, por me tranquilizar estando ao lado de minha mãe e fornecendo o material necessário a finalização do presente trabalho. Aos amigos que fiz ao longo da faculdade, Ana Clara, Júlia, “Bolívia”, Jamille, Lia e Marina. Obrigada por tornarem essa experiência mais divertida. À professora Rosa pela orientação e pela oportunidade de realizar este trabalho que estava sendo idealizado há meses. Aos demais professores da UNESP, por entregarem o melhor de si no dia a dia, para que eu, na posição de estudante, pudesse ter acesso a uma educação de qualidade. À UNESP, pela oportunidade de vivenciar a universidade pública. “Isso de ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além”. Paulo Leminski RESUMO A diversidade cultural tem permeado o espaço educativo com cada vez mais frequência, tornando-se base para diretrizes curriculares, formação de docentes e direito dos estudantes. Considerando este fator, uma questão surge como motivadora deste trabalho: como tornar o estudo da cultura significativo para crianças da educação pública. Desse modo, presente estudo visa a promoção da diversidade cultural como uma proposta educativa significativa para as crianças da educação infantil, por meio de uma abordagem crítica e sensível: a antropologia lúdica com crianças. Esta abordagem, desenvolvida particularmente no estudo, objetiva o conhecimento e reconhecimento cultural dos estudantes da primeira infância, através de aspectos antropológicos e artísticos, e, por meio da utilização de livros infantis como principal recurso de pesquisa cultural, possibilitando uma imersão da criança na prática antropológica de modo lúdico. O estudo ocorre por meio de uma fundamentação teórica, realizada através de levantamento bibliográfico, e aplicação prática da abordagem em uma escola pública de educação infantil, por meio de atividades com os estudantes em sala de aula. Por fim, são analisados os resultados da aplicação da antropologia lúdica com crianças através de produções artísticas dos próprios educandos acompanhados durante a realização do trabalho. Palavras-chave: Antropologia, arte-educação, livro infantil, educação infantil. ABSTRACT Cultural diversity has increasingly permeated the educational space, becoming the basis for curricular guidelines, teacher training, and students' rights. Considering this factor, a question arises as a motivator for this work: how to make the study of culture meaningful for children in public education. Thus, this study aims to promote cultural diversity as a meaningful educational proposal for children in early childhood education, through a critical and sensitive approach: playful anthropology with children. This approach, developed particularly in the study, aims at the knowledge and cultural recognition of early childhood students, through anthropological and artistic aspects, and through the use of children's books as the main resource for cultural research, enabling the child to immerse himself in anthropological practice in a playful way. The study is carried out through a theoretical foundation, carried out through a bibliographic survey, and practical application of the approach in a public early childhood education school, through activities with students in the classroom. Finally, the results of the application of playful anthropology with children are analyzed through artistic productions of the students themselves, who were monitored during the execution of this work. Keywords: Anthropology, art education, children‟s book, preschool education. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Diagrama das esferas bases da antropologia lúdica ................................ 11 Figura 2: Detalhe do mural do túmulo de Khnumhotep ............................................ 41 Figura 3: Vincent Van Gogh, “O quarto do artista em Arles” .................................... 42 Figura 4: Maxwell Alexandre, “Éramos as cinzas e agora somos o fogo (diss)”. Da série “Pardo é papel” ................................................................................................ 49 Figura 5: Maxwell Alexandre, “Sem título (I)”. Da série “Novo poder” ...................... 49 Figura 6: Páginas 6 e 7 do livro “Curumim” .............................................................. 76 Figura 7: Páginas 4 e 5 do livro “Curumim” .............................................................. 77 Figura 8: Arte feita pelos estudantes com monotipia de folhas de árvore e tinta guache ...................................................................................................................... 80 Figura 9: Exemplo da atividade de desenho na lousa da sala de aula .................... 80 Figura 10: Exemplo da atividade com monotipia e desenhos para referência dos estudantes ................................................................................................................ 81 Figura 11: Desenho do estudante “A” ...................................................................... 81 Figura 12: Desenho do estudante “B” ...................................................................... 82 Figura 13: Desenho do estudante “C” ...................................................................... 82 Figura 14: Desenho do estudante “D” ...................................................................... 83 Figura 15: Desenho do estudante “A”....................................................................... 84 Figura 16: Desenho do estudante “B”....................................................................... 84 Figura 17: Desenho do estudante “C”....................................................................... 85 Figura 18: Desenho do estudante “D” ...................................................................... 85 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Divindades relacionadas às condições climáticas e meteorológicas na cultura tupi-guarani e nórdica ................................................................................... 19 Tabela 2: Áreas de pesquisa da antropologia .......................................................... 27 SUMÁRIO 1. Introdução .......................................................................................................... 10 2. A esfera antropologia ......................................................................................... 14 2.1. O conceito de cultura e suas implicações …………………………………… 15 2.2. A antropologia como ciência ………………………………………………….. 23 2.3. A função do antropólogo ………………………………………………………. 30 3. A esfera arte ....................................................................................................... 39 3.1. Arte e experiência ....................................................................................... 40 3.2. Acesso à experiência artística .................................................................... 45 4. A esfera criança ................................................................................................. 53 4.1. A concepção da criança .............................................................................. 53 4.2. A educação infantil no Brasil ....................................................................... 59 5. A proposta da antropologia lúdica com crianças ……………………..........…..... 66 5.1. Critérios para a escolha do livro infantil dentro da antropologia lúdica ....... 72 6. A aplicação da antropologia lúdica em sala de aula .......................................... 74 6.1. O perfil da unidade escolar e das crianças participantes ............................ 74 6.2. O livro infantil escolhido .............................................................................. 75 6.3. O planejamento e a aplicação da atividade em sala de aula ...................... 78 7. Conclusão ............................................................................................................. 87 8. Referências .......................................................................................................... 89 10 1. Introdução A diversidade cultural tem sido uma pauta frequente em estudos e pesquisas sobre as instituições de ensino e a prática educativa, de modo que está consolidando um importante espaço dentro das discussões acerca da realidade das escolas públicas. Em meio às práticas afirmativas, parâmetros curriculares, formação docente e os direitos dos estudantes, a diversidade cultural instaurou no campo educacional a necessidade de contemplar as múltiplas culturas presentes no país, de modo que sejam conhecidas, estudadas e respeitadas dentro das unidades de ensino. A Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018), por exemplo, define como uma das competências gerais da educação a básica o ato de: “Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidade” (BRASIL, 2018, p. 9). A partir disso, é preciso refletir sobre como o estudo da diversidade cultural se dá na escola, e, principalmente, se acontece de modo significativo aos estudantes. A própria unidade escolar é um espaço em que a pluralidade cultural se expande, isso porque cada um dos estudantes que a constitui é único como sujeito social, que possui suas particularidades econômicas, físicas, cognitivas e sociais, e, dessa forma, complementa a escola com sua própria cultura. Para que este espaço se torne, então, um meio de produção de conhecimentos culturais significativos, é necessário fornecer ao estudante o protagonismo do processo de ensino- aprendizagem, para que possa conectar suas vivências pessoais aos conteúdos científicos, linguísticos e técnicos ensinados na escola. Nesse sentido, o presente estudo tem como foco a promoção da diversidade cultural como proposta educativa dentro da realidade escolar pública, mais especificamente, da educação infantil. A proposta em questão, intitulada como “antropologia lúdica com crianças”, desenvolvida particularmente neste estudo e seus próprios fins, objetiva o conhecimento do estudante acerca do outro e de sua cultura, reconhecendo, simultaneamente, nesse processo, a si mesmo e sua própria cultura. O que se objetiva, aqui, é o estabelecimento de uma relação de troca significativa de conhecimentos, ideias e sentimentos. É relevante ressaltar, ainda 11 que essa relação de trocas não ocorre automaticamente, ela é mediada pelo processo educativo através do professor, que proporciona aos estudantes um espaço disponível a expressão cultural em conjunto com os conteúdos essenciais dos estudos de cunho social. Desenvolvido propriamente para este estudo, o termo “antropologia lúdica” não corresponde a uma vertente antropológica já existente, mas sim a uma abordagem aqui construída. Trata-se, em suma, de tornar o estudo da cultura e da humanidade significativo por meio de um aspecto fantástico, imaginativo e criativo, característicos da ludicidade, e que se conectam mais profundamente com a criança. A antropologia lúdica, portanto, fundamenta-se na criticidade e na sensibilização da experiência cultural, tendo como recurso os aspectos antropológicos e artísticos ao longo do processo do conhecer ao outro e a si mesmo. As três esferas que guiam esta proposta se dão através da antropologia, da arte e da criança (figura 1), e se complementam ao longo da teoria e da prática, dando sentido e sustentando um ao outro dentro da antropologia lúdica. O presente estudo se dá através da introdução de cada uma das esferas, por meio de um levantamento bibliográfico, com a finalidade de compreender seu processo histórico no contexto nacional e, posteriormente, aplicá-las na realidade prática da educação infantil pública. Figura 1: Diagrama das esferas bases da antropologia lúdica. Fonte: Elaboração própria. 