HELTON MARQUES A INFÂNCIA NO CONTEXTO DA FAMÍLIA PATRIARCAL BRASILEIRA E SUA REPRESENTAÇÃO EM MENINO DE ENGENHO, DE JOSÉ LINS DO REGO ASSIS 2012 HELTON MARQUES A INFÂNCIA NO CONTEXTO DA FAMÍLIA PATRIARCAL BRASILEIRA E SUA REPRESENTAÇÃO EM MENINO DE ENGENHO, DE JOSÉ LINS DO REGO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientador: Prof. Dr. Gilberto Figueiredo Martins ASSIS 2012 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Marques, Helton M357i A infância no contexto da família patriarcal brasileira e sua representação em Menino de engenho, de José Lins do Rego / Helton Marques. Assis, 2012 131 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr. Gilberto Figueiredo Martins 1. Rego, José Lins do, 1901 – 1957. 2. Modernismo - Brasil. 3. Literatura e sociedade. 4. Infância. 5. Família - Brasil. 6. Pa- triarcado. I. Título. CDD 869.93 301.42 DEDICATÓRIA Dedico esta Dissertação de modo especial à minha mãe, Maria, que dentre tantas Marias desta vida é a que sempre esteve ao meu lado, respeitando minhas escolhas, incentivando minhas decisões, retificando passos tortuosos e oferecendo, nos momentos difíceis, seu ombro amigo para me apoiar. Ao meu pai, Homero, cuja honestidade, humildade e paciência são virtudes que me servem de inspiração para seguir em frente. Ao meu irmão, Homerinho, exemplo de perseverança e audácia, qualidades que me inspiram a tomar decisões e continuar lutando por meus objetivos. A minha namorada, Mônica, pela motivação, paciência e verdadeira amizade, condições sem as quais esta trajetória acadêmica talvez não fosse possível de ser realizada. Ao Prof. Dr. Gilberto Figueiredo Martins, presente desde meu primeiro ano de Graduação como um exemplo de pesquisador e professor, dedico, enfim, todo meu empenho e energia para que este sonho se concretizasse. AGRADECIMENTOS Várias pessoas foram muito importantes para o desenvolvimento deste trabalho, seja por haver participado dele direta ou indiretamente, seja por haver demonstrado um simples gesto de motivação ou proferido agradáveis palavras de incentivo. Ao lembrar-me de algumas com o objetivo de agradecê-las, correrei o risco de me esquecer de outras e cometer injustiças. No entanto, estou certo de que vale a pena arriscar e registrar meus sinceros agradecimentos àqueles que tiveram participação especial durante o desenvolvimento desta Dissertação. Em primeiro lugar, agradeço a todos da minha família e, em especial, a minha namorada, Mônica, que muitas vezes deixou de fazer algo, esperou por minha disponibilidade de tempo e até mesmo adiou compromissos que exigiam a minha presença, tudo para colaborar com meus estudos. Sem essa compreensão e zelo, certamente eu não haveria conseguido. Agradeço, também de modo especial, ao Prof. Dr. Gilberto Figueiredo Martins, não apenas por sugerir caminhos adequados à área da pesquisa acadêmica, revisar meus textos e abrir espaços na agenda para tirar dúvidas e me orientar, mas também, e principalmente, por ter acreditado em mim desde o primeiro momento e me motivado a seguir em frente sempre. Às Profs. Drs. Sandra Aparecida Ferreira, da UNESP/Assis, e Solange Ramos de Andrade, da UEM/Maringá, meus sinceros agradecimentos pela participação na Banca do Exame Geral de Qualificação, momento no qual senti meu fôlego renovar-se, e pelas valiosas sugestões para que este trabalho se tornasse o que é. Aos funcionários do Departamento de Pós Graduação da UNESP/Assis, por sempre responderem às minhas dúvidas e me atenderem de modo gentil e amigável. Agradeço também aos funcionários da Biblioteca “Acácio José Santa Rosa”, da UNESP/Assis, em especial a Lucelena Alevato, por ter aberto um espaço em sua agenda para me atender e fazer a ficha catalográfica para esta dissertação. Aos colegas de Pós Graduação e aos professores colegas de profissão, por participarem, de modo singelo, mas muito significativo, da trajetória deste trabalho, ora me perguntando como estavam os estudos, ora me incentivando a continuar, por meio de palavras breves e simples, mas sem dúvida motivadoras. Ao CNPq, enfim, meus sinceros agradecimentos pelo apoio financeiro concedido por meio de bolsa de estudos para o desenvolvimento de mais essa etapa de minha trajetória acadêmica. MARQUES, Helton. A INFÂNCIA NO CONTEXTO DA FAMÍLIA PATRIARCAL BRASILEIRA E SUA REPRESENTAÇÃO EM MENINO DE ENGENHO, DE JOSÉ LINS DO REGO. 2012. 131 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012. RESUMO Autor de um vasto conjunto de obras literárias, José Lins do Rego apresenta em seus romances um estilo espontâneo, natural, e uma linguagem poética com fortes traços da oralidade. É o caso, por exemplo, de Menino de engenho, livro de estreia, publicado em 1932, em que o narrador autodiegético reúne suas recordações de infância, regida pelo signo da perda, e retrata a situação histórico-social da região nordestina dos tempos do patriarcado em decadência. Tendo isso em vista, este trabalho tem como principal objetivo desenvolver um estudo sobre a representação da infância no contexto da família patriarcal no Brasil e verificar em que medida o elemento social presente como tema desempenha papel fundamental na constituição da estrutura narrativa, ou seja, analisar como forma e conteúdo complementam-se ao longo da trama. Palavras-chave: José Lins do Rego; Literatura e sociedade; Representação literária; Infância; Família patriarcal brasileira. MARQUES, Helton. THE CHILDHOOD IN THE CONTEXT OF THE BRAZILIAN PATRIARCHAL FAMILY AND ITS REPRESENTATION IN MENINO DE ENGENHO, BY JOSÉ LINS DO REGO. 2012. 131 f. Dissertation (Master’s degree in Languages) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012. ABSTRACT Author of a wide range of literary texts, José Lins do Rego presents in his novels a spontaneous, natural style, and a poetic language with strong signs of orality. It can be verified, for example, in Menino de engenho, debut book, published in 1932, in which the autodiegetic narrator joins his childhood memories, determined by the sign of loss, and depicts the historical and social situation in the Northeastern region during the period when the patriarchal family was in decline. Therefore, this dissertation objectives to develop a study about the representation of childhood in the context of the patriarchal family in Brazil and to verify how the social element has an important role in the constitution of the narrative structure, in other words, analyzing how literary form and content are different aspects that complement each other along the story. Keywords: José Lins do Rego; Literature and Society; Literary representation; Childhood; Brazilian patriarchal family. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 9 INTRODUÇÃO - José Lins do Rego e sua trajetória literária romanesca: História e ficção Breve biografia do autor ......................................................................................................... 14 Os romances do “ciclo da cana-de-açúcar” ............................................................................. 16 Os romances do “ciclo do cangaço, misticismo e seca” ......................................................... 23 O conjunto de “obras independentes” ..................................................................................... 24 Um livro autobiográfico: o caso de Meus verdes anos ........................................................... 27 CAPÍTULO I - Menino de engenho e a representação da infância no contexto da família patriarcal brasileira Em torno do conceito de “infância” ........................................................................................ 30 Introdução a Menino de engenho: considerações prévias ....................................................... 33 A representação literária da infância ....................................................................................... 35 A representação literária da família patriarcal brasileira ........................................................ 68 A iniciação sexual do menino de engenho: a transição precoce da infância para a adolescência .................................................................................................................................................. 73 CAPÍTULO II - As crenças e práticas religiosas em Menino de engenho Entre Santos e Lobisomens ..................................................................................................... 81 O discurso melancólico e os signos da morte ......................................................................... 87 CAPÍTULO III - O jogo de opostos no discurso literário: a representação das contradições histórico-sociais brasileiras Relações entre forma literária e conteúdo temático .............................................................. 102 Transposições do discurso oral para o discurso literário escrito: os impasses da representação do outro ................................................................................................................................. 112 O caso de Chico Pereira ........................................................................................................ 115 O caso do personagem-protagonista, Carlinhos .................................................................... 116 O caso do Coronel José Paulino ............................................................................................ 117 A formação do narrador de Menino de engenho ................................................................... 119 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 122 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 128 9 APRESENTAÇÃO Creio que, desde muito pequeno, minha infelicidade, e ao mesmo tempo minha felicidade, foi não aceitar as coisas com facilidade. Não me bastava que explicassem ou afirmassem algo. Para mim, ao contrário, em cada palavra ou objeto começava um itinerário misterioso que às vezes me esclarecia e às vezes chegava a me estilhaçar.1 Julio Cortázar Em muitas representações artísticas, como sabemos, é possível perceber o grande desejo de apreender o que chamamos de “realidade”. Tal esforço se baseia no fato de que só é viável falar do “real” através da linguagem, ou seja, quando a “realidade” se transforma em uma determinada linguagem, seja ela verbal ou não-verbal. No caso específico da Literatura, o processo de representar a realidade acontece por meio do sistema de signos linguísticos no qual se baseia a linguagem verbal. É através desse sistema que se torna possível ao ser humano expressar ideias e sentimentos, e é por meio dele também que a arte literária plasma a realidade e a transforma em um objeto estético e de conhecimento. Sobre esse fato, no capítulo “Arte é conhecimento”, do livro Reflexões sobre a arte, Alfredo Bosi desenvolve algumas reflexões, levando em consideração o caráter mimético da obra artística, ou seja, sua especificidade de representar, como o próprio autor diz, “o que se convencionou chamar ‘realidade’ (natural, psíquica, histórica)...” (BOSI, 1995, p. 27), considerando para o desenvolvimento de suas conclusões a evolução dos conceitos de arte e mímesis. Logo no início desse capítulo, Bosi destaca a ideia de conhecimento presente na raiz do termo alemão para arte (kunst) e formula uma questão instigante sobre o modo como a manifestação artística constitui uma forma peculiar de conhecimento. Segundo o autor, uma das mais antigas tradições teóricas filia esse conhecimento específico da arte ao conceito de representação. Trata-se, portanto, da ideia de arte como mímesis, isto é, como imitação (ou reprodução, dependendo do contexto histórico) da realidade. Além disso, o professor Alfredo Bosi também dedica um momento para discorrer sobre a questão da percepção artística em relação à historicidade dos eventos, e, para tanto, cita Eric 1 http://pensador.uol.com.br/juliocortazar. Acesso em 16 out. 2012. 