LUCIANO DANIEL DE SOUZA O AGOSTINISMO POLÍTICO: contribuições e limites para as discussões políticas medievais ASSIS 2014 1 LUCIANO DANIEL DE SOUZA O AGOSTINISMO POLÍTICO: contribuições e limites para as discussões políticas medievais Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientador: Dr. Ricardo Gião Bortolotti ASSIS 2014 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada por Helena Maria da Costa Lima Bibliotecária – CRB8-5227 Souza, Luciano Daniel de, 1974- S729a O agostinismo político: contribuições e limites para as discussões políticas medievais / Luciano Daniel de Souza. - - Assis, SP : 2014. 189f.; 30 cm Orientador: Ricardo Gião Bortolotti. Tese (doutorado) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. 1. Política medieval. 2. Agostinismo político. 3. Gregório VII. 4. Papado medieval. 5. História da Igreja. I. Bortolotti, Ricardo Gião. II. Título. CDD 320.5 LUCIANO DANIEL DE SOUZA O AGOSTINISMO POLÍTICO: contribuições e limites para as discussões políticas medievais Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). BANCA EXAMINADORA Orientador: _________________________________________________ Dr. Ricardo Gião Bortolotti Faculdade de Ciências e Letras de Assis/UNESP 2º Examinador: ______________________________________________ 3º Examinador: ______________________________________________ 4º Examinador: ______________________________________________ 5º Examinador: ______________________________________________ Assis, ___ de __________ de 2014. 3 In memoriam Adolpho Ferreira da Luz Jovina Conceição da Luz 4 AGRADECIMENTOS Agradeço ao Dr. Ricardo Gião Bortolotti por ter me acompanhado durante esta pesquisa, pela sua cordialidade e disponibilidade desde os tempos em que eu estudava os aspectos políticos da obra de Guilherme de Ockham. Agradeço aos professores que participaram da minha Banca de Qualificação e que através das orientações tornaram possível a finalização desta pesquisa: Dra. Ana Paula Tavares Magalhães Tacconi e Dr. Milton Carlos Costa. Agradeço à Dra. Ana Paula Tacconi por toda colaboração recebida desde o começo. Também agradeço à leitura atenciosa e sugestões do Dr. Maurício de Aquino. Estendo este agradecimento aos mesmos professores citados que participaram de minha Banca de Defesa. Agradeço ao Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho pela presença amiga e pela disponibilidade. Agradeço ao Departamento de História da Unesp-Assis através de seus docentes que produzem resultados importantes nos estudos históricos em nosso Brasil, formando professores e pesquisadores de qualidade para os desafios do ensino e da pesquisa em História. Agradeço aos técnicos e outros que contribuem para que o Departamento de História execute com tanto esmero sua função de docência e pesquisa. Agradeço à minha família pela compreensão dos momentos em que não pude estar presente ou que permaneci por pouco tempo. Agradeço a todos que me incentivaram, compreenderam minhas ausências e apostaram na realização do meu doutorado. Agradeço à Ordem dos Frades Menores. 5 Se entre quem caminha e o lugar a que se dirige existe caminho, há esperança de chegar. Se, porém, falta ou se ignora por que caminho se há de ir, que aproveita conhecer o ponto de chegada da viagem? Santo Agostinho, De civ. Dei, XI, 2 6 SOUZA, Luciano Daniel de. O agostinismo político: contribuições e limites para as discussões políticas medievais. 2014. 189 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2014. RESUMO O presente estudo analisa o agostinismo político de Henri-Xavier Arquillière (1883- 1956), a fim de compreender o momento histórico em que ele formulou essa categoria histórica para a política medieval. Para Arquillière, o pensamento político de Santo Agostinho foi invertido em aspectos fundamentais criando versões interpretativas. Arquillière, historiador francês, defendeu em 1934 que o pensamento político de Gregório VII e de outros papas guiava-se pelo agostinismo político. O agostinismo político como exposto por Arquillière foi contestado como sendo uma versão neotomista e apologética das ações do papado. Neste contexto, buscou-se compreender se as afirmações sobre a importância de Santo Agostinho podiam ser desprezadas pelo motivo da vinculação institucional do autor. Certeau, em sua concepção de lugar social do historiador, contribui nesta tese para apontar que todo historiador parte de uma instituição que o legitima e confere autenticidade à sua historiografia. Esta tese desdobra-se, num primeiro momento, para conhecer a formação acadêmica, a historiografia e os livros didáticos de Arquillière. O historiador francês, possuindo traços da escola metódica, expandiu o agostinismo político como uma chave de leitura da política medieval expondo-se, assim, aos problemas de uma generalização. Arquillière escreveu manuais didáticos nos quais expôs o agostinismo político para os jovens com a intenção de ensinar sobre a Igreja Católica, resgatando a importância dela no cenário político e religioso de seu tempo. Por meio da análise da obra A Cidade de Deus, percebe-se em Santo Agostinho posições benévolas ao Império Romano e à ausência de afirmações que sustentassem uma monarquia papal. O neotomismo na época em que Arquillière formulava o agostinismo político foi um movimento ativo na Igreja Católica, possibilitou o aprofundamento dos estudos agostinianos e contribuiu para resgatar o interesse pela Idade Média. Esta tese defende que os estudos agostinianos podem colaborar para compreender a teologia política medieval. A pesquisa considerou que críticos de Arquillière, ao desconsiderarem certas afirmações, não perceberam os limites e as possibilidades que ele apontou. Considera-se que as interpretações baseadas em aspectos depreciativos do neotomismo ofuscaram o estudo de Santo Agostinho na historiografia e na política medieval. Palavras-chave: política medieval. agostinismo político. Gregório VII. papado medieval. História da Igreja. 7 SOUZA, Luciano Daniel de. The political Augustinism: contributions and limits to medieval political discussions. 2014. 189 pp. Doctoral dissertation (History) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Assis, 2014. ABSTRACT This study was carried out to analyze Henri-Xavier Arquillière's political Augustinism (1883-1956), in order to understand the historical moment in which he formulated that historical category for the medieval politics. For Arquillière, Saint Augustin's political thought was inverted in its fundamental aspects propitiating interpretive versions. Aquillière, French historian, argued in 1934 that the political thought followed by Gregorius VII and other Popes was based on the political Augustinism. According to Aquillière, the political Augustinism was contested on the basis that it was a neoThomist and apologetical version of the papacy 's actions. Within that context, one tried to understand whether the assertions on Saint Augustin's importance might be relegated due to its institutional connection with the author. Certeau, in his conception about the social role played by the historian, contributes to such a thesis pointing out that every historian starts from an institution which assigns legitimacy and authenticity to his/her historiography. Such a thesis is unfolded, at first, in order to know Aquillière's academic background, historiography, and textbooks. The French historian, by disclosing features of the methodical school, expanded the political Augustinism as an explanatory reading of medieval politics thus exposing himself to generalization problems. Aquillière wrote textbooks in which he introduced political Augustinism to young people aiming at explaining his teachings on the Catholic Church, redeeming its importance in the political and religious background of his time. By analyzing A Cidade de Deus, one notices in Saint Augustin's writings benevolent attitudes toward the Roman Empire and the lack of assertions which gave support to a papal monarchy. NeoThomism at the time Aquillière formulated the political Augustinism was an active movement within the Catholic Church, it allowed a careful examination of Augustinian studies and contributed to recapture people's interest in the Middle Ages. Such a thesis argues that Augustinian studies may contribute to help us understand medieval political theology. This research pondered that Aquillière's critics, by disregarding some assertions, did not grasp the limits and possibilities pointed out by him. People believe that interpretations based on depreciatory aspects of neoThomism dimmed the study of Saint Augustin in historiography and in medieval politics. Keywords: medieval politics. political Augustinism. Gregorius VII. medieval papacy. History of the Church. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 1 ENTRE A ACADEMIA E A RELIGIÃO: A ELABORAÇÃO DE UMA CATEGORIA HISTÓRICA 22 1.1 Traços Biográficos e Acadêmicos de Henri-Xavier Arquillière 22 1.2 Formação e mestres de Arquillière 24 1.3 O uso da palavra “político” na Idade Média 36 1.4 O “agostinismo político”: origem e aplicações 38 1.4.1 Dai a César o que é de César: a providência e os impérios 45 1.4.2 Da perseguição ao fim do Império 49 1.5 Arquillière, Cluny e Gregório VII 64 1.6 Os Bizantinos e a Submissão Eclesial para Arquillière 69 2 UMA HISTÓRIA DA IGREJA BASEADA NO AGOSTINISMO POLÍTICO 73 2.1 Uma História Política da Igreja: o Manual Histoire de L’église 75 2.1.1 A importância da hierarquia na obra Historie de L’église 78 2.1.2 De Gregório ao século XVIII 84 2.2 A Igreja na Idade Média: apresentação e análise da história da Igreja Medieval 86 2.2.1 O Período Carolíngio na Igreja Medieval 90 2.2.2 Reforma Gregoriana: a disciplina para a paz 93 3 SANTO AGOSTINHO E A CIDADE DE DEUS 99 3.1 Santo Agostinho: vida 99 3.2 A Obra A Cidade de Deus 105 3.2.1 Origem do título 105 3.2.2 As fontes da argumentação de Santo Agostinho 109 3.2.3 As causas do enfraquecimento do Império Romano segundo A Cidade de Deus 111 3.2.4 O Império Romano e outros impérios 121 3.2.5 A paz e a felicidade 130 3.2.6 Estado, Igreja e história na Cidade de Deus 134 3.2.7 São Paulo e A Cidade de Deus 142 3.3 Apontando Caminhos 144 4 AGOSTINHO POLÍTICO E NEOTOMISMO 147 4.1 O catolicismo na Itália e na França no final do século XIX ...................... 147 4.2 O Catolicismo e a juventude na França ..................................................... 161 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS 166 REFERÊNCIAS 171 10 INTRODUÇÃO O presente estudo tem como objetivo analisar a historiografia produzida por Henri-Xavier Arquillière (1883-1956) e sua interpretação da política medieval por meio de uma categoria histórica1 denominada agostinismo político. Caracterizamos o agostinismo político de categoria histórica pelo fato de Arquillière ter aplicado sua interpretação da política medieval a várias circunstâncias e temporalidades. O agostinismo político está ligado às ações e às ideias que determinados bispos e papas da Igreja na Idade Média adotaram com relação ao imperador e aos reis no exercício do poder na sociedade cristã2. Essa categoria histórica, para Arquillière, possuiria uma perspectiva de longa duração, ou seja, ele procurou identificar no intervalo de vários séculos o que certas ideias da política medieval teriam como ponto comum. Segundo Arquillière, o agostinismo político se desenvolveu do século V até o século XI, nos períodos chamados de Antiguidade Tardia ou Primeira Idade Média e Alta Idade Média3. No século XI, o agostinismo político teria alcançado seu apogeu. Nos séculos X e XI, a hierarquia católica reagiu ao domínio dos laicos sobre prerrogativas que esses exerciam na escolha de bispos para as dioceses e sacerdotes para as igrejas locais. Independentemente da autoridade romana, os 1 Veremos que o agostinismo político expandiu a temporalidade proposta a princípio por Arquillière. A aplicação do agostinismo político estava concentrada no século XI. Arquillière teria chegado ao agostinismo político por intermédio do estudo das cartas, bulas e ações do papa Gregório VII. O agostinismo político constituiu-se numa chave de leitura para as ações de papas e bispos. Como categoria histórica, o agostinismo político procurou explicar quais as fundamentações que os papas possuíam para agirem como monarcas medievais e, por vezes, tentando agir para além de qualquer monarca. O agostinismo político tenta explicar o desenvolvimento de uma ideia teológica e política através dos séculos, por isso, propõe um esquema de interpretação da história medieval. 