12 A antropologia, primeira esfera abordada no estudo, se caracteriza como forma de interpretar o mundo cultural, de conhecer o outro e reconhecer a si mesmo dentro da prática antropológica. Esta mesma concepção da antropologia como ciência interpretativa da cultura e da humanidade, substancial para o estudo, é fundamentada, aqui, majoritariamente por Geertz (2008) e Laplantine (2007). Além disso, para compreender os fundamentos antropológicos ao longo do capítulo, é necessário, primeiramente, compreender o conceito de cultura, através do trabalho de Laraia (2001), e a prática do antropólogo, baseada no trabalho de Cardoso de Oliveira (2000), como será abordado mais adiante. A arte, a segunda esfera, é tida como uma experiência, que cria e é criada através das vivências históricas da humanidade, como apontado por Dewey (2002). O presente estudo traz o conceito de arte como experiência inerente ao ser humano, e que, no entanto, não se dá de forma acessível a todos os sujeitos, prejudicando a apropriação de conhecimentos estéticos, a sensibilização, a produção e a fruição de obras de arte. O acesso à arte no Brasil é apresentado, aqui, através da construção histórica, pautada em Silva (2012), e as possíveis transformações que ele pode desencadear em diversos sujeitos, como nas experiências de Ostrower (1996) e do artista Maxwell Alexandre (2020). A última esfera, a criança, diz respeito à ideia do ser criança, da educação infantil e do estudante da primeira infância. Nesse seguimento, é necessário perpassar pelos conceitos históricos de criança e de educação, e, consequentemente, como estes conseguiram seu espaço em meio à sociedade e à política. A construção social e histórica da criança é fundamentada pelo trabalho de Ariès (1986) e Pinto (1997), que contribuem para o reconhecimento de noções passadas de infância e sua relação com a cultura. A trajetória da educação infantil e de seus estudantes no Brasil é, do mesmo modo, desenvolvida através de uma análise histórica, pautada no trabalho de Bujes (2001), adentrando também a política nacional de educação, pontuada, principalmente, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) e pelo Plano Nacional da Primeira Infância (Brasil, 2020). Posteriormente, é introduzida a antropologia lúdica e seus princípios, em especial, a promoção da diversidade cultural em sala de aula e o protagonismo do estudante na prática antropológica sensível, assumindo o papel de “pequeno 13 antropólogo” em meio à experiência cultural realizada no espaço escolar. As bases da proposta se encontram no trabalho de Freire (1967, 1996), que fundamenta a prática educativa através do diálogo e do reconhecimento do estudante e de sua cultura, e no trabalho de Martins (2021), que inspira o presente estudo através de sua experiência antropológica com crianças por meio de jogos, arte e brincadeiras. Além disso, é apresentado o principal material para a condução da proposta, o livro infantil, que abrange através da linguagem textual e imagética aspectos culturais materializados de modo lúdico, convidativo às crianças da educação infantil e a sua criatividade. Por fim, são apresentadas as experiências e os registros da aplicação prática da antropologia lúdica na educação infantil pública, tendo como principal aspecto a relação estabelecida entre o conhecimento cultural de modo lúdico e as vivências dos próprios estudantes, que geraram um produto subjetivo, de cunho particular e coletivo, e que caracteriza a diversidade cultural como processo educativo no ambiente escolar. Em suma, a intenção norteadora do presente estudo é o reconhecimento da importância dos estudos culturais nas escolas públicas, que podem ser aplicados desde a primeira infância e que devem ocorrer de modo sensível e crítico, ampliados através da arte, transformando a realidade de estudantes e professores e, por consequência, do mundo objetivo que nos cerca. Trata-se, enfim, de expandir o discurso cultural no espaço escolar, utilizando a própria diversidade cultural dos estudantes e a sensibilização e ludicidade da arte como recursos para a construção de conhecimentos significativos, fundamentando uma prática democrática e inclusiva desde a tenra idade. 14 2. A esfera antropologia Em uma perspectiva geral, o ato de estudar um animal, qualquer espécie que seja, implica uma análise biológica, reconhecendo seus instintos e funções na cadeia natural. Todavia, estudar um indivíduo da espécie humana implica um esforço maior, aplicando uma análise precisa de suas duas naturezas constitutivas: a biológica e a cultural. No quesito biológico, não há uma variedade de elementos a serem analisados fora o funcionamento do corpo humano, afinal, de modo geral, os nossos aparatos biológicos são semelhantes, apenas se diferenciando por composições genéticas: “Do ponto de vista biológico, a espécie Homo sapiens compõe-se de um certo número de grupos que diferem uns dos outros pela freqüência de um ou de vários gens particulares. Mas esses mesmos gens aos quais devem imputar-se as diferenças hereditárias existentes entre os homens são sempre em pequeno número considerando o conjunto da constituição genética do homem e a grande quantidade de gens comuns a todos os seres humanos, qualquer que seja o grupo a que pertencem. Resumindo, as semelhanças entre os homens são muito maiores do que as diferenças” (UNESCO, 1950). A análise de sua natureza cultural, no entanto, não se dá de modo tão simples, pois o ser humano tem múltiplas formas de ser e existir ao redor mundo. A diversidade cultural humana se encontra nos muitos elementos e costumes compartilhados, como hábitos alimentares, comportamentos, produções artísticas, valores religiosos e educacionais, transformando os indivíduos em um único corpo coletivo, por meio dessas relações de partilha estabelecidas. Apesar das semelhanças existentes em um grupo social, é preciso destacar, ainda, que há muitos outros grupos e, assim, muitos outros elementos a serem compartilhados. Desse modo, a diversidade cultural se amplia ao passo que as diferenças entre esses grupos sociais se estabelecem, acrescentando nuances na história da existência humana. Um exemplo de diversidade em um contexto limitado, dentro de nosso território nacional, nos é fornecido por Laraia (2001), em que a palavra “descansar” apresenta diferentes significados conforme a região que é aplicada: enquanto no Norte do Brasil “descansar” é associado ao ato de parir, o início da vida, no Sul, se refere a morte, o fim. Todavia, essas diferenças não se pautam em anulações ou superações advindas da comparação, afinal, o estudo das culturas não é uma ciência exata, mas 15 sim, interpretativa (Geertz, 2008), denominada antropologia. A prática antropológica se volta, de maneira resumida, para os estudos da cultura e o que é gerado socialmente a partir dela, sejam produtos materiais ou imateriais, construídos de forma coletiva. Trata-se, então, de ter sociedades e sujeitos como objeto de análise, investigando suas ações e razões. Desta forma, pode-se dizer, também, que esta ciência está em movimento constante, disposta a acompanhar as mutações sociais e os novos significados que possam surgir ao longo da história da humanidade. No entanto, para melhor compreender a antropologia como ciência, é preciso se afastar de concepções rasas e breves para, assim, aproximar-se de suas nuances teóricas e práticas. Portanto, na intenção de assimilar a prática da antropologia com as demais esferas fundamentais deste estudo – a criança e a arte –, se mostra necessária uma análise acerca de suas implicações científicas e culturais num contexto abrangente. Desse modo, serão abordados, a seguir, os conceitos de cultura e como ela se dá como objeto de estudo, de antropologia como ciência e, por fim, qual a função do antropólogo e a quem cabe este cargo. 2.1. O conceito de cultura e suas implicações Para abordarmos o estudo da cultura, é necessário, antes de tudo, reconhecer o que é cultura. Este fenômeno que paira sobre as sociedades, quase de forma paradoxal, seja como elemento criador ou resultado das mesmas, é o fundamento das criações materiais e imateriais ao longo da história da humanidade em sua grande diversidade. Voltar-se, portanto, para a cultura requer não um olhar sobre o indivíduo, mas sim sobre o coletivo em que se encontra. Partindo das bases etimológicas e de conceitos formulados, Laraia (2001) nos elucida sobre a concepção histórica de cultura: “No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) no vocabulário inglês Culture, que “tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (LARAIA, 2001, p. 25). 16 Nesta perspectiva, podemos destacar, principalmente, dois pontos desta conceituação : a cultura é constituída por componentes diversos e, ela não é inerente ao sujeito, mas sim adquirida. Focaremos, a princípio, na primeira parte, a cultura e seus elementos constitutivos. Como supracitado, a cultura conta com componentes de razões linguísticas, políticas, econômicas e religiosas, as quais tomam significado único para os sujeitos. No entanto, a fim de formar uma base para o presente estudo, seguiremos em uma proposta abrangente, nos voltando para a cultura e seu sentido para o homem e para a humanidade. Para Geertz (2008), o homem é visto como “um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”, assumindo a cultura como estas “teias”. Em uma relação estreita com estas palavras, temos, então, o homem como animal, mas que se difere de outros animais pela qualidade da cultura. Esse distanciamento do indivíduo racional da natureza rudimentar e animalesca se faz primordial para as bases conceituais da cultura, que tem um caráter único à espécie humana, seja como produto ou produtor deste gênero. No mesmo seguimento, Aranha e Martins (2003) apontam os principais diferenciais do homem e do animal a partir de cinco aspectos: a ação instintiva, a inteligência concreta, a linguagem, o trabalho e, por fim, a cultura. O primeiro aspecto se refere a ação por instinto natural, comum aos animais, “regida por leis biológicas, idênticas na espécie e invariável de indivíduo para indivíduo” (Ibid.), portanto, sem finalidade – este é o ponto de divergência, pois a ação humana é voluntária e resulta de um processo intelectual antes mesmo de sua execução, assim, é consciente de sua finalidade. O segundo aspecto se dá em contraposição com o caráter instintivo mencionado, trata-se do ato inteligente, comum aos animais de nível mais alto na escala zoológica, no entanto, é uma “inteligência concreta”, que não desenvolve um significado a partir da experiência e se esgota na ação – assim, é diferente do homem, pois, por mais criativa que seja sua resposta a uma dada situação, “o animal não inventa o instrumento, não o aperfeiçoa, nem o conserva para uso posterior” (Ibid.), não dando sequência ao ato. O terceiro aspecto se refere a