10 Auerbach, autor de Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Segundo Bosi, Auerbach, ao percorrer vinte textos significativos, da literatura antiga até a prosa introspectiva de Virginia Woolf, constatou um denominador comum, mesmo em meio à grande diversidade de temas e valores. Trata-se do princípio de que “arte é forma cognitiva, percepção do real histórico e psicológico, mímesis.” (BOSI, 1995, p. 44). Portanto, tendo em vista esse princípio, podemos concluir dizendo que nenhum período da História pode ser vazio, em termos de representação artística, visto que cada época é marcada por uma consciência que dá forma e estiliza a obra de arte como um todo, o que apoia a tese de que “arte é conhecimento”. Foi com base nessas premissas que se fortaleceu o interesse em pesquisar a infância nos primórdios do século XX, época em que a sociedade brasileira ainda apresentava os resquícios de uma organização social típica do século XIX, isto é, em torno da casa-grande, da senzala e dos engenhos. Além disso, também se fortaleceu o interesse em verificar como a representação desse período da História do Brasil, ou seja, o início do século XX e a permanência de valores próprios do século anterior, se dá no romance Menino de engenho, de José Lins do Rego, levando em consideração aspectos das esferas social, política, religiosa e econômica representadas ao longo da narrativa. Para tanto, o vínculo entre História e Literatura aparece neste trabalho como um modo de diminuir possíveis distâncias entre fatos históricos do Brasil e a narrativa ficcional criada por José Lins, partindo, todavia, do pressuposto de que a História apoia-se em fontes documentais, em versões mais ou menos oficiais, para recriar o passado, e que a ficção é, de modo geral, um processo de invenção, de re-apresentação da realidade. Assim, os documentos nos quais se baseiam os historiadores constituiriam uma linha fronteiriça entre o ficcional e o histórico. No entanto, essa fronteira entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional anula-se pela natureza do passado reconstruído pelo discurso histórico, já que se trata da reconstrução de uma realidade que já deixou de ser e que só é possível por meio da linguagem. Dessa forma, tanto a “realidade” histórica quanto a ficção se assemelham por serem criações/recriações humanas, subordinadas à subjetividade de um autor, que as transforma em discurso. Além disso, de acordo com o crítico Antonio Candido, em seu livro A educação pela noite e outros ensaios, a narrativa ficcional presente em um gênero artístico-literário como o romance não deve ser vista como uma narrativa em que o escritor debruça sua capacidade imaginativa, nem como uma história exaustivamente realista, mas como um reflexo da sociedade na qual o romance foi produzido. Todavia, a verdade crua, e às vezes dura, pode ser 11 disfarçada com os elementos da fantasia, para envolver melhor os leitores. Tendo em vista essa finalidade do romance, Candido então o compara com a imagem da “pílula dourada” ou “remédio adocicado” (CANDIDO, 2006, p. 85), que tem aparência e sabor agradáveis, mas que na realidade serve para curar enfermidades. Desse modo, o romance, e a Literatura de modo geral, representam fatos históricos por meio de um discurso ficcional que “alivia” ou transfigura, por assim dizer, o impacto e a dureza desses fatos. O crítico literário Ian Watt, no livro A ascensão do romance, também tece algumas considerações sobre o romance, as quais servem de apoio para este trabalho, pois, segundo Watt, este gênero apresenta o realismo formal como método narrativo através do qual a visão circunstancial da vida pode ser incorporada. Nas palavras do crítico inglês, o chamado realismo formal “permite uma imitação mais imediata da experiência individual situada num contexto temporal e espacial” (WATT, 1990, p. 32). Em outras palavras, o realismo romanesco é formal porque se trata de um realismo baseado na premissa de que o romance constitui um relato completo e legítimo da experiência humana e, desse modo, deve fornecer ao leitor certos detalhes da história, como a individualidade dos personagens, os locais da ação e as particularidades da época, o que nos permite concluir que o romance trabalha com uma linguagem muito mais referencial do que qualquer outra forma literária. Desse modo, o romance possui uma tendência particularizadora, pois enfatiza o individual, e seu realismo formal se caracteriza por apresentar um tempo e um espaço precisos e certas experiências individuais ao longo da narrativa, como ocorre, por exemplo, no romance que compõe o corpus desta pesquisa. De modo geral, é possível afirmar que as formas artísticas têm sido bastante diversas ao longo do curso da História, e essa diversidade se deve a vários fatores, que vão do político, social e econômico até os objetivos artísticos de cada autor. Tendo isso em vista, procurei, com esta dissertação, verificar de que maneira o romance Menino de engenho representa a infância no contexto da família patriarcal brasileira e em que medida essa matéria histórica é decantada e internalizada nas malhas da própria narrativa, ou seja, como conteúdo e forma literária se relacionam e explicam mutuamente ao longo do romance estudado. Como este trabalho leva em consideração os vínculos estreitos entre História e Literatura, sendo baseado inclusive no estudo de fatos históricos do Brasil para melhor compreender o romance Menino de engenho, em um primeiro momento faz-se necessário conhecer o autor José Lins do Rego, por meio de uma breve biografia apresentada na “Introdução”, pois, como se verá, vários dados biográficos (portanto históricos) do romancista são transpostos para alguns de seus principais romances, em especial para seu romance de 12 estreia, tornando-se, assim, experiências ficcionalizadas apresentadas em um gênero literário, a saber, o romance de feição memorialista. Com isso, não somente algumas narrativas históricas são aproximadas da narrativa ficcional de Menino de engenho, mas também a figura histórica do próprio autor José Lins é aproximada da figura do narrador (e autor ficcional), denominado Carlos de Melo, que retorna na vida adulta com suas lembranças de infância, muitas das quais se assemelhando claramente a fatos vivenciados pelo próprio romancista. Ainda na “Introdução”, uma breve síntese da trajetória literária romanesca do autor é apresentada, com algumas considerações sobre os romances de José Lins, divididos pelos conhecidos ciclos: o da cana-de-açúcar, e o do cangaço, misticismo e seca, além do conjunto de obras independentes e do livro autobiográfico intitulado Meus verdes anos. Para tanto, foi necessário realizar a revisão da “Fortuna crítica” do autor, organizada por Afrânio Coutinho, com o objetivo de recuperar alguns dos principais estudos sobre o autor e seus romances. No capítulo 1, intitulado “Menino de engenho e a representação da infância no contexto da família patriarcal brasileira”, procuro refletir, em um primeiro momento, sobre o próprio conceito (complexo e discutível) de infância, partindo das considerações de alguns dos principais estudiosos sobre o assunto, dentre os quais se destacam Philippe Àries e Mary Del Priore. Em seguida, apresento algumas considerações prévias sobre o romance Menino de engenho, com a finalidade de “preparar o terreno” para o leitor e introduzir o principal assunto deste trabalho. Por fim, inicio uma análise sobre a representação literária da infância no romance de estreia de José Lins e em alguns outros textos literários em que a temática da infância aparece direta ou indiretamente, como em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Negrinha, de Monteiro Lobato, Infância, de Graciliano Ramos, e Doidinho, do próprio José Lins do Rego. Esse paralelo com outras obras literárias, de outros autores, possibilitou a verificação de que o tema da infância é recorrente na Literatura Brasileira, além de ser um tema geralmente associado à violência, como ocorre nos textos supracitados. E para refletir sobre a relação entre infância e violência, fez-se necessário recuperar as considerações de Marcos Cezar de Freitas, no livro História social da infância no Brasil, e de Gilberto Freyre, em Casa-grande e Senzala e Sobrados e Mucambos, com o objetivo de fortalecer novamente os vínculos entre História e Literatura. Ainda no capítulo 1, também verifico como ocorre a representação da família patriarcal brasileira no romance estudado e em que medida acontece a transição precoce da infância para a adolescência com relação ao personagem-protagonista do enredo. Para isso, apresento 13 uma análise dos diversos espaços por onde o menino protagonista transita e como se concretizam suas relações com os demais moradores da casa-grande, da senzala e dos arredores do engenho, principalmente com as outras crianças e com as principais figuras femininas presentes ao longo da narrativa, o que caracteriza, de modo mais aprofundado, essa infância contextualizada e recuperada pelo narrador por meio de suas lembranças. No segundo capítulo, intitulado “As crenças e práticas religiosas em Menino de engenho”, busco analisar como são representadas no romance as crenças e manifestações de religiosidade dos moradores dos antigos engenhos nordestinos, baseando minhas conclusões nos estudos realizados pelos historiadores Luiz Mott e Sérgio Buarque de Holanda, e pelo folclorista Luis da Câmara Cascudo. Além disso, também foi de extrema importância analisar o discurso melancólico que caracteriza o romance estudado e os signos da morte presentes ao longo da narrativa, tomando como base alguns estudos realizados sobre o assunto, sobretudo aqueles desenvolvidos por Sigmund Freud, em Luto e melancolia, e Philippe Àries, no livro O homem diante da morte. No terceiro capítulo, “O jogo de opostos no discurso literário: a representação das contradições histórico-sociais brasileiras”, verifico, de forma mais sistemática, em que medida conteúdo temático e forma literária relacionam-se no romance Menino de engenho, destacando passagens que apresentam um jogo estético elaborado estilisticamente pelo autor. Além disso, também dedico um momento para discorrer sobre as transposições do discurso oral para o discurso literário escrito e sobre os impasses da representação do outro presentes no romance estudado, destacando as falas de alguns personagens e a formação do narrador, com o objetivo de compreender melhor a concretização de suas memórias por meio do discurso literário escrito. Por fim, nas “Considerações finais”, exponho algumas conclusões sobre o romance de estreia de José Lins e seus vínculos com o contexto no qual foi publicado, além de apresentar algumas reflexões sobre a importância da memória para a (re)construção da História e da própria identidade do sujeito. Assim, encerro este Trabalho ciente da contribuição para outros pesquisadores que se interessam pela arte literária e seus vínculos com a História, e, acima de tudo, que se apresentam como leitores apaixonados pela literatura de José Lins do Rego, um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos. 14 INTRODUÇÃO JOSÉ LINS DO REGO E SUA TRAJETÓRIA LITERÁRIA ROMANE SCA: HISTÓRIA E FICÇÃO O escritor cultivava os dons do espírito e o homem não era menos dotado de riqueza interior, do que eleva a condição humana acima do seu nível com aproximações quase sobrenaturais. Com o que há de maravilhoso nas reservas da bondade humana.2 José Américo de Almeida. Breve biografia do autor Aos 3 de junho (ou julho)3 de 1901, no engenho Corredor, localizado no município de Pilar, Estado da Paraíba, nasceu José Lins do Rego Cavalcanti. Filho da senhora Amélia do Rego Cavalcanti e do senhor de engenho João do Rego Cavalcanti, viveu os primeiros anos de sua infância em companhia de seu avô materno, o coronel José Lins Cavalcanti de Albuquerque, e de sua Tia Maria, pois, já no ano de seu nascimento, ficou órfão de mãe, e seu pai foi viver em outro engenho.4 Em 1909, após o falecimento de Tia Maria, José Lins do Rego foi matriculado no Internato Nossa Senhora do Carmo, no município de Itabaiana5, Estado da Paraíba. Três anos depois, em 1912, foi transferido para o Colégio Diocesano Pio X, na cidade de Paraíba (capital do Estado, atual João Pessoa), quando publicou seu primeiro texto, um artigo sobre Joaquim Nabuco, na Revista Pio X. Neste ano, o autor iniciou um contato maior com a Literatura, fazendo parte, inclusive, de uma sociedade literária chamada “Arcádia”. 