2 A nomenclatura para as partes, às vezes em conflito, oferece algumas dificuldades. No contexto medieval, usar a expressão “dirigentes da Igreja” ou termos parecidos esbarra numa imprecisão linguística. Nem sempre foram somente os bispos, padres ou monges considerados os legítimos dirigentes da Igreja. Em alguns momentos, os reis e imperadores exerceram de fato ou se consideraram os tutores ou dirigentes da Igreja. Esse assunto receberá maiores esclarecimentos no decorrer da pesquisa. 3 O início da Idade Média e o término do Mundo Antigo têm sido temas de discussões não só quanto à nomenclatura e à periodização, como também sobre os eventos que norteiam a mudança. Acrescentamos, nas últimas décadas, a discussão sobre uma Antiguidade Tardia ou Primeira Idade Média para nomear a primeira fase do medievo a partir do século V, como apresentou Franco Junior (2005, p. 233-241), aproximando-se de Brown (1972) e Marrou (1979). Para a história política medieval que tratamos, destacamos os séculos XI ao XIII, pois imprimiram na sociedade medieval uma nova postura político-religiosa. Para Silva (2013, p. 74), foi Jérôme Baschet quem privilegiou o período entre os séculos XI e XIII, por considerar o sistema feudal o centro da Idade Média. Concordamos que nos séculos XI a XIII a forma de exercer o governo da cristandade difere de períodos anteriores pela nova postura dos pontífices diante do poder régio. 11 reis, príncipes e outros nobres administravam as igrejas. As prerrogativas leigas foram recusadas por meio de um movimento de contestação. Esse movimento passou a defender como unicamente legítimas as nomeações quando realizadas pelos papas e bispos canonicamente eleitos. Esse movimento é conhecido na historiografia como Reforma Gregoriana ou Questão das Investiduras. Nessa contestação, os papas questionaram a interferência dos reis na administração da Igreja, os limites do poder temporal e espiritual e o grau de importância de cada um na cristandade. O agostinismo político de Arquillière procura explicar a política medieval com base na compreensão de graça e natureza, isto é, entre o que se chamou de espiritual e natural, entendidos como conceitos teológicos. A graça se refere, na teologia cristã, ao sobrenatural operado por Deus com finalidade salvífica, isto é, parte da ideia de um estado decaído do mundo e do ser humano. A natureza representa todas as coisas criadas, materiais ou imateriais, enquanto agem e existem sem qualquer intervenção divina. A compreensão teológica da natureza e da graça, como sugere o agostinismo político, pode ser acompanhada em seu uso teórico e prático no percurso dos séculos para se entender a política medieval da sociedade cristã. O agostinismo político mantém certa proximidade na historiografia medieval com a discussão de temas como a plenitude do poder (plenitudo potestatis), com os conflitos entre o Reino e o Sacerdócio, com a monarquia papal e a teocracia cristã4. Para Arquillière (1934) as ideias agostinianas seriam uma chave para a compreensão da interpretação bíblica, dogmática e política para a Idade Média. Essas ideias de Santo Agostinho teriam prevalecido por quase toda a Idade Média. 4 Cada um dos termos acima apresenta características próprias, embora por vezes tenham sido tomados como equivalentes. A expressão monarquia papal possui vários significados entre os historiadores. A posição mais presente entre eles define a monarquia papal como o exercício do governo dos papas como reis e sacerdotes tanto nos territórios diretamente por eles governados no chamado Patrimônio de São Pedro, bem como nas ações e tentativas de se estabelecerem acima de todo poder secular nos séculos XI a XIII (MORRIS, 2001; MCBRIEN, 2004; WATT, 1965; TIERNEY, 1998; ROBINSON, 1993, p. 264; BARRACLOUGH, 1972). De acordo com Marenbon (2007, p. 33), a teocracia cristã consistiria na compreensão medieval da missão obrigatória dos líderes de conduzir o povo à salvação. Para Pacaut (1989), a teocracia é a doutrina segundo a qual a Igreja possui a soberania sobre os negócios temporais. A plenitude de poder consiste em afirmações com fundamentações históricas e teológicas sobre a primazia papal sobre qualquer instituição medieval (ULLMANN, 2003, p. 65-106; SOUZA, 2012a; MAGALHÃES, 2005). Os termos reino e sacerdócio representavam, respectivamente, os governantes laicos e a hierarquia da Igreja constituída por bispos e papa. Os termos monarquia papal, teocracia, plenitude do poder, reino e sacerdócio embora tratem de assuntos da teologia política medieval não são sinônimos. 12 A influência agostiniana teria diminuído somente no século XIV. Santo Agostinho teria sido constantemente interpretado pelos papas, bispos e outros, conforme as circunstâncias requeriam. Essa interpretação teria alterado de forma fundamental a argumentação que Santo Agostinho desenvolveu na obra A Cidade de Deus5. Nessa obra, ele tratou da questão levantada pelos adversários do cristianismo, sobretudo os defensores da religião romana, que afirmavam ter sido a ruína de Roma uma consequência do abandono da antiga religião e o resultado da aceitação do cristianismo como religião do Império. Em A Cidade de Deus, Santo Agostinho tratou dos impérios que se estabeleceram no mundo antes do Império Romano. A prevalência do uso do texto de Santo Agostinho na Idade Média esteve com os papas, bispos e teólogos, ou seja, membros da hierarquia cristã, mas, segundo Arquillière (1956a, p. 159-160), Carlos Magno teria utilizado também partes do livro A Cidade de Deus em suas respostas aos pontífices de sua época. O império de Carlos Magno teria preparado as condições para que os papas expusessem, séculos depois, a concepção deles de Estado e Igreja baseadas no agostinismo político. O principal momento da utilização das ideias do agostinismo político, segundo Arquillière, teria sido na Reforma Gregoriana pelo papa Gregório VII. Para o historiador francês, Gregório VII teria iniciado um novo tempo para a liberdade da Igreja diante dos monarcas laicos. Várias obras de Arquillière que serão abordadas durante esta pesquisa consideram para o papado de Gregório VII o ponto culminante da história política medieval6. As conquistas e confrontos de Gregório VII constituem, segundo Arquillière, um legado singular para Igreja. Arquillière julgou necessário formular um sistema ou um modo de interpretação que pudesse abarcar a política medieval para entender o papa Gregório VII7. Ele formulou essa interpretação em 1934. 5 A obra A Cidade de Deus foi dividida em duas partes, com data provável de elaboração entre os anos de 413 e 425. 6 Ernest Kantorowicz preferiu utilizar a expressão teologia política medieval, fazendo parte do subtítulo da sua obra composta em 1957 sobre os dois corpos do rei. Para Kantorowicz (1998, p. 29-30) não se poderia pensar em política medieval sem fazer referência à teologia. O autor descreveu como a linguagem do direito apresentava uma semelhança com as discussões teológicas dos primeiros Concílios do cristianismo. Kantorowicz (1998, p. 126-129) ressalta, ainda, que a metáfora dos dois corpos do rei aproxima-se da linguagem utilizada para pensar as duas naturezas de Cristo e o corpo místico de Cristo, que segundo o apóstolo Paulo, seria a Igreja. 7 Essa necessidade surgiu quando Arquillière escrevia sobre o papa Gregório VII. Para Arquillière não seria possível entender as ações e o pensamento de Gregório VII sem interpretá-lo no interior de um sistema de compreensão da política medieval. Aqui fazemos menção à parte específica sobre Gregório VII (ARQUILLIÈRE, 1934). 13 Desde a sua formulação, em 1934, o agostinismo político foi uma categoria histórica utilizada por diversos autores, alcançando uma notável assimilação nos estudos medievais8. O número de citações do agostinismo político é extenso. Apresentamos alguns autores, seguindo edições bibliográficas de várias épocas, que utilizaram, comentaram ou elencaram o agostinismo político em seus trabalhos, tais como: Gilson (2006, p. 340), em seu estudo dedicado a Santo Agostinho, aceitou as premissas de Arquillière9; Dederen (1963, p. 283); Lippi (1998, p. 79); Lira (2004, p. 20); Tabacco e Gaffuri (2010); Rhonheimer e Murphy (2013, p. 204); Mcgrade (2002, p. 121); Le Goff (2013); Magalhães (2005); Ryke (2001). Diante da presença do agostinismo político de Arquillière em tantos trabalhos sobre a Idade Média, julgamos que o tema mereça ser discutido em toda a sua amplitude, visando encontrar as bases para a sua recusa ou aplicação na historiografia. Cabe ressaltar que a validade do agostinismo político foi abordada por historiadores e filósofos de modo parcial. Entre os argumentos dos autores que recusaram ou que questionaram o agostinismo político como categoria de interpretação da história política medieval, podemos classificar seus argumentos em três vertentes principais: a) uma que acusa Arquillière de uma escrita histórica apologética baseando-se no teor de sua historiografia e também na sua vinculação à Igreja, instituição analisada por ele; b) outra que considera o agostinismo político uma interpretação que desconsiderou o contexto histórico que criou a possibilidade de Gregório VII e outros papas exigirem para si a plenitude dos poderes; c) e, por último, o neotomismo com o qual Arquillière manteve estreita afinidade, condicionou a sua visão sobre Santo Agostinho, sendo por isso ideológico seu esquema de interpretação da política medieval. Esses argumentos citados anteriormente nem sempre se encontram claramente formulados ou separados conforme apontamos. Apresentamos a seguir alguns autores que se classificam mais nitidamente entre as três vertentes expostas acima sobre o agostinismo político. Tabacco e Gaffuri (2010) atribuem ao agostinismo político uma ambiguidade no conceito de poder e afirmam que essa categoria seria formulada com uma 8 Entre os diversos usos do agostinismo político, destacamos o de Lafarge (1995) onde extrapolando as observações de Arquillière, aplicou a categoria para analisar a posição entre religião e Estado na Zâmbia atual. 9 Arquillière (1956, p. 53) assumiu a importância e a dependência de sua argumentação dos estudos de Étienne Gilson. 