unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP CARMEN HANNUD CARBALLEDA ADSUARA UUUNNNAAATTTÍÍÍ YYYAAAPPPEEEYYY!!! Aspectos da vida Terena em Araribá ARARAQUARA – S.P. 2016 CARMEN HANNUD CARBALLEDA ADSUARA UUUNNNAAATTTÍÍÍ YYYAAAPPPEEEYYY!!! Aspectos da vida Terena em Araribá Dissertação de Mestrado, apresentado ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Exemplar apresentado para defesa. Linha de pesquisa: Diversidade, Identidades e Direitos Orientador: Paulo José Brando Santilli Bolsa: CNPQ ARARAQUARA – S.P. 2016 Carmen Hannud Carballeda Adsuara UUUNNNAAATTTÍÍÍ YYYAAAPPPEEEYYY!!! Aspectos da vida Terena em Araribá Trabalho de Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Exemplar apresentado para defesa. Linha de pesquisa: Diversidade, Identidades e Direitos Orientador: Paulo José Brando Santilli Bolsa: CNPQ Processo: 133276/2015-5 Data da defesa: __01_/__07_/__2016__ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Paulo José Brando Santilli Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP Membro Titular: Profa. Dra. Graziele Acçolini Universidade Federal de Grande Dourados - UFGD Membro Titular: Prof. Dr. Edmundo Peggion Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Dedico este trabalho aos meus amigos e amigas Terena e também ao meu finado avô Raphael Hannud e à minha querida avó Janette Izaac Hannud. Agradecimentos Este trabalho só foi possível graças a todas e todos que, direta ou indiretamente, estiveram presentes desde a sua gestação. Foram diversos os desafios enfrentados e termino esse período muito fortalecida. Também me diverti muito, e o que não trouxe risos, trouxe poesias. Só tenho a agradecer a: Minha mãe, meu irmão, minha avó e tia Cuca; Gustavo, amigas e amigos Terena e Guarani, em especial Adão e família, Lauro e família, Claudino, Creiles e família, e todas as lideranças indígenas de Araribá; Paulinho Paiakan, Elza, Tiago, Milene, Cida e seus netos, Dani, Chicão, Mirela e Rex, Tia Marina e Indiana, Néia, Erídeo, Iracy, Zé Simão e Anderson, família do sr Elizeu e Val, do sr Teotônio, Ritinha, Jedel, Antonio e Nahimã, Thaís, Naherí; Rafaela e Raiane; Érica e sr Tito, dona Eva e João, Dario, Célia e Márcia, Paulinho Eto e família, e Peta, Florenza e todas e todos os seus parentes; Zaine, Cledir e sua família na aldeia Nimeundajú, Dayane, Fô e as crianças; David Terena e sua família; Jiene e família, dona Ingrácia e família; Carina e família, Jiene, Clodoaldo, Pâmela, dona Amália e família; Regiane, Vadu e família e todas e todos da SESAI; professor Coelho e sr Dirceu; Família Silvestri; Stephanie Otto e família; Fernanda e Rhosy Mendes. Agradeço a todas e a todos os moradores da Terra Indígena Araribá. Professora Larissa Pelúcio; Professor Dinael Corrêa de Campos; Diogo; Bia e demais Llamas; Kaira Moraes Porto, Marina Leonel Soares e galera dos estágios de psicologia da UNESP; Victor Arieta e sua avó Lia; Professor Paulo Santilli; Gustavo Salinas, Natália de Oliveira, Rairi, Letícia, Júlio, Amanda Mozão Barbosa, Dener, Corazza e Pessoal da Moradia de Araraquara; Eliane; William Franco; André de Deus; Monã Hegel Benetti; Jonathan Lambert; Guilherme Pinho; Digo; Dom; Simone Cristina Simões; Vladimir, Isa e todas e todos do CEIMAM; Professoras e professores do PPGCS Araraquara, especialmente Ana Lúcia, Renata, Dagoberto e Edmundo, e do PPGAS UFSCar; professora Graziele; Leda, Ana, Natália e demais funcionárias e funcionários do PPGCS; alunas e alunos da turma de Temas especiais de antropologia contemporânea 2014; Stephanie Otto; Thierry Nineli; pessoal do CCI UFSCar; Jaque Talga; Nathalie Ferreira; Manu Lowenthal; Ana Carol – e Fabrício e Rudá -, Isabel, Paulo e família; Alessandro Chaves; Regiane Zornetta; Rebeca Rebollo e todas e todos da turma do mestrado 2014; Maila, Jorge, Marcelo e Danilo. Professora Márcia, da yoga; Ettore; Ana demais da ciclofaixa; professora Silvia Beatriz; todas as funcionárias e estagiárias, todos os funcionários e estagiários da UNESP, da biblioteca, do pólo, do antigo RU, do xerox; do Bom Prato e da Casa da Cultura. Natália, a artesã de corpos, obrigada a você também. A todas e todos da Opção Brasil; todas as amigas e todos os amigos indígenas; Jú Tiverón e Dayane Teixeira; Joci Pataxó, Juliane Silva Aguiar e PET ADM, pessoal que esteve no III EBPC em Crato, especialmente a Suamy e a Laelba. A Claudete Cordia; Tim Ingold, Lilica e Nikita. E muito obrigada a quem esteve mais de perto na reta final: Azucena, Mario, Kerla, Shell, Marcelo, Ayrinha, Sérgio e Rafa. Tati, Jiene e Israel, Thierry, pessoal da pizzaria Vecchia Roma. Jaque, muito obrigada. Aos amigos Gelo, Darbi, Alscandar, Mozão. E a Isa Viddo pela revisão do texto. Agradeço, imensamente, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo financiamento desta pesquisa (processo 133276/2015-5). Esse trabalho não existiria sem vocês! Muito obrigada a todas e a todos. Ainapó akoé’noé. In Memorian a Zeine Maria Alves e Adelaide Marcolino. Sou Terena em Araribá, Minha força está na terra E nos cultivaris que ela dá. Sou Terena em Araribá, Meu sangue guerreiro Não vai me deixar, Expandindo horizontes Aonde cada Terena está. Sou Terena em Araribá, Minha rota é instável, Gravidade que faz movimentar. Sou Terena em Araribá, Mato Grosso do Sul É água no copo de Tereré, Aquele que provará. Nossa união é força Em tudo o que ela nos dá. Nosso corpo é terra, Alimento pra te agraciar. Mas desde 88, O porvir Terena se configurou. Na universidade se engajou, Garantindo nossos direitos Aonde quer que a gente vá. Se tudo isso nos desloca, Nosso espírito pode precisar De um caminho pra curar, Especialistas pelo mundo, nós vamos procurar. Ocupando a diversidade, nossos filhos vamos criar. Nossa vida é movimento, Podemos nos reinventar, Sem deixar de ser quem somos, Nosso bem é compartilhar, Receber bem a visita, O espírito alimentar. Os desafios que encontramos, São caminhos a prosperar. Estamos nos reinventando, A todo tempo nos atentando. Sentindo o som do que plantamos, Prosseguimos sempre dançando; Com a força de nossa palavra Seguimos nas trilhas, lutando: Avante! Úndi Terenoe ihai Araribá Xunaco haneye yara pokee Xunaco indina akomo síkanu Emvogueovo. Haneyeigo goyonoyea mbokeexa Undí terenoe ihai hanaiti hoi, Yomondí orenguea terere xaneti, Kasatí úne. Enone porexo'ovi xunako uti koitukeya ya vísaneke yoko elokeyea vokovo. Yoko úhepeyea níkea nikokonoti. Koueku vihikaxeovo vemo'u porexoví xunako utí vihikaxeovo ya. Pítívokoke xe'exa utí yapayaikoa utí motovati apeyea xunako utí. Motovati vexeokono vítukeovo Terenoe koane ako kurika ra híyokena utí. Koane akomo síka uti ivokeovo. Koehati kíxo'ovíkune ituko'ovítí. Ha'a utí, Píhotíne yonea utí. Vukapanavo! Ihikaxoti Dario Povoti TXEAWU NHANDEVA Txee Nhandeva Apygwa, Txee nimbarete koywy, oré djaty a'eomeẽ. Txee Nhandeva Apygwa, txee ugwy xondaro anỹi txeeredja, tuvitxa ywya'e aryrei mamõ-pa Nhandeva õ'i. Txee Nhandeva Apygwa, Txeerapé ogwerova, mbarete nhande-rekoa. Txee Nhandeva Apygwa, kaagwiyrutsu yykarorykwe-õi, mavã mboapy. Nhande-pamẽ mbarete opambaeomeẽ. Nhandereteyvy, tembiuporã. Pe88 ogweru nhandeva mpopara. Nimboeatypy onoõ, oremõi nhãnde djaikoawã mamõ. Nhãnde djaiko. Opambaé djavyky Nhãnde reko oiporara. Peteĩtape mbogwerá, oikwapa koywypy, oréroeka. Aiporu opambaé, oré mitãngwe mõgakwa'a. Oré teko. Gwata, oré djadjapó, edjaemẽ nhãdembaé, orerekombodjaó, omaẽ porã apitxa, tekombareté. Naporaĩ nhaumaitin, tapeporã. Orerodjapo, orepamẽ moaguekó. Oreẽdumbadjaty, djagwata djeroky; nhande aywu mbareté djagwata tapé, djoguero-a: tenondé! RESUMO Os Terena de Araribá, Terra Indígena no Estado de São Paulo, reconhecem o Mato Grosso do Sul como seu território de origem, de onde saíram em 1930, por meio de uma ação do Serviço de Proteção aos Índios. A partir dessa mudança, seu ideal de vida plena vem sendo reinventado na perspectiva unatí yapey, inspirada e motivada por referências cotidianas das aldeias onde até hoje vivem seus parentes. Nesse contexto, este trabalho estudou a concepção de bem viver Terena em Araribá, em sua intersecção com uma construção de corpo e de pessoa. Partindo das relações cotidianas, o método etnográfico possibilitou identificar alguns estados considerados indesejáveis e encaminhados a especialistas pelos próprios Terena. Assim, foi possível esmiuçar um pouco da cosmovisão Terena e suas matizes no âmbito do bem viver, das relações de cuidado e cura. Palavras-chave: Terena. Araribá. Procedimentos de cura. ABSTRACT The Terena Araribá, an indigenous land in the State of São Paulo, recognize Mato Grosso do Sul as their original territory, which was left in 1930 because of an action of Indian Protection Service. Since this change, their ideal of full life has been reinvented through the so-called unatí yapey perspective, which is inspired and motivated by everyday references of villages where their relatives currently live. In this context, this paper studied the design of living well in Terena Araribá and its intersection with building of body and individual. Starting from everyday relationships, a range of ethnographic tools made it possible to identify some states considered undesirable and as requiring specialists by Terena people themselves. It was possible to scrutinize some of the Terena worldview and its nuances concerning good life and care and healing relations. Keywords: Terena. Araribá. curing procedures. Úndi Terenoe ihai Araribá. Xunaco haneye yara pokee xunaco indina akomo síkanu emvogueovo. Haneyeigo goyonoyea mbokeexa undí terenoe ihai hanaiti hoi, yomondí orenguea terere xaneti, kasatí úne. Enone porexo'ovi xunako uti koitukeya ya vísaneke yoko elokeyea vokovo. Yoko úhepeyea níkea nikokonoti. Koueku vihikaxeovo vemo'u porexoví xunako utí vihikaxeovo ya. Pítívokoke xe'exa utí yapayaikoa utí motovati apeyea xunako utí. Motovati vexeokono vítukeovo Terenoe koane ako kurika ra híyokena utí. Koane akomo síka uti ivokeovo. Koehati kíxo'ovíkune ituko'ovítí. Ha'a utí, píhotíne yonea utí. Vukapanavo! Ihikaxoti Dario Povoti MBOPARA Nhandeva Apygwa, koywypy SP, oikwa'a kaagwyrutsu djyvwyramõ, mamõgwio'u 1930, ovitxa ogweru nhandeva. Aegwi gwerowa, teko porã odjapo teko porã, oetxapetekoa mamõ koa'ỹ oiko Nhandeva. Aerõ mbawyky nimboe oikoporã Nhandeva apygwa, djowara ndrete mbopara. Mbodjaoary, nimboe djaikwa'a awã a'é o'ó Nhandeva. Aerõ, txauka teko porã, mbogwera awi'i. Nhandeva reko LISTA DE TABELAS Tabela 1 Itinerações de cuidado Terena em Araribá 56 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CAPS Centro de Atenção Psicossocial EJA Educação de Jovens e Adultos FUNAI Fundação Nacional do Índio FUNASA Fundação Nacional da Saúde GATI Gestão Ambiental e Territorial Indígena MS Mato Grosso do Sul MT Mato Grosso ONG Organização não governamental SESAI Secretaria Especial de Saúde Indígena SP São Paulo SPI Serviço de Proteção aos Índios SRID Serviço de Referência e Informação Digital TI Terra Indígena UNESP Universidade Estadual Paulista USC Universidade do Sagrado Coração www World Wide Web Sumário INTRODUÇÃO .................................................................................................................................................................. 7 1. Contextualização histórica da territorialização e temporalidade Terena em Araribá .................................................... 13 1.1. Movimentos no período de tutela .......................................................................................................................... 