2 ALMEIDA, José Américo de. O contador de histórias. In: COUTINHO (1991, p. 70). 3 A data de nascimento de José Lins do Rego não é um dado preciso, pois durante a pesquisa encontrei menções aos meses de junho e julho de 1901. Por exemplo, no artigo “Breve notícia – Vida de José Lins do Rego”, de Wilson Lousada, texto presente na 37ª edição de Menino de engenho, e na biografia do escritor encontrada no site da Academia Brasileira de Letras (http://www.academia.org.br), afirma-se que o mês de nascimento do autor é junho. Por outro lado, José Aderaldo Castelo, em José Lins do Rego: Modernismos e Regionalismo, e Benjamin Abdala Jr., em Literatura comentada: José Lins do Rego, afirmam que o escritor nasceu em julho. 4 Sobre esse fato, José Lins do Rego, em seu livro autobiográfico, intitulado Meus verdes anos, declarou: “diziam que fora minha mãe que antes de morrer pedira que eu não fosse criado com meu pai. Fiquei assim no engenho de meu avô, aos cuidados de tia Maria.”. (ABDALA JR, 1982, p. 03). 5 Itabaiana é o nome de um município do Estado da Paraíba e de uma cidade localizada em Recife. Nesta Dissertação, fazemos referência ao município paraibano, onde José Lins do Rego estudou durante três anos de sua infância. Menção ao autor e mais informações sobre a cidade disponíveis no endereço eletrônico www.itabaiana.pb.gov.br/historia. Acesso em 11 ago. 2012. 15 Em 1915, José Lins mudou-se para Recife e estudou no Instituto Carneiro Leão e no Ginásio Pernambucano. Após concluir o Colegial, atualmente denominado como Ensino Médio, matriculou-se na Faculdade de Direito de Recife, onde se formou em 1923, ano em que conheceu Gilberto Freyre, com quem passou a manter relações de íntima amizade. Essa aproximação com Freyre, na verdade, significou muito mais do que uma forte amizade para José Lins; representou, de acordo com afirmação do próprio autor, o início de sua “existência literária” (BARBOSA, in COUTINHO, 1991, p. 62), uma vez que, até então, suas leituras eram restritas a apenas alguns livros, e sua produção literária limitava-se a alguns contos e crônicas. Após conhecer Freyre, no entanto, José Lins foi então estimulado a ler vários outros autores, dentre eles os grandes mestres da Literatura Universal, como Thomas Hardy, D. H. Lawrence e Stendhal, além de ser motivado a continuar escrevendo com espontaneidade e naturalidade, marcas estilísticas próprias do autor. No ano seguinte, em 1924, José Lins casou-se com Filomena Marsa, com quem teve três filhas: Maria Elizabeth, Maria da Glória e Maria Cristina. Em 1925, mudou-se para o município de Munhuaçu, no Estado de Minas Gerais, onde exerceu o cargo de promotor público até 1926, quando abandonou a promotoria para trabalhar como fiscal de bancos em Maceió, Alagoas. Neste ano, conheceu grandes escritores e pesquisadores, como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge de Lima, Aurélio Buarque de Holanda, dentre outros romancistas e estudiosos. Em 1929, José Lins terminou seu primeiro romance, Menino de engenho, publicado em 1932, iniciando oficialmente sua carreira literária. Três anos depois, em 1935, já com quatro romances publicados, o escritor transferiu-se para o Rio de Janeiro para exercer o cargo de fiscal do Imposto de Consumo. No Rio, apaixonou-se pelo futebol, chegando a assumir a diretoria do Flamengo e a chefiar a delegação brasileira de futebol no Campeonato Sul- Americano, em 1953. Eleito membro da Academia Brasileira de Letras, em 1955, ocupando a vaga do magistrado Ataulfo de Paiva, José Lins mostrou, com seu discurso de posse, por que era considerado um intelectual crítico e polêmico, ao pintar um retrato sarcástico de seu antecessor, afirmando que este “chegou ao Supremo Tribunal Federal sem ter sido um juiz sábio e à Academia sem nunca ter gostado de um poema.” (ABDALA JR, 1982, p. 08). Como consequência, instituiu-se a censura prévia nos discursos de posse na Academia. Ao longo de sua carreira literária, José Lins ganhou três importantes prêmios: o Prêmio da Fundação Graça Aranha, pelo romance Menino de engenho (1932); o Prêmio Felipe 16 d'Oliveira, pelo romance Água-mãe (1941); e o Prêmio Fábio Prado, pelo romance Eurídice (1947). Dois anos após sua nomeação como membro da Academia, no ano de 1957, José Lins faleceu, com 56 anos de idade, no Rio de Janeiro, vítima de hepatopatia6, mas suas narrativas continuam vivas, entretendo leitores e, acima de tudo, ensinando muito sobre a vida e os seres humanos. Os romances do “ciclo da cana-de-açúcar” Autor de várias produções literárias, José Lins do Rego é considerado pela crítica um dos principais escritores da Literatura Brasileira da década de 1930, e sua ficção filia-se de modo único à estética regionalista vigente na época. Caracterizada pela liberdade de expressão, o interesse social e o regionalismo, a obra de José Lins é uma das mais importantes produzidas durante o Modernismo no Brasil. Seus romances, em geral, são o retrato melancólico e ao mesmo tempo poético de uma sociedade decadente. Em 1932, José Lins, como já mencionado, publicou seu primeiro romance, intitulado Menino de engenho, ao longo do qual o narrador autodiegético7 reúne suas recordações de infância e retrata a situação histórico-social da região nordestina durante o processo de industrialização que substituiu o sistema socioeconômico organizado em torno da casa- grande, da senzala e do engenho. É importante levar em consideração que este processo aparece ao longo dos romances que compõem o chamado “ciclo da cana-de-açúcar”, denominação sugerida a José Lins e posteriormente aceita por ele. De acordo com Rachel de Queiroz, no ensaio “Menino de engenho: 40 anos”, as “memórias, personagens e vivências eram as da sua [de José Lins do Rego] meninice, passadas na zona da cana-de-açúcar; e daí nasceu a ideia do Ciclo da Cana- de-Açúcar”. (QUEIROZ, in COUTINHO, 1991, p. 239). O início deste ciclo se dá com Menino de engenho (1932), e segue com Doidinho (1933), Banguê (1934), O Moleque 6 Designação genérica das doenças do fígado. Ver http://www.dicio.com.br/hepatopatia. Acesso em 11 ago. 2012. 7 Segundo definição de Gérard Genette, o narrador autodiegético é aquele que narra e participa da narrativa como protagonista, revelando suas próprias vivências. http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/narradorauto diegetico. Acesso em 11 ago. 2012. 17 Ricardo8 (1935), Usina (1936), e, como romance-síntese do processo, a obra-prima Fogo Morto (1943). Como é possível observar, os cinco primeiros romances de José Lins foram publicados um após o outro, em anos consecutivos, como um jorro de lembranças nostálgicas que marcaram profundamente a vida do romancista, o qual, tendo o poder da palavra escrita e um papel social definido por sua função de escritor, surge na década de 1930 como um dos principais representantes do romance memorialista, por deixar correr a pena ao fluxo das recordações, e do regionalista, por valorizar o linguajar da terra, escrevendo suas narrativas em estilo coloquial, embora apurado. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, reconhece a intenção de José Lins do Rego de eternizar um modo de vida baseado no sistema patriarcal, que foi substituído pelo advento da usina. No capítulo “Nossa revolução”, de sua obra-prima acima citada, o ensaísta cita o romancista como exemplo de suas considerações sobre a exploração dos engenhos pelos centros industrializados no fim do século XIX e início do século XX, como na seguinte passagem: Um romancista nordestino, o Sr. José Lins do Rego, fixou em episódios significativos a evolução crítica que ali também, por sua vez, vai arruinando os velhos hábitos patriarcais, mantidos até aqui pela inércia; hábitos que o meio não só deixou de estimular, como principia a condenar irremediavelmente. O desaparecimento do velho engenho, engolido pela usina moderna, a queda de prestígio do antigo sistema agrário e o novo tipo de senhores de empresas concebidas à maneira de estabelecimentos industriais urbanos indicam bem claramente em que rumo se faz essa evolução. (HOLANDA, 1995, pp. 175-176). O conjunto de romances que compõem o ciclo da cana-de-açúcar ganha expressiva significação quando é analisado com base na citação de Holanda, uma vez que a gradual substituição do engenho pela usina, ou seja, de um modo de trabalho e produção por outro, aparece representada do romance de estreia, Menino de engenho, até o último do ciclo, Usina. A propósito, os próprios títulos destes romances já indicam o processo de transformação dos 8 Consideramos O Moleque Ricardo um dos romances que compõem o ciclo da cana-de-açúcar, pois o próprio autor o considerou como tal. No entanto, segundo José Aderaldo Castello, em José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo, o quarto romance de José Lins é antes uma obra independente, pois a ambientação é mais urbana do que rural. Para Castello, a aproximação desse romance ao ciclo da cana-de-açúcar só é possível “do ponto de vista sentimental.” (CASTELLO, 1961, p. 158). 18 engenhos em usinas, e todo o processo é representado de modo magistral no romance-síntese intitulado Fogo-Morto. Com relação a Menino de engenho, primeiro romance do ciclo da cana-de-açúcar, José Lins o escreveu servindo-se de suas memórias de infância, transpondo para o plano ficcional alguns indivíduos que fizeram parte de sua vida de menino de engenho, como, por exemplo, seu avô materno, o senhor José Lins Cavalcanti de Albuquerque, que aparece na obra do escritor como o autoritário Coronel José Paulino. De acordo com o próprio José Lins do Rego, a memória foi a grande força-motriz de sua produção literária. Em uma entrevista realizada por Clóvis de Gusmão, intitulada “A terra é quem manda em meus romances”, o autor afirma: “Quero sempre recordar, estar sempre me lembrando. É outra palavra que gosto de ver pegada à minha obra. Dizem que sou um homem que me sirvo da memória. De fato, a saudade me tem dado o que há de belo nos meus romances.” (GUSMÃO, in COUTINHO, 1991, p. 54, grifo meu). Realmente, a grande saudade que o romancista deixa transparecer na figura do narrador de Menino de engenho, chegando inclusive a dar o tom nostálgico ao longo da narrativa, pode ser uma chave-de-leitura para a interpretação desse romance. A propósito, o tom nostálgico e até mesmo melancólico perpassa todos os romances do ciclo da cana-de-açúcar, atingindo seu ponto máximo em Bangüê, quando o jovem Carlos de Melo, já bacharel em Direito, retorna ao engenho onde passou sua infância, e se depara com o velho Zé Paulino em plena decadência física e mental. Vale destacar que toda a narrativa é marcada pelo signo da decadência do grande engenho Santa Rosa, assim como dos banguês9 vizinhos, que se encontram em processo de extinção, gerado pela crescente expansão de um novo sistema de produção e trabalho organizado em torno das usinas. No artigo “Origens e significado de Menino de engenho”, José Aderaldo Castello afirma que a “geratriz do grupo de romances, conhecido por Ciclo da Cana-de-Açúcar, é o ‘menino de engenho’, expressão de autêntico estado vivencial, condicionador de experiências posteriores, foco que ilumina a memória vigilante, atuante e estimuladora.” (CASTELLO, 1961, p. 230). Assim, a memória pode ser considerada na obra de José Lins como o ponto de partida para a escrita de vários romances, nos quais recordação e invenção misturam-se e criam uma expressão artístico-literária singular. 