14 preocupação apologética e pelo neotomismo. Em Senellart (2006, p. 89) se encontra a citação de Hans Liebeschütz, o qual defendeu que foi Gregório Magno quem alimentou as ideias políticas na Idade Média e não Santo Agostinho. Nessa premissa, Arquillière teria, em sua explicação sobre o agostinismo político, entendido de forma errada a questão medieval sobre o exercício do poder na cristandade. Arquillière teria afirmado erroneamente que Gregório VII seria aquele que representava melhor a inversão entre a subordinação da hierarquia católica romana e o poder secular para uma visão na qual o papa detinha a proeminência sobre toda a cristandade. Vaz (2002, p. 289) entende que a ideia de agostinismo político não configurou de forma correta o pensamento do bispo de Hipona, pois, para ele, não se poderia reduzi-lo simplesmente a esquemas políticos. Para ele, Santo Agostinho representou para o Ocidente cristão a busca interior do sagrado e não só uma ação no mundo. Vaz argumenta que a obra agostiniana não visava à instauração de um sistema político cristão. Santo Agostinho teria tido uma perspectiva na qual diferenciava a intenção original do cristianismo de buscar o resgate espiritual do ser humano da construção de uma sociedade política que tivesse o mesmo como elo fundamental. De acordo com Dufal (2008), o agostinismo político teria sido uma construção de Arquillière sem fundamentações prováveis. Dufal enfatiza que a intenção do autor seria demonstrar que nas cartas de Gregório VII os termos justiça e paz (iustitia, pax) foram originados da leitura de Santo Agostinho. Considera, ainda, que esses argumentos são equivocados. Arquillière procurou rivalizar Aristóteles e Agostinho10 seguindo um esquema filosófico próprio do neotomismo (DUFAL, 2008). A fim de 10 Embora Dufal (2008) aponte a rivalização entre Santo Agostinho e Aristóteles, essa passagem foi um movimento lento para a posição que reconhecia a impossibilidade de conjugar as duas filosofias em uma só síntese. Segundo De Boni (1993, p. 127-143), a tradução dos textos de Aristóteles contribuiu para uma maior discussão sobre eles. Entretanto, a origem greco-árabe do pensamento aristotélico, provocou uma desconfiança quanto a sua presença nas universidades medievais. Pensou-se em uma interpretação a princípio que unisse os dois sistemas num “aristotelismo platonizante”. Todavia, essas soluções se mostraram não sustentáveis. Foi Santo Tomás que elaborou uma síntese de muitos princípios aristotélicos que se tornaram importantes na construção teórica cristã no século XIII. No ano de 1277, três anos após a morte de Santo Tomás, o bispo de Paris, Estevão Tempier, condenava 219 teses que tinham origem greco-árabes. Para Libera (1999, p. 144-149), os medievais tiveram dificuldade em separar o aristotelismo do islamismo, pois os comentários de Aristóteles foram realizados em primeiro lugar pelos muçulmanos, portanto, a desconfiança sobre o conteúdo confundia-se com a disputa das cruzadas. Conforme Ullmann (2000, p. 163-165), Aristóteles teria sido banido da Universidade de Paris por causa da desconfiança de influências muçulmanas. Para organizar a recepção dos textos aristotélicos, a filosofia patrística e em especial Santo Agostinho, serviram de modelo para confrontar a novidade Aristotélica nos séculos XII e XIII. Santo Agostinho teve uma preferência por Platão em suas obras. Ele assume que as ideias platônicas serviam melhor para sua intenção de entender a criação, a alma humana e a finalidade desse mundo. 15 reforçar o momento de ruptura do pensamento medieval, o agostinismo político representaria um tempo anterior, motivado pelo exagerado poder exercido pelos reis que realizavam a investidura da hierarquia da Igreja. Hernandez (2010) aponta que a dificuldade de utilização do esquema de interpretação do agostinismo político resulta, entre outras questões, na definição do que seja o agostinismo. Para ele, o entendimento do que seja o agostinismo é amplo, pois provém da própria quantidade de escritos e temas a que Santo Agostinho se dedicou. O autor explica que o agostinismo político e o gelasianismo11 constituem dois princípios importantes para o estudo das ideias sobre o poder na Idade Média. Para alguns autores, a compreensão da política medieval deve partir das noções romanas de império e religião. Nesse sentido, Ullmann (1992, p. 34) salienta que entender a história política medieval requer recuar até a tradição romana da herança. Segundo ele, a lei da herança romana foi aplicada a São Pedro, pois os poderes recebidos como papa seriam independentes da pessoa que os recebia garantindo, assim, a continuidade perpétua. Considera, ainda, que as ideias políticas na Roma imperial foram elaboradas com textos bíblicos para justificar tanto o papado como o império. O papado partia da Sagrada Escritura e terminava na lei romana. O Império Romano, após a aceitação do cristianismo, partia da sua lei e ilustrava a sua história com a Sagrada Escritura. Para Ullmann (1992), o próprio imperador, baseado em conhecimentos teológicos, se afirmava como um sacerdote. O sacerdócio do imperador poderia partir da compreensão equivocada do batismo, pois se afirmava que era conferido ao batizado o múnus sacerdotal, real e profético. 11 O início do pontificado de Gelásio I (492-496), segundo Souza (2012b, p. 28), coincide com o período em que os povos germânicos se tornaram senhores do Ocidente. Em 493, o rei dos ostrogodos, Teodorico, ariano, tornou-se governante de Roma. Neste contexto, Gelásio elaborou suas posições sobre o governo dos reis e dos papas. “As teses gelasianas são por si mesmas bem claras: o sucessor de Pedro e seus herdeiros exercem o primado sobre as igrejas particulares. O imperador, mesmo sendo cristão e desfrutando de um poder ímpar, não tem o direito de se imiscuir e interferir em assuntos eclesiásticos, devido a não possuir competência e direito para tal. Se os bispos são coniventes com atitudes dessa espécie, naturalmente ilegítimas, o Sumo Pontífice tem o direito de depô-los, porque a Sé Apostólica é responsável pela fidelidade à ortodoxia, à disciplina eclesiástica, e enfim detentora do múnus apostólico para julgar os transgressores dos postulados cristãos, pois, conforme o próprio Gelásio, o papa é o detentor supremo dos poderes legislativo, executivo e judiciário na Igreja: ... O que a Sé Apostólica afirma em um sínodo ou concílio, tem valor jurídico, o que ela recusa não tem força legal ...” (SOUZA, 2012b, p. 31). Segundo Strefling (2002, p. 22-26), o papa Gelásio não pretendia uma separação de poderes em suas argumentações, mas uma cooperação. Ele respeitava o poder exercido pelo imperador e pedia o mesmo para ele. 16 A concepção de um agostinismo político depende essencialmente de autores de estudos agostinianos apresentados no elenco de obras utilizadas por Arquillière. A proximidade do autor com o neotomismo, com a História das Ideias e com as preocupações da escola metódica serviram de apoio para a elaboração de sua visão sobre o agostinismo e a história medieval. Um dos autores neotomistas foi Étienne Gilson, a quem Arquillière recorreu para a compreensão de Santo Agostinho. Há entre Gilson e Arquillière uma aceitação mútua de argumentos sobre o bispo de Hipona, podendo se encontrar referências trocadas entre esses autores. O neotomismo procurou readaptar o pensamento de Santo Tomás aos anseios intelectuais do final do século XIX e início do século XX. O papa Leão XIII, em 1879, escreveu a encíclica Aeterni Patris, sobre a Filosofia Cristã, recomendando o aprofundamento da teologia de Santo Tomás de Aquino, fortalecendo, assim, um movimento que havia iniciado na Itália em 1850. Durante os anos do início do neotomismo acirrou-se um conflito entre o governo da Itália e os papas e na França ocorriam discussões sobre o estatuto da religião no estado laico. Diante da problemática apresentada com o intuito de responder se o agostinismo político é uma categoria sustentável para a elaboração da historiografia da Idade Média, propomos analisar três questões que, para nós, constituem o resumo de toda a polêmica sobre o tema: Os argumentos com os quais Arquillière construiu o agostinismo político são provenientes puramente de uma apologia católica, produto de sua vinculação institucional à Igreja e por isso suas conclusões resultam inúteis ao ofício do historiador? O agostinismo político seria uma interpretação sem vínculo com o contexto histórico que possibilitou a Gregório VII e papas posteriores postularem para si a plenitude dos poderes? O agostinismo seria o resultado de uma interpretação distorcida de Santo Agostinho por meio da ótica neotomista, sendo assim uma interpretação ideológica da política medieval? São essas questões que procuraremos responder no percurso de toda essa pesquisa. Com a finalidade de alcançarmos essas respostas, julgamos necessária uma abordagem crítica dos principais artigos e livros escritos por Arquillière buscando a gênese e a permanência do agostinismo político como chave interpretativa. Os autores elencados anteriormente que trataram do agostinismo político, concentraram-se unicamente na leitura da sua obra principal, desligando-a até mesmo da obra anexa que trata de Gregório VII. Interessa-nos perceber se o autor foi capaz de realizar a leitura da Idade Média segundo suas concepções de 17 agostinismo político e quais foram em suas obras as suas principais preocupações. Várias obras de Arquillière foram compostas como manuais de história para o ensino secundário francês. Procuraremos perceber como o autor tratou a disputa de poder no Ocidente cristão nesses manuais. Arquillière utilizou o agostinismo político para a interpretação do modo de governar medieval e também para outros períodos da história. Segundo ele, a história europeia coincide, por vezes, com a própria história da Igreja. Desperta nossa atenção a utilização de Arquillière fez do agostinismo político para interpretar a História nos manuais compostos por ele para o período de estudos que os franceses chamavam de ensino secundário. O agostinismo político precisa ser entendido dentro de distinções nem sempre claras entre teologia, formulações de leis e costumes sociais. Esses aspectos citados referem-se, antes de tudo, à predominância de uma visão sacralizada do mundo, do ser humano e das conjunturas que compõem a sociedade em determinados séculos. A teologia influenciava a sociedade cristã na confecção de teorias políticas no medievo. Entende-se por teologia em sentido amplo toda e qualquer interpretação das Sagradas Escrituras no contexto da cristandade. Trata-se em sentido restrito de uma reflexão sobre os dados da fé, realizada através do diálogo com as ciências (razão). A palavra teologia provém da língua grega reunindo Deus e pensamento (theós + lógos), duas palavras numa só expressão. A teologia realiza uma interpretação dos textos sagrados de forma apurada e com os métodos próprios de cada período. No nosso recorte temático, a teologia serviu para fundamentar os mais diversos campos da existência humana. Algumas das questões apresentadas fazem referência ao lugar social do historiador Arquillière. Cada historiador, em sua narrativa, apresenta traços de seu meio social, da corporação que lhe confere credibilidade e certifica sua produção segundo os métodos aceitos pela mesma corporação. Entre os historiadores que se preocuparam com a narrativa histórica, ligando a pessoa do historiador ao seu meio social de produção historiográfica, destaca-se Michel de Certeau. Utilizaremos, nesta pesquisa, para a abordagem de nosso tema, as questões propostas por Certeau (2006, p. 65), para iniciar a descrição de sua operação historiográfica, inseridas na obra A escrita da história: “O que fabrica o historiador 18 faz quando ‘faz história’? Para quem trabalha? Que produz? [...] O que é está profissão?”