linguagem, característica primordialmente humana, afinal, apesar dos animais conseguirem construir uma “comunicação” entre si, não ultrapassa a função biológica, incapaz de alcançar a representação simbólica e abstrata realizada pelos homens na construção linguística e seus significados. O 17 quarto aspecto, o trabalho, aborda a relação do indivíduo com o ambiente em que se encontra, pois, enquanto os animais convivem com a natureza buscando garantir sua sobrevivência, os homens produzem sua existência através da transformação da natureza, um trabalho que os modificam, gerando, também, uma autoprodução humana. Por último, o aspecto elementar, a cultura, que se refere ao mundo humano, que não é natural como o dos animais, pois é construído e transformado pelo pensar e agir, sendo essencialmente simbólico e codificado – algo apenas possível aos homens pela atividade intelectual. A espécie humana, portanto, criou sua existência a partir de um processo evolutivo diferente dos animais. Ao passo em que se distanciou das modificações biológicas, o homem aprimorou as faculdades mentais para sua própria sobrevivência: trata-se não de uma adaptação do corpo ao ambiente, mas sim uma adaptação do ambiente ao corpo. Nesse sentido, Kroeber (1949, apud. Laraia, 2001) nos fornece um exemplo: “Não faz muitos anos que os seres humanos atingiram também o poder da locomoção aérea. Mas o processo pelo qual esse poder foi alcançado, e os seus efeitos, são completamente diferentes daqueles que caracterizam a aquisição, pelos primeiros pássaros, da faculdade de voar. Nossos meios de voar são exteriores aos nossos corpos. O pássaro nasce com um par de asas; nós inventamos o aeroplano. O pássaro renunciou a um par potencial de mãos para obter as suas asas; nós, porque a nossa faculdade não é parte de nossa constituição congênita, conservamos todos os órgãos e a capacidade de nossos antepassados, acrescentando-lhes a nova capacidade” (KROEBER, 1949, apud. LARAIA, 2001, p.39). O curso da permanência humana na terra é, assim como referido no exemplo, o resultado de um desenvolvimento intelectual do homem, que, ainda segundo Kroeber, é um processo “[...] claramente acumulativo: conserva-se o antigo, apesar da aquisição do novo” (Ibid.). Prosseguimos, assim, com o mesmo equipamento biológico, o que se modifica, no entanto, é a capacidade de utilizar da inteligência a partir da experiência. Logo, adquirimos o potencial de simbolizar o mundo de modo consciente, para entendê-lo e modificá-lo – um fenômeno da cultura humana, como visto previamente –, assim como o símbolo de voar irá se progredir para o símbolo do aeroplano, muito mais pela qualidade do pensamento e ação que pela falta de aparatos biológicos. Assim sendo, é possível afirmar que a cultura é o resultado de um processo racional, que se distancia das características naturais e biológicas do homem como 18 animal e se aproxima e reafirma o homem como ser intelectual, que usufrui e produz símbolos de forma coletiva. Para compreender a relação da construção simbólica com a cultura, uma breve explicação será fornecida por ora – uma abordagem mais profunda acerca dos símbolos se dará posteriormente, ao decorrer do estudo. O símbolo pode ser considerado como uma extensão do ser humano, ao passo em que é a base das produções de significados que permeiam o mundo social, pois simboliza todas as coisas. Em uma melhor colocação, Ribeiro (2010) elabora sobre a definição e função do símbolo: “Em resumo, como afirma D‟Alviella (1995, p. 21), o termo “símbolo” passou gradualmente a se referir a tudo aquilo que, seja por acordo geral ou analogia, representava convencionalmente alguma coisa ou alguém. Um símbolo é uma representação, mas não uma reprodução. Enquanto uma reprodução implica igualdade, um símbolo é capaz de evocar a concepção do objeto que ele representa devido, por exemplo, a características em comum [...]” (RIBEIRO, 2010, p. 47). De modo gradativo, a linguagem simbólica consegue se ampliar através da abstração, atingindo uma dimensão além da realidade objetiva, “[...] em sua origem, é um sinal visível de algo que não se encontra ali presente de forma concreta” (Ribeiro, 2010, p. 46). Um possível exemplo de representação simbólica de algo que não se encontra fisicamente no mundo objetivo é o desenvolvimento de mitos e contos, comuns a variadas civilizações, nos quais criaturas fantasiosas são muitas vezes inventadas como forma de explicar fenômenos naturais, não compreendidos ou interpretados de um ponto de vista científico (Candido, Nunes, 2012), como, para os tupi-guarani, a entidade Tupã era a representação simbólica de raios e trovões, assim como Thor, na mitologia nórdica (tabela 1). Assim, é possível afirmar que o mundo humano se dá através dos símbolos, ou seja, é construído de modo intelectual, por meio de significações compartilhadas entre os indivíduos, com a finalidade de compreender o meio natural em que se encontram. 19 Tabela 1: Divindades relacionadas às condições climáticas e meteorológicas na cultura tupi- guarani e nórdica. Cultura Divindade Atribuição Intempéries relacionadas Outras informações relevantes Tupi-Guarani Tupã Divindade das chuvas Raios e trovões Tupã não era exatamente um deus, mas sim uma manifestação de Nhanderuvuçu na forma de um trovão. Nórdica Thor Deus da guerra, do céu e das tempestades Tempestades, raios e trovões Um deus da mitologia nórdica, sua carruagem causava os sons de trovões e a batida de seu martelo produzia faíscas que atingiam a terra na forma de raios Fonte: Adaptada de Candido e Nunes (2012). Segundo Aranha e Martins (2003), neste mesmo seguimento, “se o contato com o mundo é intermediado pelo símbolo, a cultura é o conjunto de símbolos elaborados por um povo”. A cultura forma, então, uma dimensão imaterial, que liga o indivíduo ao seu grupo social e ao ambiente que se encontra inserido através dos símbolos, em uma relação de integração aos conceitos formulados e suas distinções de sentidos. Esses símbolos atuam de diversos modos para garantir o funcionamento dos grupos sociais, de modo que os sujeitos que os constituem construam sua vivência coletiva pautados nos valores formulados entre si – valores estes que apresentam diferentes magnitudes conforme as esferas sociais em que se situam e como elas interferem no comportamento social dos indivíduos de determinados grupos. Colocando em outras palavras: “A cultura de uma sociedade consiste no que quer que seja que alguém tem de saber ou acreditar a fim de agir de uma forma a ser aceita pelos seus membros” (Goodenough apud. Geertz, 2008, p. 8). 20 Dessa maneira, os valores simbólicos formulados coletivamente geram um padrão de comportamento entre indivíduos de um mesmo grupo e se manifestam através de diferentes aspectos sociais – como religião, política, economia, arte, ciência e afins –, e estes apresentam variadas significações conforme a localidade em que se encontram, em resumo, novamente, os efeitos da cultura. Nesse sentido, Geertz (2008) afirma a cultura como um “documento de atuação pública”, no qual as ações e reflexões possuem um significado também público, ou seja, de um conhecimento popular ao coletivo, dessa forma, todos os indivíduos que se encontram inseridos em seus determinados grupos reconhecem os valores simbólicos construídos coletivamente assim como o significado de suas ações dentro deste ambiente social, a fim de estar consonância com a sua cultura. Em suma, trata-se de reconhecer os elementos culturais do meio que se encontra para pertencer a um grupo, assim como para atuar em conformidade com os valores formulados. Esse pertencimento, então, só é possível através do conhecimento do indivíduo acerca do ambiente cultural em que se origina ou se estabelece. Retomamos, assim, o segundo aspecto da cultura, mencionado no começo deste subcapítulo: a cultura não é algo inerente ao sujeito, mas é, na verdade, adquirida. A crença de que a cultura é algo dado ao sujeito no momento do nascimento é, geralmente, sustentada por dois fundamentos, já desmistificados por Laraia (2001): o determinismo biológico e geográfico. O determinismo biológico afirma que a condição cultural do indivíduo depende de sua genética, um pensamento que fundamenta a divisão dos seres humanos em “raças” – algo inexistente, como visto no início do capítulo pela declaração da UNESCO (1950). Essa concepção define que comportamentos e características são inerentes a indivíduos de determinadas origens, usados, na maioria das vezes, para desprestigiar ou glorificar diversas civilizações – utilizada convenientemente para basear as práticas preconceituosas e racistas ainda na atualidade. No entanto, o determinismo biológico não é realmente um conceito válido, apenas oportuno, já que: “Segundo Felix Keesing. “não existe correlação significativa entre a distribuição dos caracteres genéticos e a distribuição dos comportamentos culturais. Qualquer criança humana normal pode ser educada em qualquer 21 cultura, se for colocada desde o início em situação conveniente de aprendizado” (LARAIA, 2001, p. 17). Assim sendo, as diferenças biológicas existentes entre os seres humanos não são a base para a definição final do comportamento cultural dos indivíduos. O mesmo é válido para a determinação sexual, pois, apesar das distinções anatômicas presentes através do dimorfismo sexual, a divergência de comportamentos entre pessoas de sexos diferentes não é resultado de um fato biológico, mas sim cultural (Laraia, 2001). A afirmação de valores comportamentais para homens e mulheres se alteram conforme a cultura em que se encontram, modificando suas atribuições e funções dentro da sociedade. “Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios, mas em decorrência de uma educação diferenciada” (ibid.). Portanto, a cultura é o resultado não de um processo biológico, mas sim educativo, denominado endoculturação. Já o determinismo geográfico impõe que as condições ambientais definem os efeitos da cultura, no qual os aspectos naturais, como relevos, climas e vegetação, são os fundamentos para os diferentes comportamentos da humanidade. Porém, assim como o determinismo biológico, esta concepção já fora previamente desmistificada: “A partir de 1920, antropólogos como Boas, Wissler, Kroeber, entre outros, refutaram este tipo de determinismo e demonstraram que existe uma limitação na influência geográfica sobre os fatores culturais. E mais: que é possível e comum existir uma grande diversidade cultural localizada em um mesmo tipo de ambiente físico” (LARAIA, 2001, p. 21). Desse modo, os fatores naturais são incapazes de definir as diferenças culturais entre os coletivos, pois, como mencionado anteriormente, o ser humano modifica a natureza, construindo sua própria realidade objetiva. Segundo Laraia (2001), ainda: “A posição da moderna antropologia é que a "cultura age seletivamente", e não casualmente, sobre seu meio ambiente, "explorando determinadas possibilidades e limites ao desenvolvimento, para o qual as forças decisivas estão na própria cultura e na história da cultura" (LARAIA, 2001, p. 24). Portanto, a ação da cultura sobre os indivíduos não encontra sua base na determinação biológica ou geográfica – assim como em outras possíveis teorias acerca da cultura como elemento inerente ou herdado a