9 Um dos significados da palavra “banguê” faz referência à padiola usada para a condução do bagaço da cana nos engenhos de açúcar, além de também se referir ao canal de ladrilho por onde escorre a espuma das tachas e à fornalha onde essas tachas são assentadas. Por extensão, banguê significa o próprio engenho de açúcar, simples e primitivo, movido com energia animal, dito engenho de banguê. Mais informações no site http://aulete.uol.com. br/bangue. Acesso em 06 nov. 2012. 19 No prefácio da primeira edição de Usina, o próprio José Lins confirma o caráter memorialista de seus livros, afirmando que com Usina termina a série de romances que chamei um tanto enfaticamente de “ciclo da cana-de-açúcar”. A história desses livros é bem simples – comecei querendo apenas escrever umas memórias que fossem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço da vida o que eu queria contar. Sucede, porém, que um romancista é muitas vezes o instrumento apenas de forças que se acham escondidas no seu interior. (REGO, 2010, p. 29). Como é possível depreender das palavras do autor, sua intenção, ao iniciar suas memórias, era a de representar sua vida de menino de engenho de forma a atingir um patamar generalizante, ou seja, escrever sobre sua infância como forma de representação da vida de todos os meninos criados em engenhos. No entanto, José Lins criou um ciclo de romances, o ciclo da cana-de-açúcar, que vai muito além de suas memórias de infância e juventude. Na verdade, este ciclo ilustra o processo de decadência de um sistema socioeconômico, a começar com Menino de engenho, romance em que se narram as relações estabelecidas entre o senhor de engenho e seus empregados, os costumes dos moradores dos banguês e dos escravos das senzalas, as brincadeiras típicas dos moleques da bagaceira, as formas de organização política, os costumes religiosos, as comemorações festivas, as mudanças e permanências, enfim, todo um mundo social organizado em torno da família patriarcal, da casa-grande, das senzalas e dos engenhos. No segundo romance, Doidinho, o autor continua as memórias de Carlos de Melo, apelidado de “doidinho” pelos colegas do “Instituto Nossa Senhora do Carmo”, de Itabaiana, dirigido pelo áspero Prof. Maciel. Neste romance, o narrador distancia-se do engenho Santa Rosa para contar sua experiência como interno. No entanto, tal distanciamento é parcial, uma vez que o narrador lembra-se de suas férias de colégio passadas no engenho de seu avô, revelando, mais uma vez, a vida no engenho. De acordo com Rolando Morel Pinto, no ensaio “Introdução a Doidinho”, a compreensão integral do segundo romance de José Lins “exige a leitura prévia das peripécias do menino de engenho, tais são as remissões a personagens, episódios e acontecimentos da primeira narrativa (...)” (PINTO, in COUTINHO, 1991, p. 245). Na verdade, Doidinho continua a narrativa de Menino de engenho não somente por retomar personagens e cenas 20 presentes neste, mas por começar a partir do ponto em que termina o primeiro romance, quando Carlinhos deixa o engenho e vai para o colégio do Seu Maciel. Trata-se, portanto, de uma continuação explícita, que segue o curso temporal da vida do protagonista Carlinhos, supostamente o mesmo em ambas as narrativas. Em Banguê, terceiro romance do ciclo, Carlos de Melo, após dez anos de ausência, retorna ao engenho Santa Rosa para repousar da agitada vida urbana e dos estudos que recentemente concluíra. Bacharel em Direito, o protagonista encontra-se em um profundo dilema existencial, pois não sabe se herda o engenho de seu avô e se torna senhor de engenho ou se continua sua incipiente vida de intelectual, rodeado de livros e jornais. Por fim, Carlos de Melo, após a morte de José Paulino, tenta dar continuidade à produção do engenho herdado, porém não consegue livrá-lo da total decadência e posterior extinção. Adolfo Casais Monteiro estabelece uma relação de aproximação entre Banguê e A ilustre casa de Ramires, do escritor português Eça de Queiroz, afirmando, com muita sensatez, que em ambos os romances “o drama é o mesmo: é o drama da decadência, do aniquilamento, não apenas de uma família, porque em ambos os romances a família não passa de símbolo transparente: o que agoniza é de fato uma época, uma forma de civilização.” (MONTEIRO, 1964, p. 173). Assim, a figura de Carlos de Melo é duplamente falida, uma vez que tanto sua vida familiar e pessoal como sua função social de senhor de engenho são arruinadas. Após Bangüê, José Lins distancia-se de Carlos de Melo, publicando O Moleque Ricardo, primeiro livro do autor que apresenta um narrador heterodiegético10, o qual conta a história de um dos moleques trabalhadores do engenho Santa Rosa, Ricardo, que foge do ambiente rural para a cidade, com o objetivo de mudar de vida, mas acaba se transformando em mais um proletário urbano. De acordo com Antonio Carlos Villaça, no ensaio “O Moleque Ricardo”, presente na 20ª edição do romance homônimo, “pela primeira vez em sua obra, Lins do Rego se volta para o ambiente urbano. O Moleque Ricardo vai reaparecer em Usina. É um moleque que foge aos 16 anos do engenho Santa Rosa para a cidade do Recife. Mas o engenho vai com ele. O moleque carrega o engenho consigo.” (REGO, 1995, p. 15). Além disso, o quarto romance de José Lins é considerado pela crítica como o mais político, em que surge um olhar crítico 10 De acordo com definição de Genette, o narrador heterodiegético é aquele que narra uma história sem dela participar como personagem. Site consultado: www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/narradorheterodiegetico. Acesso em 06 nov. 2012. 21 voltado para o pobre em um contexto urbano, onde a economia é gerada pelas máquinas e fábricas, e a exclusão social intensifica-se de forma alarmante. Em Usina, narra-se a continuação da história do moleque Ricardo a partir de sua prisão com outros grevistas até seu retorno ao engenho Santa Rosa, após Carlos de Melo fugir dos problemas do engenho e entregar seu patrimônio a parentes. Neste romance, que encerra, de certa forma, o ciclo da cana-de-açúcar, o qual reaparece e é de fato concluído (daí a ideia de ciclo) em 1945 com o romance-síntese Fogo Morto, o engenho Santa Rosa encontra-se em seus últimos de dias de existência, pois não há como evitar sua industrialização. Segundo Jayme de Barros, no ensaio “Usina”, o quinto romance de José Lins é “o fim do drama. (...) Se o banguê devorou os engenhos, as usinas devoraram os banguês. A terrível maquinaria moderna, aliada do dinheiro, quebra canas sem cessar e reclama mais terras, escurraça o povinho do Santa Rosa (...)”. (BARROS, in COUTINHO, 1991, p. 306). Assim, José Lins encerra, por um tempo, seu ciclo da cana-de-açúcar, com a representação do fim do mundo dos engenhos e o surgimento do mundo das usinas. Em outras palavras, na série de romances desse ciclo é possível observar a gradual decadência de um modo de trabalho escravo11, comandado pelos senhores de engenho, e o início de outra forma de trabalho, onde o poder das máquinas também aliena o homem. Após sete anos da publicação de Usina, em 1945, José Lins publica o romance-síntese do processo de substituição do engenho pela lavoura mecanizada. Fogo-Morto, considerado a obra-prima do autor, reapresenta os principais personagens do ciclo da cana-de-açúcar. A propósito, nesta obra, os personagens são a força-motriz da narrativa. De acordo com Antonio Candido, Fogo-Morto é sobretudo um livro de personagens. Falar dele é falar destes. A força dramática e a intensidade do estilo do Sr. José Lins do Rego são de natureza a tornar os personagens tipos e símbolos, sem que com isso percam coisa alguma de sua vida palpitante, da sua extraordinária humanidade. (CANDIDO, in COUTINHO, op. cit., p. 397). Vale destacar que os personagens da ficção de José Lins são sempre colocados em uma situação-limite, sobretudo em Fogo-Morto, romance que sintetiza e encerra o ciclo da cana- de-açúcar. O mestre José Amaro, amargurado com sua vida em decadência e, principalmente, 11 Segundo a perspectiva marxista, no modo de trabalho escravo o sujeito vivencia um conflito de classes e é completamente submetido a um trabalho que gera riquezas não para si próprio, mas exclusivamente para outros. Site consultado: http://www.espacoacademico.com.br/081/81silva.htm. Acesso em 06 nov. 2012. 22 por não ter um filho para quem ensinar o seu ofício de seleiro, morando em uma velha casa de taipa no meio da estrada, por onde todos passam, pode ser um exemplo de personagem que vive em uma situação de transição: já se encontra velho e doente, entre a vida e a morte, que acontece no fim da última parte do romance. Além disso, Zé Amaro, pela cor amarelada, olhos vermelhos e pelo hábito que adquire de andar à noite pelas matas, começa a despertar, em determinado momento da narrativa, medo e aversão nos moradores dos engenhos, que passam a chamá-lo de “lobisomem”. Essa condição de lobisomem também se relaciona à situação social-limite do mestre seleiro, que passa a ser considerado lobo e homem ao mesmo tempo. Sua filha, Marta, assim como Olívia, filha do Capitão Tomás, e o Coronel Lula de Holanda também são personagens que se encontram em situação-limite, pois adoecem vitimados pela loucura e passam a ser conduzidos por esta. O limite entre a razão e a emoção marca o modo de viver dessas personagens. Até mesmo o velho José Amaro é acometido pela loucura, quando, por exemplo, questiona se de fato é um lobisomem, como tanto dizem os moradores dos engenhos, e até passa a acreditar nessa hipótese. Como bem observou Antonio Candido, no ensaio “Um romancista da decadência”, os herois de José Lins “são de decadência e de transição, tipos desorganizados pelo choque entre um passado e um presente divorciado do futuro” (CANDIDO, 1992, p. 61). Dessa forma, trata-se de personagens inseridos em um contexto marcado pelo conflito de gerações e pela alteração de valores e princípios, o que gera o conflito existencial visível como característica de vários de seus herois. Outro personagem delineado com os mesmos traços é o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, apelidado de “Papa-Rabo”, por ter o costume de cortar o rabo dos animais. De acordo com Benjamin Abdala Jr., em seu artigo “Os ritmos do tempo em torno do engenho”, presente na 71ª edição de Fogo-morto, o personagem Capitão Vitorino é um quixote nordestino. Como o herói de Miguel de Cervantes, às vezes vê na realidade o que ali não está. Considerava sua “burra” velha um “animal de primeira ordem” (...) o capitão, em sua “loucura”, exigindo respeito por sua figura (não é apenas uma “triste figura”) e também justiça (por sobre os interesses familiares), acaba por triunfar. Na ficção, o sonho pode ser maior que a realidade.” (ABDALA Jr., in REGO, 2011, p. 16). 