. A operação historiográfica, segundo Certeau, compreende o produto de três momentos: um lugar social, uma prática e uma escrita. O lugar social compreende o mundo ideológico do historiador, as relações do sujeito com seu meio social e com as forças condicionantes de sua instituição. A prática compreende as técnicas necessárias para abordagem do “objeto histórico”. As técnicas são alteradas ou modificadas pela forma de resistência oferecida pelo objeto. Certeau (2006, p. 79) explica que a partir de 1970 vários temas demandaram novas técnicas, como os estudos sobre a doença, a medicina, o corpo, os espaços urbanos, etc... Mas pode- se ampliar ainda sua afirmação. O objeto oferece resistência ao sujeito porque nenhum dos dois continua sendo o mesmo, ou seja, no processo de rupturas e mudanças o sujeito que interpreta não possui mais o sistema ideológico de outros tempos. Por isso, a historiografia pode ser sempre refeita. A escrita é, para Certeau (2006, p. 93-109), vinculada a um corpo social e à instituição do saber que a reconhece. Na escrita, passa-se de uma prática ao discurso narrativo que procura por vezes preencher os vazios e as lacunas sobre o que se escreve. Os resultados do trabalho do historiador são descritos dentro de uma ordem cronológica, como o desdobramento dos documentos e de suas citações, permitindo um “retorno” pela linguagem do passado. Certeau, buscando dialogar com a complexidade que pode compor a escrita da história, serviu-se de variadas formas de análise. Desse modo, recorreu a Foucault (1990), à psicanálise, à filosofia, à linguística, à semiótica, à sociologia de Durkheim, entre outros conhecimentos. Frijhoff (2010) para descrever a capacidade de Certeau de transitar por tantas áreas o chamou de multitalento. Josgrilberg (2005, 17) o descreveu com o mesmo acento: “Viajante por excelência, como gostava de se definir (Giard in Certeau, 1987, V), Certeau permanecia em constante movimento, intelectual ou físico”. Certeau utilizou-se, ainda, em sua historiografia, dos textos de Ferdinand Baudel, de Lucien Febvre e de vários outros autores e perspectivas, demonstrando o domínio de várias áreas das ciências humanas. Por intermédio desses interlocutores e das ciências humanas, ele pensou superar os polos sujeito e objeto na operação historiográfica pelo que chamou de relação. 19 Para Azevedo e Teixeira (2008), adotando posições da teoria da história de Dominick LaCapra e John Zammito, a relação pode ser uma forma de responder ao impasse entre o objeto e o sujeito que Certeau havia exposto na escrita da história. Defendemos, assim, que o objeto histórico é construído a partir da relação, regulada por regras intersubjetivas e debates teóricos – os quais delimitam o campo discursivo da história –, entre expectativas de sentido de um sujeito-historiador e os vestígios do passado, pensados não como “fontes” ou “documentos” passivos, mas como “textos complexos” ou então “registros de arquivo”. (AZEVEDO; TEIXEIRA, 2008, p. 71). A historiografia compreende a posição de um sujeito que escreve o real ou que pensa escrever o real ou parte dele “discursando” sobre um tema. Michel de Certeau afirmou que a escrita da história trabalha constantemente com dois elementos que nem sempre podem ser totalmente identificados: o real e a descrição do mesmo. Certeau (2006, p. 11) expressou, no prefácio de sua obra: “A historiografia (quer dizer “história” e “escrita”) traz inscrito no próprio nome o paradoxo – e quase o oximoron – do relacionamento dos dois termos antinômicos: o real e o discurso”. Na dinâmica entre real e discurso aparece o lugar social do interpretante. A narrativa supõe uma atividade interpretativa que se processa por intermédio do narrador e do seu lugar social. Para Certeau (2006, p. 66), o lugar social que ocupa o historiador pode influir em sua produção historiográfica. O lugar social é compreendido por Certeau como a totalidade das condições a que as pessoas estariam sujeitas, bem como, por vezes, o horizonte a partir do qual se estabelecem suas escolhas e posições. Transposto para a historiografia, esse lugar social estabelece métodos e objetos para o historiador. A ideia de uma verdade alheia ao sujeito na elaboração histórica, uma verdade em si, não subsiste à crítica estabelecida pelo lugar social. O historiador que compõe sua análise sobre o “fato” está inserido num sistema de interpretações do grupo a que pertence e pensa a história, isto é, a interpreta. Certeau (2006, p. 68) denomina esse movimento de interpretação de “subjetividade filosófica”, tomando filosofia como sinônimo de visão de mundo. Para ele, não é mais possível imaginar que aquele que escreve a história esteja alheio a seu meio e livre de condicionamentos. É importante recordar que, para Certeau (2006, p. 69-70), esses condicionamentos são também institucionais. A instituição oferece a sustentação e a corporação acolhe ou rejeita a historiografia construída, ou seja, determina até que ponto essa ou aquela visão do real 20 corresponde a determinados princípios e por isso pode ser catalogada entre as “escolas”. Além do que é dito na escrita da história, Certeau se interessa também por aquilo que não é dito. O não-dito, o silêncio, pode significar as próprias limitações de escrever a história, mas aponta também para o que não se apresenta nessa escrita por não fazer sentido ou não ser uma preocupação do lugar social ocupado pelo historiador. A contribuição de Certeau demonstra que a escrita da história não é uma prática simplesmente subjetiva. Assim como não pode ser plenamente objetiva. Para além do objetivo e do subjetivo na escrita da história existe a sociedade que funciona sob determinadas regras que se alteram em cada período histórico e grupo. Consideramos pertinentes à nossa pesquisa as observações sobre o lugar social do historiador apontadas por Certeau. Entendemos que o agostinismo político com as condições de sua elaboração, segundo a definição dada por Arquillière, pode ser mais bem compreendido na medida em que confrontarmos nosso tema de pesquisa com sua vinculação a uma época, às escolas historiográficas e à filiação institucional do autor concomitantemente aos pressupostos que emergem das fontes e referenciais teóricos que ele utiliza sobre o tema. Os estudos sobre a filiação institucional, a descrição das escolas a que um autor se relacionava são algumas das preocupações que a História dos Intelectuais, proposta por Sirinelli, procura responder. Para ele, a história dos intelectuais seria um campo de estudo histórico. “A história dos intelectuais tornou-se assim, em poucos anos, um campo histórico autônomo que, longe de se fechar sobre si mesmo, é um campo aberto, situado no cruzamento das histórias política, social e cultural” (SIRINELLI, 2003, p. 232). Para Sirinelli, a definição de intelectual pode ser ampla, por isso ele propõe reconhecer as várias explicações sobre o termo unificando-as em raízes comuns: Estas podem desembocar de duas acepções do intelectual, uma ampla e sociocultural, englobando os criadores e os “mediadores” culturais, a outra bem mais estreita, baseada na noção de engajamento. No primeiro caso, estão abrangidos tanto o jornalista como o escritor, o professor secundário como o erudito. (SIRINELLI, 2003, p. 242). 21 A segunda acepção de intelectual dada por Sirinelli (2003, p. 243) relaciona- se com o “engajamento na vida da cidade como ator”. Essa acepção, mais restrita à anterior, engloba um número menor de indivíduos. A importância para nós, na sua proposta de História dos Intelectuais, assenta-se na visualização mais concreta das ideias assumidas por indivíduos concretos. Essa proposta procura perceber o intelectual em seu meio, como uma teia de relações na qual encontra sustentação e afrontas. Sirinelli pretende perceber o intelectual sempre em seu meio. “Sem dúvida, o historiador está obrigatoriamente inserido no seu país e na sua época por múltiplas aderências e, além disso, ele próprio pertence, como já dissemos, ao meio intelectual” (SIRINELLI, 2003, p. 239). As múltiplas aderências do historiador nos levam às redes de sustentação profissional ou acadêmica que o amparam. Os conteúdos recebidos e a filiação acadêmica conduzem a pesquisa em história dos intelectuais à noção de escola histórica. A compreensão do intelectual como herdeiro e receptor de legados produz um interesse por sua biografia, destacando nela os mestres e os discípulos. Nesse caso, deve-se perguntar sobre as razões que levaram o intelectual a receber tais ideias e como ele as transmitiu para a sociedade. A História dos Intelectuais como temática foi apontada, também, por Le Goff (1984) quando estudou os “mestres das escolas” medievais no século XII como aqueles que tinham por ofício pensar e ensinar seu pensamento. Certos princípios sobre os intelectuais medievais como homens ligados às cidades, pertencentes a uma corporação como homens de ofício e que a teologia não pode ser separada da sociedade foram acolhidos por Le Goff (2007) a partir de conversas com Marie- Dominique Chenu relatadas por Marc Heurgon. O primeiro passo, no presente estudo, será relacionar a produção historiográfica de Arquillière às escolas históricas de seu período. Assim, seguindo as premissas expostas por Certeau, faremos as análises da biografia de Arquillière como intelectual da Igreja Católica, da sua formação acadêmica visando conhecer a qual forma de fazer história se vinculou e, também, qual corporação lhe confere legitimidade de interpretação. 22 1 ENTRE A ACADEMIA E A RELIGIÃO: A ELABORAÇÃO DE UMA CATEGORIA HISTÓRICA 1.1 Traços Biográficos e Acadêmicos de Henri-Xavier Arquillière Henri-Xavier Arquillière nasceu em Firminy, na região de Loire, em 1883 e faleceu em Lyon, em 14 de julho de 1956, sendo enterrado em Firminy. Sua primeira formação foi na escola católica dirigida pelos Irmãos Maristas. O Bulletin de l’Institut (1953, p. 463-464) mencionou que foi na rígida educação católica recebida no Colégio Marista, comum para a época, que Arquillière despertou para o catolicismo com suas devoções e símbolos. Foi ordenado sacerdote em 1902. Doutorou-se em teologia em 1907, na Faculdade de Teologia de Lyon. Sua tese, de 1907, intitula-se: Lamennais et le Galicanisme. Nesta obra apareceu pela primeira vez seu constante tema de reflexão: as relações entre estado e religião. Por meio dessa primeira obra, Arquillière analisou a posição social e política de Lamennais (2009). Segundo relatou o jurista e sociólogo das religiões, Le Bras (1956, p. 24), Arquillière foi aluno de Marcel Thévenin, Émile Chatelain, Ferdinand Lot, Adhémar Esmein e Robert Génestal. A influência destes historiadores está presente nas obras produzidas por ele. Arquillière foi nomeado professor de História da Igreja, na Faculdade de Paris, em 1919. Em 1921, foi nomeado professor de História da Idade Média na Faculdade de Teologia de Paris12. Ensinava também História Eclesiástica na mesma faculdade. Em 1939, foi nomeado vice-reitor da Faculdade de Teologia de Paris. Arquillière (1939a), no mesmo ano da nomeação como vice-reitor, publicou a obra 12 A Faculdade de Teologia de Paris, hoje chamada de Institut Catholique de Paris, é um centro de formação intelectual católico. Ela foi fundada em 1875 e desempenhou um papel importante na elaboração de uma linguagem para a fé que fosse capaz de dialogar com o mundo no final do século XIX. Entretanto, foi só em 1889 que se organizou o Institut Catholique de Paris. Hoje, aceita-se o ano de 1889 como sua data de fundação. O Institut Catholique de Paris (2013) preza, segundo sua descrição, por ser um centro preocupado com uma postura na qual a fé possa iluminar as situações do mundo contemporâneo. Foi nesse Instituto que Arquillière ensinou, continuando mesmo depois de ser aceito na École des Hautes Études (Sorbonne), e foi diretor de estudos. Michel de Certeau, entre 1964 e 1977, dirigiu seminários de doutorado no Institut Catholique de Paris concomitantemente ao ensino em outras universidades. 