18 1.2. O porvir Terena: a vida referenciada no MS ......................................................................................................... 41 2. Dinâmicas locais, generosidade e corpo: construção da pessoa .................................................................................... 44 2.1. Visitar e receber: mudas, alimento e comensalidade ............................................................................................. 47 2.2. Ideal agrícola em tensão ........................................................................................................................................ 50 2.3. Corporalidade e projeto coletivo: novos caminhos no porvir Terena .................................................................... 52 “Tudo o que move é sagrado e remove as montanhas com todo o cuidado, meu amor” .............................................. 52 3. Unatí Yapey, estados de existência e especialistas ....................................................................................................... 60 3.1. Desejável e indesejável: delimitações dos estados de limiaridade ........................................................................ 69 3.2. Os especialistas ..................................................................................................................................................... 70 3.2.1. Dona Ingrácia ..................................................................................................................................................... 71 3.2.2. Dona Dirce, Sebastião Bacana e outros benzedores ......................................................................... 73 3.2.3. Pastores e missionários ..................................................................................................................... 73 3.2.4. Médicos e instituições de saúde ........................................................................................................ 74 3.3. O ato de beber ....................................................................................................................................................... 75 3.3.1. O espírito que bebe pinga ................................................................................................................. 76 3.3.2. Pastores, palavras e batalhas espirituais ........................................................................................... 78 3.3.3. O alimento mal tratado, o indígena ao tratamento ........................................................................... 86 3.3.4. A bebida além de itinerações: algumas observações ........................................................................ 87 3.4. Das coisas feitas por inveja ................................................................................................................................... 89 3.4.1. O lugar da “planta” na socialidade Terena Unatí Yapey ................................................................... 91 3.4.2. Caminhos de instabilidade: itinerações de cuidado nos casos de “coisa feita” ................................. 92 3.4.3. Conhecimentos em tensão, indivíduos em confusão ........................................................................ 95 3.4.4. Sobre dons não desenvolvidos ........................................................................................................ 101 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................................................... 104 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................................. 106 ANEXOS ........................................................................................................................................................................ 111 ANEXO A .................................................................................................................................................................. 112 ANEXO B .................................................................................................................................................................. 113 ANEXO C1 ................................................................................................................................................................ 114 ANEXO C2 ................................................................................................................................................................ 115 ANEXO D .................................................................................................................................................................. 116 ANEXO E .................................................................................................................................................................. 117 ANEXO F ................................................................................................................................................................... 118 ANEXO G .................................................................................................................................................................. 119 ANEXO H1 ................................................................................................................................................................ 120 ANEXO H2 ................................................................................................................................................................ 121 7 INTRODUÇÃO “Se a ciência pretende ser coerente em sua prática de conhecimento, ela deve ser reconstruída sobre as bases da abertura […] do engajamento […] E isso significa recuperar o senso do assombro” (Ingold, 2013) A Terra Indígena Araribá localiza-se no município de Avaí, no centro oeste do estado de São Paulo. Foi uma das primeiras terras indígenas instituídas pelo Serviço de Proteção aos Índios logo após a sua fundação, no ano de 1913, para concentrar a população Guarani, que atualmente forma a aldeia Nimuendajú. A TI Araribá compreende hoje mais três outras aldeias, Kopenoti, Ekeruá e Tereguá, habitadas majoritariamente por famílias Terena, vindas a partir de 1930 das aldeias Limão Verde, Cachoeirinha e Ipeque, no estado de Mato Grosso do Sul. Tal movimento migratório, promovido pelo SPI até o final dos anos 1940, tinha dois principais objetivos. Visou a reocupação da área que havia sido despovoada desde 1927 por causa de uma epidemia de gripe espanhola, e, por outro lado, a formação de mão de obra indígena voltada à agricultura. Vale registrar que para o Estado, a Terra Indígena possui um caráter de “terra”, de espaço geográfico, enquanto que, para os povos originários, possui um caráter de “território”. Ou seja, quando se trata de um território, a terra possui um investimento simbólico que a torna parte de uma forma de existir, tornando-se, portanto, “cultural”. Nesse contexto, a população Terena estabeleceu-se em Araribá e remodelou seu modo de vida de acordo com as características do novo território sob a tutela do órgão indigenista oficial. Tendo vivido por décadas sob o regime tutelar e em convivência forjada com os Guarani, o propósito indigenista de fazer dos Terena um contingente de força de trabalho realizou-se também com a pretensão do Estado de torná-los trabalhadores em um processo civilizatório. A despeito disso, os Terena até hoje vivem em suas aldeias a seu próprio modo, resguardando o que eles mesmos reconhecem como sua própria identidade. Sendo a história em Araribá seu “fundamento” de porvir, atualmente os Terena colocam-se o questionamento a respeito do que constitui sua “cultura”, do que os identifica como um povo. Ante as lacunas, os contrastes e as tensões de suas 8 expectativas de chegar em Araribá e seu presente, os Terena passam a zelar pelo que reconhecem como seu, em um esforço notável de deixar registrada sua marca étnica e sua territorialidade a fim de construir – e reconstruir – um lugar com a “cara Terena”, um lugar que é Terena. Vieram para Araribá pela mediação do SPI, considerando trabalhar com agricultura, em uma valorização de sua etnicidade. O tempo passou e hoje o projeto Terena, antes configurado idealmente no trabalho agrícola mediado pelos próprios conhecimentos, muda seus rumos por causa da precarização das condições para a realização de seu ideal de vida. Tal circunstância é marcada pela falta de recursos para a agricultura e também pelo alcoolismo. Durante o trabalho de campo, foram diversas as vezes em que a problemática e suas demandas foram colocadas para a pesquisadora, que teve de lidar com perguntas sobre “identidade” e “tradição” Terena, bem como sobre os desafios para realizá-las. Hoje, a forma como os purutuyé percebem as culturas indígenas e os Terena tornou-se uma preocupação nítida no dia a dia em Araribá, configurando relações políticas, regras de convívio com pesquisadores, pastores e moradores das cidades próximas a Terra Indígena. Nas festividades, a preocupação em trazer elementos que a história fez deixar em segundo plano (o preparo da farinha de mandioca, ramokó xupú, e do bolinho de mandioca defumado na folha de bananeira, o hihi) revelam a preocupação em tornar viva a cultura de que não mais se fala, a língua que não mais se vive. Tanto assim que, quando foi perguntado a um Terena professor como se escreve uma das palavras de seu idioma (se com i, ou y, ou í), ele respondeu que tanto faz, pois essa gramática não é uma preocupação local como é “se a nova geração vai falar a nossa língua”. Todos esses elementos, portanto, pareceram mostrar a reinvenção do termo “cultura” pelos Terena, a partir do que eles próprios consideram caracterizá-los como um povo que compartilha uma forma de viver. Dessa forma, configuram elementos que aos poucos parecem desenhar para a pesquisadora “o caminho das pedras” dessa pesquisa acerca de uma concepção de vida plena. Concomitantemente, o trabalho inspirou-se em trabalhos que fazem o exercício de problematizar conceitos e apreender descritivamente perspectivas próprias em torno de ideais de bem viver. Ao destacar as concepções e práticas indígenas orientadas pelo “Bem 9 Viver”, aproximamo-nos de metáforas fundantes do ideal de vida plena [...]