uma pessoa ao nascer –, 22 mas é resultado de um processo educacional, ocorrendo de modo informal e/ou formal através de gerações. Como mencionado anteriormente, a cultura trata-se, de um ponto de vista geral, de comportamentos determinados pelo coletivo, pautados em valores diversos – religiosos, econômicos, familiares, artísticos e afins –, na intenção de que os sujeitos inseridos nesse coletivo atuem de acordo com os valores formulados e reformulados de geração em geração, e assim, para estar de acordo com sua cultura, é preciso aprender como ser e existir dentro dela. Ao ser criado em um grupo social, o indivíduo já passa a ser educado sobre os valores culturais de sua comunidade na tenra infância, principalmente através da educação informal, que é feita, em especial, através de experiências em casa ou nos espaços sociais, proporcionada por parentes, conhecidos e amigos. Entre alguns exemplos de educação informal que estruturam o conhecimento cultural, se encontram: dialetos, gírias e expressões, hábitos alimentares, brincadeiras e cantigas, festejos, crenças e muitos outros. Todos estes são resultados de experiências em conjunto com outros indivíduos, ou seja, só podem ser aprendidos de modo coletivo, compartilhando os conhecimentos uns aos outros. Esse aprendizado cultural pode ser reforçado pela educação formal, que ocorre nas instituições de ensino, principalmente se os conteúdos das disciplinas encontram exemplos e referências inseridos dentro da realidade cultural dos educandos (Freire, 1996) – este aspecto será abordado com maior profundidade ao longo do estudo. Em resumo, aprender sobre a cultura em que se está inserido é o processo para pertencer a um grupo social e nele participar ativamente, como formulador e reformulador dos valores culturais, pois, sendo um fenômeno social, estes estão propensos a transformações, variações e continuações, engrandecendo as nuances da história da humanidade. Por meio de outras palavras, Laraia (2001) explicita: “O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade” (LARAIA, 2001, p. 45). Desse modo, é possível afirmar que todo indivíduo carrega consigo o trabalho de um coletivo, a produção cultural formulada e continuada por ele, através de um 23 processo de ensino-aprendizagem. A perpetuação da cultura de um povo é o que permite sua existência dentro da história da humanidade e sua constituição de identidade, afirmando seus valores culturais no próprio modo ser por meio de costumes e comportamentos, como a linguagem (idioma, escrita e arte), os ritos (casamentos e funerais), as crenças (religião e princípios) e economia (produção e trabalho). Portanto, entende-se, assim, que a cultura é uma construção constante em conjunto, com facetas de seus valores fundamentais expressos de diversas formas através da reflexão e ação, e que continua sendo preservada pelo coletivo ao ser transmitida através das gerações pela educação, sendo, ao mesmo tempo, aberta a tradição e a transformação pela atividade humana. Considerando, então, o aspecto da cultura como modo de existir preservado pelo processo de ensino e aprendizagem, pode-se levantar um outro ponto fundamental para este estudo: se a cultura é transmitida através da educação, é possível aprender novas culturas? E, neste seguimento, muitas outras questões podem ser levantadas, como acerca da produção cultural, do pertencimento, de comportamentos a serem adquiridos e, sobretudo, as diversidades e semelhanças que há entre as culturas e como isso afeta indivíduos de diferentes matrizes culturais. Todos estes aspectos dão base para o seguinte subcapítulo, em que será tratado a cultura como objeto de estudo e como a antropologia se dá como uma ciência social interpretativa aos homens. 2.2. A antropologia como ciência Conhecer um indivíduo implica, como visto previamente, conhecer os valores culturais de sua comunidade e, assim, conhecer seus comportamentos e ideais. Desta forma, olhar ao “outro” significa analisar toda uma cadeia social histórica construída coletivamente, em que seu funcionamento só foi e será possível quando perpetuada por diversos indivíduos, através do processo de ensino-aprendizagem. Para adentrar este universo cultural incógnito, do “outro” e seus comportamentos, pensamentos e sentimentos, é necessário um processo educativo, que se afasta do particular conhecido para imergir no coletivo desconhecido, de forma profunda e um tanto desprendida (não é possível se afastar completamente de nossa base cultural, como veremos adiante). Geertz (2008), dispõe sobre os aspectos de conhecer os outros e outras culturas através de uma citação: 24 “Como já invocamos Wittgenstein, podemos muito bem transcrevê-lo: „Falamos… de algumas pessoas que são transparentes para nós. Todavia, é importante no tocante a essa observação que um ser humano possa ser um enigma completo para outro ser humano. Aprendemos isso quando chegamos a um país estranho, com tradições inteiramente estranhas e, o que é mais, mesmo que se tenha um domínio total do idioma do país. Nós não compreendemos o povo (e não por não compreender o que eles falam entre si). Não nos podemos situar entre eles‟” (GEERTZ, 2008, p. 10). No entanto, não é necessário se situar propriamente para entender uma cultura que não lhe é comum, basta uma aproximação interessada, disposta a encarar as diferenças de modo respeitoso e buscar compreendê-las dentro de seu contexto de origem. E desse mesmo modo, a antropologia e seus métodos científicos encontram a base para sua formação, o estudo da humanidade e da cultura, o “conhecimento sistemático do homem e de suas obras” (Ullmann, 1991). Para melhor compreender a origem da prática antropológica assim como seu desenvolvimento como ciência, é necessário voltar-se para seus princípios. Nesse sentido, Laplantine (2007) introduz sua obra, “Aprender antropologia”, com a seguinte afirmação: “O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as sociedades existiram homens que observavam homens”. Apesar de, então, a prática de observação dos indivíduos ser consideravelmente antiga, foi apenas ao final do século XVIII que as bases da antropologia começaram a se constituir como caminho para um saber científico (ibid.). Desse modo, os indivíduos da espécie humana passaram a ser o objeto de conhecimento – tal qual fenômenos físicos ou biológicos –, observado e analisado por outros indivíduos, numa relação inicialmente estruturada pelas distâncias geográficas entre ambos, sujeito observante e sujeito observado. A partir disso, é possível afirmar que, segundo Ullmann (1991), o “objeto material” da antropologia é o próprio homem, e seu “objeto formal” – o aspecto sob o qual algo é estudado – é a cultura e suas estruturas sociais. Segundo Laplantine (2007), ainda, o avanço da antropologia no campo científico se deu em um contexto específico, elemento que é de extrema relevância para seu prelúdio: “Finalmente, a antropologia, ou mais precisamente, o projeto antropológico que se esboça nessa época muito tardia na História - não podia existir o conceito de homem enquanto regiões da humanidade permaneciam inexploradas - surge em uma região muito pequena do mundo: a Europa. 25 Isso trará, evidentemente, como veremos mais adiante, consequências importantes” (LAPLANTINE, 2007, p. 14). Portanto, a antropologia – assim como outras ciências e expressões culturais que clamam ser advindas do continente europeu – trazia consigo a particularidade do ponto de vista ocidental e, a partir da metade do século XIX, sociedades externas às civilizações europeias e norte-americanas se tornaram foco dos estudos sociais, como sendo as, expressivamente reduzidas, sociedades “primitivas” (ibid.). Tratava- se de civilizações distantes, cujo as características eram brevemente analisadas de modo comparativo em relação às civilizações europeias, portanto, eram tidas como: “[...] sociedades de dimensões restritas; que tiveram poucos contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia é pouco desenvolvida em relação à nossa; e nas quais há uma menor especialização das atividades e funções sociais. São também qualificadas de "simples"; em consequência, elas irão permitir a compreensão, como numa situação de laboratório, da organização "complexa" de nossas próprias sociedades” (LAPLANTINE, 2007, p. 14,). Em consequência, figuras não realistas foram criadas sobre essas civilizações, adquirindo as características de “primitividade”, principalmente pela falta de desenvolvimento intelectual, artístico, religioso e tecnológico a partir do ponto de vista europeu. Esta análise, advinda de base comparativa, que se pauta principalmente em anulações ou afirmações, não é algo específico a antropologia como ciência, mas sim do ser humano e seu relacionamento com o desconhecido. Em sua concepção, o homem só pode compreender ao outro quando em comparação a si mesmo, buscando em seu repertório pessoal símbolos que possam se relacionar com este indivíduo desconhecido em busca de gerar um significado (Piaget, apud. Christov, 2006) – e isso, na verdade, é o caminho natural nas interpretações da cultura, mas fato é que, partindo de um ponto de vista particular e não aberto à diversidade, o outro passa a se codificar como uma anormalidade. Através da história da humanidade, houve variados casos de interpretações pessoais acerca de outros indivíduos que não eram de grupos familiares, como na Grécia Antiga, em que aqueles que não pertenciam a helenidade eram referidos como “bárbaros”, ou no século XIV, em que os europeus definiram os indígenas latino-americanos como “selvagens” pelos seus costumes e não presença da religião católica em suas comunidades (Laplantine, 2007). 26 No entanto, o estudo das sociedades não-europeias como “primitivas” começou a se esgotar ao passo em que estas continuaram se desenvolvendo, findando seu aspecto de “atraso” tecnológico. Esta “morte do primitivo” (Mercier, 1966, apud. Laplantine, 2007) marca o início de uma nova abordagem na antropologia, na qual, segundo Laplantine (2007), consiste em “o estudo do homem inteiro” e “o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as épocas”. Desta maneira, a antropologia passou a progredir para uma ciência interpretativa do homem em seus múltiplos modos de ser e existir assim como das culturas, na busca significados construídos pela humanidade em sua diversidade, cujo objetivo, segundo Geertz (2008), é “o alargamento do universo do discurso humano”. Na finalidade de criar aproximações, observar, estudar e documentar diversas culturas, a antropologia desenvolveu ramificações em seu próprio campo científico, aumentando seus métodos e objetos de pesquisa e estudo da sociedade e seu funcionamento cultural (Laplantine, 2007). 