23 L’Église au Moyen Âge, na coleção chamada de Biblioteca Católica de Ciências Religiosas13. Em 1943, foi nomeado reitor da Faculdade de Teologia e Ciências Religiosas de Paris, do Instituto Católico de Paris. Em 1947, foi nomeado Protonotário Apostólico, um título honorífico concedido pelo papa por reconhecimento de serviços prestados à Igreja. Arquillière foi diretor de edição de Manuais de História para o Ensino Secundário, publicados pela Les Éditions de l’École. Esses manuais foram distribuídos em centros de estudos, especialmente nos confessionais. Os manuais estavam presentes na formação histórica de várias escolas secundárias nas décadas de 1930 a 1960. A coleção histórica da qual suas obras de ensino fizeram parte abrangeu da História Antiga à Contemporânea. Nessas coleções, ele constantemente reelaborou e simplificou sua abordagem política. Nas obras produzidas diretamente por ele encontra-se expresso seu pensamento sobre a história do cristianismo, sobre a formação e o desenvolvimento do reino franco e da Gália. Arquillière (1934) escreveu uma tese intitulada Saint Grégoire VII: essai sur sa conception du pouvoir pontifical, a qual chamou de “modesto ensaio de história das ideias” (ARQUILLIÈRE, 1934, p. 1). Em sua tese, demonstrou quais foram os autores que inspiravam as ações de Gregório VII. Esta obra pretendia responder se Gregório VII trouxe elementos novos à discussão sobre o poder em sua época. Cabe ressaltarmos que as conclusões e argumentações do autor sobre esta obra serão expostas durante o desenvolvimento da presente tese. Os anos de estudo e ensino de Arquillière foram marcados pelo neotomismo presente na França. Ele manteve contato com divulgadores deste movimento, entre eles, Étienne Gilson. O neotomismo pretendia influenciar na interpretação da filosofia e da teologia da Idade Média. Essas influências na obra de Arquillière contribuíram para amparar suas interpretações da Patrística, sobretudo de Santo Agostinho. Foi nas obras neotomistas que Arquillière encontrou as conclusões que necessitava para a política medieval. Em 1953, concluiu um antigo projeto tornando- se professor na École des Hautes-Études, Sorbonne. 13 Arquillière publicou e dirigiu várias obras durante a sua vida. Visando demonstrar sua produção historiográfica, apresentamos no final dessa pesquisa um Anexo com as obras escritas por ele. 24 Henri-Xavier Arquillière alcançou reconhecimento entre os historiadores, teólogos e filósofos, impulsionado pela Faculdade de Teologia de Paris e pela Sorbonne. Essas faculdades eram dirigidas por membros da hierarquia católica ou este regime mantinha influência sobre elas. Concomitantemente com o reconhecimento acadêmico foi agraciado, dentro da instituição católica, com o título de honra de Pronotário Apostólico. Essas honras nos levam a considerar Arquillière como alguém que não só pertenceu ao catolicismo, mas agiu com os instrumentos de que dispunha – o ensino e a produção intelectual – colocando-os a serviço da Igreja. Ele possui uma filiação institucional que não pode ser descartada na análise de suas obras. Diante de um catolicismo que buscava seu papel na sociedade francesa que se apresentava como laica, Arquillière contribuiu produzindo obras nas quais apresentou o catolicismo como pertencente à própria origem do povo francês. A obra de Arquillière foi orientada pela sua posição de pessoa pertencente à hierarquia da Igreja. Pretendemos entender em quais pontos sua postura de historiador da instituição católica condicionou ou direcionou seu trabalho. A esse respeito, Certeau (2006, p. 70) observa que: “A instituição não dá apenas uma estabilidade social a uma ‘doutrina’. Ela a torna possível e, sub-repticiamente, a determina. Não que uma seja a causa da outra”. Por essa ótica, o estabelecimento de Arquillière como historiador está ligado ao domínio de uma técnica aprovada por pares, por uma escola que lhe conferiu a possibilidade de apresentar-se como tal. Para ser aprovado, ele necessitou dominar certas técnicas de pesquisa e escrita da história. Cabe-nos perceber mais nitidamente a que escola historiográfica nosso autor se situa, mediante uma análise sobre seus mestres e sobre a historiografia que ele seguiu. 1.2 Formação e mestres de Arquillière Le Bras esclarece que um dos sonhos de Arquillière era integrar o corpo de professores da École Pratique des Hautes Études. O seu desejo foi alcançado em 1943. O sonho de Henri Arquillière era de ensinar um dia na École [Pratique des Hautes Études] à qual devia sua formação de medievalista. Thévenin e Ferdinand Lot, que tinham por ele uma verdadeira afeição, encorajaram essa esperança que se realizou em 1943: por decisão ministerial de 5 de 25 maio ele foi nomeado diretor de estudos com dedicação exclusiva para a história da Igreja Medieval e Moderna. (LE BRAS, 1956, p. 24). Indiretamente, no texto acima, Le Bras (1956) nos informa sobre os antigos professores de Arquillière e, assim, recordou-se de mestres de Arquillière, tais como: Émile Chatelain, Adhémar Esmein e Robert Génestal. Esses professores ofereceram a Arquillière o método com base no qual ele desenvolveu suas pesquisas. A seguir, apresentaremos os professores mencionados por Le Bras com a intenção de compreender a que escola historiográfica Arquillière pertenceu. Jean Paul Hippolyte Emmanuel Adhémar Esmein, professor de Arquillière, foi jurista e historiador do direito civil e canônico. Participou da revisão do Código de Direito Civil francês em 1904, um ano antes da oficial separação constitucional da Igreja e do estado. Foi professor na École Pratique des Hautes Études e trabalhou, ainda, na direção do Conselho Superior de Instrução Pública Francesa. Robert Génestal foi professor das Faculdades de Direito de Caen e Paris. Especializou-se na história do direito francês e canônico. Segundo Ganshof (1931, p. 453-454), foi aluno de Esmein e sucessor na École Pratique des Hautes Études. Ganshof destacou que Génestal interessou-se pelo direito normando e pelo Decreto de Graciano escrito no século XII. Génestal encontrou, pela primeira vez, no Decreto Graciano, privilégios clericais em matérias jurídicas. Marcel Thévenin, outro mestre de Arquillière, dedicou-se em seus estudos ao direito e à história. Thévenin (1879) publicou estudos sobre o direito germânico e editou, em 1887, diversos textos merovíngios e carolíngios que compreendem o extenso período de 572 a 1130. Essa obra tem o título de Institutions privées et publiques aux époques mérovingienne et carolingienne. A sua intenção na referida obra era unir estudantes de história e de direito, pois considerava que essa união entre direito e história contribuiria para melhorar o conhecimento dos códigos merovíngios e carolíngios. Trata-se de uma proposta interdisciplinar que inova ao aproximar dois conhecimentos com suas teorias e modo de trabalho. Outro elemento importante é a palavra “instituição”, que ocupa o título da obra. Nesta palavra, Thévenin utiliza-se de um tema que será objeto de estudos sociológicos e historiográficos posteriores. Thévenin (1887), na apresentação da obra Institutions privées et publiques, destacou que ela contém textos inéditos sobre o tema. Thévenin (1887, p. iii) criticou o modo de fazer história de seu tempo comentando: “O [texto] de n. 59, somente, é 26 inédito; é a concessão necessária ao gosto exagerado e indiscreto de erudição pelo ‘inédito’ em nosso tempo”. Em sua crítica aparece a busca que os historiadores faziam nos arquivos, na esperança de encontrar novas fontes que pudessem colaborar para o desenvolvimento de um tema. Thévenin citou a Monumenta14 como um exemplo de esforço de interpretação das instituições às quais ele dedicara seus estudos. A preocupação de Thévenin (1887) estava relacionada aos textos sobre o modo como o direito era exercido pelos merovíngios e carolíngios. Cada texto publicado foi enumerado, apresentado em latim e precedido de um breve resumo ou título em francês. As notas que acompanham cada texto referem-se às diferenças entre as versões conhecidas. As breves discussões do autor referem-se às palavras latinas escolhidas entre as versões. Thévenin (1886, p. 251-270) preparou um índice da obra com os temas distribuídos dentro do que ele chamou de “direito privado: personalidade e territorialidade das leis” que apresentamos abaixo: a) Das pessoas: estado das pessoas; capacidade das pessoas, a família e a personalidade jurídica; b) Dos bens: sobre a propriedade; condição dos bens na família; doações e testamentos; c) Dos contratos e convenções: dos contratos em geral; dos símbolos jurídicos; cartas e notícias; d) Procedimento: ações; provas; organização judiciária; julgamentos e direito criminal. 14 O texto a que o autor se refere na introdução é a coleção Monumenta Germaniae Historica que havia publicado muitos textos sobre os merovíngios e carolíngios. Em 1886, um ano antes da publicação de Thévenin, o editor da Monumenta, Zeumer havia publicado diversas leis (ZEUMER, 1886). Sobre a importância da coleção Monumenta como forma de organização e divulgação de arquivos consultar a obra de Schellenberg e Soares (2002). Para Le Goff (1996, p. 535) o monumento e o documento formam, em determinado momento, uma aproximação privilegiada pelo desejo do interprete coletivo: “o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa”. Outro modo de entender o esforço, no século XIX, em reunir, catalogar e datar documentos sobre a origem de Estados, descrito como uma vertente nacionalista, encontra-se em Farge (1989) e Bentivoglio (2011). Para Bentivoglio, a origem da Monumenta estaria na vontade do rei Maximiliano da Baviera que sugeriu a Leopold von Ranke que realizasse esse trabalho, mas ele repassou a um colaborador. Certeau (2006, p. 74) considera a Monumenta resultado de uma estrutura de sociedade e que a prática francesa dos arquivos procurou imitar: “[...] um recrutamento de eruditos- letrados devotados a uma causa e adotando à sua grande ou pequena pátria a divisa dos Monumenta Germaniae: Sanctus amor patriae dat animum [...]”. 27 Para revelar melhor o conteúdo do documento, a filologia foi o instrumento escolhido, nesse momento dos estudos históricos, tanto por Thévenin como por outros historiadores. A edição crítica de textos se sobressaía como a forma mais nobre de se exercer a filologia15. Thévenin estudou os aspectos jurídicos que embasam as práticas merovíngias, carolíngias e germânicas. Thévenin escreveu, ainda, com Gabriel Monod, uma homenagem a Georges Waitz que fora professor de ambos. Monod declarou sobre Georges Waitz: Leopold von Ranke tinha apenas fechado os olhos quando um de seus primeiros e mais ilustres discípulos, Georges Waitz, lhe seguiu na tumba. Se todos aqueles que se ocupam de história moderna e que estudam a política europeia dos quatro últimos séculos nos documentos diplomáticos olham para Ranke como seu mestre, foi Waitz que exerceu nos últimos quarenta anos a maior influência sobre as pesquisas relativas à Idade Média. (MONOD; THÉVENIN, 1886, p. 3). Temos, então, uma sucessão de professores e alunos que passou por Ranke, Waitz e Thévenin até chegar a Arquillière. Waitz teve seus trabalhos utilizados por Arquillière (1956a, p. 171) quando utilizou a coleção de textos do período carolíngio editado por ele. Monod acrescentou, ainda, que o interesse pelos seminários históricos de Waitz na Alemanha, só era menor quando comparado ao de seu mestre Leopold von Ranke. Monod se recorda de que ele ensinava os alunos a tomarem precaução com as influências das teorias subjetivas na história, com preconceitos políticos e religiosos e com toda a generalização que não proceda dos 15 Para Basseto (2001), na origem, a palavra filologia na Grécia significava “gosto pelo estudo das palavras”, todavia, o modo como esse gosto se dava não era unânime. O filólogo, embora se preocupe com a gramática e a literatura, conforme Basseto (2001), seu trabalho seria ainda mais amplo. Nas obras latinas de Cícero, Varrão, Sêneca e Plutarco, o entendimento de filólogo amplia- se para significar aquele que se preocupa não só com as palavras, mas com toda forma de manifestação do pensamento. “Sêneca traça bem o perfil do gramático e do filólogo; o gramático se preocupa com problemas específicos de língua e literatura, como expressões típicas, arcaísmos, influências literárias. O filólogo apresenta análises, deduções e inter-relacionamento de fatos, conhecimento dos livros de história, de arúspices e dos escritos pontificais – índices de uma cultura ampla, própria do sábio, do Filólogo, como Erastóstenes e Ateius” (BASSETO, 2001, p. 22). Após descrever o caminho tomado pela definição de filologia durante os séculos que se seguiram, afirmando que ela não foi unívoca, conclui: “Com isso se fixa o conceito moderno, em sentido estrito, de filologia como ciência do significado dos textos; e em sentido mais amplo, como a pesquisa científica do desenvolvimento e das características de um povo ou de uma cultura com base em sua língua e em sua literatura” (BASSETO, 2001, p. 37). Para Quetglas (2006, p. 5-9), a filologia procuraria, por meio da crítica, chegar ao texto original, à compreensão objetiva do mesmo e ao esclarecimento do contexto histórico com a explicação da língua utilizada. Ligada à filologia estariam a paleografia, a epigrafia, a codicologia, a papirologia, a linguística e outras formas de crítica ao texto. Encarnação (2010, p. 17) preferiu definir com Giancarlo Susini a epigrafia “como o estudo da forma como, em determinado momento, o Homem selecionou ideias para deixar de si para os vindouros”. 28 fatos. No texto de homenagem, Monod destacou que Waitz era, acima de tudo, um professor dedicado a ensinar os métodos para o trabalho histórico. Saia-se de suas lições não somente mais instruído, com ideias mais claras e espírito melhor ordenado, mas com mais amor e respeito pela ciência, com a consciência da exigência e a decisão de trabalhar por elas. Sentia-se que M. Waitz colocava toda sua alma num ensinamento direto e familiar, que via uma obra moral e ao mesmo tempo intelectual para realizar, queria formar os homens e ao mesmo tempo os cientistas e doava o melhor dele mesmo. (MONOD; THÉVENIN, 1886, p. 3-4). O modo como os merovíngios organizaram seu reino constituiu uma parte importante para Arquillière do sistema que regeu a política medieval. Os estudos de Thévenin estão presentes nas obras de interpretação da história medieval de Arquillière16. Por intermédio de Thévenin chegamos a uma sucessão de mestres e discípulos que se estende de Leopold von Ranke até Arquillière. Podemos apontar, de modo parcial, que a perspectiva historiográfica de Arquillière se aproxima mais da escola metódica da qual herdou a crítica na abordagem das fontes. Porém, não se pode falar de uma escola metódica pura. O estudo da bibliografia sobre Thévenin levou-nos a Georges Waitz. Ele mesmo, sendo um discípulo reconhecidamente ligado a Leopold von Ranke, dispõe de pouca bibliografia e não tem o seu nome relacionado entre os seguidores da escola metódica. Delacroix et al. (2012, p. 99) citam Waitz indiretamente, chamando-o de pertencente à “historiografia alemã” na interpretação de Gregório de Tours e da Lei Sálica. Outro professor de Arquillière, com o qual ele aprendeu o ofício de historiador, foi Émile-Louis-Marie Chatelain. Ele nasceu em 1851, numa família erudita. Chatelain foi latinista, paleógrafo e membro da Academia de Letras e Belas Artes. Ele se destacou pelo trabalho de coletar, fotografar e registrar diversos documentos na Itália e na França buscando conservar e preparar coleções que servissem para abordagens históricas. Um exemplo de seu trabalho foi a catalogação de manuscritos da Universidade de Sorbonne, publicado em 189217. 16 Arquillière utilizou as conclusões de Thévenin sobre a propriedade da terra nos reinos germânicos durante a Idade Média. Thévenin (1886) se ocupou com o tema que está na origem do feudalismo. 17 O catálogo foi redigido para facilitar o acesso às fontes históricas contidas na universidade. Chama-nos a atenção nesse livro a propaganda da editora, que oferecia vários catálogos de universidades e bibliotecas francesas (CHATELAIN, 1892). Thévenin, conforme salientamos em 29 Um dos trabalhos de paleografia de Chatelain tratou das chamadas Notas Tironianas18 que constituem um completo sistema de taquigrafia latina. Chatelain (1900, p. vii) salienta que as Notas Tironianas representam “uma parte obscura da paleografia latina” e explica que uma nota tironiana se compõe de dois elementos: um radical ou signo principal e uma terminação ou signo auxiliar. Assim, na obra, enumera a formação das palavras segundo a taquigrafia latina composta por Tiron. A obra, na apresentação de Chatelain, destina-se a seus alunos. No sistema das notas tironianas a capacidade de formação das palavras era bem ampla e o domínio dos símbolos que as constituíam era um processo que requeria memorização e bastante prática. Seus estudos das Notas Tironianas e da taquigrafia silábica possibilitaram, entre outras especificidades, decifrar diplomas merovíngios e carolíngios. Os estudos de Chatelain e Quicherat (1891) catalogaram as formas de abreviações utilizadas nos textos latinos contribuíram para o aperfeiçoamento do Dictionnaire français-latin (1891)19. Seguindo os métodos de pesquisa histórica aplicados por seus mestres, Arquillière traduziu diversos textos latinos de Gregório VII. Arquillière (1926a) também editou um texto inédito, encontrado por ele, do teólogo Tiago de Viterbo chamado De Regimine Christiano. Conforme o próprio Arquillière (1913) informa, a edição crítica foi preparada por meio de comparações com manuscritos de bibliotecas italianas. O aluno havia compreendido a necessidade das fontes, sua conservação, interpretação e tradução. Dominar o latim para ler as fontes, quase sempre oficiais, era uma característica da escola metódica que pela análise interna do documento procurava retirar-lhe o sentido20. Arquillière utilizou-se desse conhecimento na sua historiografia. _______________________ nota anterior, comentou a seus leitores que a procura por fontes inéditas era uma constante na pesquisa histórica da sua época e pondera que seria exagerada. 18 Marco Túlio Tiron seria um ex-escravo do romano Cícero. Ele teria formulado o primeiro sistema de taquigrafia europeu. Tiron teria sido revisor dos discursos de Cícero e recolheria os discursos no Senado Romano de forma abreviada ou rápida (FLEXOR, 2008; FERREIRA, 1938; LIMA, 2006). 19 Segundo Aubert (1938), em 1889, na quarta edição do Dictionnaire Latin-Français, Chatelain acrescentou 4.000 palavras. Nas palavras cheias de bons adjetivos Aubert (1938, p. 210) comentou o empenho de Chatelain na língua latina: “Ele ama o latim e quer fazer amar. Ele redige com prazer seus prefácios em latim. Ele escreve em latim a seus filhos. Ele retoma os versos latinos com amor e felicidade. Era um confrade amável e respeitoso e onde estava era um amigo muito estimado.” 20 Segundo Bourdé e Martin (c1983, p. 114), Leopold von Ranke rebateu as filosofias da história e propôs algumas regras teóricas: “[...] 5. a. regra: a tarefa do historiador consiste em reunir um número suficiente de dados, assente em documentos seguros; a partir destes factos, por si só, o registro histórico organiza-se e deixa-se interpretar”. 30 Arquillière foi também aluno de Ferdinand Lot (1866-1952). Lot concentrou seus estudos na Idade Média e no final do Império Romano, particularmente nos períodos limites entre cada época. Autor de O fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média (LOT, 2008), obra na qual pretendia demonstrar que não se podia compreender os períodos do fim da antiguidade e início da Idade Média de forma separada, mas como um processo. Segundo Barros (2009), Lot destacou que o fim do Império foi um processo, mas que o Império terminou e não se transformou em outro reino ou permaneceu nos reinos bárbaros que se estabeleceram nas antigas províncias. As causas deste término do Império foram sociais, econômicas e políticas. Para Barros (2009, p. 552), estas causas “geraram um estado interventor, corrupto e burocratizado”. Todavia, diferentemente da afirmação de Barros, a interpretação de Lot sempre se orientava para a afirmação que quando um mundo termina, outro começa, ou seja, as épocas não se comunicam. A interpretação de Lot se aproxima mais da noção de ruptura. Outra afirmação de Lot foi que o fim do Império Romano provém mais de questões internas do que pela pressão de povos chamados bárbaros. A compreensão de Lot aproxima-se de Braudel na sua forma de apontar as causas do fim do Império Romano. Lot ao descrever o período de transição, privilegiou os aspectos econômicos e sociais seguindo método que marcou a escola dos Annales. O próprio Braudel (1966), no ano do centenário de nascimento de Lot, elogiou sua obra e declarou que seu nome estaria entre os verdadeiros historiadores do mundo. A expressão de Braudel – “verdadeiro” – ainda que desperte a pergunta sobre o que consiste esta verdade, procura registrar o nome de um historiador que caminhou ao lado do movimento de renovação da história. Lot foi um dos primeiros a utilizar o conceito de Antiguidade Tardia, e alguns defendem que o termo foi criado por ele para manifestar sua compreensão do fim do Império Romano21. As obras de Lot foram constantemente citadas por Arquillière, demonstrando uma aceitação parcial de seus argumentos. Lot defendeu que os bispos cristãos encontraram nos privilégios oferecidos por Constantino a satisfação de seus desejos de dominação e autoridade, portanto, Arquillière utilizou os textos 21 Uma comparação entre as ideias de Lot e Pirenne demonstra que o primeiro defendeu como aspectos internos para o fim do Império Romano o crescimento da economia não baseada no pagamento de soldos, mas sim na entrega de gêneros variados e terras. Esse aspecto econômico teria contribuído para o enfraquecimento do Império. Pirenne teria defendido uma continuidade da economia monetária (SARTIN, 2010; BARROS, 2009; SILVA, 2013). 31 de Lot sem as conclusões pejorativas mencionadas. Segundo Lot (1925), os merovíngios desenvolveram um modo especial de unificar religião e reino, afirmação que serviu de apoio para ideias posteriores formuladas por Arquillière. Le Goff (1966), em artigo sobre Ferdinand Lot e os Annales, declarou não ter conhecido pessoalmente Lot, mas por intermédio de Perrin se sentia próximo a ele: Primeiro por meu querido mestre Charles-Edmond Perrin, que foi seu discípulo e se declarava sempre fortemente marcado pela influência deste grande historiador, tenho um pouco a impressão de ter sido, ouso afirmar, “pequeno-aluno” de Ferdinand Lot. (LE GOFF, 1966, p. 1179). De acordo com Le Goff (1966), Marc Bloch e Lucien Febvre apreciavam o modo como Lot abordava as questões históricas. Para Febvre, Lot era um “pesquisador apaixonado” que não se considerava jamais satisfeito, que colocava ao leitor centenas de questões em suas obras. Le Goff (1966) questionou, ainda, por que Lot teria publicado somente um único artigo nos Annales d’Histoire Sociale se Bloch e Febvre fizeram elogios a seus principais trabalhos. Segundo Le Goff (1966, p. 1180-1181), Lot não exprimia claramente sua concepção de história e quando o fez parece destoar da História Social. Quando Lot esteve mais perto de exprimir sob a forma de princípios sua concepção de história, por exemplo no seu relato sobre o livro de Roupniel – Histoire e Destin –, escreveu Le Goff, foi para insistir sobre a importância da cadeia cronológica constituída pelos “eventos”, sobre o papel dos indivíduos que se destacam e são criadores de “descontinuidades” – ideias que não têm um lugar propriamente no espírito dos Annales. Lot possui uma característica própria e por isso não pode ser compreendido como um historiador pró ou contra os Annales. Ele possui certas características que formam a importância da sua herança histórica. Por esta razão, Le Goff (1966) expõe alguns pontos de convergências entre os Annales e Lot. Um dos pontos de convergência com Lot foi a crítica ao sistema de ensino superior francês22. Os Annales contestaram, também, o modo como o sistema de ensino superior francês se organizava, mas Lot fizera isso 25 anos antes. Lot 22 Segundo Mahn-Lot (2014), historiadora e filha de Lot, ele foi contrário ao sistema de ensino superior francês se manifestando duas vezes contra ele. Ele inaugurou uma novidade nos estudos superiores franceses quando sua tese foi defendida em francês e não em latim. 32 chamava a atenção para o atraso do sistema francês comparado ao alemão23. Para Le Goff (1966, p. 1182), Lot “Combate contra a retórica e a escolástica abusivamente batizada de cultura geral”. Ele se opõe ao modelo proposto pela prova de Agregação24 do ensino superior francês. Lot teria percebido problemas que considerava graves e empenhou forças contra ele muito antes que outros acadêmicos considerassem a questão. A sua preocupação ampliava-se ainda para a especialização das ciências humanas e especialmente na história. Essa especialização, longe de ser apenas uma concentração temática, era na verdade um fechamento na disciplina. [Na École des Chartres] se sente os inconvenientes da especialização. Se estuda na École des Chartres as ciências auxiliares da história, mas não a história propriamente dita. Na Sorbonne as licenças e agregações de história são autorizadas a ignorar absolutamente as ciências auxiliares. De ambas as partes se perde e se corta com a finalidade de mutilar o ensino de história. (LE GOFF, 1966, p. 1182). A crítica de Lot, segundo Le Goff (1966), resultaria da sua necessidade de liberdade, de estudos sérios e de estudantes mais receptivos à sua metodologia de pesquisa. Além das questões que Lot questionava sobre o ensino superior francês, para Le Goff (1966), ele teria sido um historiador dedicado a um campo vasto, recorrendo às múltiplas disciplinas e procurando fazer grandes sínteses. Em sua pesquisa histórica, Lot teria se utilizado da arqueologia, antropologia, psicologia social, demografia, filologia e toponomástica. Lot foi crítico da periodização da história em épocas, o que transpareceu em sua obra principal sobre o fim do mundo antigo e início da Idade Média. Le Goff destacou, ainda, a preferência de Lot pela história da 23 Além da Alemanha, mencionada por Le Goff acima, Lot ainda acrescentou que a Suíça e a Itália mantinham sistema de ensino superior melhor que o francês (LOT, 1892). 24 Picard (2010, p. 145-155), em artigo sobre a história do ensino superior francês, afirmou que, em 1879, com a chegada do poder dos republicanos, eles propuseram uma renovação no ensino superior. Concordando com George Weisz, Picard aponta que o reformado ensino resulta nas aspirações da nova elite à formação, das propostas republicanas e no desejo dos universitários de autonomia profissional. Prevaleceu uma concentração do prestígio nas instituições de ensino da capital, com forte hierarquia, até na estruturação dos campos acadêmicos. Os regulamentos e normas estabelecidos nessa época refletem o posicionamento das novas elites. As disciplinas canônicas, ou seja, já consagradas no meio acadêmico, foram apoiadas pelo dispositivo do exame de Agregação. Essas disciplinas destacavam as abordagens internalista e reprodutiva dos saberes, sendo elas aceitas, no momento, pela maioria acadêmica. Picard asseverou, ainda, que a Agregação gerava uma crise dificultando a entrada de novos professores. A questão só foi resolvida em 1936, com a mudança da aposentadoria de 75 anos para 65 anos. 33 França e salienta que ele não a separou da cristandade, seja a bárbara das invasões, seja a carolíngia, seja a feudal. Como ressalta Le Goff (1966), Lot fez, em alguns momentos, história social, um exemplo seria quando se propôs a pesquisar sobre quando se deixou de falar latim25. Ele teria recorrido não à filologia em si mesma, mas à problemática da história social, apontando uma interpretação de mecanismos mentais. Para Le Goff, Lot servia-se de um método regressivo quando procurava clarear o passado a partir do presente, mas longe de ser considerado um anacrônico, comentava Bloch “Nós não deixamos jamais de pensar exatamente como M. Lot” (apud LE GOFF, 1966, p. 1185). A ideia de descontinuidade está presente na obra de Lot, sendo até um tema recorrente em suas pesquisas. Ele preferiu realizar estudos situados nos períodos de ruptura, acomodando ai sua visão sobre o modo como se processam as alterações estruturais que finalizam um mundo, conforme sua expressão. Na coleção de obras doadas pelas filhas de Lot, Irène Vildé-Lot e Marianne Mahn-Lot, ao Institute de France encontram-se documentos inéditos que contribuem para conhecer mais aspectos da vida de Lot, correções de obras e conceitos utilizados por ele. Segundo Mahn-Lot (1997), que apresentou o acervo doado, entre o material doado encontram-se textos inéditos sobre O fim do Mundo Antigo, sobre a economia no Império Romano26 e o fluxo comercial no Mediterrâneo. Nesses escritos inéditos destacam-se as sete cartas recebidas de Marc Bloch. Em uma dessas cartas com data de 1921, Bloch escrevia: Eu te enviarei um artigo sobre os servos da gleba. Eu trabalho numa memória sobre os reis taumaturgos. Você encontrou um texto sobre 25 O artigo de Lot (1931, p. 97-159) discorda da fácil solução à questão opondo-se uma classe mais abastada (aristocracia e clérigos) que tinha acesso à educação e a forma correta de se falar à outra formada por pessoas mais pobres (soldados, camponeses, etc...) que desconheciam o latim correto. O latim não é a língua materna na Idade Média, mas uma segunda língua. Defender o latim vulgar como língua dos pobres e iletrados não se sustentaria, pois ele era o latim falado. Carlos Magno, no impulso dado aos estudos no chamado Renascimento Carolíngio, não conseguiu restaurar o latim. Lot concluiu dizendo que, quando se tentou no período carolíngio restaurar a pronúncia correta do latim, Carlos Magno não havia percebido que tanto o Império Romano como o latim estavam mortos. 26 Lot concluiu, em notas sobre a economia no Império Romano, que os soldados quase sempre recebiam seus pagamentos em víveres e para os veteranos era oferecido terras, logo, não se pode pensar numa economia centralizada no uso da moeda (MAHN-LOT, 1997, p. 362). Pirenne (2010, p. 105), afirma que Lot não percebeu a alteração realizada nos pagamentos dos impostos em Clermont. Os pagamentos eram realizados em produtos naturais, porém, foram alterados a pedido do bispo local para serem efetuados em moedas. 34 escrófulas? A questão feudal me apaixona sem contar a velha ideia que te falei outra vez que flutua sempre em meu espírito: de me ocupar um dia da crítica dos testemunhos. (apud MAHN-LOT, 1997, p. 363). Em outra carta de 03 de outubro de 1939, Lot relatou que poderia ser dispensado do serviço militar por causa de sua situação familiar, mas... o texto termina em reticências, porém sabemos que Bloch aderiu à resistência francesa contra a ocupação nazista, sendo executado em 16 de julho de 1944. Nos textos que foram doados ao Institute de France constam críticas ao materialismo histórico. Lot, na comunicação que data de 1946, reiterou que os reis franceses não se interessavam pela economia, exceto para pagar os gastos com guerras. Os reis ingleses, ao contrário, por contarem com população abundante, certa industrialização e capitalismo, fizeram despontar a Inglaterra como o primeiro país do mundo a considerar a economia como algo vital. Ele critica o materialismo histórico com a seguinte conclusão: “O que conduz o mundo são as ideias e as mentalidades27” (MAHN-LOT, 1997, p. 364). Em 1913, Lot denuncia como aberração a teoria das raças de Gobineau (1884)28 e prevê o uso pelos alemães de suas ideias em outro texto apresentado por Mahan-Lot (1977, p. 361). As ideias de Gobineau recusavam a mestiçagem, acusando a mistura de raças como um fator de destruição das civilizações. A intenção de Gobineau era explicar a ruína dos grandes impérios da história como um processo de miscigenação. Assim, ele defendeu que os romanos, os persas e outros foram destruídos pela miscigenação que corrompeu a essência moral e as virtudes desses povos29. Outra informação apontada por Mahan-Lot (1997, p. 353) que consideramos importante é que Lot frequentou cursos de Fustel de Coulanges, em 1886. Sobre Fustel de Coulanges, Lot apontou que, no curso ministrado por ele de instituições francesas, foi despertada uma atenção que não se apagou com o tempo. Lot foi, entre os mestres de Arquillière, um dos historiadores que se situou numa fronteira entre a escola metódica e a renovação da história. Ele foi um 27 Destacamos que o uso do termo mentalidade ocupou a preocupação dos historiadores contempo- râneos (BURKE, 2002; LE GOFF, 1976). As mentalidades seriam não só uma metodologia ou tendência teórica, mas um campo da história. A esse respeito, ver Barros (2010). 28 José Arthur Gobineau, chamado também de conde de Gobineau, defendeu, no século XIX, ideias nas quais escalonava as raças, sendo a branca ariana aquela que ocuparia o topo. Ele esteve no Brasil, em 1869, desempenhando o serviço de Ministro da França no Brasil (embaixador) e convivendo num país de muitos mestiços. 29 Sobre as teorias de Gobineau e como ele conviveu com Tocqueville ver Gahyva (2006, p. 553-582). 35 historiador engajado, ou seja, sua preocupação se estendeu para além do exercício da escrita da história. Nesse sentido, seria o que Sirinelli chamou de intelectual engajado. Lot questionou como as universidades organizavam os cursos e como era feita a contratação dos profissionais. Sua preocupação se manifestou, também, para com os meios de produção da história e não só com o seu resultado. Para Lot (2008), a tarefa do historiador parte de um conhecimento sobre seu objeto de estudo, quando o ciclo de eventos está finalizado ou alterado, podendo ler o passado a partir do presente. Boussard (1968, p. 232) citou uma frase que resumia essa ideia: “Ferdinand Lot escrevia que em relação aos homens do passado, somos nós como deuses, pois conhecemos o futuro”. Certeau (2006, p. 73-74) propõe a compreensão do modelo em que a historiografia de um autor está ligada às influências “das proximidades sociais ou políticas”. Os temas de história surgiriam assim, motivados por um movimento que define patrocínios e meios financeiros. Em seu tempo, Lot percebeu essas influências e as apontou. As conclusões da obra principal de Lot foram utilizadas por Arquillière. Ele citou Lot em seus manuais de história, mas se manteve alheio a certas preocupações dele. Arquillière sempre esteve a serviço do ensino superior francês, como professor ou reitor da universidade. Mas a sua situação profissional na Facultè de Théologie de Paris não era regida completamente por políticas educacionais públicas, o que o manteve fora das discussões sobre os rumos do ensino superior. O seu lugar social gozava de garantias dadas pela proteção da Igreja e da corporação na qual estava inserido. Os mestres de Arquillière aqui apresentados demonstraram que sua formação histórica e seu modo de historiografia aproximavam-se mais da escola metódica. Foi a segunda geração dos discípulos de Leopold von Ranke que lhe conferiram a competência para o ensino da história. Todavia, acrescentamos que uma influência incontestável foram os mediadores eclesiásticos, por meio dos quais ele organizou seus temas, seus estudos e sua prática. A formação nos Institutos Católicos não recusou os métodos históricos estabelecidos na época, mas percebe-se uma resistência às novidades. A presença de Lot na elaboração dos argumentos de Arquillière lhe conferiu a ponte de diálogo com uma corrente de transição, mas essa presença não é predominante. 36 1.3 O uso da palavra “político” na Idade Média Por meio da análise da formação e dos mestres de Arquillière, percebemos que sua historiografia tem raízes na escola metódica e está inserida no ambiente de uma faculdade católica influente no ensino e na sociedade francesa. Essas influências estão presentes na sua obra principal sobre a política medieval e na formulação do agostinismo político. A expressão “agostinismo político” é formada pela junção de duas palavras que contêm implicações históricas em cada uma delas. A palavra “agostinismo” se refere à procedência das ideias. A palavra “político”, que entrou na linguagem medieval no século XII e XIII, acrescenta um modo diverso na compreensão, uma alteração do agostinismo. Para entendermos o termo agostinismo, propomos esclarecê-lo nas páginas seguintes e no próximo capítulo. A expressão agostinismo político apresenta a palavra “política”, de raiz grega, que não era utilizada com constância no tempo de Santo Agostinho e nos séculos posteriores no Ocidente. No século XI e XII as traduções de Aristóteles e Platão trouxeram a palavra para o Ocidente. A palavra encontrou um campo fértil para crescer, pois o uso da sua transliteração latina (politica) logo serviu como vocábulo para os tratados sobre o governo das coisas públicas. O termo política provém do grego pólis (πόλις) que significa cidade. A pólis grega compreendia, ao mesmo tempo, área geográfica de convivência e as regras definidas pelos cidadãos. Pólis era uma cidade-estado com exército, leis e assembleias para deliberação de assuntos considerados importantes para os gregos. O termo política surgiu dentro do contexto da cidade-estado de Atenas. Os filósofos Platão e Aristóteles deixaram obras que partiam da experiência da pólis, de suas visões sobre o que seria uma política que visava ao bem do cidadão grego. No livro A República, Platão (2001) defendeu que o progresso da pólis alcançaria seu ponto máximo se o monarca fosse um filósofo. Para ele, o filósofo seria capaz de conduzir o cidadão da pólis à virtude. Encontramos em A República de Platão os mais variados assuntos. Segundo Santos (2009, p. 2): O título habitual do diálogo, isto é, sua tradução em latim republica – “república” na tradução em português –, é enganoso, pois o homem moderno espera encontrar uma obra de filosofia política e, ao invés disso, encontra uma obra com uma grande variedade de temas que inclui política, 37 educação, estética, sexo, crítica cultural, psicologia, ética, matemática, metafísica e religião. (SANTOS, 2009, p. 2). Santos (2009) defendeu que o título utilizado para o livro (República) provém da tradução latina, sendo o título original politeia. A politeia significava forma de governo. Politeia seria a constituição do cidadão que vive na pólis. No entanto, é necessário recordar que a politeia foi escrita com a intenção de reformular a prática de governo na pólis grega. Os fatos demonstraram para Platão – inclusive com a condenação de Sócrates – que a pólis ateniense não estava sendo bem conduzida. A República ou Politeia foi uma obra escrita a partir da insatisfação perante a prática da democracia grega. Exatamente as características de Sócrates, condenado por perturbar a pólis, são exaltadas na obra. O rei-filósofo é o modelo de governante ideal. Essa obra retornou aos debates sobre as formas de governo no século XIII. Na obra de Aristóteles (1988) chamada Política, retomada no século XIII, as controvérsias quanto à terminologia se impuseram ao próprio tradutor latino, o dominicano Guilherme de Moerbeke, quando em 1260 e 1265 – primeira e segunda tradução – realizou seus trabalhos. Ele preferiu a transliteração de termos gregos relacionados à pólis, às formas de governo (oligarquia, democracia, tirania, etc.) e não uma tradução. Para os primeiros leitores do texto latino, as novas palavras causaram estranheza e passaram a fazer parte dos novos comentários sobre as formas de governo. Martins (2011) expõe que as traduções feitas por Moerbeke não contemplavam termos já consagrados desde a antiguidade romana e que foram utilizados na Idade Média. Ele preferiu a transliteração para conservar o sentido original dos termos. A escolha da transliteração ao uso de termos já conhecidos entre os medievais, sobretudo para a palavra grega política, pressupõe, segundo Martins (2011, p. 61) citando a Rubinstein, um novo modo de conceber a dimensão pública do homem. Essa motivação dada por Rubinstein só pode ser inferida pela conhecida transformação ocorrida no século XIII na Europa medieval e não internamente ao texto traduzido ou nos comentários dos contemporâneos. O termo política só será amplamente utilizado a partir das traduções das obras de Aristóteles, realizadas a partir do século XII, em especial a tradução feita por Moerbeke. Assim, o termo “político”, que foi utilizado por Arquillère, corresponde à compreensão contemporânea do termo. Se no século XIII os contemporâneos percebiam que a forma como os gregos administravam sua pólis diferenciava-se da sociedade cristã – societas christiana –, a utilização do termo política para todo o 38 período da Idade Média deve ser feita com certas ressalvas se com ele se quiser evocar uma história do termo. Cabe ressaltar que Santo Agostinho não utilizou a palavra com esse sentido e somente três vezes na obra A Cidade de Deus. Nos séculos XI e XII a palavra política não era utilizada e nem a concepção grega sobre o governo dos povos. O termo política, na expressão “agostinismo político”, deve ser compreendido conforme o uso que foi atribuído à palavra na época moderna. A separação entre estado, religião, indivíduo e sociedade foi reivindicada a partir da Revolução Francesa. Todavia, o mundo ocidental ainda necessitou que séculos se passassem para que a dissociação entre estado, religião, indivíduo e sociedade se tornasse uma ideia comum e tivesse aceitação nas constituições dos países. O sentido de “político”, na expressão de Arquillière, deve remeter então ao processo de formação das concepções sobre o governo do império e dos reinos. A escolha da palavra “política” para explicar o pensamento de Santo Agostinho, serve para deixar fora das análises as ideias sobre a origem divina do mundo, dos sacramentos, dos conceitos dogmáticos e outras categorias do cristianismo. A escolha do termo “político”, entre os diversos temas que Santo Agostinho escreveu, serviu também para delimitar o objeto pretendido na pesquisa de Arquillière. O limite para essa escolha repousa no fato de que o fundamento da Cidade de Deus é absolutamente de ordem sobrenatural. A missão do governante que deve garantir a justiça e a paz insere-se na teleologia do mundo. Garantir a salvação – um conceito sobrenatural – seria não só exclusividade do sacerdote que oferece os sinais visíveis para ela, mas também contaria com a colaboração efetiva dos monarcas. Assim mesmo, o que se poderia chamar de estritamente político está sempre em relação com o divino e sagrado. Com essa introdução aos termos, iniciamos a apreciação da obra de Arquillière. 1.4 O “agostinismo político”: origem e aplicações A ideia do agostinismo político surgiu numa obra publicada pela primeira vez em 1934. Essa obra tinha a intenção de ser a primeira parte de um estudo preliminar ao seu livro sobre o papa Gregório VII (ARQUILLIÈRE, 1934). Entretanto, Arquillière (1956a, p. 20), percebeu que a publicação de forma separada ampliava o alcance de seus argumentos, pois podia demonstrar como se formaram as teorias político- 39 religiosas de toda a Idade Média. Pela importância da obra nessa pesquisa, apresentaremos todos os seus principais argumentos. As edições da obra sobre o agostinismo político tiveram quatro edições em francês: 1934, 1956a, 1972, 2006. A tradução em língua espanhola foi publicada em 2005 por uma editora universitária da cidade de Granada, na Espanha. Essa edição espanhola apareceu depois de um longo período de sua publicação original. A edição que utilizamos para essa apresentação é a de 1956, pois a consideramos mais apropriada por conter uma introdução ampliada incluindo as conclusões de estudos que ele realizou depois da publicação da primeira edição. Entre a edição de 1934 e a 1956, o autor acolheu críticas à sua obra e escreveu uma nova introdução. Nessa introdução, ele aproximou o papa Gregório VII de Leão XIII, aprofundou discussões levantadas sobre a importância de Santo Agostinho e outros temas que serão aqui desenvolvidos. A segunda edição da obra foi publicada um ano antes de seu falecimento. Arquillière (1956a, p. 51) partiu do princípio de que o entendimento sobre a função do estado na Idade Média provém de uma transformação da ideia de estado dos romanos. À noção romana de estado teria se unido certas considerações retiradas da obra A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, com as quais os papas fundamentaram suas intervenções nos diversos reinos. Para ele, aconteceu uma vulgarização do pensamento do bispo de Hipona que diretamente ou indiretamente teria formado a sustentação filosófica e teológica para a ação de personagens influentes no medievo. Para Arquillière (1956a, p. 52), Isidoro de Sevilha e Gregório Magno teriam se apropriado das noções fundamentais de Santo Agostinho e alterando-a, deram os primeiros passos na construção do agostinismo político. A posteridade teria simplificado as noções agostinianas sobre o estado e a religião. A sacralização das monarquias cristãs com a consequente ação dos monarcas no governo da Igreja foi motivada também pelos próprios papas e escritores cristãos nos séculos IV ao VI da Idade Média. Maccarrone (1959, p. 582- 594) elencou quatro escritores cristãos dos séculos IV ao VI que chamaram ao imperador de vigário de Deus (vicarius Dei): Pseudo-Ambrósio (Ambrosiastro), Aponio, papa Anastácio II e Epifanio. Os escritores cristãos procuraram demonstrar que o imperador cristão, em sua sacralização, era diferente do período pagão. Prevalecia ainda o uso da expressão “imagem de Deus” (imago Dei) significando a realidade sagrada presente no imperador. Maccarrone aborda o uso das expressões 40 vigário de Deus, imagem de Deus, vigário de Pedro (vicarius Petri) e vigário de Cristo (vicarius Christi) como títulos atribuídos a imperadores, reis e papas como conotações teológicas e simbolizando poderes. Arquillière concentrou-se nas interpretações de Santo Agostinho não discutindo a sacralização das monarquias instituídas com o apoio dos papas e teólogos. A simplificação de Santo Agostinho ocorreu, na interpretação de Arquillière (1956a, p. 52), na compreensão entre religião e estado presente em suas obras. As questões de ordem propriamente dogmática das obras de Santo Agostinho, ou seja, que definem as relações do fiel com as condutas e crenças que o conduzem à salvação, não teriam tido uma simplificação considerável. Arquillière partiu de uma afirmação comum, especialmente na filosofia, a qual defendeu que até o século XIII seria o agostinismo que fundamentava as visões de mundo medieval. Santo Agostinho estava profundamente associado às ideias platônicas de mundo, sociedade e moral. Essa posição defendeu uma dualidade entre Platão e Aristóteles, e no século XIII, entre Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Esses últimos seriam associados aos dois filósofos gregos. A associação entre esses pensadores, ainda que possa colaborar para uma distinção de modos e formas, direciona para uma abordagem que parte da oposição entre eles. Teríamos assim, a partir do século XIII, o tomismo em oposição ao agostinismo. Não houve, durante a Idade Média, segundo Arquillière (1956a, p. 53), uma distinção entre razão e fé, as quais chamou também de filosofia e teologia. Todavia, houve uma predominância na fundamentação teológica, partindo da tradição judaico-cristã para analisar as questões presentes na Idade Média. Com Aristóteles iniciou-se uma gradual distinção entre fé e razão, sendo impulsionada pelas universidades medievais. Para Arquillière (1956a, p. 57), a utilização de Aristóteles no século XIII, por intermédio de Santo Tomás de Aquino, diminuiu a influência agostiniana. Porém, ele não faz menção às mudanças ocorridas no século XII, que preparam uma nova etapa teórica na política medieval. Luscombe e Evans (1993, p. 291), seguindo a Haskins, defenderam que no século XII a influência da antiga Roma retornou com seus governantes, juristas, filósofos e escritores. O retorno dos antigos afetou várias áreas da sociedade medieval, até mesmo as teorias polí