. Nos últimos anos, com as frustrações dos projetos desenvolvimentistas e com a visibilidade que alguns povos indígenas alcançaram no cenário político sul-americano, como na Bolívia e no Equador, a expressão Bem Viver começou a integrar também a linguagem de não indígenas, sobretudo a dos que se opunham ao neoliberalismo; Suma Kawsay [Do quéchua suma: bem, kawsay: viver] passou, assim, a ser um conceito utilizado por cientistas sociais e profissionais da teologia (CHAMORRO, s/d, p.1-2). Assim, um dos objetivos específicos deste trabalho foi encontrar a expressão linguística Terena que designasse o que os próprios sujeitos consideram uma existência plena. A partir de um respaldo linguístico, mas também cosmológico, buscou-se a compreensão do que eles concebem como estados “saudáveis” e “doentios” – desejáveis e indesejáveis – e da forma como encaminham isso aos especialistas. Nesse sentido, o termo unatí yapey é o termo que boa parte dos Terena em Araribá reconhece como traduzível para “existência boa”, “vida boa” e ou “bem estar” 1. Designa um estado de existência plena, que corresponde aos seus princípios vitais: a pessoa que vive a unatí yapey, e, portanto, está vivendo bem, é descrita na língua Terena – Maipure Aruák – como unatí yapeya, isto é, “você vive bem”. E ainda é possível dizer que “é bom porque você vive”, unatí yapetí. No último caso, o próprio viver parece trazer uma carga semântica forte, indicando a realização plena dos princípios vitais. É importante dizer que o termo “saúde” entre os Terena de Araribá parece estar diretamente associado ao serviço de saúde local, desenvolvido no posto de saúde indígena de cada aldeia (que atualmente se localizam na aldeia Kopenoti e na aldeia Nimuendajú). Assim, ao perguntar se a pessoa está bem – unatí keyé? –, a resposta – unatí goyé, biukoé ou ainda, aunandi: isto é, “eu estou bem” – representa um estado não necessariamente ligado a uma vida plena2. A resposta negativa seria 1 Metodologicamente houve uma dificuldade para o encontro do termo, criando-se a necessidade de retornar a Araribá com essa finalidade. Contudo, nessa segunda imersão no campo, não conseguimos entrar em contato com as lideranças da aldeia Nimuendajú e nem com as lideranças da aldeia Kopenoti. Esta segunda passava por um processo de mudança de cacique, tornando impertinente desenvolver a pesquisa naquele momento. Assim, o termo foi encontrado e esmiuçado com a população Terena da aldeia Tereguá. 2 Outra forma de perguntar se a pessoa está bem (como em “oi, tudo bem?”) seria Nakeyeyé? Nesse caso, a resposta pode ser Unatí!,“eu estou bem” ou “eu estou bom”. 10 akó aunandi, isto é, “eu não tô bom” ou garineti “eu tô doente”. Isso quer dizer que ao se perguntar sobre a “saúde” da pessoa, ela respondia apenas “bem” ou “não, estou com gripe”. Da mesma forma, perguntar sobre os problemas de saúde na aldeia trazia respostas como “falta remédio na farmácia”, “não tinha carro” ou “não tinha motorista àquela hora”. Antes de que tal característica semântica fosse percebida, traduzimos com a ajuda de alguns informantes um resumo que pudesse comunicar o trabalho aos falantes da língua3. Segue abaixo o texto nas duas línguas: “Eu vou fazer estudo da saúde indígena. Quero saber o que vocês pensam da saúde; quem procuram quando estão mal; o que pensam que seja problema; o que acham que precisa melhorar; como cuidam das crianças, dos jovens e dos mais velhos; o que comem. Quero ajudar a aldeia.” “Inzi kaxovoti. [Eu estou estudando] Itúque xané [Estou fazendo trabalho com os índios]. Ingarra'a êngea ituqué unatîá (unati goyé). Cuti opocicó akó aunati; cuti opocicó akó aunandi [doença; eu não estou bom]. Cutique ha'áe iuciquea; nakixiaiê ketarakê kalivonó, hoyenó, árunóê, ûsotinehikó, kutinikó. Ingarra'a âti jûvôxea – sendo que essa última frase era às vezes dita de outro jeito, pois tinha gente que não entendia daquele outro: Iaieke ardeiake. Outras vezes, ainda complementava: Enóné [por isso] inziminóqué/janeinoquê [eu vim] iaiêquê [aqui]”. O resumo nem sempre emergia como ótima ferramenta para explicar o que a pesquisadora estava fazendo em Araribá e qual o seu papel ali. Certas vezes, funcionava; em geral, porém, havia dificuldades de comunicação no início do resumo, em que apareciam a palavra “saúde” e a pergunta sobre “o que precisa melhorar”. O problema foi sendo aos poucos contornado para que fosse possível facilitar a comunicação durante a pesquisa e atingir certo grau de descrição do objeto, o que, aliás, também foi se modificando e “aperfeiçoando” com o passar dos dias. Isso porque o método etnográfico, muito além de relatos orais, implica 3 Nesse caso, perguntava-se se a pessoa gostaria de ouvir em “português” ou no “indioma” Terena – e geralmente os falantes pediam que se falasse no “indioma”. No caso de pessoas que não falam o “português”, e fazia-se necessária a presença de um falante bilíngue, lia-se o resumo como forma de estreitar o canal de comunicação. 11 aprender e apreender a “cultura” nativa. De acordo com Carneiro da Cunha (2009), a cultura é um conceito científico incorporado socialmente por indígenas e não indígenas. Dessa forma, em cada socialidade4 ele passa por uma reinvenção particular, configurando significados distintos para cada uso. O que os purutuyé – não indígenas – designam como cultura Terena muitas vezes não corresponde, portanto, com o que os próprios Terena consideram sua “cultura”. Nesse sentido, este trabalho foi um esforço semântico e descritivo de apreensão da “cultura” Terena, tal como é concebida em Araribá nas aldeias abarcadas pela pesquisa, especialmente no que tange a uma boa vida – bem viver – em intersecção com uma territorialidade própria e uma construção de corpo e de pessoa. Melhor dizendo, foi um esforço de apreender o que foi indicado como integrante e correspondente a unatí yapey. Tal problematização tem sido possível graças a um convívio de alguns anos com os Terena, a partir de uma experiência anterior de estágio na área da psicologia. Essa informação é importante pois, ao longo da dissertação, constam dados referidos ao que os próprios indígenas traziam à pesquisadora enquanto “psicóloga da aldeia” e sobre “psicologia”. Quer dizer, conceitos e termos concebidos a partir de uma relação particular dos Terena de Araribá com o que eles apreendem como “sua psicóloga” e como “psicologia”. É, aliás, o que Wagner (2010) designa de “antropologia reversa”. Nessa perspectiva, os nativos fazem uma antropologia sobre o antropólogo, buscando compreendê-lo e fornecer-lhe um lugar naquela socialidade. Desse modo, a antropologia reversa se fez fundamental para a fluidez da pesquisa, de forma que muitos dos dados aqui expostos dizem respeito aos vínculos estabelecidos pelos Terena com a pesquisadora e com a pesquisa. Concomitantemente, a afetação5 propiciada pela pesquisa a partir desses vínculos, e ou dos dados trans-emergidos a partir da antropologia reversa, foi fundamental para a apreensão da unatí yapey, possibilitando um leque de caminhos 4 Trata-se do conceito de Strathern (1996) para articular e “superar” as críticas a uma visão sobre uma “sociedade” e uma “sociabilidade” que, respectivamente, acabam por sociologizar e psicologizar uma compreensão sobre as relações. Nos termos da autora, socialidade é a “matriz relacional que constitui a vida das pessoas”. 5 A afetação é um conceito de Fravest-Saada (2005) para designar um método de estudo da alteridade que não acredita cem por cento no ponto de vista nativo, visto que pressupõe uma condição de pesquisador como diferente da de nativo e parece inevitável afetar-se e “deixar-se levar” por aquilo. 12 no trabalho de campo. Por fim, a etnografia com os Terena foi realizada por uma psicóloga na condição de etnóloga, durante um período de mais de dois meses nas aldeias Kopenoti, Tereguá e Nimuendajú. Juntamente à etnografia, ocorreu um levantamento bibliográfico6, bem como uma pesquisa documental em digitalizações de microfilmes do SPI7. Vale dizer que nos dicionários encontrados – Silva, 2013; Semenghini-Siqueira & Rodrigues, 2010; Pedro, 2003; Ehdahl & Butler, 1979 – não constam os termo unatí yapey, unatí yapeya e, ainda, unatí yapetí. Não foi possível aprofundar as razões dessa lacuna, mas vale deixar o registro para futuras pesquisas. Este trabalho não pretendeu esgotar as discussões sobre o bem viver Terena. Mesmo porque, na condição de socialidades, Araribá está em constante mudança e reinvenção. Além do que, esta é apenas uma de várias interpretações possíveis, realizada a partir de apenas um dentre vários possíveis trabalhos de campo. Por fim, esta pesquisa tratou, de esmiuçar as relações da vida desejável, do que faz bem entre os Terena habitantes na Terra Indígena Araribá, focalizando as relações referidas ao que eles próprios consideram desejável/saudável e indesejável/doentio; as relações de cuidado e cura; as relações “religiosas” e espirituais, e os encaminhamentos feitos a especialistas referentes a estados físicos, psíquicos e/ou espirituais. Os dados aqui trabalhados são próprios da relação estabelecida entre os Terena e a pesquisadora e correspondem a um estudo em determinado contexto social e político. A propósito, por essa razão, os nomes utilizados no trabalho são fictícios, a fim de evitar constrangimentos a qualquer pessoa que tenha participado na etnografia. Os capítulos estão divididos em três, sendo a preocupação fundamental do primeiro tratar da história de estabelecimento dos Terena na terra indígena Araribá e sua constante ambientação. Já o segundo capítulo versa sobre a construção da pessoa e do corpo Terena, tangenciando os aspectos desejáveis de existência em Araribá. Por último, o terceiro capítulo abarca os estados indesejáveis do ponto de vista nativo e os 6 Levantamento principalmente nos acervos da Unesp, USP e Unicamp. 7 Este material microfilmado corresponde a quase metade do acervo do Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Durante o mestrado, participando das atividades desenvolvidas pelo Centro de Estudos Indígenas Miguel Angel Menéndez, o CEIMAM, integrei a equipe que digitalizou e organizou-o num acervo, agora pertencente à biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Assim, ele pôde servir de fonte para a pesquisa realizada. 13 encaminhamentos feitos a especialistas pelos próprios Terena. Dessa forma, a dissertação tenta constituir um panorama do que seria uma “boa vida Terena em Araribá”, o que pode ser designado como unatí yapey! 1. Contextualização histórica da territorialização e temporalidade Terena em Araribá “Tudo o que move é sagrado e o fruto do trabalho é mais que sagrado, meu amor” (Ronaldo Bastos e Beto Guedes) Os Terena constituem um povo do tronco linguístico Maipure Aruak, oriundo do chamado Chaco paraguaio, que se chama, entre os Terena, Exiwa. De acordo com Cardoso de Oliveira (1976), antes de migrarem para o Brasil no século XVIII, os Terena viviam na região chaquenha. Ali, uma tão intensa relação de troca acontecia entre os Terena e os Mbayá-Guakurú, que até mesmo a estrutura social em sua tríplice de relações assimétricas dos Terena, e de outros grupos Guaná, teria sido adotada dos Mbayá-Guaykurú. “Os depoimentos mais antigos que dos Guaná possuímos já sugerem um tipo de estratificação de estilo semelhante ao dos Mbayá-Guarikurú” (mesma obra, p. 41). Entre os Guaná havia uma divisão social em metades – Sukirikionó e Xumonó. A diferenciação se realizava nas cerimônias Oheocoti8 [colheitas], regulamentando o comportamento mágico-religioso, e também na organização de classes matrimoniais. Para cada metade que vivia em troca com os Mbayá-Guarikurú, havia os Naati, da nobreza, os Waherê-txané, que eram pessoas comuns, e os Kauti, cativos de outros grupos étnicos. Tratava-se, assim, de uma organização exogâmica. A distinção estava no grupo dos guerreiros: ao destacarem-se em batalhas em que matassem os inimigos, 8 Trata-se do que CARVALHO (2008) contextualiza para tratar de sua vivência na aldeia Bananal no MS, em 1992: “Oheokoti é o nome da cerimônia mais importante para os Terena. Na época em que habitavam o Chaco, no século XVIII, o Oheokoti se realizava quando as Plêiades atingiam seu ponto máximo no céu, entre o mês de abril e maio, marcando o início do período das colheitas (Métraux, 1944). Os personagens mais relevantes nessa cerimônia são os koixomuneti – xamãs -; anteriormente o Oheokoti consiste apenas no ritual xamanístico que se inicia no começo da noite e prolonga-se até o meio-dia do dia seguinte. A data de realização é a Sexta-feira Santa” (p. 54). 