27 Tabela 2: Áreas de pesquisa da antropologia. Categoria Finalidade Antropologia biológica Estudar as variações dos caracteres biológicos do homem em relação ao seu meio ambiental e social, analisando as genéticas das populações a respeito do que é inato e do que é adquirido. Antropologia pré-histórica Ligada à arqueologia, estuda o homem por meio de vestígios materiais encontrados, reconstituindo sociedades desaparecidas e suas organizações culturais Antropologia linguística Estuda os meios de expressão do homem, como compreendem a realidade, seus pensamentos e sentimentos por meio diversas técnicas de comunicação. Antropologia psicológica Estuda os processos e o funcionamento do psiquismo do homem, analisando os comportamentos conscientes e inconscientes dos indivíduos. Antropologia social e cultural Estuda as bases constituintes das sociedades para compreender sua particularidade, como produções econômicas, políticas, educacionais, religiosas e artísticas. Fonte: Laplantine (2007). Para prosseguir com a proposta do presente estudo, será focado apenas na última área mencionada na tabela, a antropologia social e cultural. Também conhecida como etnologia – “estudo comparativo de duas ou mais culturas” (Ullmann, 1991) –, a antropologia cultural volta-se especificamente para o estudo abrangente da cultura e do funcionamento das sociedades, aproximando o observador – o antropólogo – dos valores que formam o modo de viver desses coletivos ainda incógnitos para ele, em resumo, estuda a cultura produzida e perpetuada pelos mesmos. Deve ser considerado, também, o aspecto da temporalidade presente nesta ciência, pois, segundo Ullmann (1991), a antropologia cultural “define-se como o estudo da cultura em todos os tempos e lugares”, que 28 assim “entende-se toda a dimensão temporal, abrangida pela existência humana, desde o surgimento do homem”, e, portanto, “engloba as culturas vivas e „mortas‟”. Trata-se então, de uma análise além da superfície, em que a prática antropológica requer um aprofundamento nas minúcias da cultura e dos comportamentos estruturados por distintas sociedades, estudando tudo aquilo que os indivíduos "não pensam habitualmente em fixar na pedra ou no papel” (Lévi- Strauss apud. Laplantine, 2007). Este estudo, portanto, não pode ser realizado se não através de uma verdadeira aproximação, no encontro entre o observador e o objeto de estudo, o antropólogo e a cultura. Assim, a etnografia surge como forma de pesquisa e composição de material para os estudos da cultura. Em seu sentido etimológico, a etnografia significa “descrição de um povo”, mas que na prática, segundo Ullmann (1991), vai além do ato de descrever, trata-se de analisar. No mesmo seguimento, Lévi-Strauss (2017) explica a relação entre a etnografia e a etnologia (antropologia): “Resta definir a própria etnografia, e a etnologia. Distingui-las-emos, de modo bastante sumário e provisório, mas suficiente para um início de investigação, dizendo que a etnografia consiste na observação e análise de grupos humanos tomados em sua especificidade (muitas vezes escolhidos entre os mais diferentes do nosso, mas por razões teóricas e práticas que nada têm a ver com a natureza da pesquisa), visando a restituição, tão fiel quanto possível, do modo de vida de cada um deles. A etnologia, por sua vez, utiliza de modo comparativo (e com finalidades que haveremos de determinar adiante) os documentos apresentados pela etnografia” (LEVIS STRAUSS, 2017, p. 14). Portanto, a antropologia, no próprio ato de estudar uma ou mais culturas, necessita, em primeira instância, de duas ações: a descrição da cultura e, posteriormente, a interpretação da cultura. Acerca da primeira ação antropológica, Geertz (2008) afirma que a prática da etnografia vai além de aspectos técnicos e procedimentos, pois requer um esforço intelectual para obter uma “descrição densa”, na qual o etnográfico – condutor da ação –, através do trabalho de observação em campo, que se dá por meio de interações e vivências compartilhadas, enfrenta uma “multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, [...] que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar”. O mesmo autor nos elucida, ainda, que: 29 “Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de "construir uma leitura de") um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado” (GEERTZ, 2008, p. 7). É a partir desta descrição densa que nos é possível encaminhar para a segunda ação antropológica, a interpretação da cultura. Como já mencionado anteriormente, ao conhecer outras culturas, partimos de nossas próprias estruturas de conhecimento cultural para compreendê-las, e isso se trata de um processo natural. No entanto, para além de uma análise de teor técnico, a antropologia nos conduz para uma análise reflexiva, na qual conhecer o outro implica conhecer a si, e como ambos se afetam nesta relação. Para Laplantine (2007), o “conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas”, e, para tal, é necessário que ocorra um “estranhamento” no encontro de diferentes coletivos, que leve a uma “modificação do olhar” sobre si mesmo: “De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos „evidente‟. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não tem realmente nada de „natural‟” (LAPLANTINE, 2007, p. 21). A interpretação a ser realizada, após uma relação interativa de pesquisa e reflexiva de comparação, entre as estruturas sociais conhecidas e desconhecidas, é o meio para compreender que a humanização do outro é originada e perpetuada de um modo diferente, que não pode ser considerado nem positivo, nem negativo. As semelhanças e divergências nos modos de agir, pensar e sentir se encontram no fato de que o ser humano é múltiplo em sua prática de expressão com e para o mundo, e que são resultados de escolhas fundamentalmente culturais. Através da antropologia, conhecemos as possíveis facetas da existência do homem em comunidade, em que funções, comportamentos, rituais, leis, ordenação, educação e afins transformam e são transformados pelos indivíduos em seu caráter coletivo. “Ou seja, aquilo que os seres humanos têm em comum é sua capacidade para se 30 diferenciar uns dos outros, [...] pois se há algo natural dessa espécie particular que é a espécie humana, é sua aptidão a variação cultural” (Laplantine, 2007). Assim, a antropologia cultural se define como o caminho para a desmistificação do outro, em que caracterizações bem como leituras culturais preconceituosas perdem seus fundamentos opressores, findando termos como “primitivos”, “bárbaros” e “selvagens”, como mencionado anteriormente. Por não ser uma ciência exata, mas sim interpretativa, a prática antropológica não pode se dar somente através de análises técnicas do homem e da cultura, pois não há uma hierarquização que fundamente anulações e afirmações entre as diferentes sociedades, afinal, “[...] devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única” (ibid.). Da mesma forma, como explicado por Ullmann (1991): “A Antropologia mostra que a humanidade é única, singular. Apresenta os valores de todos os povos e culturas. Ensina a aborrecer o fanatismo etnocêntrico, insensato, quer ele proclame a superioridade racial, quer alardeie a sua cultura como única válida. A Antropologia Cultural inculca a igualdade dos povos, com suas aspirações da mais variada natureza e traz à consciência de todos o fato de que, conquanto cidadãos do mundo, não é possível sopitar a ânsia pelo transcendente manifesto em todas as culturas” (ULLMANN, 1991, p. 43). Em suma, a antropologia abrange a cultura como fonte de conhecimento e reconhecimento, através dos significados humanos construídos em sua diversidade, demonstra que valores e fundamentos foram instaurados para permitir a continuação da humanidade até a contemporaneidade. Portanto, a ação de descrever, interpretar e estudar culturas é parte da prática científica antropológica, e que, assim, é atribuída ao condutor da ação, o antropólogo – de mesmo modo em que o estudioso da biologia é o biólogo, da física, o físico. No entanto, é preciso refletir se essa prática cabe somente a quem é denominado antropólogo, da mesma forma que se pode questionar o mérito deste título. No seguinte subcapítulo, será tratado a função do antropólogo em meio a antropologia, quais seus fundamentos, o que lhe é atribuído e o que requer ser reconhecido como tal. 2.3. A função do antropólogo Se, ao definirmos a antropologia como a ciência interpretativa que estuda as culturas, definimos, então, o antropólogo como um intérprete das culturas, ao passo 31 em que se insere e produz documentos científicos acerca de coletivos distintos a ele. Para tal produção, portanto, é necessário um esforço, que condiz com a aproximação interessada por parte dos antropólogos em relação aos sujeitos a serem estudados, de modo receptivo ao ainda desconhecido e estranho, com a finalidade de conhecer seus fundamentos e relações sociais por meio da prática etnográfica, como mencionada anteriormente. Assim, pode se afirmar, em relação aos antropólogos, que o “principal foco de seu interesse são pessoas reais vivendo suas vidas cotidianas „em seu próprio território‟” (Beattie, 1997), e, para garantir a veracidade de suas observações acerca do outro, é necessário que se insira neste “território”, neste determinado contexto social. Ocorre, desse modo, o trabalho em campo, no qual o antropólogo adentra a realidade cotidiana do coletivo que será estudado, presenciando como se dão os costumes e hábitos, relacionamentos e políticas próprias dos sujeitos do estudo. Em primeiro lugar, segundo Rocha e Eckert (2008), antes de iniciar propriamente o trabalho em campo, é preciso que o antropólogo passe pela “construção do próprio tema e objeto de pesquisa” – quem será observado –, além da “adoção de determinados recortes teóricos-conceituais do próprio campo disciplinar e suas áreas de conhecimento – em que contexto ocorre a observação e onde ela se encaixa dentro da antropologia, como os exemplos das autoras, “Antropologia rural, Antropologia urbana, etc”. Da mesma maneira, Beattie (1997) ressalta que “o antropólogo social entra em campo com uma ideia razoavelmente compreensiva dos tipos de coisas que deseja descobrir e como deve proceder”. Para além desta etapa inicial de hipóteses e conceitos a serem formulados, a parte prática do trabalho em campo requer uma participação ativa do antropólogo no dia a dia em comunidade com o coletivo a ser estudado, usando como instrumento de pesquisa “a observação, a interpretação e a comparação” (Beattie, 1997). É preciso, também, apontar para a necessidade da documentação do estudo, que envolve, como exemplificado por Geertz (2008), “entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas de propriedade, fazer o censo doméstico... escrever seu diário”, enfim, a prática etnográfica. É por meio do trabalho em campo, da inserção, observação e levantamento de informações que se torna possível, então, conhecer outras culturas com maior fundamentação, como afirma Beattie (1997): 32 “Como afirmou Nadel, „toda maneira em que os fatos são agrupados em descrição envolve teorias, implícitas ou explícitas, sobre as conexões entre coisas que são significativas; e o significado é função dos tipos de perguntas para as quais o observador procura uma resposta‟. Assim, é obtuso debater se um pesquisador de campo deveria ter teorias sobre o que estuda; ele não pode prescindir delas. [...] Como qualquer outra investigação científica, o trabalho de campo é sempre uma tentativa de responder perguntas...” (BEATTIE, 1997, p. 95). Assim, na intenção de conhecer o outro, os antropólogos se comprometem a conhecer, analisar e interpretar os variados modos em que a cultura é produzida e perpetuada dentro das sociedades a serem estudadas por meio da inserção integral em seu cotidiano. Para tanto, os