23 Outra situação-limite em Fogo-Morto é a imagem do cangaço, presente de forma ambígua no romance por apresentar o cangaceiro chefe, o Capitão Antonio Silvino, como vilão e herói ao mesmo tempo. Trata-se, portanto, de uma espécie de poder paralelo à ordem social. Assim como esses personagens, que vivem em situações-limites, o sistema de organização social em torno dos engenhos, da casa-grande e das senzalas também é representado em uma situação-limite, pois se encontra em uma gradual e inevitável decadência. A propósito, de acordo com José Aderaldo Castello, em “Introdução aos romances de José Lins do Rego”, o conjunto de romances que fazem parte do ciclo da cana- de-açúcar representa todo o processo de decadência do patriarcado rural da zona açucareira do Nordeste e para fixar o triunfo, sobre tal derrocada, da industrialização do açúcar sob processos mecânicos avançados, com a usina, devoradora de engenhos – como os engenhos o foram dos banguês – e criadora de novo sistema de latifúndio e servilismo. (CASTELLO, 1961, p. 92). Desse modo, tradição e renovação, passado, presente e projeções de um futuro próximo, convivem no regime romanesco de forma tensa, com o gradual declínio de um sistema econômico mercantil e colonial organizado pelos engenhos, e a expansão triunfal de uma economia de base capitalista representada pelo surgimento das usinas, com seu novo modo de produção movido pelas máquinas. Os romances do “ciclo do cangaço, misticismo e seca” José Aderaldo Castello, em seu livro José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo, afirma que os romances Pedra Bonita, publicado em 1938, e Cangaceiros, em 1953, pertencem ao chamado “ciclo do cangaço, misticismo e seca”, justamente por serem narrativas ambientadas na seca do sertão nordestino, onde personagens de grande resistência física e moral, com ares místicos e imponentes, ganham o primeiro plano da narrativa. (idem, p. 149). Assim como os romances que compõem o ciclo da cana-de-açúcar, Pedra Bonita e Cangaceiros também apresentam histórias baseadas nas experiências vividas pelo próprio 24 autor, o qual transpõe para o universo ficcional episódios e figuras de um mundo que conheceu quando criança durante os anos em que viveu no engenho de seu avô materno. No primeiro romance, narra-se a história de Antônio Bento, um jovem rapaz que é criado por Amâncio, um padre, na pequena cidade de Açu, pois sua família decidiu dá-lo ao vigário quando estava fugindo da grande seca de 1904. Os moradores de Açu, no entanto, recebem Antônio com desconfiança, uma vez que ele pertencia à região de Pedra Bonita, a qual ficou marcada pela presença de um homem que se dizia profeta, mas que foi traído e morto por um membro da família do jovem rapaz. Passados alguns anos de sua chegada à pequena cidade, Antônio, após conhecer Dioclécio, um cantador nordestino que lhe conta muitas coisas sobre o que existe no mundo fora de Açu, decide partir da cidade onde todos o odeiam, e vai morar com seus pais na fazenda de Araticum, onde encontra os irmãos Domício, um jovem cantador, e Aparício, que se torna, ao longo da narrativa, o cangaceiro mais famoso da região. O romance Cangaceiros, por sua vez, prossegue a história da família de Antônio Bento, depois que um grupo de devotos é dizimado por várias tropas. O espaço da narrativa é novamente a caatinga, no sertão, e a figura do cangaceiro é ambiguamente delineada, ora apresentando ares de heroísmo, ora de banditismo. O próprio José Lins considerou o romance Cangaceiros uma continuação de Pedra Bonita, como revela um de seus depoimentos: “Continua a correr neste Cangaceiros o rio de vida que tem as suas nascentes em meu anterior romance Pedra Bonita (...) É o sertão dos santos e dos cangaceiros, dos que matam e rezam com a mesma crueza e a mesma humanidade” (CASTELLO, 1961, p. 152). De modo geral, portanto, os dois romances que compõem o ciclo do cangaço, misticismo e seca apresentam-se como narrativas representativas de um fenômeno social e político, o cangaço, que para alguns foi o terror do Nordeste, mas para muitos foi uma forma heroica de poder paralelo. O conjunto de “obras independentes” Os romances considerados como “obras independentes” na produção romanesca de José Lins do Rego recebem esta designação por não apresentarem como cenário o sertão nordestino e seus personagens típicos. Por meio deste conjunto, então, o autor “fugiu”, por assim dizer, das paisagens nordestinas e mostrou ser capaz de produzir uma literatura sem o 25 apoio de suas recordações de infância. Assim, surgem Pureza (1937), Riacho Doce (1939), Água-Mãe (1941) e Eurídice (1947). Com relação ao romance Pureza, Octávio Tarquínio de Souza faz uma declaração muito instigante: Confesso que comecei a leitura deste livro com um certo receio. De quê? De que o Sr. José Lins do Rego não se renovasse, de que os temas do Ciclo da Cana-de-Açúcar se repetissem, voltassem a empolgar o romancista, tão fáceis, tão familiares, tão natureza eram eles. O êxito constante de cinco livros seguidos, maior em Menino de engenho, em Banguê e Usina, baixando um pouco em Doidinho e em O Moleque Ricardo, poderia seduzi-lo a continuar nessa viagem através das experiências de sua infância e mocidade, prendendo-o, limitando-o aos quadros, às cenas, aos dramas da região em que nasceu e se fez homem, aos episódios da transformação do regime de propriedade apreciado nas reações, na vida social e na existência de determinados indivíduos. Lidas, porém, as primeiras vinte páginas do novo romance do Sr. José Lins do Rego, tive para logo a certeza de que Usina fora realmente o fecho do Ciclo da Cana-de-Açúcar. (SOUZA, in COUTINHO, 1991, p. 316). De fato, em 1936, Usina de certa forma encerrava o ciclo que marcou o início da vida artístico-literária de José Lins, mas não de modo definitivo, como já demonstrado anteriormente, uma vez que em 1943 as memórias melancólicas do mundo dos engenhos retornariam com Fogo-Morto. Pureza, outra “obra independente”, foi o sexto romance de José Lins, e seu enredo gira em torno da recuperação física e psíquica do personagem central, Lourenço de Melo, que, acometido por uma tuberculose, vai para “Pureza” - “um recanto retirado, onde só existia mesmo, além da casa do chefe da estação, o chalé onde eu morava.” (REGO, 1956, p. 23) - para se curar e acaba envolvendo-se em casos amorosos com duas irmãs, Margarida e Maria Paula; mas no final, quando já está curado, deixa a estação de Pureza e vai embora sozinho. Trata-se, portanto, de uma narrativa mais interiorizada, que se passa em um lugarejo perto da região dos engenhos. Em 1939, surge Riacho Doce, romance no qual, segundo Aurélio Buarque de Holanda, “o escritor faz viver sua gente do litoral. A primeira parte da obra, desenrolada na Suécia, onde há páginas admiráveis de psicologia infantil, é, por assim dizer, um prefácio.” (HOLANDA, in COUTINHO, op. cit., p. 357). 26 Em Riacho Doce, narra-se a história de um casal de suecos que viaja para Alagoas. Edna, extasiada com a natureza brasileira, apaixona-se por Nô, um mestiço nordestino, que “era um trecho da terra – do mar, do rio, da areia da praia, do luar a cuja luz cantava as modinhas para a sua branca. (...) Protegendo o amor da sueca ao nativo, há uma paisagem cúmplice. Uma paisagem cheia de luz, cheia de vida.” (HOLANDA, in COUTINHO, 1991, pp. 357-358). Por outro lado, Água-Mãe, romance publicado em 1941, apresenta uma narrativa que gira em torno da “Casa Azul”, temida pelo supersticioso povo local por ter sua história marcada por tragédias familiares. Neste espaço, três famílias de Cabo Frio (a do Cabo Candinho, a de Dona Mocinha e a dos Mafras), vivem o terror da Casa Azul, assombrada por entidades sobrenaturais, o que revela a intenção de José Lins em explorar outros temas e até mesmo a chamada Literatura Fantástica12. Como afirma Olívio Montenegro, Água-Mãe não é mais um romance do Nordeste; desta vez o cenário é outro: clima, homem, vida, tudo agora é apanhado em outro espaço e em outra latitude, mas aqui, como nos seus melhores romances de vida nordestina, a natureza não abafa o homem, o homem não fica o aborto de uma região como é comum nos romances chamados de cor local. (MONTENEGRO, in COUTINHO, op. cit., p. 366). De modo geral, de Pureza a Água-Mãe, José Lins revelou que seu talento de romancista não se restringia a uma criação literária baseada apenas em suas vivências de infância e mocidade. Deixando de lado a vida dos engenhos e do patriarcado nordestino, o autor usou de toda sua imaginação e criou narrativas ambientadas em diferentes épocas e espaços. Todavia, essa tendência durou sete anos, uma vez que, em 1943, José Lins retorna às suas origens, publicando sua obra-prima, Fogo-Morto, romance em que ressuscita seus principais personagens do ciclo da cana-de-açúcar e a paisagem inconfundível do sertão nordestino dos tempos do patriarcado em decadência. Após encerrar esse ciclo, José Lins mais uma vez distancia-se de sua linha ficcional regionalista para escrever e publicar, em 1947, o romance Eurídice, drama psicológico ambientado no Rio de Janeiro. Nesse romance, como afirma Rachel de Queiroz, no artigo “O 12 Consideramos para a menção à chamada Literatura Fantástica o fato de ser o gênero fantástico algo em constante evolução, e que se apresenta como categoria conceitual de difícil definição. Assim, a possibilidade de afirmar, com certa ousadia, que José Lins aventurou-se, de certa forma, pelas veredas do fantástico em seu livro Água-Mãe deve-se à tendência generalizada em definir qualquer narrativa com passagens sobrenaturais como portadora de elementos próprios do fantástico, ainda que não sejam os índices predominantes. Para um maior entendimento sobre o assunto, consultar o site http://www.literaturafantastica.pro.br. Acesso em 23 set. 2012. 27 fabuloso Lins do Rego”, “não temos pitoresco, nem seca, nem inverno, nem usina, nem barreira. Apenas um homem e as suas curtas lembranças. Angústia, solidão e uma espécie de espanto retrospectivo da mente crítica e pensante ao remoer a memória das passadas torturas...” (QUEIROZ, in COUTINHO, 1991, p. 442). De modo geral, com Eurídice José Lins afasta-se consideravelmente de seus mais legítimos processos criadores de paisagens, personagens e episódios de sua infância, produzindo um romance de tendência intimista, aproximado do universo conceitual freudiano, que representa um mecanismo de comportamento enraizado na infância do personagem- protagonista Júlio, evidenciando-se o esforço do autor em criar uma ficção mais interiorizada e subjetiva. Um livro autobiográfico: o caso de Meus verdes anos Após a publicação de seu último romance, Cangaceiros, José Lins publicou, em 1956, seu primeiro livro realmente autobiográfico, intitulado Meus verdes anos, no qual evoca sua infância passada no engenho nordestino do Corredor. Ao contrário de Menino de engenho, Meus verdes anos enquadra-se no gênero autobiográfico por apresentar os tipos tais como eles são na realidade, ou seja, há uma preocupação com a veridicidade, enquanto no gênero romanesco o autor realiza a transposição de um fato real para o plano da arte, preocupando-se essencialmente com esta. Nessa transposição, segundo Brito Broca, no ensaio “Autobiografia e ficção”, “o fato é sempre deformado, já que não pode haver arte sem deformação. De onde a diferença essencial entre autobiografia e romance.” (BROCA, in COUTINHO, op. cit., p. 464). Sobre Meus verdes anos, Osmar Pimentel também tece algumas considerações relevantes. No ensaio “Dois meninos”, afirma que, com este livro, o autor descreveu com maior nitidez lógica alguns fatos e situações que transfigurara e esbatera em sua obra de ficção. Meus verdes anos pode, por isso, ser consultado, com algum proveito, por nossos historiadores sociais. O valor histórico desse depoimento decorre do fato de José Lins do Rego ter observado, com isenção de ânimo, sendo embora neto de senhor de engenho, a vida da triste fauna humana presa ao engenho pela servidão econômica. (PIMENTEL, in COUTINHO, op. cit., p. 474). 