14 ascendiam na hierarquia, eram os Xuna-xati. A influência desses guerreiros estava abaixo apenas do poder do Chefe do Povo e eles tinham o privilégio de se casarem com mulheres da camada acima. Assim é que os Guaná viviam na região do Chaco desde o século XVI, participando de relações de troca com outros grupos étnicos, e, em especial com os Mbayá-Guaikurú, ainda segundo os apontamentos de Cardoso de Oliveira (1976). Já no final do século XIX, motivados pela expansão colonizadora e decorrentes conflitos interétnicos, deslocaram-se deste território na direção do atual Estado do Mato Grosso do Sul, atravessando o rio Paraguai, e estabelecendo-se em território brasileiro. Os Guanás, ancestrais dos atuais Terena, penetraram em território brasileiro, depois de terem permanecido durante provavelmente mais de dois séculos no Chaco. Essa permanência e as fortes ligações dos Guanás com povos pâmpidas, da família lingüística Mbayá (em relações designadas como de “vassalagem” para com os Mbayá) resultaram na incorporação pelos atuais Terena de muitos elementos chaquenhos. (...) É a colonização espanhola avançando para o interior, pela bacia do Prata, que provocou a migração de grupos Guanás e Mbayá em direção a leste, para a margem esquerda do Paraguai. (CARVALHO et al, 2001, p. 9-10) Décadas após o estabelecimento de Maipure Aruak na atual região do Mato Grosso do Sul, outra frente de colonização atingia diretamente os Kaingang, Guarani e Oti-Xavante à margem esquerda do Rio Paraná, nos vales dos rios Paranapanema, Tietê e do Peixe com o avanço da gripe espanhola no início do século XX. As epidemias antecediam a ocupação colonizadora com o estabelecimento de fazendeiros na região, que ameaçavam extirpar os exíguos sobreviventes recolhidos aos fragmentos ínfimos de seu território de ocupação tradicional pelo órgão indigenista oficial, como no caso da área de Araribá, no atual município de Avaí. Cumprindo a função de agência indigenista oficial, os agentes do Serviço de Proteção aos Índios, doravante SPI, promoveram a vinda dos Terena para a área indígena (Carvalho, 1979). Tinham como horizonte que a tradição agrícola dos primeiros poderia assegurar a posse do território e o próprio trabalho da instituição: “Várias famílias terenas foram transferidas pelo SPI, na década de 30, para a reserva fundada por Curt Nimuendajú para os Guarani, num projeto que, orientado pela visão positivista da época, visava que os Terena ‘ensinassem aos Guarani a trabalhar’ [...] 15 (CARVALHO et al, 2001, p.11). Assim que, em 1930, chegaram os primeiros Terena em Araribá: Informações constantes dos relatórios [...] localizam a chegada dos primeiros Terena ao Posto por volta de 1930. A princípio, apenas cinco famílias de Mato Grosso, ali se estabeleceram inclusive a do atual “capitão” Teotonio Pio. [...] As terras foram divididas em lotes e distribuídas às famílias indígenas reservadas as necessidades para a administração e uso em comum da população. Há, portanto, os lotes de reserva florestal, os de pastagem, os de ensino agrícola e demonstração, além daqueles em que se instalaram as máquinas, oficinas, casas de ensino, administração e o campo de futebol. [...] Relatórios atuais disponíveis no PI confirmam a chegada dos Terena ao Araribá por volta de 1930. ‘Os Terena foram transferidos de MT por volta de 30: Teotonio Pio, atual capitão, Calixto e Hipólito foram os primeiros (ASSIS DE CARVALHO, 1979, p. 78-79 e 83). Araribá é a primeira Terra Indígena no Estado de São Paulo, tendo sido demarcada em 1910. Atualmente é constituída por quatro aldeias: Kopenoti, Ekeruá, Nimuendajú e Tereguá. A primeira é a mais antiga, composta por população majoritariamente Terena. Nimuendajú, por sua vez, é a aldeia cujo nome homenageia o antropólogo que reuniu os Guarani naquele território para protegê-los9. E as outras duas são formadas, majoritariamente, por dissidências das outras aldeias. Antes do estabelecimento Terena, os Guarani habitavam nas margens do rio Batalha e o SPI, transformado em 1967 na atual Fundação Nacional do Índio, mediava sua relação com a sociedade nacional. A agência indigenista tinha como premissa a integração pacífica dos indígenas por meio da educação para o trabalho rural. O ideal era civilizatório e os objetivos consistiam em: a) estabelecer de uma convivência pacífica com os índios; b) garantir a sobrevivência física dos povos indígenas; c) estimular os índios a adotarem gradualmente hábitos "civilizados"; d) influir "amistosamente" na vida indígena; e) fixar o índio à terra; f) contribuir para o povoamento do interior do Brasil; g) possibilitar o acesso e a produção de bens econômicos nas terras dos índios; h) empregar a força de trabalho indígena no aumento 9 Ver Edgar Assis de Carvalho (1978). 16 da produtividade agrícola; i) fortalecer as iniciativas cívicas e o sentimento indígena de pertencer à nação brasileira (Lima, 1987 apud FUNAI, s/d). Tendo por base tais fundamentos, o SPI, a fim de cumprir seus objetivos, deveria adotar certas estratégias, dentre as quais estava o deslocamento de parte da população habitante em aldeias para terras indígenas cuja ocupação estava ameaçada. Nesse contexto é que, ao longo da década de 1930, Araribá recebeu seus novos moradores. Conforme mencionado, na época, o território estava sofrendo ameaças de invasão: [...] a ação dos grileiros deve ter ocasionado uma série de incidentes que reclamavam a intervenção direta do Governo do Estado de São Paulo. No referido relatório, o diretor do SPI [relatório do diretor interino do SPI, José Bezerra Cavalcanti, em 1929] afirma que ‘não somente os grileiros pretendiam apossar-se de terras da povoação do Araribá. Também os vizinhos dessa povoação [...] perturbaram a posse pacífica dessas terras por parte do Serviço de Proteção aos Índios. (ASSIS DE CARVALHO, 1979, p. 73). Além disso, a situação estava potencializada devido ao esvaziamento demográfico causado pela epidemia de gripe espanhola, que assolava o país e dizimava a população Guarani. O SPI, então, articulou-se para que um conjunto de “índios mansos”, conhecidos pelo fecundo trabalho agrícola10, fosse deslocado do território originário e repovoasse Araribá, incentivando enfim os Guarani ao trabalho. Os indivíduos e as poucas famílias que foram transferidos para cumprir com esse papel eram membros do povo Terena e habitavam o sul do antigo Estado do Mato Grosso, principalmente as aldeias Cachoeirinha, Ipegue e Limão Verde. A escolha dos Terena para a tarefa foi, portanto, norteada pela caracterização que a sociedade nacional fazia dos indígenas, mediante seu fecundo trabalho agrícola. Isso porque, entre os Terena, o trabalho agrícola era uma característica de tal forma marcante que tornou em “critério” de identificação e reconhecimento da etnia pela 10 Há de considerar-se que as caracterizações a respeito dos Terena partem de um certo ponto de vista; e, nesse caso, trata-se do ponto de vista do Estado. Nesse sentido, a própria “pacificidade”, ou o “estrategismo” dos Terena deve ser relativizado e contextualizado. Considerando-se as funções políticas da linguagem e das nomenclaturas, o mesmo deve ser feito quanto ao êxito no trabalho. 17 sociedade nacional. A justificativa da vinda dos indígenas para São Paulo foi também adensada, vale dizer, pelas relações que os Maipure Aruak costumavam ter com a sociedade nacional e com representantes das agências indigenistas oficiais. Tratava-se do ponto de vista típico desse grupo indígena, que contava com estratégias táticas historicamente eficazes na relação com a sociedade nacional – como, por exemplo, a incorporação dos rituais cívicos em cerimônias festivas e encontros com representantes daquela sociedade. “[...] A abertura para o exterior dos Aruak foi responsável pela incorporação ao seu patrimônio cultural de pautas e equipamentos culturais de outros povos e teria lhes favorecido a adaptação em ambientes diversos” (Azanha, 2005, p.74). Seus modos de dar continuidade à socialidade, a propósito, foram então percebidas como amistosas pela sociedade nacional, fornecendo-lhes uma caracterização como índios de tipo manso. Foi a partir de como os Terena se mostravam à sociedade nacional, portanto, que o SPI tratou de promover sua transferência para Araribá. Concretizada a mudança, o SPI precisou organizar o estabelecimento Terena no território, bem como o trabalho que seria realizado pela mão de obra indígena. Assim, a migração dessas pessoas para Araribá esteve inspirada nas antigas colônias de imigrantes europeus e consonante com o ideal civilizatório do SPI. Seu pressuposto, em acordo com o decreto na época – nº 8.072, de 20 de junho de 1910 e proveniente da instituição historicamente anterior a esse serviço, era “tanto a proteção e integração dos índios, quanto a fundação de colônias agrícolas que se utilizariam da mão-de-obra encontrada pelas expedições oficiais” (SOCIOAMBIENTAL, s/d). Além disso, de acordo com o Decreto-Lei nº 3.454, de 6 de janeiro de 1918, o SPI foi criado mantendo-se a premissa de integração pacífica dos índios como base de atuação do órgão (idem). Por último, é possível dizer que nesse estabelecimento foi constituído um mito de criação de Araribá. Em sua criação, o MS Terena foi marcado enquanto um pólo étnico muito forte para os Terena de São Paulo, uma vez que baseou-se na relação travada também entre a sociedade nacional e as agências indigenistas e, assim, também num ideal de indianidade historicamente construído. Como diriam alguns informantes, “porque a gente veio de lá, né”. Quer dizer, a mudança de território propiciou 18 mudanças cosmológicas nas concepções e no dia a dia Terena. Com isso, a própria ideia de bem viver tem sido reinventada a partir do ponto de vista nativo em seu envolvimento com a sociedade não indígena purutyé e com outros povos com quem os Terena vem se relacionando político-culturalmente. 1.1. Movimentos no período de tutela Quando perguntavam para a pesquisadora onde “estava ficando” e respondia que “estava pousando” no antigo posto, as pessoas logo arregalavam os olhos e diziam que não tinham coragem de ficar ali – algumas, nem acompanhadas. No começo isso não manifestou uma preocupação com relação a estar na casa. Aos poucos, ouvindo repetidas vezes por dois dias histórias assombrosas envolvendo o posto, o discurso 19 foi alterado e o corpo criava uma barreira sobre permanecer na casa no período da noite; a pesquisadora estava “afetada” 11 (Fravet-Saada, 2005). Dentre as histórias que foram contadas, uma é a do Sr. Tonho. No final dos tempos de SPI, seu filho, João Terena, assumiu o cargo de chefe indígena. Em dada ocasião, ele precisou viajar e pediu ao pai que cuidasse do posto para ele. Sr. Tonho teve de dormir sozinho na casa. Durante a noite, ele já estava na cama quando ouviu um barulho. Virou-se e viu sentada na cama ao lado “uma índia bonita de cabelo bem comprido”. Ela olhava para ele, que pensou: “quem é essa moça?”