agentes da antropologia se deparam com certos desafios ao se encontrarem diante a costumes desconhecidos e tentarem interpretá- los, pois, sendo as culturas variadas e imensuráveis, seu levantamento de dados e informações não se dá tão simplesmente quanto nas outras ciências, porque não depende essencialmente de fenômenos naturais – que podem ser previsíveis –, mas sim, de pessoas. Beattie (1997) explicita este aspecto dentro da antropologia: “Desde que as sociedades não são „coisas‟ num sentido material, não podem ser estudadas como se fossem. O conceito de sociedade é relacional, não substancial; as únicas entidades concretas dadas na situação social são pessoas. O que indicamos quando usamos o termo “sociedade” é que estas pessoas relacionam-se entre si de várias maneiras institucionalizadas. E a tarefa do sociólogo e do antropólogo social é descobrir quais são estas maneiras” (BEATTIE, 1997, p. 42). É possível, assim, afirmar, resumidamente, que a motivação do antropólogo em seu percurso científico seja o conhecer o outro e suas vivências. No entanto, Laplantine (2007) nos traz uma perspectiva mais profunda acerca da prática antropológica, “que consiste antes em nos surpreender com aquilo que nos é mais familiar [...] e em tornar mais familiar aquilo que nos é estranho”. Como supradito, conhecer o outro implica conhecer a si mesmo, as bases e fundamentos de sua própria cultura numa relação de comparação entre o que é conhecido e o que é desconhecido, o familiar e o estranho. Assim, conhecendo e reconhecendo características sociais – costumes, hábitos, normas, pensamentos e sentimentos –, vemos no outro um pouco de nós, ao mesmo tempo que se complementa mais um fragmento ao grandioso mosaico da existência histórica humana. É de se esperar, desse modo, que esta relação de troca estabelecida durante a prática da antropologia afete ambos os lados do estudo, gerando um efeito tanto 33 sobre o observador quanto sobre o observado. Nesse sentido, é necessário pressupor o impacto que o antropólogo pode causar sobre a sociedade em que está inserido para seus fins de estudos, e, principalmente, se este deve ser seu papel de agente modificador ou não. Trata-se de definir, então, em que sentido a prática ativa do antropólogo deve se dar, e, assim, como questiona Laplantine (2007), se “o antropólogo deve contribuir, enquanto antropólogo, para a transformação das sociedades que ele estuda?”. Parte de ações transformadoras sobre sociedades não europeias ou norte- americanas se originam em meio a uma “boa intenção”, como uma forma de auxílio aos sujeitos menos favorecidos econômica, política e tecnologicamente, e estão comumente associadas a ideia de desenvolvimento capitalista (Laplantine, 2007) – que consiste, basicamente, na produção e consumo constante. O problema é que, neste desenvolvimento capitalista, sociedades pequenas são inclusas num menor grau socioeconômico, fazendo com que elas participem deste sistema a partir da venda de sua força de trabalho – muitas vezes, de modo exploratório –, ou seja, o desenvolvimento a ser realizado conta com a mão de obra de pessoas pobres, não é acrescentado qualquer outro auxílio ao desenvolvimento educacional, cultural ou político destes coletivos. A este fenômeno acrescenta-se um importante detalhe que já fora mencionado: a cultura não tem valor mensurável, assim, não há um valor que esboce e diferencie as culturas em níveis hierárquicos. É preciso refletir acerca do quanto essa boa intenção realmente auxilia os coletivos e o quanto ela pode prejudicar o ecossistema próprio destes, alterando relações com o trabalho, a natureza, o conhecimento e entre os próprios indivíduos. Torna-se necessário impor um limite em qualquer ação com capacidade de transformar e modificar as estruturas sociais de um coletivo, evitando o risco de sua descaracterização e perda de identidade. Portanto, se considerarmos que a diversidade seja o fundamento da antropologia bem como a toda sua base para pesquisas, a necessidade de transformar culturas não tem sentido algum dentro desta ciência. Uma vez que o foco é o outro, o diferente, o desconhecido, a homogeneização das sociedades seria o fim da antropologia e dos antropólogos. Sendo assim, o que cabe ao antropólogo em sua atividade? Laplantine (2007) responde esta mesma pergunta, formulada por si mesmo, como visto anteriormente: 34 “Minha convicção é de que o antropólogo, para ajudar os atores sociais a responder a essa questão, não deve, pelo menos enquanto antropólogo, trabalhar para a transformação das sociedades que estuda. [...] Auxiliar uma determinada cultura na explicitação para ela mesma de sua própria diferença é uma coisa; organizar política, econômica e socialmente a evolução dessa diferença é uma outra coisa. Ou seja, a participação do antropólogo naquilo que é hoje a vanguarda do anticolonialismo e da luta para os direitos humanos e das minorias étnicas e, a meu ver, uma consequência de nossa profissão, mas não é a nossa profissão propriamente dita” (LAPLANTINE, 2007, p. 30). Reconhecendo, assim, os deveres e ações de um antropólogo em meio a sua pesquisa, partimos para a próxima questão base do presente estudo: quem pode ser um antropólogo? É afirmativo que este cargo profissional seja atribuído a quem tenha uma formação educacional na área da antropologia ou outras ciências sociais, no entanto, o vigente interesse é, na verdade, acerca de pessoas que possam participar da prática antropológica de modo informal e cotidiano, sem uma formação específica para tal. Trata-se de colocar o “conhecer o outro” em qualidade de ação, buscando, interessadamente, uma relação direta com a diversidade e multiplicidade em que a cultura pode se dar, como defende, ainda, Laplantine (2007): “Não aqueles que têm por profissão a antropologia - duvido que encontrem nele um grande interesse - mas a todos que, em algum momento de sua vida (profissional, mas também pessoal), possam ser levados a utilizar o modo de conhecimento tão característico da antropologia. [...] Pois a antropologia, que é a ciência do homem por excelência, pertence a todo o mundo. Ela diz respeito a todos nós” (LAPLANTINE, 2007, p. 33,). Desse modo, o que se visa aqui são meios e métodos em que podemos participar da antropologia sem sermos, precisamente, antropólogos. Portanto, o princípio desta intenção condiz com a ideia de que qualquer pessoa possa ter acesso e participar ativamente do conhecimento plural construído a partir de uma interação com um ou mais coletivos, pautada na aproximação de culturas ainda desconhecidas ou não familiares para conhecer outros indivíduos, ao mesmo passo em que ocorre o reconhecimento de si mesma e sua própria cultura. Em sua obra, “O trabalho do antropólogo”, Roberto Cardoso de Oliveira (2000) nos exemplifica caminhos nos quais a ação antropológica pode acontecer, pautados, principalmente, em três ações: olhar, ouvir e escrever. O olhar, segundo o autor, corresponde a uma primeira experiência do antropólogo em seu trabalho de campo, e que, porém, já consta com uma 35 particularidade própria ao ser ativado, pois está acostumado com paisagens e indivíduos que são comuns a si. “Seja qual for esse objeto, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade” (Cardoso de Oliveira, 2000). Assim, o olhar ao outro funciona como um prisma, em que a imagem obtida pelos olhos passa por uma “refração”, que corresponde ao processo intelectual de compreensão do outro a partir de um conhecimento próprio, como explica o autor: “Esse esquema conceitual [...], funciona como uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração - se me é permitida a imagem. É certo que isso não é exclusivo do olhar, uma vez que está presente em todo processo de conhecimento, envolvendo, portanto, todos os atos cognitivos, que mencionei, em seu conjunto. Contudo, é certamente no olhar que essa refração pode ser melhor compreendida” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 19). Acerca do ouvir na prática antropológica, o autor afirma a necessidade de construir uma escuta ativa, na qual o antropólogo se propõe, interessadamente, a compreender o ponto de vista dos outros sujeitos por meio da conversação, estabelecendo uma relação de equidade por meio do ouvir um ao outro. Essa relação é objetivada na entrevista, que consiste na obtenção de informações e explicações dos próprios indivíduos estudados ao antropólogo, compartilhando suas visões acerca de suas vivências e das particularidades de sua cultura, algo que só é possível quando ocorre um ato de “um ouvir todo especial” (Cardoso de Oliveira, 2000). Para tanto, é preciso que a entrevista se dê a ambos, antropólogo e os sujeitos do coletivo estudado, como uma forma de diálogo, em que se gere um espaço aberto para a ampliação de horizontes, em que conhecimentos se chocam, se estranham, se instigam, se conhecem e se compreendem. Assim, Cardoso de Oliveira (2000) elucida que é apenas através do diálogo que ocorre a verdadeira ação de ouvir ao outro: “Sabemos que há uma longa e arraigada tradição, na literatura etnológica, sobre a relação „pesquisador/informante‟. [...] No ato de ouvir o "informante", o etnólogo exerce um poder extraordinário sobre o mesmo, ainda que pretenda posicionar-se como observador o mais neutro possível, como pretende o objetivismo mais radical. Esse poder, subjacente as relações humanas, [...] já na relação pesquisador/informante desempenhará uma função profundamente empobrecedora do ato cognitivo: as perguntas feitas em busca de respostas pontuais lado a lado da autoridade de quem as faz – com ou sem autoritarismo –, criam um campo ilusório de interação. A rigor, não há verdadeira interação entre nativo e pesquisador, porquanto na 36 utilização daquele como informante, o etnólogo não cria condições de efetivo diálogo. A relação não é dialógica. Ao passo que transformando esse informante em „interlocutor‟, uma nova modalidade de relacionamento pode – e deve – ter lugar” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 23) Por fim, o ato de escrever é descrito pelo autor como a segunda parte da ação do antropólogo – sendo assim, o olhar e o ouvir constituem em conjunto a primeira parte, por serem “os atos cognitivos mais preliminares no trabalho de campo” (Cardoso de Oliveira, 2000). Além do escrever em diários de campo, em que se coleta informações enquanto convive e se insere na realidade social estudada, o antropólogo deve sintetizar os dados recolhidos e vivenciados em um escrever “oficial”, que resultará em uma obra cientifica e se tornará uma base para demais pesquisas sobre determinada sociedade. Nesse sentido, a ação da escrita é a que exige do antropólogo sua maior criticidade, pois, é na textualização que se dará sua própria interpretação definitiva do que tenha visto e escutado em seu trabalho de campo. Cardoso de Oliveira (2000) nos descreve sobre a relação construída entre os dados captados pelo olhar e o ouvir e o ato de escrever pelo antropólogo, que irá perpetuá-los: “Já as condições de textualização, isto é, de trazer os fatos observados - vistos e ouvidos - para o plano do discurso, não deixam de ser muito particulares e exercem, por sua vez, um papel definitivo tanto no processo de comunicação inter pares - isto é, no seio da comunidade profissional -, como no de conhecimento propriamente dito. Mesmo porque há uma relação dialética entre o comunicar e o conhecer, pois ambos partilham de uma mesma condição: a que é dada pela linguagem” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 25). Além disso, é preciso considerar que trabalho escrito pelo antropólogo será um documento a ser lido e interpretado por outros, dentro e fora da realidade acadêmica da antropologia, e, por tanto, é necessário refletir sobre como seu modo de escrita impactará tanto os indivíduos que foram estudados quanto os que irão estudar tal cultura, como explicita, ainda, Cardoso de Oliveira (2000): “Penso, nesse sentido, na questão da autonomia do autor/pesquisador no exercício de seu métier. Quais as implicações dessa autonomia na conversão dos dados observados - portanto, da vida tribal, para ficarmos com nossos exemplos - no discurso da disciplina? Temos de admitir que mais do que uma tradução da "cultura nativa" na "cultura antropológica" - isto é, no idioma de minha disciplina -, realizamos uma interpretação que, por sua vez, está balizada pelas categorias ou pelos conceitos básicos constitutivos da disciplina. Porém, essa autonomia epistémica não está de modo algum desvinculada dos dados - quer de sua aparência externa, 37 propiciada pelo olhar; quer de seus significados íntimos ou do "modelo nativo", proporcionados pelo ouvir. Está fundada nesses dados, com relação aos quais tem de prestar contas em algum momento do escrever. [...] Portanto, sistema conceitual, de um lado, e, de outro, os dados - nunca puros, pois, já em uma primeira instância, construídos pelo observador desde o momento de sua descrição, guardam entre si uma relação dialética. São inter-influenciáveis. O momento do escrever, [...] faz com que aqueles dados sofram uma nova „refração‟...” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 27). Portanto, as relações estabelecidas com o outro na realização da prática antropológica podem ser expressas, como já fora mencionado, na aproximação e no conhecer – o olhar e o ouvir –, e, seguidamente, na interpretação do conhecimento adquirido – o escrever, para Cardoso de Oliveira (2000). É possível encaixar estas ações dentro da proposta do presente estudo, que se resume, novamente, na ação antropológica para sujeitos não inseridos no contexto acadêmico da antropologia. Nesse seguimento, é preciso considerar que tais ações dependam de um interesse em conhecer culturas e vivências diversas, para que haja um verdadeiro sentido por trás delas, tornando-se o combustível para uma pesquisa antropológica autêntica e subjetiva. O olhar e o ouvir, em primeira vista, não fogem de hábitos comuns ao cotidiano, no entanto, é por esta mesma naturalização que se tornam ações automáticas, desenvolvendo um comportamento inatento e não captando detalhes essenciais que perpassam o dia a dia. É na ativação do olhar e do ouvir que passamos adaptar nossa atenção e a vivenciar os impactos da diversidade cultural, de forma material e imaterial, nos momentos rotineiros, como, por exemplo, a identidade de cada indivíduo manifestada em suas roupas e penteados, a alimentação e a definição de horários paras as refeições – além dos alimentos inclusos, como o clássico arroz e feijão brasileiros –, dos sons que circulam os espaços de convivência, como falatórios e musicalidades em praças, bares, escolas, ou mesmo dos silêncios, presentes muitas vezes em cemitérios, santuários e museus. Já o escrever pode não parecer tão natural quanto as duas ações anteriores, mas isso não significa que não possa ser adaptado ao cotidiano de qualquer pessoa. Muito além da escrita em si, o ato de escrever se define, primeiramente, como uma interpretação dos elementos culturais captados pelo olhar e o ouvir, se convertendo em uma descrição particular que relaciona as informações novas e estranhas às informações já conhecidas e incorporadas. Desse modo, trata-se de uma síntese de 38 elementos de origens diversas, conduzindo o processo de conhecimento acerca do outro e seus hábitos. Essa síntese pode se manifestar além da escrita objetiva, utilizando as muitas formas de linguagem para evidenciar a prática antropológica, seja por meio de desenhos, poemas, músicas, fotografias e afins, e estes não necessariamente precisam ser expostos para um público, podem permanecer como um trabalho pessoal, que preserve toda a subjetividade presente no processo antropológico. Desse modo, a prática antropológica pode – e deve, como é defendido neste estudo – fazer parte da rotina de pessoas que não são essencialmente antropólogas, mas que tem total capacidade e recursos para executá-la, quando verdadeiramente intencionadas. Ao visar esta atitude ativa de uma antropologia “caseira”, visa-se, consequentemente, uma abertura para a diversidade cultural, aspecto primordial para a compreensão e o funcionamento das sociedades ou, por outra perspectiva, da humanidade como um todo. Trata-se, então, de estimular a prática da antropologia nos mais variados sujeitos, para que se relacionem com as diferenças e semelhanças, conheçam mais sobre o outro e sobre si mesmo simultaneamente, e, por fim, façam parte ativamente da construção de culturas plurais, que passam a ter origens diversas para sua formação, além de assegurar sua perpetuação para as próximas gerações. A proposta deste estudo, enfim, enfatiza o acesso a prática antropológica e os potenciais de experimentação junto às demais esferas fundamentais – a arte e a criança –, objetivando um meio de conhecer e expressar as culturas que seja diverso, subjetivo e significativo para o autor da ação – o antropólogo, sem formação prévia, mas disposto a participar da construção do conhecimento – como será elaborado mais adiante, acerca da formulação e bases da proposta. 39 3. A esfera arte É possível, em um primeiro raciocínio, ainda superficial, definir que a arte é o trabalho de um ou uma artista, sua obra, seja em qualquer linguagem artística existente – pintura, escultura, fotografia, colagem, cinema e muitas outras. Porém, nesta perspectiva perdemos a profundidade que uma obra de arte pode conter, como, por exemplo, o que diz respeito sobre seu contexto histórico e social, quais as nuances de seu simbolismo e seus significados ocultos à primeira vista, o que há do artista nela e qual a sensação ou pensamento a serem provocados no público são desejados. Todos estes aspectos contribuem para uma leitura visual que foge do superficial, acrescentando a arte um caráter de expressão subjetiva da humanidade quanto sua existência objetiva, como apontado por Ostrower (1996): “Quer dizer, as obras de arte também contêm significados psicológicos, sociológicos, históricos, filosóficos, sociais, às vezes políticos, mas, sem se levar em consideração o fator de linguagem como fato prioritário, perde-se justamente a qualidade de arte nessas obras, os significados artísticos que ampliam nossa sensibilidade e nosso ser consciente diante do mundo” (OSTROWER, 1996, p. 18). Neste ponto de vista, a arte é uma maneira de materializar e manifestar a humanidade presente em cada um, com seus respectivos pensamentos e sentimentos, sua cultura. Trata-se, assim, de um modo de expressão, uma linguagem. Essa linguagem, bem como seu impacto sobre os indivíduos (artistas e espectadores), se fundamenta, então, na relação criada e continuada entre o homem e o mundo, pautada em trocas e experiências obtidas ao longo da história, que determina e acrescenta significados as produções artísticas geradas. A partir disso, é possível refletir sobre como a arte se gera e é gerada nas múltiplas vivências possíveis, sua relação com a cultura e a produção histórica da humanidade, qual o impacto do acesso à experiência artística sobre os indivíduos e como garantir essa acessibilidade, visando uma inclusão da produção e fruição artísticas. Todos estes aspectos se tornam primordiais para a concepção do presente estudo, ao passo em que a proposta constitui uma base edificada, se orientando, também, na arte e sua relação com as demais esferas norteadoras – a antropologia e a criança. 40 3.1. Arte e experiência A arte, em uma perspectiva abrangente, é um fenômeno humanizado, pois é um produto da criação humana, então contém em sua manifestação, material ou imaterial, traços do homem, da humanidade e de sua subjetividade. Assim, nesta mesma perspectiva, o artista se torna um “materializador” da humanidade. Porém, em um viés reflexivo, pode-se questionar como é possível captar a essência humana, em sua multiplicidade, em uma produção e quais são os resultados desta ação, como, por exemplo, que tipo de pensamento ou sensação o trabalho artístico provocará no outro, em sua própria humanidade. Em sua obra, Anamelia Buoro (2002) descreve brevemente o impacto do artista, e de demais agentes das linguagens, e sua produção dentro da sociedade, cujo potencial de gerar reflexão, conexão e questionamentos, através da leitura de imagem, complementa a relação da humanidade com o mundo: “Sabemos que poetas, artistas, escritores, cientistas, filósofos – e demais produtores de linguagem – são indivíduos que se destacam nas mais diferentes culturas pelos objetos que constroem e que nos encaminham a refletir e aprender, diversificando assim nossas relações com a natureza, com outros indivíduos e com questões da nossa existência. Sua preocupação é engendrar narrativas, objetos e imagens com base em um pensar sobre o homem e o mundo, para que, das leituras dessas produções, emerjam questões. Estas, por sua vez, dão lugar ao aprendizado e, por meio dele, à transformação da realidade concreta, num movimento contínuo que tem como via de manifestação as semiotizações dessas mesmas produções. Sendo assim, a arquitetura estabelecida por esses geradores de conhecimentos e transformadores do mundo é o que deve se tornar objeto para sujeito motivado pelo entendimento de suas significações” (BUORO, 2002, p. 25). Nesse sentido, o artista torna-se um comunicador, no qual seu discurso para o público é manifestado em sua obra, carregando-a com uma mensagem de cunho coletivo, como sobre seu contexto histórico-social, ou de cunho particular, colocando sobre a obra um ou mais aspectos de suas vivências. No primeiro aspecto, o trabalho artístico pode refletir uma tanto uma visão fiel de sua respectiva sociedade em determinado meio e tempo, quanto uma visão idealizada ou crítica dela. Em ambas as situações, as obras resultadas servem como um documento histórico acerca da existência humana, permitindo conhecer, através da experiência visual, tátil e auditiva, a cultura e os princípios sociais estabelecidos em diversos contextos. A arte egípcia antiga é um interessante demonstrativo desse aspecto, em que a representação de figuras não é essencialmente realista, mas acarreta, em seus 41 irrealismos, importantes significados para compreendermos as estruturas sociais de seu período (figura 2), como as hierarquias sociais, manifestadas nas variadas dimensões, como afirma Gombrich (2011) acerca do mural do túmulo de Khnumhotep de 1900 A.E.C., localizada em Beni Hassan: “Neste exemplo, como sempre, a arte egípcia não se baseou no que o artista podia ver num dado momento, e sim no que ele sabia fazer parte de uma pessoa ou uma cena. Era a partir dessas formas