28 Tendo em vista os comentários de Broca e de Pimentel, é possível refletir sobre a validade dos fatos históricos também representados em Menino de engenho, uma vez que se trata de um gênero artístico-literário, o romance, e, como tal, possui uma preocupação mais voltada para a arte do que para a transcrição da realidade. De acordo com Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico, quando o nome do narrador e/ou personagem é diferente do nome do autor, exclui-se “a possibilidade de autobiografia. Pouco importa, então, que haja ou não, além disso, atestado de ficcionalidade (...). Que a história seja apresentada como verdadeira (...) ou que seja apresentada como fictícia.” (LEJEUNE, 2008, p. 29). Com isso, o que caracterizaria o texto autobiográfico é a identidade entre narrador/personagem e autor, expressa através de um “pacto autobiográfico” estabelecido com o leitor. Assim, Menino de engenho não pertenceria, de acordo com a afirmação de Lejeune, ao gênero autobiográfico, uma vez que o narrador e personagem-protagonista da história chama- se Carlos de Melo. A propósito, a origem deste nome o próprio José Lins revela em uma entrevista realizada por Francisco de Assis Barbosa. Segundo o autor, em sua primeira tentativa de romance, que não deu certo, ele “queria escrever a vida de um neurastênico. Era um sujeito pedante e intelectualizado que trabalhava uma biografia de Machado de Assis. Aparece uma mulher na vida do coitado, e esta se desarruma toda. Carlos de Melo, o nome do personagem, é o mesmo do Ciclo da Cana-de-Açúcar.” (BARBOSA, in COUTINHO, 1991, p. 66). O fato de algumas passagens da narrativa de Menino de engenho aproximarem-se de fatos da vida de José Lins do Rego dá margem para que este romance seja confundido por muitos como uma autobiografia do escritor. Todavia, é importante considerar que há a figura fictícia de um narrador, o qual, quando criança, era chamado de Carlinhos. Esse fato, per si, já revela que a história é fictícia, visto ser narrada por uma entidade ficcional, com foco narrativo em primeira pessoa. Meus verdes anos, por outro lado, não apresenta uma narrativa mediada por um narrador de nome diferente criado pelo autor, como em Menino de engenho, mas um narrador que se aproxima muito do próprio José Lins, o qual volta às suas memórias de infância para recontá-las de um modo mais preocupado com a veracidade dos fatos. Por exemplo, no romance de estreia, o narrador Carlos de Melo recorda-se de que, com quatro anos de idade, sua mãe foi assassinada por seu pai, e, por isso, vai morar no engenho de seu avô materno, onde conhece a Tia Sinhazinha, uma senhora amargurada, que maltrata suas criadas e as crianças, inclusive o próprio protagonista, Carlinhos. É importante 29 considerar, contudo, que tanto o episódio do assassinato da mãe como a personagem Tia Sinhazinha, dentre outras passagens e personagens, são criações de José Lins, invenções que dão um tom dramático a sua narrativa de estreia. O verdadeiro motivo da orfandade de José Lins (a morte de parto) e a origem de Tia Sinhazinha, isto é, em quem esta foi baseada (tia Naninha), são episódios apresentados em Meus verdes anos por meio de uma narrativa mais justa aos limites da biografia do autor, sem a preocupação com o teor romanesco presente em seu livro de estreia. A propósito, o próprio José Lins declarou no prefácio de Meus verdes anos que chamou de “verdes anos os tempos da minha primeira infância. E em livros de memórias procurei reter tudo o que ainda me resta daquela ‘aurora’ que para o poeta Casimiro fora a das saudades, dos campos floridos, das borboletas azuis.” (REGO, apud CASTELLO, 1961, p. 72). De modo geral, portanto, o garoto de Menino de engenho e o de Meus verdes anos não devem ser considerados um mesmo personagem, assim como o romance de estreia não deve ser confundido com uma autobiografia, e nem Meus verdes anos, com uma ficção memorialista. 30 CAPÍTULO I MENINO DE ENGENHO E A REPRESENTAÇÃO DA INFÂNCIA NO CONTEXTO DA FAMÍLIA PATRIARCAL BRASILEIRA A tela da TV, o monitor do computador, passam a fazer parte do mundo infantil. Mas, na memória de quem foi criança e viveu de brincar, estão bem arquivados os momentos de uma infância feliz... Raquel Zumbano Altman13 Em torno do conceito de “infância” Conceituar o que se convencionou chamar de “infância” parece, segundo senso-comum, uma tarefa fácil, mas o que revelam vários estudos, sejam de ordem histórica, social, biológica ou psicológica, é que se trata de um conceito de difícil definição, justamente por aceitar vários pontos de vista para delimitar sua significação. O historiador francês Philippe Ariès, por exemplo, desenvolveu um estudo de considerável relevância histórica e social sobre a infância em seu livro História Social da Criança e da Família, no qual apresenta reflexões sobre o conceito e o sentimento da infância e também sobre os modelos de construção da família, percorrendo um período histórico do início do século XIII à primeira metade do século XX. De acordo com suas pesquisas, na Idade Média a infância era considerada como o período da primeira idade, do nascimento até os sete anos, ocasião durante a qual o sujeito era chamado de “enfant” (criança), que significa não-falante, justamente pelo fato de a criança não conseguir expressar-se muito bem e nem articular suas palavras por não possuir seus dentes firmes e bem formados. No entanto, até meados do século XII, afirma o autor, “a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la” (ARIÈS, 1981, p. 17), o que revela que não havia, de certa forma, um lugar para a infância nas representações artísticas durante este período. Por volta do século XIII, surgiram algumas formas de representação da criança, como, por exemplo, através da imagem de um anjo, com aparência de um jovem rapaz, imagem que se tornou muito comum no século XIV. Além disso, esse anjo adolescente apresentava traços leves, redondos e efeminados, como forma de sugerir algumas características da infância, como ingenuidade, pureza e inocência. 13 ALTMAN, Raquel Z.. “Brincando na História”. In: PRIORE (2007, p. 256). 31 Outro modo de representar a criança foi por meio da “imagem do Menino Jesus, ou Nossa Senhora menina, pois a infância aqui se ligava ao mistério da maternidade da Virgem Maria e ao culto de Maria. No início, Jesus era, como as outras crianças, uma redução do adulto: um pequeno Deus-padre majestoso...” (ARIÈS, 1981, p. 19). Assim, a criança era considerada uma espécie de “adulto em miniatura”, pois não havia uma distinção significativa entre o mundo dos adultos e o das crianças. Um terceiro modo de representar a criança, de acordo com as pesquisas de Ariès, surgiu no período gótico, quando as crianças eram representadas nuas. O próprio Menino Jesus, que quase nunca era representado despido, no fim da Idade Média começou a aparecer sem vestes em várias pinturas, o que demonstra a influência desse estilo até mesmo na representação de personagens bíblicos. Segundo Ariès, “o gosto pela nudez da criança evidentemente estava ligado ao gosto geral pela nudez clássica, que começava a conquistar até mesmo o retrato.” (idem, p. 26). No século XIX, a pintura foi substituída pela fotografia, uma forma de representação mais realista e objetiva. As famílias, desde o século XVII, já tinham o costume de possuir imagens de seus filhos, e, com o advento da fotografia, houve apenas a alteração do suporte de representação da criança, mas o hábito per si não mudou, pois as famílias continuaram a guardar retratos dos filhos, inclusive nus ou com poucas vestimentas, revelando que o Eros do período clássico retornava como modelo para a representação das crianças nos séculos XIX e XX. De modo geral, portanto, a infância começou a ser descoberta e representada no século XIII, mas os indícios de seu desenvolvimento, como afirma o historiador francês, começaram a aparecer com mais nitidez a partir do final do século XVI e ao longo do XVII. Todavia, a consolidação do conceito de infância começou no século XVIII, quando as crianças passaram a ocupar posição central na família, devido às suas supostas ligações com os anjos, Eros puros e divinos. No Brasil, a infância e sua história também são alvos de interesse de vários pesquisadores, e, assim como no caso de Philippe Ariès, o conceito do que é de fato a infância, quando começa e quando termina, também são questões que geram controvérsias dentre os mais renomados historiadores. Mary Del Priore, por exemplo, organizou uma sequência de ensaios em seu livro História das crianças no Brasil, que tomam como ponto de partida o fato de as crianças também serem sujeitos históricos e representarem uma importante fonte de estudos para um maior entendimento da História brasileira. 32 Neste livro, os olhares de pesquisadores de diversas áreas se entrecruzam e ampliam a noção do que foi e do que é a infância no Brasil, através de vários estudos, que vão dos primórdios da História do país, quando pequenas crianças eram trazidas nas embarcações portuguesas do século XVI, passando pela história dos curumins catequizados pelos jesuítas; das crianças escravizadas; dos garotos participantes da guerra do Paraguai; dos pequenos operários no início da industrialização paulistana; dos menores criminosos nos primórdios da industrialização; das nostálgicas memórias das brincadeiras de infância; até chegar às vésperas do século XXI, com a permanência de crianças carentes e ainda exploradas por sua mão de obra barata, tanto na indústria como nos trabalhos do campo. O que essa sequência de estudos revela é que, ao longo da História da criança no Brasil, muitos fatos mudaram, mas existe um ponto em comum entre todas as épocas: o mundo que a criança deveria ter, isto é, de risos e brincadeiras, é muitas vezes diferente do mundo que ela realmente tem, marcado pelo trabalho e pela exploração em que ela de fato (sobre)vive. Gilberto Freyre, no capítulo “O pai e o filho”, de sua obra-prima Sobrados e Mucambos, também tece algumas considerações sobre a criança no Brasil, mais especificamente sobre a criança inserida no contexto da família patriarcal brasileira. De acordo com o historiador, Towner lembra que nas sociedades primitivas o menino e o homem são quase iguais. Dentro do sistema patriarcal, não: há uma distância social imensa entre os dois. (...) No Brasil patriarcal, o menino – enquanto considerado menino – foi sempre criatura conservada a grande distância do homem. A grande distância do elemento humano, pode-se acrescentar. (FREYRE, 2006, pp. 177-178). Essa distância social entre a criança e o adulto podia ser observada não somente dentro dos limites da casa-grande, entre o pai e o filho, o avô e o neto, onde tal distância concretizava-se nos momentos em que a criança era castigada com surras e pancadas pelos membros da própria família, mas também nos demais locais por onde ela transitava. Por exemplo, nos colégios de padres ou de mestres, a criança era submetida a um regime de tortura física e psicológica, sendo alvo de longos jejuns e das terríveis palmatórias e varas de marmelo. Toda essa violência praticada contra a criança na sociedade patriarcal brasileira, explica Freyre, pode ser entendida com base nos próprios princípios do patriarcalismo, repleto de antagonismos, como, por exemplo, a casa-grande e a senzala, o senhor e o escravo, o pai e o filho, em que dominadores e dominados, poderosos e oprimidos, (con)vivem no mesmo 33 espaço, o que acentua as diferenças sociais entre os extremos e contribui para as práticas de violência pelos detentores do poder sobre os mais fracos, e dentre estes, a criança. Outro pesquisador que organizou uma série de ensaios sobre o tema da infância no Brasil é Marcos Cezar de Freitas, no livro História Social da Infância no Brasil. Neste livro, estudiosos de diversas áreas apresentam suas reflexões sobre o assunto, seja pela via historiográfica, sociológica e até mesmo política e judiciária. O que chama a atenção nesta obra, no entanto, é uma afirmação que Freitas apresenta em seu texto inicial, “Para uma sociologia histórica da infância no Brasil”. Segundo o autor, “a criança que se torna sujeito de um processo, qualquer que seja sua natureza jurídica ou objeto em debate, é apresentada com as práticas narrativas e discursivas do psicólogo, do médico, do jurista, do pedagogo, do assistente social, do sociólogo etc.” (FREITAS, 2011, p. 13). E, além disso, a infância também pode ser estudada por meio de narrativas baseadas ora nos relatos das próprias crianças, ora nas narrativas memorialistas de adultos e idosos. Com base nessa premissa, Freitas ampliou o leque das possibilidades de estudar a infância, pois também introduziu em sua coletânea ensaios sobre a criança no universo literário brasileiro, revelando que a Literatura, além de ser o lugar da estética verbal, das imagens e jogos construídos pelas palavras, também é um espaço de conhecimento e fonte de informações relevantes para a (re)construção da História do Brasil. Assim, aparecem dentre os ensaios títulos como “Infância de papel e tinta”, de Marisa Lajolo, e “A infância no Brasil pelos olhos de Monteiro Lobato”, de Ivan Russef, que são exemplos de estudos realizados com base na arte literária, demonstrando que a ficção pode não estar tão longe da “realidade”. Introdução a Menino de engenho: considerações prévias Publicado em 1932, Menino de engenho é um romance relativamente com poucas páginas, dividido em quarenta breves capítulos interdependentes, os quais seguem uma ordem cronológica que começa com a chegada do protagonista, Carlinhos, ao engenho de seu avô, e termina com sua saída para o Instituto Nossa Senhora do Carmo, em Itabaiana. Vale destacar que este romance contém o espírito do modernismo regionalista difundido pelos escritores e intelectuais da chamada “geração de 30”, como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, dentre outros. 