. Apesar do questionamento, Sr. Tonho disse que precisava dormir, virou-se novamente e adormeceu. No dia seguinte não havia mais ninguém ali com ele. Sr Tonho não sente medo, mas afirma que o lugar é mesmo assombrado. Outra narrativa é do próprio morador da casa, o Sr. João. Ele disse que já ouviu os pés de uma pessoa que havia falecido se arrastando pelo piso da casa. Sua irmã Élide se lembra do susto que o irmão levou naquele dia e não gosta de entrar no posto. Outras pessoas nos contam das mortes que aconteceram no antigo posto. “Já morreu muita gente ali”, dizem sem entrar em detalhes, argumentando sobre o lugar ser assombrado. Ronaldo, Kaingang12 com cerca de trinta anos que mora com a esposa na antiga escola em frente ao posto, diz que com frequência ouve passos das pessoas que morreram na varanda que contorna a construção. Assim, o antigo posto indígena evoca uma série de vivências de relação com o sobrenatural. Velhos, adultos e até mesmo crianças já vivenciaram alguma situação que promove um afastamento da casa onde hoje vive João Terena, sua esposa Mélani e as filhas Neirian, Michele e Manuela. Até mesmo crianças e adolescentes, como Saulo, consideram improvável morar ou dormir ali, pois “tem fantasma”, “é assombrado”. Muitos jovens evitam entrar na casa onde moram João e sua família. As novas gerações não estavam presentes na Kopenoti Velha, mas a carga afetiva há décadas investida no antigo posto pelos indígenas tem sido transmitida dos mais velhos para os mais novos, tornando a 11 “[...] valem algumas reflexões sobre o modo como obtive minhas informações de campo: não pude fazer outra coisa a não ser aceitar deixar-me afetar pela feitiçaria, e adotei um dispositivo metodológico tal que me permitisse elaborar um certo saber posteriormente” (FRAVET-SAADA, 2005, p. 155). 12 Importante mencionar que Ronaldo cresceu entre os Terena, conhecendo sua “cultura”, participando da dança do bate pau Kipahé. 20 afetação algo inevitável. Nesse sentido, a Araribá Terena mostra-se sendo transmitida entre gerações, carregando consigo a carga histórico-afetiva a respeito dos constrangimentos à realização da unatí yapey, isto é, do tempo em que a vontade do Estado constituía uma imposição ao cotidiano Terena. Com o passar do tempo, os Terena ajudaram a modelar a Terra Indígena, trabalhando como mão de obra para os projetos do SPI. Nesse sentido, muito da “paisagem” foi alterada mediante as próprias atividades por eles desempenhadas a mando das agências indigenistas13, reconhecidas como autoritárias por muitos informantes. As estratégias tutelares configuravam uma “arqui-textura” 14 própria, priorizando e potencializando estratégias de controle da mão de obra e da terra indígena, em cuja entrada dispunha-se o purutuyé chefe de posto, que ocupava uma cadeira suspensa sobre o posto indígena. Abaixo da construção, de acordo com os relatos, uma cadeia para prender os “índios” que desobedecessem às ordens do chefe local. Em volta, um grande pasto se abria, por detrás de um portão. De acordo com os indígenas, só adentrava em Araribá quem fosse autorizado pelo chefe de posto, por sua vez, subordinado a um inspetor (Anexos A1 e A2). Em uma das fontes da pesquisa, constam informes e diálogos dos chefes do Posto Indígena Araribá com o inspetor geral. São registros feitos em dez de março de 1945 pelo chefe Joaquim Fausto Prado (Anexo B), informando a frequência de pontos de acordo com os dias de serviço dos indígenas trabalhadores do posto, as diárias e a importância. Dentre os serviços prestados, estavam diversos trabalhos, inclusive relativos a agricultura. É importante notar que dentre as incumbências dos indígenas, uma era designada como “Fiscal das Metas do Posto”, indicando o caráter exploratório da atuação postulada pelo SPI na condição de atuar em uma “Reserva”: 13 Vale ressaltar a espécie de microfísica do poder (FOUCAULT, 1975) que estabelecia-se em Araribá. Tal imperativo era o mote identificado nos relatórios e cartas enviados pelo chefe de posto ao seu supervisor, cumprindo a tarefa de controlar o território, os indígenas e a produtividade da terra – de acordo as atribuições referenciadas nos decretos de instituição da reserva e de formação de trabalhadores. 14 "[…] se pensarmos a escrita não como uma composição verbal, mas como uma malha de linhas – não como texto, mas como textura. “A atividade prática escreve na natureza”, nota ele, “com uma mão que rabisca” (Lefebvre, 1991, p. 117). Pense nas trilhas reticulares deixadas por pessoas e animais à medida que eles seguem sua vida na casa, vila e cidade. Capturado nesses múltiplos emaranhados, cada monumento ou prédio é mais “arqui-textural” que arquite- tônico." (INGOLD, 2012, p. 39). 21 O melhor produto da dinâmica tutelar foi, talvez, a figura administrativa das reservas indígenas, i.e., pequenas porções de terra reconhecidas pela administração pública, através de suas diversas agências, como de posse de índios e atribuídas, por meios jurídicos, ao estabelecimento e à manutenção de povos indígenas específicos. Sob a gestão do SPI também da Funai, e até tempos muito recentes, as reservas indígenas foram definidas às custas de processos de alienação de dinâmicas internas às coletividades indígenas, e passaram a compor parte de um sistema progressivamente estatizado de controle e apropriação fundiária que se procurou construir como de abrangência nacional. Sua finalidade era disciplinar o controle e a utilização das terras, essencialmente pela tentativa de fiscalização da circulação dos povos pelos seus territórios tradicionais, ao mesmo tempo mediando sua mercantilização, aplicando-lhes sistemas de registro e cadastramento (procedimento que não se impôs sem conflitos entre as inúmeras agências de governo, e que até hoje é insuficiente) idealmente centralizados. As reservas foram também modos de concentrar e estatizar riquezas (terras para agricultura, pecuária e extração de minerais, florestas para extração de madeiras, borracha, castanha etc.) que a administração tutelar manteve para exploração direta ou indireta (por exemplo, pelo arrendamento) sempre em suposto benefício dos indígenas e utilizando seu trabalho (SOUZA LIMA, 2012, p.802-803). Para além dos dados documentais a respeito da exploração da mão de obra indígena pelo SPI, outro aspecto da “arqui-textura” tutelar faz-se notável nas modificações da “paisagem” 15 de Araribá. Em função do ideário positivista e sertanista do SPI, que condensava suas ações em práticas de caráter civilizatório para formação de trabalhadores sob os moldes e expectativas do Estado, modelou-se ou houve influências sobre o seu espaço e sobre as relações geopoliticamente nele situadas: Por “tradição sertanista” entendo um conjunto de saberes/fazeres que, alterando-se ao longo do tempo, podem ser reportados ao início da exploração portuguesa de África, notadamente à dos espaços afastados do litoral, os chamados, desde o século XV e já em África, sertões. Explorar e registrar os contornos de espaços geográficos incógnitos, inserindo-os no conjunto de representações acumuladas como partes do mundo conhecido pelo explorador, gerando com frequência conhecimentos de valor estratégico no plano geopolítico e econômico, transformados ou não em cartas e mapas geográficos, avaliá-los enquanto fontes para uso comercial, esboçar uma descrição das populações humanas nativas desses espaços, mantendo com elas contatos e trocas iniciais, muitas vezes 15 Com aspas em função das críticas de INGOLD (2000) sobre a dicotomia sujeito-paisagem. 22 estabelecendo algumas das primeiras operações de uma guerra de conquista, são apenas algumas das ações características do que situo, em larga medida separando em termos formais para fins analíticos, como “tradição sertanista”. No caso brasileiro, no contexto da proteção oficial aos índios, logo no século XX, o termo sertanista designava o especialista nas técnicas de atração e pacificação (Souza Lima, 1995) de índios ainda arredios à interação regular com as agências de governo, fossem hostis ou não (SOUZA LIMA, 2012, p. 810-811). Assim foi que, seguindo a perspectiva sertanista, o Serviço de Proteção aos Índios tratou de inserir um rol de práticas agrícolas e pecuaristas no contexto indígena. Os registros fotográficos e escritos do período nos dão pistas sobre a implementação de manejos em Araribá (Anexos C1 e C2), que constituíram as reconfigurações de sua “paisagem”. Vale dizer que as práticas agropecuárias atualmente desenvolvidas em Araribá são predominantemente cultivos agrícolas, na modalidade de roçado – mandioca, batata, batata doce e abóbora. Apenas algumas pessoas possuem também galinhas – domesticadas tanto para exclusiva criação, quanto para consumo – e, em menos vezes, patos – estes que são geralmente não destinados ao consumo. Algumas outras, na aldeia Kopenoti, possuem gado16 e cavalo. E em apenas duas vezes observamos um conjunto de porcos criado no quintal para consumo e/ou venda17. Apesar de algum convívio atual com as criações de gado e cavalos, os Terena não costumam relatar a presença desses animais quando aludem ao passado indigenista com o SPI18. Apesar disso, o arrendamento de terras para aquela criação de animais estendeu-se por um bom tempo, findando apenas a partir da substituição do SPI pela Fundação Nacional do Índio, a FUNAI. 16 A criação de bovinos necessita um investimento financeiro possível apenas a algumas lideranças com condições financeiras diversas da maioria da população Terena. Geralmente, a finalidade do gado é comércio e também consumo para toda a aldeia nas ocasiões festivas. Na aldeia Kopenoti, uma forte liderança política é quem provém a carne das festividades, muitas vezes do porco criação do Sr. Ronaldinho ou custeada por ele. 17 Uma vez no quintal do sr. Ronaldinho, e outra no quintal da antiga casa do sr. Mário; ambas em uma visita a aldeia em meados de 2014. 18 Vale mencionar que esse seria um ponto a ser aprofundado em outra oportunidade, visto que Assis de Carvalho (1978) comenta a respeito das cavalgadas Terena como mediações “colonialistas” na reprodução cultural. Esta seria uma característica apreendida antes mesmo da colonização espanhola, talvez produto das relações com os Mbayá-Guaicurú. 