por ele aprendidas, e dele conhecidas, que construía suas representações... Não é apenas o seu conhecimento de formas e contornos que o artista consubstancia na pintura, mas também o conhecimento que ele possui do significado dessas formas. Chamamos um homem de „chefão‟. Os egípcios desenhavam o chefão maior do que os seus criados ou até do que a sua esposa” (GOMBRICH, 2011, p. 62). Figura 2: Detalhe do mural do túmulo de Khnumhotep, 1900 a.C. Desenho baseado no original, publicado por Karl Lepsius, Denkmäler, 1842. Fonte: Gombrich (2011). No segundo aspecto, que toma como base as vivências particulares do ou da artista, obtemos mais uma faceta acerca da existência humana, que, por mais que emerja de um espaço pessoal, é resultado de um processo cultural e pode se relacionar diretamente com inúmeros outros sujeitos por meio da apreciação e fruição, de formas também pessoais e distintas entre si. Um exemplo artístico deste aspecto é a pintura feita por Van Gogh (1853-1890) de seu próprio quarto (figura 3) – um ambiente que é comum a muitos indivíduos, e que desperta diferentes 42 significações a cada um –, que vai ao encontro direto com a subjetividade do pintor ao apresentar cores não condizentes com a realidade, mas sim com as suas próprias intenções, como apontado em uma carta que escreveu a seu irmão: “[...] trata-se simplesmente do meu quarto, só que a cor se encarregará de tudo, insuflando por sua simplificação, um estilo mais impressivo às coisas e uma sugestão de repouso ou de sono, se um modo geral” (Gogh, 1888, apud. Gombrich, 2011). Esta representação, por mais simples que pareça em sua proposta, revela muito acerca da relação do homem com o mundo em que se encontra, materializado em formas diversas, que criam um significado e uma relação próprias para o artista e para o espectador, como afirma Gombrich (2011), ainda sobre o trabalho de Van Gogh: “É evidente que Van Gogh não estava principalmente interessado na representação correta. Usou cores e formas para transmitir o que sentia em relação às coisas que pintava e o que desejava que os outros sentissem... Exagerava e até mudava a aparência das coisas, se isso se adequasse ao seu propósito [...] por sua parte, queria que a sua pintura expressasse o que ele sentia, e, se a distorção o ajudasse a realizar esse objetivo, utilizaria a distorção sem hesitar” (GOMBRICH, 2011, p. 548). Figura 3: Vincent Van Gogh, “O quarto do artista em Arles”, 1889. Óleo sobre tela. Fonte: Gombrich (2011). O que ambos os aspectos da obra arte – coletiva ou particular – compartilham entre si é a relação de troca que ocorre entre o homem e o mundo objetivo, construído por si mesmo. Esta relação, entre o sujeito e mundo, que é estabelecida 43 na arte, seja na dinâmica ativa de produção ou de apreciação, tem como base as experiências obtidas nas múltiplas vivências possíveis, através de fenômenos culturais e naturais, criando significados e fornecendo uma base para a construção de símbolos. Dewey (2002) fundamenta sua teoria sobre a estética na experiência, sendo ela mediadora e mediada no contexto artístico, assim, “a obra de arte real é aquilo que o produto faz com e na experiência”. De modo mais descritivo, Dewey (2002) considera que a arte é “o desenvolvimento esclarecido e intensificado de traços que pertencem a toda experiência normalmente completa”, e que “toda experiência é resultado da interação entre uma criatura viva e algum aspecto do mundo em que ela vive”. Portanto, “não há outra base capaz de servir de alicerce à teoria estética senão o reconhecimento de que a arte é o produto da interação contínua e cumulativa de um eu orgânico com o mundo” (Dewey, 2002). É esta mesma relação estabelecida entre o homem e o mundo que gera os produtos da humanidade, na qual a arte se inclui, e possibilita a geração e continuação do homem humanizado, produtor de significados. Paulo Freire (1967) traz a concepção de homem como um “ser de relações”, não apenas de contatos superficiais e instintivos, mas sim de trocas constantes e significativas, que “não apenas está no mundo, mas com o mundo”, e, portanto, implica que “estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é”. Assim, o homem cria sua realidade e seus muitos aspectos com o mundo, ao passo que o mundo se transforma através da ação humana, como elucida Freire (1967): “A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo destas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiado e respondendo ao desafio, alterando, criando, que não permite a imobilidade, a não ser em ternos de relativa preponderância, nem das sociedades nem das culturas. E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas” (FREIRE, 1967, p.43). Desse modo, o mundo artístico – e além dele, como o mundo educacional, o mundo político, o mundo econômico e outros – é definido pelas experiências acumuladas pela humanidade ao longo de sua existência, que criam significados e fundamentam a cultura e a organização social. Sendo algo comum a todos os 44 indivíduos, mesmo de modos distintos, “a experiência ocorre continuamente, porque a interação do ser vivo com as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver” (Dewey, 2002). No pensar sobre a experiência, Jorge Larrosa Bondía (2002) afirma que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca [...] não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. Isso porque, para Bondía (2002), “a cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece”, no sentido de que, muitas vezes, acontecimentos não implicam uma experiência em si, uma geração de significado. Para Dewey (2002), uma experiência singular ocorre “quando o material vivenciado faz o percurso até sua consecução”, ou seja, em um processo que tem início, meio e fim, como concluir uma obra de modo satisfatório, como exemplifica o autor. Só então, em seu final, ela é internalizada pelo sujeito e “demarcada no fluxo geral da experiência”, por seu “caráter individualizador e sua autossuficiência” (Dewey, 2002). Assim, ainda segundo Dewey (2002), através das vivências significativas obtemos as “experiências reais”, que são “aquelas coisas de que dizemos, ao recordá-las: „isso é que foi experiência‟”. Através das experiências internalizadas, constituímos uma rede de significados e saberes – sendo a cultura um produto primo deste processo –, e nos tornamos, assim, sujeitos da experiência. Para Bondía (2002), “o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura”, por meio de “uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial”. Esta abertura condiz com uma concordância com as inúmeras possibilidades, de ser e de não ser, de ação ou de inércia, trata-se de se deixar afetar para conhecer a diversidade de vivências propiciadas pela atividade humana em seu meio e tempo, de permitir que a experiência nos moldes, para, posteriormente, moldá-la à nossa maneira, à nossa subjetividade. Na arte, o artista e o espectador são sujeitos da experiência, e vivenciam o processo artístico de produção e fruição através da experiência, se baseando e gerando significados a partir dela. Dewey (2002) afirma que a obra de arte se torna um veículo da experiência através do ato de expressão, em que o produto material se torna, “mais que uma simples instrumentalidade, um canal pelo qual a experiência flui, desimpedida e desocupada”, ao passo em que “a expressão 45 também não permite que o material se mantenha como uma obstrução inflexível, que capta e retém a atenção sem deixar a experiência prosseguir até a realização”. Desse modo, a arte e seus conteúdos se expandem ao passo em que se relacionam e criam experiências para e com os artistas e espectadores, que possibilitam significações múltiplas para o produto artístico, engrandecendo seu valor subjetivo e humano. Contudo, é preciso refletir que, por mais que as experiências sejam comuns e constantes aos indivíduos, nem todos têm acesso as mesmas experiências, ou pelo menos, do mesmo modo que alguns. A arte como experiência pode-se dar de muitos modos, através de livros, revistas, programas televisivos, museus, galerias, escolas e outros, mas com diferentes impactos e modos de acesso a diversos indivíduos, implicados, em sua maioria, por uma divergência econômica e cultural. O reconhecimento de que a experiência artística é, por vezes, considerada indisponível a alguns sujeitos é fundamental para embasar um posicionamento crítico e questionador, necessário para promover uma mudança ao acesso e ao conhecer a arte e suas possíveis experiências, assim como as consequências desses atos sobre a sociedade, tanto em seu viés ativo quanto reflexivo. 3.2. Acesso à experiência artística O acesso à arte, principalmente no contexto nacional, implica o reconhecimento da influência de atividades de ordens econômicas e culturais, que caracterizam as relações sociais em classes e raças. O Brasil, apesar de sua grandiosa diversidade cultural e artística, tem suas bases ainda fincadas no colonialismo e no imperialismo europeu, que difundem, até a atualidade, valores qualitativos acerca das atividades sociais, incluindo a arte. Desse modo, fica reservado às classes dominantes a produção e a fruição da arte, tornando-a homogênea e unilateral, deixando de ser acessível e significativa para a maior parte da população brasileira. Este processo de dominação do acesso ao campo artístico no Brasil se inicia, primordialmente, no período colonial, em que, segundo Silva (2012), parâmetros elitistas determinavam o contato com as produções artísticas da época, sendo, em sua maioria, iconografias religiosas. Esses mesmos parâmetros elitistas e religiosos se estenderam até a segunda metade do século XVIII, em que o barroco se difundia fortemente pelo Brasil (Silva, 2012), a custo de trabalhadores negros escravizados para a fruição de donos de terras brancos. Por conseguinte, a chegada da Missão 46 Artística Francesa reforçou aspectos econômicos e culturais como caracterizadores da acessibilidade da arte, utilizando-se dela, também, para enaltecer as classes dominantes à moda europeia: “Encarregados de irradiar “cultura e civilização” por meio da construção de edifícios públicos, da realização de festas reais e da criação da primeira academia de arte brasileira, os artistas franceses tiveram de consolidar uma cultura urbana laica para as elites locais...” (SILVA, 2012, p. 101). Com a criação da Academia Imperial de Belas Artes, a arte no Brasil avançou seu caráter elitista ao patamar acadêmico, restrito para aqueles que tinham a oportunidade de um ensino superior, um acesso aos conhecimentos que eram realmente valorizados na época, de cunho intelectual e técnico europeu. Os conteúdos artísticos eram embasados na Arte Clássica da Europa (Silva, 2012), que era, até então, considerada a superior dentre os movimentos artísticos existentes, e que ainda não havia adentrado a realidade do público brasileiro, agregando a classe dominante mais um saber inacessível a maioria da população: “[...] a incompreensão, o contato com imagens e ritos desconhecidos, colocava a realeza e os nobres num patamar mais elevado, inacessível aos demais” (Naves, 1996, apud. Silva, 2012, p. 102). A problemática da instauração de uma valorização europeia na cultura brasileira por meio da arte está no ato de formação de uma identi