34 O romance de estreia de José Lins, na verdade, era para ser uma biografia de seu avô materno, o senhor José Lins Cavalcanti de Albuquerque, proprietário do engenho onde o autor passou sua infância, como ele próprio revela em uma entrevista a Francisco de Assis Barbosa: “comecei a escrever o Menino de engenho com a intenção de fazer uma espécie de biografia de meu avô. É só. Porque o resto da minha vida literária todo mundo está cansado de saber...”. (BARBOSA, in COUTINHO, 1991, p. 67). No entanto, o desejo de narrar sua história de menino de engenho foi maior e acabou escrevendo uma espécie de romance de fundo memorialista. É importante destacar, contudo, que o caráter autobiográfico da narrativa em questão, como já explicado, deve-se ao fato de várias cenas ao longo da trama aproximarem-se de fatos vivenciados pelo próprio autor. Porém, quando José Lins recupera suas memórias de infância, ele as reelabora por meio da ficcionalização e do uso de uma linguagem poética, com fortes traços de oralidade; ou seja, o romancista desenvolve sua arte com base nas lembranças do memorialista. Desse modo, Menino de engenho é o resultado do processo de reconstituição ficcional das experiências pessoais da infância de José Lins. Como afirma José Aderaldo Castello, no artigo “Memória, primitivismo e regionalismo”, já que “o memorialista se deixou seduzir completamente pelo mundo de sua própria infância, o resultado foi o triunfo do romancista, mais narrador popular, sobre o próprio memorialista, ao recompor aquele mundo da infância em termos de evocação e depoimento”. (CASTELLO, 1991, p. 183). A propósito, a narrativa de Menino de engenho poderia ter sido publicada sob a definição de “memórias” presente de modo explícito logo no primeiro título, mas o autor decidiu retirar essa denominação, como demonstra a ilustração abaixo: 14 14 Fac-símile da capa do primeiro dos três cadernos manuscritos de Menino de engenho (o romancista utilizava cadernos de escola para escrever todos os seus livros). Observe-se como José Lins pensou em dar o título de seu primeiro romance: Memórias de um Menino de engenho. 35 Ainda sobre as origens de Menino de engenho, é importante destacar que este romance sintetiza e ilustra o pensamento do escritor que mais colaborou com o amadurecimento do romancista José Lins, influenciando-o, por assim dizer, ao longo de sua vida artística. Trata-se do sociólogo Gilberto Freyre, que, no artigo intitulado “Recordando José Lins do Rego”, afirma: “Fui mestre e, repito, até professor de José Lins do Rego, por exigência desse discípulo angustiado por falta de quem lhe desse ao desejo de ser escritor a orientação que ele buscava”. (FREYRE, in COUTINHO, 1991, p. 108). O próprio José Lins relata, no prefácio do livro Região e tradição, de Gilberto Freyre, a grande importância que a amizade com o historiador representou em sua vida artística: “Para mim tivera começo naquela tarde de nosso encontro a minha existência literária. O que eu havia lido até aquele dia? (...) E a minha aprendizagem com o mestre da minha idade se iniciava sem que eu sentisse as lições. Começou uma vida a agir sobre outra (...)”. (BARBOSA, in COUTINHO, op. cit., p. 62). Com base nessas declarações, é possível deduzir, portanto, que, se José Lins foi uma espécie de discípulo de Freyre, a interpretação do Brasil e o pensamento sociológico deste certamente aparecerão nas obras do romancista iniciante, sempre aberto às críticas e sugestões de um dos maiores historiadores e sociólogos brasileiros de todos os tempos. E essa ideia é confirmada por José Maurício Gomes de Almeida, em A tradição regionalista no romance brasileiro, quando considera que, enquanto Gilberto Freyre foi o maior sociólogo a estudar a decadência da sociedade patriarcal nordestina, revelando os costumes e valores de um mundo baseado nos princípios da família patriarcal brasileira e as transformações nos modos de trabalho e produção, José Lins do Rego pode ser considerado o seu romancista, já que escreveu seus principais romances influenciado pelas ideias de Freyre, expressando a tradição rural patriarcalista da região açucareira do Nordeste e sua gradual decadência e transformação no mundo da lavoura mecanizada. A representação literária da infância O romance Menino de engenho, como já mencionado, apresenta uma história contada por um narrador autodiegético, que relembra fatos ocorridos em sua infância, dos quatro aos doze anos de idade, vivenciada no engenho do avô materno, no sertão nordestino, em uma época na qual os resquícios da escravidão permaneciam, e o patriarca era o senhor da casa- grande, da senzala, do engenho e das terras ao seu entorno. 36 Deve-se observar, então, que o Nordeste não aparece como simples cenário de uma história, mas se manifesta como ambiente recordado pelo narrador, que o vivenciou e o sentiu como forma de vida e organização de todo um sistema em decadência. Assim, o narrador adulto expressa uma atitude que não se mostra de fora para dentro, mas de dentro para fora, revelando seu sentimento profundo de apego à região de origem. Com isso, a narrativa ganha muita expressividade, pois o mundo do menino criado no engenho aparece como um mundo já extinto, que deixou de ser, uma vez que foi substituído gradativamente pelo mundo das usinas. De acordo com João Ribeiro, no ensaio “Menino de engenho”, o primeiro romance de José Lins “é apenas a história da infância” (...) cuja “narrativa termina definitivamente no período infantil.” (RIBEIRO, in COUTINHO, 1991, p. 228). Realmente, Menino de engenho representa, de modo magistral, a infância no contexto do patriarcado rural em decadência, na época dos engenhos, casas-grandes e senzalas. Assim, o romance em questão representa uma infância contextualizada nos limites de um mundo em que os resquícios da escravidão permaneciam, e a família patriarcal era o núcleo da organização social, política e econômica. No início do romance, o narrador lembra-se de como imaginava o engenho quando ouvia sua mãe e uma criada contando-lhe as “histórias de lá, das moagens, dos banhos de rio, das frutas e dos brinquedos, que me acostumei a imaginar o engenho como qualquer coisa de um conto de fadas, de um reino fabuloso.”. (REGO, 1986, p. 51). Três dias após a morte de sua mãe, o menino é então levado a esse “reino fabuloso” que tanto o impressionava. Chegando ao engenho, vê muitas pessoas esperando-o, dentre parentes, agregados, escravos e crianças, com as quais gradativamente se familiariza: Os moleques estavam me esperando, mas não se aproximavam de mim. (...) Porém aos poucos foram se chegando, que pela tarde já estavam de intimidade. E fomos à horta para tirar goiabas e jambos. O que chamavam de horta era um grande pomar. Muito de minha infância eu iria viver por ali, por debaixo daquelas laranjeiras e jaqueiras gordonas. (idem, p. 52). No dia seguinte, no entanto, o mundo infantil da tarde anterior transforma-se em mundo de trabalho. A infância no engenho para os filhos de ex-escravos era marcada pelo serviço braçal nos pastos, engenhos e moendas, logo de manhã, como relembra o narrador: “De manhã me levaram para tomar leite ao pé da vaca. Os moleques das minhas brincadeiras da 37 tarde, todos ocupados, uns levando latas de leite, outros metidos com os pastoreadores no curral.” (REGO, 1986, p. 53). O segundo romance de José Lins, intitulado Doidinho, também apresenta várias passagens em que o trabalho infantil é lembrado pelo narrador, supostamente o mesmo de Menino de engenho, revelando que a situação das crianças filhas de ex-escravos no início do século XX era marcada pelo trabalho no eito, junto com os pastoreadores e outros trabalhadores: Achava bonito aqueles meninos do meu tamanho com responsabilidades sérias nas costas (...). Perguntavam as cousas a eles e acreditavam nas suas informações, davam-lhes serviços para fazer. E Andorinha, rasgado, com as roupas velhas da gente, a mochila com o seu taco de carne-do-ceará e o punhado de farinha para o dia todo de trabalho. (REGO, 1991, p. 94). Como o narrador afirma, quando era criança, “achava bonito aqueles meninos” trabalhando como os adultos, e relembra, inclusive, que “o grande sonho dos meus dias do Santa Rosa, depois dos carneiros e dos pássaros, era meter-me com os moleques no pastoreador, passar o dia inteiro com eles, tomando conta dos bois e das vacas do meu avô.” (idem, ibidem). Esta afirmação do narrador revela toda a diferença de situação econômica que experienciou durante sua infância, pois o desejo do menino Carlinhos, neto de senhor de engenho, era estar junto aos moleques filhos dos trabalhadores do engenho, mesmo quando estivessem laborando como adultos, “com responsabilidades sérias nas costas”. Além de trabalharem junto aos adultos, os moleques muitas vezes acompanhavam seus pais no eito, como relembra o narrador em Menino de engenho: “Doutras vezes batíamos a uma porta aonde não acudia ninguém. Mais adiante a família toda estava pegada na enxada: o homem, a mulher, os meninos.” (REGO, 1986, p. 81). As historiadoras Ana Dourado, Christine Dabat e Teresa Corrêa de Araújo, no ensaio “Crianças e adolescentes nos canaviais de Pernambuco”, presente no livro História das crianças no Brasil, com base em entrevistas realizadas junto a trabalhadores rurais nordestinos, afirmam que, desde os primórdios da agricultura canavieira, muitas vezes “o grupo familiar trabalhava junto, embora o salário fosse individual e medido como tal, levando em consideração o sexo e a idade, além da quantidade de trabalho exigida.” (DOURADO; DABAT; e ARAÚJO, in PRIORE, 2007, p. 420). 