23 E ainda outra atividade implementada sob os mandos da agência indigenista foram os arrendamentos de terra, por meio dos quais ocorreu a inserção de algumas empresas e marcas na área da Reserva. Foi o caso da farinheira Deusa, que desenvolveu monocultura de mandioca para produção de farinha, na década de 60 em Araribá. A antiga área de plantio localizava-se atrás de onde hoje mora um antigo cacique da aldeia Kopenoti, Sr. Alan, e o Sr. Benício, conforme é possível observar no mapa (Anexo D). A consolidação da Deusa na área indígena ocasionou diversos problemas ambientais no solo, utilizado para cultivo de monocultura. Desde a retirada da empresa com o advento da FUNAI, tornou-se vestígio daquela época o terreno infértil que, hoje, não é utilizado para qualquer outra atividade pelos indígenas. Ao mesmo tempo, tais implementações por parte do SPI implicaram constrangimentos à realização da vida plena unatí yapey, da boa vida do ponto de vista Terena. Nesse sentido, uma espécie de “nostalgia” emana em muitos relatos dos Terena, especialmente da fala de mulheres que hoje estão na faixa dos sessenta anos e que remetem à farinheira a responsabilidade sobre a descontinuidade da produção caseira de ramokó xupú – a farinha de mandioca. Algumas pessoas sabem e gostariam muito de realizar o processo em casa, mas não tem quem rale o vegetal (Dona Ivanir disse uma vez: “só preciso algum pra relá, fia”) e nem muita gente para participar (Carla explica: “precisa no mínimo de três pessoas pra fazer”). Durante o campo, houve a oportunidade de acompanhar o processo caseiro de produção da farinha, até hoje realizado por Estela e José – purutuyé moradores na área fundada por Clodoaldo que integra a aldeia Tereguá. O método de produção foi aprendido com os pais de Estela, Hei tor e Madalena. José conta que tudo o que sabe fazer aprendeu com os pais da esposa. Ficamos dois dias trabalhando no quintal da casa em que moram, quase na beira da pista que interliga o perímetro das cidades próximas, Duartina e Avaí. O processo envolve algumas fases, desde a colheita da mandioca – que deve ser ralada, torcida, seca ao sol e torrada – até o resultado final. Com os subprodutos é possível produzir ainda mais dois preparos, um para o lâpape (bijú) e outro para o poréo (variedade de mingau feito do caldo da mandioca). O bijú até hoje é preparado em algumas casas em Araribá, como a de dona Tina e a de seu pai, Horácio. Já o 24 poréo, quase todos os indígenas que nos contaram sobre os dias em que a mãe ou a avó preparou um mingau bem gostoso com o caldo da mandioca, não se arriscam a fazer. O aprendizado foi encorporado na observação de quem antes fazia, mas o alerta sobre a possibilidade de morte no caso do uso de mandioca brava ou no caso de errar “o ponto” faz com que se evite arriscar fazê-lo. Ouvimos de alguns Terena que, antigamente, quando acontecia a produção caseira da ramokó xupú, as famílias costumavam separar alguns sacos para si e para os parentes, e outros para venda. De acordo com as filhas Stephanie e Estela, sr Clodoaldo e dona Madalena saiam por Araribá para vender sua farinha. Dona Ivanir, prima de Clodoaldo, se recorda de receber19 um pouco para sua família. Esse movimento também implicava um sentimento de pertença, como povo, como aldeia e como família, como é possível inferir a partir dos relatos dos informantes. Dessa forma, a produção de farinha era algo bem quisto, integrando na concepção unatí yapey. Até hoje ela é descrita como “tradição” pelos Terena, e alguns professores indígenas, como Nayara, consideram importante levá-la como conteúdo da “oficina de cultura” na escola. Durante o arrendamento de terra para a Deusa pelo SPI, contudo, a mão de obra indígena era utilizada na produção de farinha e os trabalhadores recebiam, além de seus salários, sacos de farinha da marca da empresa. Com isso, não mais havia a necessidade de produzir o alimento em casa, um processo que, conforme descrevemos, demanda muita xupú (mandioca), algumas mãos, muito tempo e muita força. Apesar do intenso esforço físico e do grande tempo exigidos para a produção caseira de farinha de mandioca, os Terena que possuem memórias sobre os dias em que todos se reuniam para fazer ramokó consideram aqueles momentos como importantes e gostosos, nos quais as pessoas da família se juntavam, se uniam e conversavam em torno de algo que lhes fornecia uma sentimento de pertença ao povo Terena, realizando, assim, o unatí yapey. Atualmente, algumas das pessoas que conhecem o modo de fazer farinha e que às vezes de fato a fazem são dona Quitéria, Carla, dona Tina e dona Eulália, da aldeia Kopenoti; ao lado delas estão dona Marlene, dona Eva e Sr João, dona Iracy e dona Ritinha, da aldeia Tereguá. A característica de reunir – e unir – as pessoas na produção de farinha é um 19 Vale ver “Ensaio sobre a dádiva” (Mauss, 1988) 25 elemento bem-vindo entre os Terena. Outras atividades com esse potencial de gerar unatí yapey são, assim, desejáveis no cotidiano e também em eventos menos corriqueiros nas aldeias. É por isso que outros espaços não mais existentes, como a horta comunitária, também fazem falta no bem viver Terena. Referenciada, especialmente pelas mulheres, como parte de um período de vida boa em Araribá, a horta comunitária (Anexo E) era cultivada atrás do antigo rio Araribá, entre as duas colônias de casas configuradas pelo SPI. Dona Tina se lembra “fui a última mulher a sair da horta comunitária”. Ela e Carla se recordam com bons sentimentos da época em que havia muito alimento para todos e ainda era possível ganhar um dinheiro com o trabalho agrícola. Soubemos de algumas versões sobre o fim da horta, algumas relacionadas à substituição do SPI pela FUNAI (sendo que aquele órgão contou por último com Sr. João Terena como bem quisto chefe de posto indígena), outras que faziam referências às brigas internas e à fragmentação da aldeia, e, enfim, algumas outras versões que têm, em comum, o significado do fim de uma atividade considerada importante para a vida em Araribá. Outras menções a esse período ainda foram feitas por Anastácia e Quitéria, que explicaram que a horta ajudava na renda e garantia alimento. Disseram que se voltasse a acontecer, seria bom. Na percepção delas, “quando parou a horta comunitária, as pessoas começaram a beber”. Vale atentar aqui para os indícios sobre a relação que, do ponto de vista Terena, a horta possui com outros elementos da vida cotidiana em unatí yapey. Assim, é possível inferir que a extinção da atividade significou um impedimento a unatí yapey, propiciando o uso prejudicial, indesejável de “bebidas alcoólicas”. A horta constituía um elemento importante à realização de uma vida boa e desejável. Apesar disso, de modo geral as atividades promovidas pelo SPI parecem ter sido prejudiciais à existência Terena, de acordo com sua concepção. A propósito, é necessário pontuar que as modificações territoriais promovidas naquele período estão diretamente relacionadas a mudanças no projeto coletivo, impondo necessidades de reinvenção cultural pelos Terena, implicando em escolhas sobre sua “cultura”, de modo que unatí yapey seja garantida – o que nem sempre é possível, conforme mencionado anteriormente. Na esteira dos impactos indesejáveis à vida Terena, Sr. Eliano, liderança 26 indígena da aldeia Kopenoti, contou algumas lembranças em uma conversa sobre como era o dia a dia na aldeia quando o rio Araribá estava com volume grande de água – hoje ele está quase seco, em processo de “revitalização”. Naqueles tempos do Araribá, que, para ele, datam da década de 70, as crianças brincavam e tomavam banho no rio, que passava entre as colônias, e as mulheres lá lavavam as roupas e as louças, acompanhadas de seus filhos. Sr. Eliano se recorda de quando ia com a mãe, dona Nair, purutuyé, para lavar a louça. Ele brincava na água também. Jenifer, filha de dona Quitéria, tomava banho nas águas do Araribá e, durante o campo, chegou por meio de outras pessoas, uma foto dela quando menina, sorrindo dentro da água. Essa era a mesma época da qual Renata, Kaingang e chefe da enfermagem, se lembra do banheiro ser no mato. “Éramos felizes e não sabíamos”. Ela e seu esposo Vicente contam como a aldeia mudou bruscamente nos últimos vinte anos. “A gente limpava a bunda com espiga de milho e nossa boneca era a espiga também”. Outras pessoas usaram as mesmas referências para falar desse passado não tão distante da aldeia Kopenoti. Quer dizer, num período que vai desde a chegada dos Terena em Araribá até, aproximadamente, o final da década de oitenta, quando são identificadas algumas das lembranças relatadas, tudo era muito distinto da vida de hoje. De acordo com os retratos traçados pelos próprios indígenas, as mudanças foram intensas e abruptas: “Nem parece a mesma aldeia”, nos disseram uma vez. Acontece que naquele tempo, dois fatos colaboraram para que o rio tivesse seu fluxo prejudicado e ficasse sem cuidados, reverberando no cotidiano daqueles que viviam cotidianamente com o rio – um antigo espaço de socialidade, especialmente entre as crianças e as mulheres que por ali brincavam, conversavam e realizavam suas ações de higiene. Ou seja, um espaço de realização da vida ideal unatí yapey. Um dos fatos envoltos na transformação do rio e dos movimentos cotidianos decorrentes da relação dos indígenas com aquele espaço foi a construção de uma ferrovia passando pela Terra Indígena, hoje desativada, mas ainda instalada na divisa das aldeias Nimeundajú e Tereguá (Anexo F). Consequentemente, a erosão a fez cair sobre o rio toda a terra sedimentada. Outros vestígios do estrago são os grandes buracos cravados na divisa entre as aldeias. Quem nos contou sobre a situação foram o Sr. Romildo, antigo cacique e professor na aldeia Tereguá, e o João Terena. 27 Romildo vive com a família bem próximo de uma área que sofreu grandes impactos ambientais com a implementação da ferrovia na terra indígena. O rio Araribá passava abaixo de onde hoje ele possui uma plantação de milho no quintal de casa. Atualmente, descendo o quintal, passando pelo milharal, é possível observar um tanto de árvores em torno de onde passava o rio. Tal vegetação está em crescimento e faz parte de um projeto da organização não governamental coordenada pelo João para revitalizar o solo assoreado e, a longo prazo, restituir o fluxo das águas do Araribá. De acordo com informações do diagnóstico ambiental na TI Araribá pela FUNAI, GATI (s/d), “A área é cortada por variante ferroviária Bauru-Garças, projetada pela Campanha Paulista de Estradas de Ferro”. Houve uma indenização paga, de acordo com outros informantes, sob a forma de um caminhão pelo qual, na época, era possível realizar as viagens para o MS – algo bem vindo à vida Terena. Além deste processo, outro fato que marcou a memória dos Terena aproximadamente no mesmo período foi a encanação da água na terra indígena pela Fundação Nacional de Saúde, a FUNASA, enquanto a Saúde Indígena era ainda de sua incumbência20. Este fato, porém, possui importantes lacunas explicativas. Todos com quem conversamos a respeito do assunto – entre eles, Sr. Eliano, Sr. João, dona Tina – recordam-se de funcionários da FUNASA trazendo a informação de um alto índice de verminose entre a população devido ao uso da água do rio. No entanto, nenhum deles se lembra de conhecer alguém com a doença naquela época. Apesar do “desencontro” de informações fornecidas no argumento da FUNASA e na memória oral indígena, o fato é que foi realizada a encanação da água do rio Araribá para o uso dos moradores21. Contando com a possibilidade de usar a água no seio da casa e em qualquer hora do dia, os Terena foram cada vez mais diminuindo a frequência do uso das águas do rio para as atividades de higiene. Ora, as pessoas passaram, então, a circular menos pelo entorno do rio Araribá, deixando de cuidar dele, de limpar as margens com branquiárias. Junto a isso, a erosão cada vez 20 “Em consonância com o Art. 6º do Decreto Nº 7.336, de 19 de Outubro de 2010, alterado pelo Decreto Nº 7.461, de 18 de Abril de 2011, o Ministério da Saúde e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) deverão efetivar a transição da gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena para o Ministério da Saúde até o dia 31 de dezembro de 2011” (FUNASA - http://www.funasa.gov.br/site/saude-indigena-transicao/) 21 Fica o registro de que a imprecisão sobre algumas datas é decorrente da falta de colaboração da FUNAI com esta pesquisa. 28 mais tornava o volume e o fluxo da água menor, constituindo o que atualmente trata- se de um “filete de água” que divide as colônias na aldeia Kopenoti. Desse modo, qualquer brincadeira ou outro uso que poderia ser realizado no Araribá foi tornado mais restrito. Sem a possibilidade de fazer bom uso da maior parte do rio, o único lugar onde a vazão de água ainda torna possíveis pescar peixes miúdos ou mesmo brincar um pouco atualmente localiza-se, na aldeia Kopenoti, na descida da casa do Sr. Ronaldinho. E, no entanto, é um espaço mais utilizado por seus parentes e amigos. Por causa disso é que algumas crianças, como Abner, de 7 anos de idade e filho de Anastácia e do Sr. Mário, deslocam-se até as outras aldeias em busca de lugar para brincar. Ou, ainda, há um açude atrás da escola da aldeia Kopenoti onde costuma-se pescar e, no caso das crianças, nadar. Contudo, devido às condições de sua construção – segundo contam, em cima de um antigo chiqueiro – outras pessoas evitam entrar na água com medo de se machucarem e até de morrerem, como já aconteceu. Na aldeia Tereguá, as crianças costumam brincar em alguns lugares. No caso das brincadeiras na água, há a fazenda ao lado, que, situada numa antiga área indígena, tem uma pequena cachoeira22. É comum nos dias de calor, adultos, sobretudo as mulheres, e crianças se reunirem para ir até lá. E há também uma represa na aldeia Tereguá, localizada abaixo do projeto desativado da Casa do mel23 (Anexo G); a preferência, porém, é pela cachoeira, que lembra outras no MS. Dauana, uma menina de 8 anos que vive há dois anos em SP diz: “lá tem uma cachoeirinha. Igual lá no MS”. A impressão é a de que só é possível fazer parte do cotidiano e dos movimentos quando há semelhança com alguma referência de Limão Verde, em que ela, inclusive, nasceu e viveu durante a maior parte da sua vida. Já no caso dos Terena que vivem na aldeia Nimuendajú, há um grande centro 22 Quando fomos participar do passeio, vivenciamos o percurso - em que há algumas cercas elétricas. Todos tivemos que passar por debaixo delas até chegarmos à mata pela qual passa a trilha para a cachoeirinha. Vale ressaltar do risco e da vulnerabilidade que essa situação pode colocar a todas e todos que buscam a cachoeirinha, ao mesmo tempo em que trata-se de um “espaço” que deveria constar oficialmente como terra indígena. 23 A casa do mel é um projeto da Universidade do Sagrado Coração – USC – de produção de mel. Atualmente encontra- se desativado. 29 cultural, com rios, pontes e outros elementos, que é bem visto pelos moradores das outras aldeias. Contudo, devido às especificidades político-territoriais, trata-se de um local de uso mais restrito para os seus habitantes, que são, por sinal, majoritariamente Guarani. Apenas nas épocas festivas, como o Dia do Índio, foi possível acompanhar algumas famílias Terena até a Nimuendajú. Atividades na água corrente ou com água são, portanto, muito bem quistas entre os Terena, e integram, assim, a concepção unatí yapey. Contudo, em Araribá os indígenas têm encontrado alguns empecilhos para isso; no caso das mulheres, por exemplo, sentem falta do espaço de socialidade promovido durante os encontros no rio Araribá. O fluxo de vazão da água e seu volume tornaram-se cada vez mais escassos e hoje há apenas um filete de rio que passa entre as duas principais colônias da aldeia Kopenoti. Antigamente, mesmo os Terena que hoje habitam na aldeia Tereguá viviam naquela redondeza. Atualmente, nessa outra aldeia, costumam brincar em uma represa, mas convivem principalmente na cachoeirinha da fazenda ao lado24. Em resumo, em um processo de décadas, a terra indígena passou por um processo de assoreamento em um dos principais rios presentes em seus entornos25. Ademais, a encanação de sua água pela FUNASA contribuiu para o desuso do Araribá; problematicamente, as atividades nele desenvolvidas eram meio para um complexo espaço de socialidade, especialmente entre as mulheres e as crianças. Há uma ONG indígena que, coordenada por uma liderança Terena, tem desenvolvido um projeto de revitalização das margens do rio através do plantio de árvores. Fica, no entanto, entre os indígenas a pergunta e, ao mesmo tempo, a expectativa de que haja eficácia nisso para que o volume de água aumente e volte a ser como antes, já que manifestam o desejo de retornar a conviver naquele espaço, de modo reinventado26. 24 Antigamente, essa área da fazenda integrava no território indígena na condição de reserva. 25 O outro rio muito importante na história da terra indígena é o Batalha. Foi às suas margens que os antigos Guarani viveram até meados da década de 1980, próximo de onde há também um antigo cemitério indígena. Até hoje alguns Terena costumam passar por ali, inclusive para pescar. A família do Sr. Ronaldinho abrange algumas dessas pessoas que frequentam o rio e contam muitas histórias sobre ele. Há cerca de um ano, dona Heleonora, esposa dele, estava por ali com o marido e o pai dele, o Sr. Tonho. Estava muito escuro e começaram a ouvir barulhos de hiena. Saíram de lá com medo, apesar do Sr. Tonho contar que teria averiguado a situação se tivesse se mantido no local. Os bois criados por Sr. Ronaldinho pastam pelas redondezas do batalha. Assim, quando desejam pescar, prendem os gados que pastam entre sua casa e o rio Batalha. 26 Quase nenhum informante trocaria a máquina de lavar pela tábua no córrego do Araribá. Contudo, 30 Esse contexto expressa um quadro de grandes transformações pelas quais passou o espaço de vida em Araribá desde o estabelecimento Terena na terra indígena. As vicissitudes criativas revelam um modo de ser próprio desse povo, uma concepção própria de unatí yapey em Araribá. Expressam também obstáculos e facilidades à continuidade de seu projeto coletivo. Na esteira dessas constatações, nos remetemos a um comentário do Sr. Eliano sobre como seria interessante escrever um livro chamado “Rio, plantio e saúde” 27. Apesar das ressalvas sobre a encorporação [embodiment]28 desse termo pelos Terena (para quem “saúde”, como vimos, indica uma referência diretamente associada aos problemas do serviço de saúde e ao uso de fármacos), pensamos que a fala dessa liderança indígena reitera o que abarcamos na dissertação. Melhor dizendo, Sr. Eliano fala também de um bem viver cuja característica é a construção de pessoa, de corpo e de territorialidade, vida essa que se realiza a partir da concepção unatí yapey e como que gravitando em torno do MS. Metaforicamente, a boa vida Terena em Araribá se realiza mediante um movimento de ir e voltar do MS continuamente, parte do cenário sócio-político que configura o porvir Terena na Terra Indígena, ainda que não seja esse seu “território ancestral”. Trata-se de movimentos em busca de referências e elementos para a construção das pessoas, dos corpos e do território, de acordo com uma concepção e de outras formas de conviver com o rio parecem ser dejesáveis e desejadas pelos Terena. 27 O mais interessante desse enunciado do Sr. Eliano é que não estávamos conversando sobre o “plantio” em Araribá, e sim sobre a encanação de água. O que pareceu um tipo de insight dele, quer dizer, uma compreensão ampliada da articulação de um conjunto de elementos, indica de um modo muito peculiar (através do nome de um livro) a íntima relação entre os significados do rio e da agricultura para os Terena. E assim o é inclusive no que, para eles, tem a ver com “saúde”, ou, quem sabe, mais propriamente o que o Sr. Eliano relaciona à saúde, uma vez que ele trabalha no saneamento da aldeia e, portanto, tem um acesso diferente da maioria da população ao jargão técnico da ciência. Os significados em jogo, consideramos, podem estar referenciado tanto o espaço de vida e socialidade que se articulam pela agricultura e pelo rio – ou melhor, se articulavam –, quanto o próprio contexto que, como uma bola de neve, propiciou muitas mudanças intensamente vivenciadas em suas vicissitudes. 28 “Like organism and environment, body and landscape are complementary terms: each implies the other, alternately as figure and ground. The forms of the landscape are not, however, prepared in advance for creatures to occupy, any more than are the bodily forms of those creatures independently specified in their genetic make-up. Both sets of forms are generated and sustained in and through the processual unfolding of a total field of relations that cuts across the emergent interface between organism and environment (Goodwin, 1988). Having regard to its formative properties, we may refer to this process as one of embodiment. […] I regard embodiment as a movement of incorporation rather than inscription, not a transcribing of form onto material but a movement wherein forms themselves are generated” (INGOLD, 2002, p.193, grifo nosso). 31 um projeto de existência Terena. A vida gravitacional integra, então, um grande e complexo sistema, que foi historicamente desenhado pelas relações de alteridade – quanto ao “ser Terena” – entre as aldeias do MS, Araribá, sociedade nacional e agências indigenistas oficiais. Todas essas “órbitas” configuram, portanto, o que hoje identifica a Araribá Terena, bem como suas transformações geopolíticas e “culturais”. A “dinâmica” de trânsito na vida Terena em Araribá, configurada por esse processo histórico, designa-se aqui como “gravitacional”. Trata-se de um sistema de órbitas, em que o MS Terena configura-se como um Sol no sistema. Araribá Terena, a Sociedade Nacional e o SPI são, então, como órbitas. Na qualidade da metáfora, a “gravitação” consiste em um meio de interações mediante “o que deve ser Terena” segundo a alteridade. A força implicada nas relações gravitacionais é o “ser Terena”. Assim é que, por último, a vida entre os Terena em Araribá vem sendo concebida em um trânsito referenciado no MS, pelo qual reinventam o que eles próprios reconhecem como sua “cultura”. Na esteira desse processo, a agricultura e a água do rio são marcas memoráveis da vida Terena no período de vigência do SPI, sinalizando e marcando pontos fortes à “existência boa” Terena, unatí yapey. São aspectos de um bem viver modelado na socialidade no antigo Mato Grosso, e ainda, no convívio atual e frequente com os parentes naquele território. Em função da relação que os Terena de Araribá mantém com o MS a partir da concepção unatí yapey, escolhemos a metáfora de uma “vida gravitacional” para designar o “método” de realizar unatí yapey em Araribá. Os Terena mostram que têm reinventando o território, os corpos e as pessoas à sua maneira unatí yapey a partir desse jogo de trânsito com o MS. Essa forma de realizar seu projeto coletivo e sua concepção de boa existência mostra-se articulada como em uma espécie de “sistema gravitacional”, constituindo um jogo de forças motivado por alteridade e etnicidade e que modela o cotidiano fundamentado em unatí yapey. Nesse cenário de órbitas, sistemas e forças de atração e repulsão entre si, a identidade Terena vem sendo reinventada, especialmente a partir da Constituição de 88, quando houve o fim do regime de tutela. O contexto atual tem sido, portanto, favorável ao porvir Terena, algo inédito desde os tempos de SPI, cujo mote era o de tornar os indígenas trabalhadores rurais à serviço do Estado. O SPI 32 encontrava na escola indígena uma forma de “educar” os Terena, de “civilizá-los” 29. Por contraste, atualmente, o espaço escolar é um centro na vida comunitária, atuando na reunião das pessoas e na realização de diversas ações e práticas importantes na socialidade indígena. Tendo como objetivo descrever o jogo de forças de atração e repulsão entre as órbitas desse sistema gravitacional Terena, este trabalho trata de alguns elementos da história de Araribá a fim de apreender descritivamente a concepção de vida plena local. Assim é que, portanto, vale notar no papel desempenhado pela escola entre os indígenas, desde o SPI, uma instituição pela qual o Estado purutuyé realiza seu projeto na relação com os povos originários. No período de vigência do SPI, a escola já havia desempenhado um papel com especial destaque devido ao mote civilizatório da atuação da agência indigenista. O objetivo era civilizar e capacitar para a integração e assimilação na sociedade nacional. Foi nesse modelo de escola que os atuais adultos foram em parte formados30. Tratam-se do mesmos que brincavam no rio Araribá ou que lavaram roupa em suas margens, são também os mesmos que ajudaram a fazer farinha ou receberam sacos dela quando seus pais trabalharam na Deusa. São quem hoje cria galinhas, e são, enfim, as crianças diante de um cenário muito distinto daquele de anos atrás e ainda referenciado na atual tessitura cotidiana31. Vicente, assim como Sr. Horácio, Sr. Harmônio, Sr. Tonho e outros, contextualizam as condições de vida naquele mesmo tempo de quando corria muita água no rio: “a gente comia a quirera do arroz, era o que vendiam pra gente na roça; o que sobrava da venda do que a gente plantava”. Vicente complementa: “Hoje as crianças nem sabem o que é isso, nem sabem o que é trabalhar na roça”; e continua 29 No Anexo H1 de nosso trabalho constam algumas fotografias da escola que funcionava durante o regime do SPI na aldeia Kopenoti. Atualmente, há uma nova escola localizada ao lado da antiga, conforme o Anexo H2, onde então vive uma família de pai Kaingang e mãe purutuyé. 30 E no contexto da transmissão de contextos (Wagner, 2010) e educação sensorial (ingold, 2000) isso é muito importante ser levado em conta. Ainda mais no esteio da compreensão de transformações “culturais” enquanto modelagem de um ideal de bem viver. 31 Adiante esta forma de colocar a compreensão dos dados será modificada – ou seja, estamos tentando direcionar o texto para a compreensão de que os projetos individuais e coletivos de hoje se pautam – gravitacionalmente – nos marcos do passado. Isso direciona porque ainda está presente – daí a pertinência da noção de “marca” ou “marco”. 33 “eu trabalhei desde pequeno, meus pais não queriam que eu estudasse porque diziam que a gente ia perder a nossa cultura”. Vale pontuar que na fala de Vicente há uma menção pejorativa ao trabalho na roça. Atualmente essa significação negativa do trabalho agrícola, especificamente quanto ao trabalho nas fazendas e roças de terceiros, é muito comum. A agricultura integrava no projeto de existência Terena e hoje, em razão das circunstâncias históricas de frustração à realização de unayí yapey, isso mudou. São outros os sonhos, anseios e planos que moldam o vir a ser em Araribá, assim como é outra a terra indígena e o contexto histórico na qual ela está imbricada, e que, por sua vez, modela a vida indígena. O contexto de inserção da instituição escolar na Terra Indígena, propriamente, remonta aos tempos de SPI, quando uma lógica e um ideal civilizatório permeavam fortemente as relações estatais. Encabeçadas pelo Marechal Rondon, as ações das agências indigenistas estavam embasadas em um ideal positivista de influência militar32, devido à própria formação do marechal: Rondon foi um oficial formado pela Escola Militar da Praia Vermelha, era aluno enquanto ainda se conspirava a República. Nesta época, esta Escola representava para muitos de seus membros um meio de ascenção social, uma alternativa ao chamado bacharelismo da Faculdade de Direito, o que era representado sobretudo a partir de uma certa “aristocracia do mérito”, em oposição ao favorecimento típico da rede de relações que se tecia no Império. Este tipo de representação, calcada num certo tipo de positivismo que enaltecia uma lucidez científica baseada em paradigmas universais – sobretudo matemáticos -, traduzia-se, por assim dizer, numa idéia universal de um indivíduo portador de mérito por acúmulo de saber, era um positivismo muito peculiar, praticado por uma organização militar mais peculiar ainda, dentro do que eles apelidavam de “tabernáculo da ciência” (LEIRNER, 1996, p.243). Ao referir-se a Souza Lima, por sua vez, Leirner menciona que A idéia do cerco vem acompanhada [...] de uma reconstituição da gramática que o serviço utilizava no empreendimento da conquista. Desde os postos até estratégias como atração, agremiação e concentração como táticas do poder tutelar, temos aqui todo um léxico de categorias e esquemas classificatórios que remetem ao universo militar. O uso deste material certamente levou Souza Lima a aproximar o SPI de um órgão senão propriamente militar, ao menos muito militarizado (idem, p. 242). 32 Apesar disso, vale pontuar, com LEIRNER (1996): “Sem querer reduzir a dimensão militar da questão, creio apenas que nesta hora, e especialmente durante os anos de implantação do SPILTN, quando este era ainda demasiadamente atrelado à figura de Rondon, este espírito militar se afasta um pouco daquele paradigma disciplinar sugerido por Foucault” (p. 243-244). 34 Queremos dizer que, especialmente entre os Terena, cuja particular relação com a sociedade nacional, ocasionou que lutassem na Guerra do Paraguai e adquirissem destaque, houve uma força que “atraía” a vida em Araribá durante o período de tutela. Ela foi intensamente militarizada, atendendo a uma epistemologia disciplinar voltada para a formação de trabalhadores nacionais. “A ideia de nação daquele momento estaria coadunando com um certo espírito disciplinar, ou um ‘sonho militar de sociedade’, remetendo a Foucault” (LEIRNER, 1996, p.243). Ora, tratar da tutela como uma relação disciplinar do Estado com os povos indígenas implica compreender estratégias em benefício de um ideal civilizatório violento até nas mais sutis práticas cotidianas. Assim é que consideramos presente, na formação do sujeito Terena, uma microfísica da tutela em Araribá: O estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter [...] (FOUCAULT, 1975, p. 26). Para além das problemáticas do ideal militarizante, como nos indicou o campo, a imposição de um formato de educação institucionalizada, tal como a iniciada com os jesuítas quinhentos anos atrás, carrega consigo uma série de questões relativas ao colonialismo. Além disso, abarcam temáticas outras, a exemplo da própria formação dos sujeitos, considerados aqui como sujeitos-ambientes, no termo de Ingold (2000), e da articulação dos projetos existenciais A partir da educação escolar, padrões de normalidade referenciados na epistemologia ocidental são inseridos na dinâmica sociocultural indígena, e até mesmo na educação indígena. Muitas vezes eles são capazes de ressignificar os ideais do desejável e do indesejável nos comportamentos e atitudes individuais, a partir de concepções de tempo, de corpo, de discurso e de comportamento. Então, buscando compreender as transformações nos sujeitos-ambientes Terena em Araribá, reiteramos a fala de Vicente, “meus pais não queriam que eu estudasse, diziam que a gente perderia a cultura”. Há quarenta anos era improvável haver um incentivo entre os Terena para o estudo. A adesão à escola foi um processo bem gradual e lento, nesse sentido. Algumas crianças e jovens passaram a integrar o 35 quadro de alunos para acompanhar33 os outros que já estavam frequentando a instituição. Nesses casos, em que majoritariamente ocorria dos pais, contrariados, até mesmo impedirem os filhos de ingressarem nas aulas, agentes da FUNAI tentavam convencê-los da importância da escola para as crianças e jovens. Foi isso que aconteceu com Onório, de 60 anos, e sua filha Letícia, de 32. Onório conta que no começo detestava ir à escola, pois quase não falava o português e não entendia nada. Também conta que gostava de andar descalço e vestia os calçados apenas para entrar na aula. Sua filha Letícia manifestou o desejo de ingressar nas aulas ao perceber que uma colega da aldeia a estava frequentando. Muitos Terena se recordam dos saquinhos de arroz que usavam como mochila. Hoje em dia, como eles mesmos apontam, as condições de vida mudaram tanto na aldeia que as crianças levam mochilas das mais diversas. E com efeito, desde os quatro anos de idade, os pequenos Terena já frequentam a educação infantil na aldeia. Ao mesmo tempo, considerando melhorar a qualidade do ensino para a comunidade, alguns indígenas acadêmicos ingressaram no curso de Pedagogia, uma correspondência à própria recriação do projeto de existência coletiva, engajado com a inserção nas universidades. Vale atentar para que, no processo de mudança da agência indigenista, o formato de escola também passou por transformações importantes, tais como a presença de pessoas purutuyé na aldeia, desempenhando papéis entre os indígenas (a professora da escola não era indígena, por exemplo). A cena atual é diversa e a profissão apenas pode ser desempenhada em função da identidade indígena correspondente, mais especificamente, à maioria da aldeia e de suas lideranças. Cohn (2005, p.486) contextualiza o processo de escolarização indígena no Brasil desde suas origens no Brasil colônia: A educação escolar indígena tem uma longa história, tão longa quanto é o contato entre índios e europeus. Desde sempre, a alfabetização e a educação escolar tiveram um papel importante nessas relações. Jesuítas se esmeravam na catequese dos índios, preparando gramáticas da língua do “gentio” e encerrando crianças em seminários; em seu rastro, diversas ordens religiosas católicas, como os salesianos e os capuchinhos, montaram suas escolas para alunos indígenas. O estado laico também atuou, desde o Império, na educação dos índios e, em dado momento, em 33 A prática de “andar junto”, “acompanhar” foi notada em outros contextos além da escola. Carla passou a frequentar a igreja, por exemplo, para “acompanhar o marido”, assim como dona Geni. Carla diz “quem ama faz essas coisas”. 36 parceria com missões evangélicas especializadas na grafia e alfabetização das línguas indígenas. Ainda hoje, missionários evangélicos atuam em grande parte do território nacional em projetos de alfabetização e educação escolar entre índios. Em comum a todos esses projetos, uma intenção de salvação do gentio – salvação de si mesmo, seja em sua alma (e daí a catequese ou a evangelização), seja em seus modos (e daí projetos de civilização). Portanto, na maior parte dessa longa história, aos índios eram oferecidos serviços educacionais para mudar o que são e para serem integrados à sociedade que os envolvem. Considerando o período de atuação das duas agências indigenistas, SPI e FUNAI, o processo de escolarização nas aldeias, que havia sido iniciado durante a colonização, orientou-se para a formação de trabalhadores nacionais, e, por trás disso, havia um forte apelo militar. No entanto, apesar dos avanços constitucionais no âmbi to do direito, da t ado das l e i s d e 198834, ainda são muitos os desafios que se colocam à articulação intercultural dos modelos educativos, concernentes à própria delicadeza inerente à questão. No entanto, a efetivação desse modelo [o atual, “diferenciado”] permanece um desafio, por diversas razões. Os índios no Brasil são uma pluralidade de etnias e culturas, que falam cerca de duas centenas de línguas, e os conceitos fundadores da educação diferenciada estão em constante debate, o que faz com que sua aplicação tenha que ser resolvida caso a caso. (…) Devemos lembrar, ademais, que, por mais que nos esforcemos a oferecer aos índios uma educação escolar que lhes seja respeitosa, ela será sempre, para eles, algo que remete a um mode