38 A partir dessa afirmação, então, é possível concluir que a mão de obra infantil era (e ainda continua sendo) muito explorada no Brasil, justamente pelo fato de ser um trabalho de baixo custo, além de a criança geralmente não oferecer afrontas e resistências às ordens a ela impostas. Após recordar-se dos moleques trabalhando logo pela manhã, o narrador de Menino de engenho conta que, ainda recém-chegado ao engenho do avô, foi levado por Tio Juca para tomar banho de rio. O narrador, então, fornece todos os detalhes do episódio, como mostra a passagem transcrita: Tio Juca me levou para tomar banho no rio. Com uma toalha no pescoço e um copo grande na mão, chamou-me para o banho (...). — Vamos para o Poço das Pedras. (...) A água fria de poço, naquela hora, deixou-me o corpo tremendo. Meu tio então começou a me sacudir para o fundo, me ensinando a nadar. Daquele banho ainda hoje guardo uma lembrança à flor da pele. De fato que para mim, que me criara nos banhos de chuvisco, aquela piscina cercada de mata verde, sombreada por uma vegetação ramalhuda, só poderia ser uma coisa do outro mundo. Na volta, o Tio Juca veio dizendo, rindo-se: — Agora você já está batizado. (REGO, 1986, p. 53, grifo meu). A riqueza de detalhes e de imagens presente no excerto transcrito marca toda a narrativa memorialista de Menino de engenho, e a figura do narrador transparecendo em alguns momentos da história também é frequente ao longo da narrativa, como no período grifado (“Daquele banho ainda hoje guardo uma lembrança à flor da pele”), em que as palavras hoje e lembrança evidenciam a presença do narrador no momento em que está narrando sua história de infância, ou seja, no momento da enunciação. Assim, a infância ainda é presença viva na memória do narrador. Após alguns dias na casa-grande, o menino protagonista da história é levado para conhecer o engenho, onde se cozinhava o açúcar, e a casa de purgar. O narrador recorda-se de que ficou impressionado com as máquinas da fábrica e todo o processo de preparo do açúcar. As descrições novamente são detalhadas, e as imagens sensoriais presentes no capítulo tornam a narrativa mais expressiva e significativa, como ilustram a seguinte passagem: E era com olhos de deslumbrado que olhava então aqueles sítios, aquelas mangueiras e os meninos que via brincando por ali (...). Minha atenção inteira foi para o mecanismo do engenho (...) o cocho 39 com o caldo frio e uma fumaça cheirosa entrando pela boca da gente (...). Andamos depois pela boca da fornalha, pela bagaceira coberta de um bagaço ainda úmido (...) a agitação febril das duas bolas do regulador. (REGO, 1986, pp. 54-55, grifos meus). Como é possível observar, todas as sensações que o menino protagonista teve quando criança, ao entrar em contato com a produção do engenho, são descritas, de modo peculiar, pelo narrador, cuja intenção é passar para o leitor não somente as impressões que teve quando criança, mas, por meio destas, passar as sensações próprias ao mundo dos engenhos. Para tanto, os cinco sentidos são mobilizados na paisagem captada de modo sinestésico: a visão, por meio das palavras “olhos”, “ olhava”, “ via” e “atenção”; o olfato e o paladar, sentidos indissociáveis e interdependentes, presentes em “fumaça cheirosa entrando pela boca”; a audição, sugerida pela “agitação” da fábrica; e o tato, por meio das expressões “caldo frio” e “úmido”. É importante destacar que, antes de narrar essa grande admiração que teve quando criança diante das máquinas do engenho, o narrador distancia-se do passado, de suas memórias de infância, para fazer uma reflexão sobre o presente, afirmando: “Não sei por que os meninos gostam tanto das máquinas.” (idem, p. 55, grifos meus), quebrando, assim, a sequência narrativa voltada para episódios do passado. Esta observação, dentro do contexto da narrativa, provoca um descompasso entre o menino protagonista da história e o narrador adulto, uma vez que este discorda, de certa forma, da admiração daquele perante as máquinas do engenho, como uma espécie de autocrítica do narrador, proporcionada pelo seu movimento de aproximação e distanciamento em relação ao objeto narrado. Assim, o capítulo cinco ganha uma dimensão crítica no romance, pois o narrador revela que já não admira mais as máquinas como o fazia quando criança, ou seja, o ponto de vista mudou com o tempo e, supostamente, devido à destruição do mundo dos engenhos pelo mundo das máquinas de grande porte das usinas e indústrias. Em seguida, o narrador recorda-se da chegada de seus primos no engenho e dos banhos proibidos de rio, os do meio-dia. Já havia passado algum tempo desde a chegada de Carlinhos no engenho, e sua adaptação à nova vida acontecia de maneira progressiva, de modo que já adquirira os hábitos dos moleques da bagaceira, como andar com os pés descalços, livremente, pelas matas e rios. 40 — Você está um negro, me disse Tia Maria. — Chegou tão alvo e nem parece gente branca. Isto faz mal. Os meninos de Emília já estão acostumados, você não. De manhã à noite, de pés no chão, solto como um bicho (...). Mas os primos não paravam. De manhã íamos com os moleques lavar os cavalos, e aí passávamos horas inteiras dentro d’água. (REGO, 1986, p. 56). Essa liberdade para transitar e brincar nos vários lugares em torno do engenho, liberdade que os filhos dos escravos, o personagem-protagonista (neto de senhor de engenho) e seus primos têm ao longo da narrativa, aproxima-se de um dado histórico comum na época da escravidão no Brasil. Trata-se da familiaridade que existia entre as crianças brancas, descendentes de senhores de engenho, e as crianças negras, descendentes de trabalhadores escravos. Essa intimidade é objeto de estudo e reflexão do historiador Marcos Cezar de Freitas, no ensaio “História da infância no pensamento social brasileiro. Ou, fugindo de Gilberto Freyre pelas mãos de Mário de Andrade”, presente em seu livro História social da infância no Brasil. De acordo com Freitas, os filhos dos senhores e os dos escravos brincam juntos durante a infância, criando uma familiaridade entre eles que deverá deixar de existir na vida adulta, quando um passa a dar ordens, e o outro, a recebê-las e executá-las. Esse fato da História do Brasil é muito bem ilustrado na letra da canção “Morro velho”, cantada por Milton Nascimento, como demonstram as passagens: Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho. Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos. (...) Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande. Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante. Não esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus- dará. Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha prá apresentar. Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá. Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar. E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha. (Disponível em: http://letras.mus.br/milton-nascimento/45930. Acesso em 10 nov. 2012). 41 De modo geral, esta canção apresenta a história de dois meninos, um branco e um negro, que brincam juntos na infância, criando vínculos afetivos que serão desfeitos na vida adulta, quando o menino branco torna-se senhor de engenho, e o negro, trabalhador do eito. Em Menino de engenho, também há uma passagem que ilustra esse fato histórico, quando o narrador recorda-se de percorrer, quando criança, o engenho com seu avô, o qual tinha o hábito de vistoriar com frequência os trabalhadores braçais durante o serviço no campo: O meu avô vinha olhar a “canalha” no trabalho forçado. (...) João Rouco vinha com três filhos para o eito. (...) A boca já estava murcha, sem dentes, e os braços rijos e as pernas duras. Não havia rojão para o velho caboclo do meu avô. Não era subserviente como os outros. Respondia aos gritos do Coronel José Paulino, gritando também. Talvez porque fossem da mesma idade e tivessem em pequeno brincado juntos. ─ Cabra malcriado! E quando precisava de gente boa, para um serviço pesado, lá ia um recado para João Rouco. (REGO, 1986, pp. 132-133). O fato de o senhor de engenho ter a mesma idade de um trabalhador do eito, e, acima de tudo, os dois haverem brincado juntos durante a infância, são motivos para o narrador entender a insubmissão e a postura combativa de João Rouco para com o Coronel José Paulino (“Respondia aos gritos (...). Talvez porque fossem da mesma idade e tivessem em pequeno brincado juntos.”). No contexto patriarcal, essa união na infância entre futuros senhores e escravos (ou trabalhadores braçais) era vista como uma forma de assegurar a fidelidade e submissão destes para com aqueles. No entanto, o que percebemos em Menino de engenho é que essa familiaridade entre o senhor e o trabalhador, durante a infância, não garante uma submissão passiva do trabalhador e o mesmo respeito que os outros trabalhadores têm para com seu senhor, mas, pelo contrário, essa familiaridade iniciada na infância dá margem para o trabalhador colocar-se em condições de responder às ordens do senhor com o mesmo tom de voz, ou seja, também aos gritos, o que sugere uma espécie de efeito colateral da atitude relacional e paternalista. Outro dado histórico analisado por Freitas é a questão de a familiaridade entre os filhos de senhores e os de escravos proporcionar condições para o senhorzinho brincar com seu escravinho e reproduzir em suas brincadeiras um pouco da perversidade comum entre 42 senhores brancos e escravos, além de muitas vezes o menino branco iniciar-se sexualmente por meio da submissão do moleque filho de escravo. Um clássico da Literatura Brasileira que representa esses fatos históricos é o romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, o qual apresenta um narrador autodiegético contando, além-túmulo, a história de sua vida, desde sua infância, contextualizada nos limites da sociedade patriarcal brasileira. O narrador, também considerado o defunto-autor do romance, em meio a suas memórias, recorda-se de que, quando criança, tinha como “brinquedo” de estimação um negrinho, chamado Prudêncio, que lhe servia como montaria e para exercitar maus-tratos em geral: Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava-lhe mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia - algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito um - 'ai, nhonhô' - ao que eu retorquia: 'Cala a boca, besta!' (...) Meu pai tinha- me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos. (ASSIS, 1989, p. 26) Essa relação de sadismo e violência dos filhos de senhores para com os filhos de escravos também é alvo de algumas considerações de Gilberto Freyre, no capítulo “O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro”, de sua obra-prima Casa-grande e Senzala. Segundo Freyre, “nas brincadeiras, muitas vezes brutas, dos filhos dos senhores de engenho, os moleques serviam para tudo: eram bois de carro, eram cavalos de montaria, eram bestas de almanjarra, eram burros de liteiras e de cargas as mais pesadas. Mas principalmente cavalos de carro.” (FREYRE, 2006, pp. 419-420). Na sociedade escravista brasileira, a criança podia aparecer, então, em um dos extremos da cadeia agressor/agredido. No caso de Memórias póstumas de Brás Cubas, o menino Brás Cubas aparece como agressor e detentor do poder de mando em relação ao menino escravo, o qual, por sua vez, aparece como sujeito agredido e violentado, mas que, futuramente, por compensação e graças à ironia machadiana, ao conseguir a alforria, tratará de comprar um escravo para vivenciar a experiência em posição invertida. Segundo Marcos Cezar de Freitas, existe uma forma de violência simbólica contra a infância que acompanha a história social do Brasil, sobretudo na sociedade brasileira patriarcal, época em que a violência era constante. Para o autor, “a criança pode ter sido uma 43 metáfora viva da violência numa sociedade que proclamou em inúmeras ocasiões sua destinação à civilização, mas que, via de regra, não cessou de embrutecer-se”. (FREITAS, 2011, pp. 252-253). Outro episódio que demonstra o menino Brás Cubas praticando atos de violência contra escravos é lembrado pelo narrador, o qual, estando além-túmulo, ou seja, em uma posição relativamente privilegiada15 para contar a história de sua vida, revela não possuir receio de narrar suas ações durante a infância e ao longo de sua existência física: (...) fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu t