unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP JAQUELINE MELO DE ALMEIDA SILVA OOOSSS PPPOOOEEEMMMAAASSS DDDEEE MMMAAANNNOOOEEELLL DDDEEE BBBAAARRRRRROOOSSS NNNAAA PPPEEERRRSSSPPPEEECCCTTTIIIVVVAAA DDDAAA LLLIIINNNGGGUUUÍÍÍSSSTTTIIICCCAAA TTTEEEXXXTTTUUUAAALLL ARARAQUARA – S.P. 2017 JAQUELINE MELO DE ALMEIDA SILVA OOOSSS PPPOOOEEEMMMAAASSS DDDEEE MMMAAANNNOOOEEELLL DDDEEE BBBAAARRRRRROOOSSS NNNAAA PPPEEERRRSSSPPPEEECCCTTTIIIVVVAAA DDDAAA LLLIIINNNGGGUUUÍÍÍSSSTTTIIICCCAAA TTTEEEXXXTTTUUUAAALLL Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Gladis Massini-Cagliari Coorientadora: Profa. Dra. Juliana Simões Fonte ARARAQUARA – S.P. 2017 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Silva, Jaqueline M. A. Os poemas de Manoel de Barros na perspectiva da Linguística Textual / Jaqueline M. A. Silva — 2017 29 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Gladis Massini-Cagliari Coorientador: Juliana Simões Fonte 1. Barros, Manoel de. 2. Linguística Textual. 3. Coesão . 4. Coerência. I. Título. JAQUELINE MELO DE ALMEIDA SILVA OOOSSS PPPOOOEEEMMMAAASSS DDDEEE MMMAAANNNOOOEEELLL DDDEEE BBBAAARRRRRROOOSSS NNNAAA PPPEEERRRSSSPPPEEECCCTTTIIIVVVAAA DDDAAA LLLIIINNNGGGUUUÍÍÍSSSTTTIIICCCAAA TTTEEEXXXTTTUUUAAALLL Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Gladis Massini-Cagliari Coorientadora: Profa. Dra. Juliana Simões Fonte Data da defesa/entrega: 08/12/2017 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Dra. Gladis Massini-Cagliari Universidade Estadual Paulista – Campus Araraquara Membro Titular: Profa. Dra. Gisela Sequini Fávaro Universidade Estadual Paulista – Campus Araraquara Membro Titular: Profa. Dra. Ana Carolina Freitas Gentil Almeida Cangemi Universidade Estadual Paulista – Campus Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Àqueles que, nesses últimos anos, sempre fizeram pequenas coisas para me ajudar nos momentos de maior dificuldade. Não me esquecerei de nenhuma delas. AGRADECIMENTOS A Deus, que me proporcionou a realização do meu grande sonho. Aos meus pais, por todo o apoio e esforço para que eu pudesse chegar até aqui. À minha orientadora e à minha coorientadora, pela imensa paciência e ajuda. Ao meu noivo, que sempre teve as palavras certas nos momentos de maior desespero. A todos que, de alguma forma, me ajudaram nas pequenas coisas que fizeram toda a diferença. Aqui incluo as mães de minhas amigas, pelas caronas; minha colega de quarto, pelas risadas, conversas e apoio nos momentos necessários; todos os amigos e colegas da faculdade pela parceria nos trabalhos e estudos; aos motoristas dos ônibus que mudaram o ponto de parada para que eu descesse mais perto de casa e meus familiares e amigos que sempre acreditaram em mim mais do que eu mesma. RESUMO O presente Trabalho de Conclusão de Curso traz uma análise de quatro poemas de Manoel de Barros sob a perspectiva da Linguística Textual, tendo como principal foco a formulação da coesão e da coerência dentro da obra do poeta. O estudo constatou algumas recorrências na obra do poeta, de forma que muitas características, tanto da coesão quanto da coerência, se repetem na maioria dos poemas. Particularmente em relação à coesão, este trabalho identificou o emprego constante de repetições, tanto na referenciação, quanto na sequenciação das ideias expressas nos poemas. Sobre a coerência, o presente estudo verificou que, nos poemas de Manoel de Barros, é feita, em geral, por meio do frequente questionamento do conhecimento de mundo do leitor. Ao observar os recursos adotados pelo poeta para construir os sentidos do texto, este trabalho evidencia a riqueza textual das construções poéticas de Manoel de Barros e busca contribuir para uma interpretação mais aprofundada da obra do poeta. Palavras – chave: Manoel de Barros. Linguística Textual. Coesão. Coerência. ABSTRACT The objective within this work is to analise four poems from the author Manoel de Barros from the perspective of Textual Linguistics. The principal goal is to see the elaboration of cohesion and coherence factors in the poet’s work. After the analisys, the study verify that many aspects, both in cohesion and in coherence, replay in most of the author’s poems. Specially in the case of cohesion, the presente work observed the constance of repetitions of the ideas expressed at the poems. In the case of coherence, this study verify that it is done, at Manoel de Barros’s work, mostly throughout the continuous questioning about the reader’s knowledge of the word. Within the results, after observing the features adopted by the poet in order to develop the poems meanings, this study shows the importance of this kind of look upon Manoel de Barros’s work. This type of view implicated a contribution to the lyrical text and to the interpretation of the entire author’s work. Keywords: Manoel de Barros. Textual Linguistics. Cohesion. Coherence. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 9 2 LINGUÍSTICA TEXTUAL: UMA TEORIA PARA ALÉM DA FRASE 10 3 OS POEMAS DE MANOEL DE BARROS À LUZ DA LINGUÍSTICA TEXTUAL 13 3.1. Tratado geral das grandezas do ínfimo: Poema 14 3.2. Tratado geral das grandezas do ínfimo: O Vidente 18 3.3. Poemas rupestres: 1ª Parte 21 3.4. Ensaios fotográficos: 2ª Parte 25 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 27 REFERÊNCIAS 29 9 1. INTRODUÇÃO O objetivo do presente Trabalho de Conclusão de Curso é analisar, à luz da Linguística Textual, quatro poemas do poeta brasileiro Manoel de Barros, sendo eles: “O poeta” (2000), “Poema” (2001), “O Vidente” (2001) e a primeira parte de Poemas Rupestres (2014). Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em 1916, na cidade de Cuiabá, Mato Grosso. Viveu até os oito anos no Pantanal, de onde sempre obteve inspiração para seus escritos. Foi muito cedo para um colégio interno, quando teve contato com alguns autores clássicos, tendo Padre José de Anchieta exercido papel de grande influência em sua vida de escritor (FENSKE, 2016). Manoel de Barros é conhecido como o autor das pequenezas, aquele que transforma o que “não serve para nada”, que foi descartado pela sociedade e cuja presença ninguém nota (ex.: o cisco, a pedra, o parafuso velho) em matéria para a sua poesia, como bem observa Stessuk (2007, p. 52): É precisamente do essencial que Manoel de Barros tratará ao longo de toda a sua produção, e essa essência, o poeta a colherá em meio ao lixo, ao imprestável, em meio àquilo que, para o medius social, aparenta não ter mais nenhuma essência. (grifos do autor) A metapoesia, isto é, a reflexão sobre o fazer poético, dentro da poesia, e a desautomatização da linguagem, por meio de desconstruções linguísticas e sociais, também são recorrentes na obra de Manoel de Barros, conforme veremos ao longo deste trabalho. É importante observar que, embora haja vários estudos dedicados à obra de Manoel de Barros, não há muitos trabalhos que se detenham neste aspecto tão importante de sua arte: a construção da coesão e da coerência. Diante desse quadro, nosso objetivo, neste trabalho, é analisar a coesão e a coerência nos poemas anteriormente referidos, observando, sobretudo, os recursos adotados pelo poeta para construir os sentidos do texto, por meio da subversão dos significados e da transcendência dos limites da língua. Tendo em vista a riqueza de sua obra, é perfeitamente cabível que este estudo se detenha a esses aspectos. 10 2. LINGUÍSTICA TEXTUAL: UMA TEORIA PARA ALÉM DA FRASE A Linguística Textual surgiu nos anos 1960, com a proposta de desenvolver um estudo linguístico que ultrapassasse os limites da frase, já que se constatou, na ocasião, que alguns aspectos da língua, tais como a referenciação e o emprego dos artigos (definidos e indefinidos), por exemplo, não podiam ser observados a partir da análise de frases isoladas. Em seus primórdios, portanto, os estudos textuais preocupavam-se, essencialmente, com os elementos transfrásticos, entendendo o texto como um conjunto de frases relacionadas, e não como um todo significativo. Assim, a preocupação inicial se detinha mais na coesão do que na coerência do texto. Ainda na primeira fase da Linguística Textual, alguns estudiosos, influenciados pelas ideias gerativistas de Noam Chomsky, começaram a propor uma Gramática do Texto, com o intuito de identificar princípios que caracterizassem a (boa) formação de textos (cf. KOCH, 2015). Diversos estudiosos tentaram, assim, definir as regras que determinada língua possuiria para a escrita de um texto. É importante perceber que, nessa fase, os estudos já incorporaram a preocupação com a coerência (mas ainda no nível sintático-semântico). A proposta de uma Gramática do Texto não foi, contudo, bem-sucedida, porque os estudiosos chegaram à conclusão de que não é possível criar uma gramática para escrever bons textos. Como afirma Bentes (2011, p. 251), “o projeto revelou-se demais ambicioso e pouco produtivo”, pois não é possível estabelecer regras específicas para escrever todos os textos possíveis de uma língua. Ainda segundo a autora (2011), o que ficou claro, nesse momento da Linguística Textual, é que somente a estrutura gramatical não forma um texto. Surge, então, a necessidade de ultrapassar o nível sintático-semântico e de considerar também o nível pragmático: “isto é, o âmbito da investigação se estende do texto ao contexto” (BENTES, 2011, p. 251). Nessa fase da chamada virada pragmática, os estudos do texto ganham, de acordo com Koch (2015, p. 32), uma nova dimensão: Com todos esses desenvolvimentos, o conceito de coerência passa a incorporar, ao lado dos fatores sintáticos-semânticos, uma série de fatores de ordem pragmática e contextual. 11 Já nos anos 1980, acontece, segundo Koch (2015), o que se chamou de virada cognitiva, na qual o texto passou a ser entendido como resultado de processos mentais. Ainda segundo a autora, o que nos leva a isso é uma “tomada de consciência de que todo fazer (ação) é necessariamente acompanhado de processos de ordem cognitiva” (KOCH, p. 34). Nesse momento, a coerência é associada à cognição dos locutores e interlocutores, conforme afirma Koch (2015, p. 38): Assim, o processamento estratégico depende não só de características textuais, como também de características dos usuários da língua, tais como seus objetivos, convicções e conhecimento de mundo, quer se trate de conhecimento do tipo episódico, quer do conhecimento mais abstrato, representado na memória semântica ou enciclopédica. Isto é, as estratégias cognitivas são estratégias de uso do conhecimento. Mais recentemente, segundo Koch (2015), a Linguística Textual chega a uma nova perspectiva, conhecida como sociocognitiva-interacional, que considera, como o próprio nome indica, não apenas os aspectos pragmáticos e cognitivos da produção dos sentidos do texto, mas também os princípios interacionais que caracterizam a produção textual. Em outras palavras, essa perspectiva não separa o contexto, a interação e o conhecimento, mas admite que os textos são formados a partir da conjunção desses três. Portanto, na concepção interacional (dialógica) da língua, na qual os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, o texto passa a ser considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e por ele são construídos (KOCH, 2015, p. 44, grifos da autora). Diante do exposto, pode-se notar que a coesão e a coerência textuais permearam todo o percurso histórico da Linguística Textual e, até hoje, são os principais fatores que regem os estudos dedicados ao texto. Segundo Koch (2010, p. 45), a coesão textual diz respeito ao modo como os elementos linguísticos presentes na superfície textual encontram-se interligados, por meio de recursos também linguísticos, formando sequências veiculadoras de sentido. 12 A coesão refere-se, pois, ao modo como os elementos se integram no texto. O papel da coesão é criar, a partir dos elementos do texto e de suas relações, uma cadeia harmônica entre suas partes, de forma a traçar o sentido que ele transmite. Conforme afirma Antunes (2005, p. 48): a função da coesão é exatamente a de promover a continuidade do texto, a sequência interligada de suas partes, para que não se perca o fio de unidade que garante sua interpretabilidade ( grifos da autora). Em outras palavras, a coesão forma-se a partir de uma série de elementos estruturais da língua, que ligam as frases e dão um sentido de continuação e conclusão do tema falado. Como exemplo, temos os pronomes (elementos remissivos), utilizados em larga escala para manter o texto coeso. Já a coerência, de acordo com Koch (2010, p. 52), “diz respeito ao modo como os elementos subjacentes à superfície textual vêm a constituir, na mente dos interlocutores, uma configuração veiculadora dos sentidos”. A coerência, portanto, é mais abstrata do que a coesão: enquanto esta pode ser observada na superfície do texto, pelos seus elementos constituintes (como os pronomes, por exemplo, já citados acima), aquela, para ser reconstruída, depende de fatores não apenas linguísticos, mas também cognitivos, socioculturais e interacionais, como afirma Bentes (2011, p. 261): A coerência é um princípio de interpretabilidade, ou seja, a coerência de um texto não depende somente de uma correta decodificação dos sentidos presentes no texto, decodificação esta feita por meio da detalhada observação dos elementos linguísticos. […]. A coerência de uma determinada produção textual depende de uma série de fatores, tais como recursos linguísticos, conhecimento de mundo, papel social do leitor ou destinatário etc. Koch e Travaglia (2011) apresentam, ainda, como fatores da coerência, além dos recursos linguísticos, do conhecimento de mundo do leitor e do conhecimento compartilhado entre leitor e autor, acima citados, a inferência (atrelada aos conhecimentos de mundo e compartilhado), os fatores de contextualização (que “ancoram” o texto), a situacionalidade (referente à situação comunicativa), a informatividade (associada ao grau de previsibilidade da informação mobilizada no texto), a focalização (relacionada à delimitação do assunto tratado no texto), a intertextualidade (atrelada ao conhecimento prévio de outros textos já produzidos no mundo), a intencionalidade (referente aos recursos mobilizados no texto, para 13 o alcance de determinadas intenções do autor), a aceitabilidade (correspondente à contraparte da intencionalidade, isto é, a aceitação do leitor da intencionalidade do autor) e a consistência e relevância dos assuntos abordados. É importante referir que, embora a coesão e a coerência, por vezes, sejam estudadas separadamente (para fins didáticos), essa separação, na construção dos sentidos do texto, não costuma ocorrer, já que esses fatores, em geral, são complementares, como bem observou Koch (2015, p. 54): A distinção entre coesão e coerência não pode ser estabelecida de maneira radical, ou seja, como se se tratasse de dois fenômenos independentes um do outro, pois [...] nem sempre a coesão se estabelece de forma unívoca entre elementos presentes na superfície textual. Desta maneira, sempre que se faz necessário um cálculo de sentido, com recurso a elementos contextuais - em particular os de ordem sociocognitiva e interacional -, já nos encontramos no domínio da coerência. Além do mais, os dois grandes movimentos responsáveis pela estruturação do texto - o de retrospecção e o de prospecção - realizados em grande parte por meio de recursos coesivos, são determinantes para a produção dos sentidos e, portanto, para a construção da coerência. Neste trabalho, investigaremos de que modo a coesão, nos poemas de Manoel de Barros, contribui para a coerência do texto, e vice-versa, buscando, assim, desenvolver um estudo em que esses fatores sejam vistos como complementares na construção da textualidade. 3. OS POEMAS DE MANOEL DE BARROS À LUZ DA LINGUÍSTICA TEXTUAL Nesta seção da presente Monografia, foram analisados, sob a perspectiva da Linguística textual, quatro poemas de Manoel de Barros, quais sejam: “O poeta” (2000), “Poema” (2001), “O Vidente” (2001) e a primeira parte de Poemas Rupestres (2014). 14 3.1 Ensaios fotográficos 2ª parte O POETA 1. Vão dizer que1 não existo propriamente dito. 2. Que sou um ente de sílabas. 3. Vão dizer que eu tenho vocação para ninguém. 4. Meu pai costumava me alertar: 5. Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som das palavras 6. Ou é ninguém ou zoró. 7. Eu teria treze anos. 8. De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que 9. se perdia nos longes da Bolívia 10. E veio uma iluminura em mim. 11. Foi a primeira iluminura. 12. Daí botei meu primeiro verso: 13. Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem. 14. Mostrei a obra pra minha mãe. 15. A mãe falou: 16. Agora você vai ter que assumir as suas 17. irresponsabilidades. 18. Eu assumi: entrei no mundo das imagens. Nesse poema, o eu-lírico narra a sua formação como poeta. Trata-se, pois, de um metapoema, em que o eu-lírico discorre sobre sua experiência no trato com as palavras. O poema começa, como se pode observar, explorando o olhar dos “outros” a respeito do fazer poético, ou seja, destacando aquilo que as pessoas, em geral, “vão” dizer sobre o eu- lírico – e tudo o que vão dizer tem a ver com o ser poeta, definido como “um ente de sílabas”. E o que vão dizer sobre o poeta é que ele não é ninguém! Esse ponto de vista de que o poeta não é ninguém e de que poesia não serve para nada costuma aparecer com frequência na obra de Manoel de Barros, conforme veremos ao longo deste trabalho. O poeta, contudo, sempre que traz esse ponto de vista, não o faz para negá-lo, mas, sim, para transcendê-lo, uma vez que, para Manoel de Barros, de fato, a poesia está a serviço do nada, das coisas sem importância e sem valor para a maioria das pessoas – mas não para os poetas. Para os poetas, 1 As marcações coloridas nos poemas analisados neste estudo foram utilizadas para apontar os principais recursos coesivos empregados na superfície textual. Todos esses recursos serão comentados, no decorrer deste trabalho. 15 o nada e as coisas sem importância correspondem às preciosidades da vida. Nesse sentido, dizer que a poesia “não serve para nada” não é uma ofensa, aos olhos de Manoel de Barros, mas é, antes, conforme veremos mais adiante neste trabalho, um elogio. Após esse início, o eu-lírico volta o foco para a sua família e o seu fazer poético, retomando o seu despertar para a poesia. Esse eu-lírico, então, expõe a visão do pai, acerca dos poetas, e, mais adiante, o posicionamento da mãe. Com relação ao pai, o poema nos mostra uma personagem temerosa, que produz um alerta ao poeta em formação. O que o pai expõe não é um aviso, nem um conselho, é algo ainda mais sério, como dizer: “cuidado, porque com esse seu gosto pelas palavras, você será ninguém ou zoró”. Segundo o dicionário Aulete, a palavra ninguém apresenta dois significados: o primeiro é “Nenhuma pessoa” e o segundo é “Indivíduo de pouco ou nenhum valor, merecimento, importância (v. joão-ninguém)”. Podemos ver, nessa construção de Manoel de Barros, que os dois sentidos estão presentes: de forma mais direta, esse alerta do pai significa que ele tem essa visão de que poeta não serve para nada, mas, numa interpretação mais lírica, podemos verificar que a ideia de “não ser alguém” está presente também. Já o adjetivo zoró, segundo o dicionário Aurélio, tem o mesmo significado da palavra (brasileira) zuruó, qual seja, “Amalucado, adoidado, zureta”, cujo valor negativo o poema pretende reverter. Com apenas treze anos, o eu-lírico teve a sua primeira inspiração, definida, no poema, como uma iluminura. O emprego dessa palavra (iluminura) com o significado de iluminação, remete à criatividade, que, por sua vez, possui um forte vínculo com a ideia de inspiração. Esse uso da palavra iluminura tem forte relação com a linguagem tanto das crianças quanto das pessoas menos escolarizadas, sobretudo aquelas de origem mais humilde, cuja fala está, normalmente, livre de normas gramaticais responsáveis pelo “engessamento” (ou uma tentativa de engessamento) da língua. Na criação de seu primeiro verso (“Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem”), o eu-lírico, ainda criança, constrói uma imagem poética que transfere para uma paisagem natural (a Cordilheira dos Andes) um traço humano, já que “ter bunda” não é próprio da paisagem, mas sim do ser humano. Ao conhecer o primeiro verso do filho, a mãe percebe que o próximo passo é ele assumir-se poeta, o que ele faz, ao “entrar no mundo das imagens”. Essa reação da mãe formaliza a entrada do menino ao mundo da poesia. Além disso, a mãe observa que, a partir de então, o garoto poeta teria que assumir as próprias “irresponsabilidades”. 16 Nesse ponto do poema, Manoel de Barros consegue ultrapassar os limites dos significados e deixar sua poesia ainda mais rica. É possível assumir as irresponsabilidades, sendo elas exatamente o oposto das responsabilidades? Irresponsabilidade é a falta de responsabilidade, ou seja, como assumir aquilo que você não tem? É possível assumir que é irresponsável, mas assumir as irresponsabilidades que se têm já é outra coisa – que nos parece, aliás, impossível. E, no fim, ele conclui dizendo que seguiu o conselho da mãe e assumiu-as, ou seja, se tornou de fato poeta, entrando no mundo das imagens, no mundo da poesia. Diante do exposto, é possível constatar que a coerência do poema é toda construída a partir da contestação (e até da negação) do conhecimento de mundo (histórica e socialmente adquirido) do leitor, que deve perceber a intencionalidade do autor e reagir com aceitabilidade (dois fatores de coerência associados, principalmente, à interação entre autor e leitor), para que os sentidos sejam construídos e os objetivos alcançados. Assim, quando o eu-lírico “humaniza” uma paisagem, aceitamos, enquanto leitores do poema, que é perfeitamente possível um morro ter bunda, no mundo das imagens poéticas, já que esse mundo não corresponde ao mundo real e lógico que conhecemos, mas ao mundo da imaginação, onde absolutamente tudo é permitido. Do mesmo modo, também somos surpreendidos pelo comentário da mãe, que causa estranheza justamente por ser o oposto da advertência que previamente conhecíamos (“assumir as responsabilidades”). Ao aceitarmos, contudo, a intencionalidade do poema, que nos remete ao universo da poesia, distanciando-nos das verdades preestabelecidas, compreendemos que esse jogo de palavras convida-nos a olhar para a língua de uma forma menos automatizada e mais libertadora. Além disso, o poema analisado deixa entrever o posicionamento de Manoel de Barros, também presente nos demais poemas que serão analisados neste trabalho, com relação ao valor do poeta na sociedade. O nosso conhecimento de mundo leva-nos a pensar, em uma primeira leitura, que o alerta do pai ao menino aspirante a poeta representa uma visão negativa acerca da função. Contudo, o fato de o menino não ter recuado diante do alerta do pai - ao contrário, ele seguiu adiante e criou o seu primeiro verso - já sugere que “ser ninguém” não era, afinal, um problema. Esse posicionamento do autor é reafirmado em muitos outros de seus poemas (alguns deles serão estudados aqui, inclusive), de modo que o conhecimento da obra completa de Manoel de Barros também contribui para uma interpretação mais abrangente de seus poemas, que, em geral, dialogam entre si. 17 Em suma, o leitor conhecedor da obra de Manoel de Barros aceitará imediatamente a coerência de sua poesia, pois já conhece seus recursos. Trata-se de aceitar a intencionalidade do autor de criar um universo em que a descoberta da escrita poética leva a um alguém que é “ninguém” a “assumir as suas irresponsabilidades”, adentrando, assim, o mundo das imagens, das metáforas, da poesia. Esse mundo que extrapola nossa realidade e é muito mais rico. É a partir desse mundo que os poetas e as crianças criam o excepcional. Com relação aos recursos de coesão adotados no poema, destacam-se o uso de repetições, de justaposições e de encadeamentos próprios da narrativa e do discurso infantil. Primeiramente, sobre a sequenciação das ideias, isto é, o avanço, a progressão do assunto, nota-se, no início do poema, a repetição da estrutura “Vão dizer que”, no primeiro e no terceiro versos, sendo que o segundo verso também está ligado a essa estrutura, já que o “que”, no início desse verso, completa o sentido do “Vão dizer”, omitido no segundo verso, mas recuperável a partir da leitura do verso que o precede e do verso que o segue. A apresentação de personagens e de suas respectivas falas ou pensamentos, sempre introduzidas por dois-pontos (o que garante a omissão de um conectivo, que acaba ficando implícito no texto), também é uma estrutura que se repete no poema (a fala do pai, o verso do menino, a fala da mãe, a constatação final) e que contribui para a progressão da história narrada no poema. Além do discurso direto, o poema traz outro recurso coesivo bastante comum nas narrativas, que é o uso de marcação temporal (“De tarde”) e de marcadores discursivos que indicam o andamento da história (“Daí” e “E”). É interessante observar, com relação aos marcadores discursivos, que, no exato momento em que o poema dá voz à criança, surgem os marcadores referidos, próprios do discurso infantil, e outros traços comuns à fala das crianças, como o uso da palavra “iluminura” (em lugar de “iluminação”), já mencionado neste trabalho, e sua repetição (E veio uma iluminura em mim / Foi a primeira iluminura). Ademais, a própria referência à figura da mãe, no verso 17, parece representar a fala da criança (e não a de um eu-lírico já adulto, lembrando sua infância). Outro recurso de coesão que pode ser observado no poema é o da referenciação, isto é, a retomada do que já foi dito, já que todo texto, para avançar, também recisa retomar (a partir do emprego de remissivos). São exemplos de referenciação, no poema, o uso de “Aquele morro” para retomar “Cordilheira dos Andes”, bem como o uso de “a obra” para retomar “meu primeiro verso”. Além disso, as repetições de “iluminura” e de “mãe” também consistem em recursos de retomada - recursos próprios do discurso infantil, conforme observado anteriormente. 18 Para finalizar, é importante observar que o poeta, ao lançar mão de recursos coesivos próprios da linguagem das crianças, também contribui para a construção da coerência do texto, uma vez que remete o leitor ao universo infantil, ambientando-o ao mundo da imaginação e da criação poética. Essa estratégia, contudo, não se atém somente a esse poema. Ao contrário, trata-se de uma estratégia comum à obra de Manoel de Barros, conforme já vimos nas análises anteriores. 3.2 Tratado geral das grandezas do ínfimo 1ª parte POEMA 1. A poesia está guardada nas palavras – é tudo que 2. eu sei. 3. Meu fado é o de não saber quase tudo. 4. Sobre o nada eu tenho profundidades. 5. Não tenho conexões com a realidade. 6. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. 7. Para mim poderoso é aquele que descobre as 8. insignificâncias (do mundo e as nossas). 9. Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. 10. Fiquei emocionado e chorei. 11. Sou fraco para elogios. É necessário, antes de falar do poema em si, comentar brevemente o título do livro em que ele se insere: “Tratado geral das grandezas do ínfimo”. Ora, sabemos que “ínfimo” é o que existe de menor, aquilo que não tem nenhuma importância. O poeta, contudo, resolveu fazer um tratado para falar das grandezas, ou seja, do que há de mais sublime, nesse ínfimo, subvertendo, assim, uma verdade histórica e socialmente construída. Afinal, escrever poesia é enxergar além do tangível, ver características grandiosas naquilo que parece pequeno – ou ínfimo, como prefere o poeta. Em outras palavras, poesia é enxergar e elevar aquilo que geralmente passa despercebido pelos indivíduos. No poema acima transcrito, também verificamos essa subversão própria da poesia de Manoel de Barros, uma vez que o eu-lírico declara sua identificação com aquilo que, em geral, é desprezado pelas pessoas (ex.: as insignificâncias, a poesia, o nada), e não com o que normalmente é valorizado pelos indivíduos (ex.: o tudo, o ouro, a realidade). 19 Nesse contexto, ao assumir a sua proficiência em poesia (feita de palavras), a sua falta de conexão com a realidade e a sua profundidade sobre o nada (que é matéria de poesia, segundo declara Manoel de Barros, em muitas de suas obras), o eu-lírico também se assume como poeta, que também é figura comumente pouco valorizada na sociedade, conforme observado anteriormente. Afinal, sabemos que a nossa sociedade dá valor às coisas mais objetivas, que apresentam algum fim palpável. Assim, o fazer poético, ocupar-se com a palavra para obter fruição – trabalho do poeta – não tem valor, pois não parece ter um fim objetivo. Pode-se dizer, portanto, que os valores (destoantes da sociedade em geral) de Manoel de Barros estão expressamente declarados nesse poema, por meio da voz do eu-lírico (em primeira pessoa). Feitas essas declarações, o eu-lírico relata que, ao revelar às pessoas as suas preferências, foi “elogiado” de imbecil e ficou emocionado, pois é fraco para elogios. Esse momento pode ser considerado o ápice do poema, pois é aí que Manoel de Barros eleva ao extremo a sua subversão dos valores historicamente construídos. Sabemos que os nossos valores vão sendo formados e internalizados, ao longo de nossas vivências, e, com o transcorrer do tempo, passamos a encará-los como naturais, como verdades absolutas compartilhadas por todos à nossa volta. Da mesma forma, também a carga semântica (e argumentativa) das palavras é condicionada por fatores históricos e sociais. Assim, ao falar em elogio em oposição a xingamento, sabemos o que esperar de cada adjetivo. Ser chamado de imbecil, histórica e socialmente falando, no nosso contexto tangível, será visto como um xingamento, e não como um elogio. Contudo, as declarações do eu-lírico, nos primeiros versos do poema, permitem-nos inferir que, para ele (eu-lírico), cujos valores são tão diferentes dos valores da sociedade, em geral, ser “imbecil” é melhor do que ser “esperto”. Nesse contexto, “imbecil” pode ser perfeitamente entendido como um elogio, e não como um xingamento. Diante do exposto, é possível afirmar que a coerência desse poema é construída a partir da contestação (e desautomatização) do conhecimento de mundo do leitor e de sua consequente aceitabilidade, frente à intencionalidade do poeta. Se uma pessoa disser à outra que ela é imbecil, esse tratamento não causará um choro de emoção, mas, no contexto do poema, a interpretação que o eu-lírico faz do termo imbecil como elogio, oposto àquilo que esse adjetivo representa em termos mais categóricos (um xingamento), faz todo o sentido, porque entendemos, enquanto leitores, a intencionalidade do 20 poeta, de subverter os valores socialmente construídos, e aceitamos essa “nova verdade” de que ser um imbecil, afinal, pode ser positivo. Assim, o estranhamento causado em um primeiro contato com as declarações do poema é prontamente superado, mediante a aceitabilidade por parte do leitor, que percebe a ironia explícita na intencionalidade do poeta, e a aceita. Ao afirmar ficar emocionado com um tradicional xingamento, o poeta fecha com chave-de-ouro sua construção, e mais uma vez enfatiza seu modo destoante de ver o mundo, pois, no seu mundo, as verdades e valores são diferentes. Assim, para aquele que não se encaixa nas verdades e padrões estabelecidos em nossa sociedade, “imbecil” é um elogio. Nesse poema, portanto, fica explícito que a intenção do poeta não é se encaixar nos nossos valores. Muito pelo contrário, o poeta está o tempo todo subvertendo e, é claro, questionando nossos valores. Pensando especificamente na coesão, percebemos que o poema não traz conectivos para encadear as ideias. É importante perceber que a maioria dos versos termina com um ponto final, como se, em cada verso, o eu-lírico estivesse dizendo tudo aquilo que precisa, cada verso é um pensamento completo. Assim, o assunto narrado avança principalmente por meio de justaposições. As pausas dão um ritmo categórico ao poema, já que ele acaba sendo cheio de afirmações curtas, mas cheias de significado. Em alguns casos, as ideias são retomadas (para avançar) pela repetição de palavras e sentenças (ex.: “Poderoso para mim” - “Para mim poderoso”; “é aquele que descobre”, “sei” - “saber”, “tenho”) ou, no caso da oposição “tudo/nada” (“tudo”, “quase tudo”, “nada”), pelo uso de antônimo. É, portanto, com esse jogo de palavras (algumas opostas), com repetições e antonímias, que o poeta faz a progressão temática. Com relação à referenciação, no primeiro verso, pode-se dizer que o uso de um travessão substitui, de certa forma, um remissivo (“isso”, por exemplo), que fica implícito, à sentença que vem antes (“A poesia está guardada nas palavras - [isso] é tudo o que eu sei”). Já a expressão “essa pequena sentença” refere-se às declarações (“Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro./ Para mim poderoso é aquele que descobre as / insignificâncias (do mundo e nossas)) ditas nos versos anteriores. Em suma, pode-se concluir que a beleza desse poema fica toda construída a partir das aparentes “incoerências”, que vão sendo descontruídas pelos leitores do poeta, conforme aceitam a intencionalidade por trás da construção dos sentidos, no texto. Manoel de Barros, por meio de sua poesia, leva-nos a questionar até que ponto as verdades do nosso mundo são aceitáveis e corretas. A carga lírica desse poema é enorme, e sua beleza está toda nos opostos construídos – palavras antônimas, visão de mundo destoante do “normal”, do socialmente 21 construído e assim por diante. Veremos, nos demais poemas, que essa percepção é frequente na obra de Manoel de Barros. 3.3 Tratado geral das grandezas do ínfimo 1ª Parte O VIDENTE 1. Primeiro o menino viu uma estrela pousada nas 2. pétalas da noite 3. E foi contar para a turma. 4. A turma falou que o menino zoroava. 5. Logo o menino contou que viu o dia parado em cima 6. de uma lata. 7. Igual que um pássaro pousado sobre uma pedra. 8. Ele disse: Dava a impressão que a lata amparava o dia. 9. A turma caçoou. 10. Mas o menino começou a apertar parafuso no vento. 11. A turma falou: Mas como você pode apertar parafuso 12. no vento 13. Se o vento nem tem organismo. 14. Mas o menino afirmou que o vento tinha organismo 15. E continuou a apertar parafuso no vento. O poema expõe duas maneiras diferentes de ver o mundo: uma poética e livre de convenções, representada pela figura do menino, e outra comum, baseada num pensamento lógico e realista, reproduzida pela turma. Assim, todo o episódio narrado no poema resume-se na exposição das “visões” e das atitudes aparentemente “ilógicas” do menino, seguida da contestação e da zombaria da turma. A primeira “visão” desse menino que, como os poetas, não perdeu, ao contrário da turma, a capacidade de ver as coisas por meio da imaginação (capacidade que geralmente nós perdemos, quanto mais perto chegamos da vida adulta), foi a de “uma estrela pousada nas pétalas da noite”. Essa metáfora causa um estranhamento, não apenas na “turma” mencionada no poema, mas também no leitor desse poema, já que as estrelas que conhecemos não estão 22 apoiadas em lugar algum e que as pétalas que conhecemos são as das flores (noite, afinal, não tem pétalas, na realidade que conhecemos). A outra visão do menino não foi a respeito da noite, mas do dia: “viu o dia parado em cima de uma lata” e teve “a impressão de que a lata amparava o dia”. Sabemos que, para algo parar em cima de algum lugar, é necessário que esse sujeito seja concreto, isto é, o substantivo dia não se adequa a essa situação, pois se trata de um substantivo abstrato. Da mesma forma, uma lata (objeto imóvel, estático) não tem a capacidade de amparar algo como o dia, que é uma convencionalidade abstrata criada pelo ser humano com o fim de organizar o mundo. Não se trata, portanto, de algo concreto, que poderia ser amparado, ser carregado, por uma lata. Além disso, o menino compara o dia parado na lata a um passáro pousado numa pedra, aproximando uma imagem real e concreta de uma imagem poética e figurada. Em um determinado momento do poema, no entanto, o menino deixou de apenas ver e de relatar episódios e passou a apertar parafuso no vento. Ora, para apertar um parafuso, é necessário ter algo palpável para ser parafusado, mas “o vento não tem organismo”, como advertiu a turma, sendo ignorada pelo menino, que continuou a apertar parafuso no vento. Pode-se dizer, portanto, que o poeta emprega substantivos abstratos ou inanimados do mesmo campo semântico, como dia, noite, vento e estrelas, por exemplo, para abordar ações associadas ao concreto, que não poderiam ter como sujeito um substantivo abstrato. As visões e atitudes do menino, narradas no poema, causam estranhamento, conforme observado anteriormente nesta seção, não apenas na turma, que contesta e zomba do pequeno vidente, julgando que ele zororava (zoroava significa o mesmo que endoidava), como também no leitor do poema, uma vez que, a princípio, as imagens criadas pelo poema parecem incoerentes, justamente porque os sintagmas colocados um após o outro normalmente não são associados. É necessário, no entanto, atentar-se aos recursos explorados pelo poeta para perceber que há, sim, coerência no poema. Mais uma vez, vemos, na obra de Manoel de Barros, a palavra a serviço da poesia. Os seus interlocutores não serão capazes de encontrar a coerência da visão do menino (e do próprio poeta), se interpretarem de forma literal as imagens construídas. Sabemos que as situações mencionadas pelo menino – aquilo que ele vê e faz – são absurdas, se vistas sob uma perspectiva lógica, sob o ponto de vista do natural, do palpável, não só a partir daquilo que é socialmente construído (que pode ser mais questionado), mas também, muitas vezes, do ponto de vista científico – visão que tem por base um conhecimento legitimado, porque fundamentado em provas, e, portanto, menos passível de questionamento. 23 Manoel de Barros parte, no entanto, do ponto de vista da imaginação, em que tudo é possível. Por aquilo que conhecemos do autor (inclusive explicitado no poema analisado na subseção anterior), podemos concluir que ele não compartilha das ideias da turma, até mesmo pelo título que ele dá ao poema que narra as visões do menino que vê o mundo de maneira diferente: O Vidente. Para Manoel de Barros, o menino não é maluco – visão que a turma, provavelmente, tem dele – mas é um vidente, aquele que vê o que os outros, em geral, não veem. Como vimos nos poema analisados anteriormente neste trabalho, o tema do menino ou do poeta que destoa da maior parte das pessoas, que não se encaixa, é frequente na obra de Manoel de Barros. O que seria visto como incoerente, portanto, acaba por ter coerência dentro do que já conhecemos da obra de Manoel de Barros. No poema O Vidente, as afirmações disparatadas e absurdas firmam-se por fazerem parte de outro universo, o da imaginação, em que são outras as verdades possíveis. Assim, em nosso universo, nas verdades socialmente construídas, nas ideias partilhadas em nossa realidade social e cultural, a noite não tem pétala e não é possível apertar parafuso no vento. Contudo, no plano da imaginação, em que se inserem o poeta e o menino, tudo pode acontecer, basta imaginar. Ao aceitar esse outro universo, compreendemos e vemos coerência nas visões do menino. No que tange à coesão do poema, nota-se, primeiramente, que as retomadas (referenciação) são feitas, na maior parte das vezes, por meio da repetição dos referentes. Assim, o menino aparece cinco vezes no poema, sendo retomado pelo pronome ele apenas uma vez, e a turma aparece quatro vezes. É importante notar que o poema contém um total de quinze versos, portanto essas repetições não são irrelevantes. Esse recurso aproxima a narrativa do poema à da linguagem infantil, que, tanto na fala, quanto na escrita, utiliza muito da repetição de sintagmas; a criança o faz por não perceber, ainda, que a repetição excessiva pode prejudicar a fluidez do texto e torná-lo exaustivo. Isso não quer dizer que o poema tenha sido escrito para um público infatil, mas sim que o poeta busca harmonizar o assunto narrado – um episódio envolvendo crianças – com a utilização de recursos coesivos típicos do universo das personagens abordadas. Dessa forma, o leitor é remetido a esse universo, havendo, assim, coerência, também, entre os elementes da superfície textual e a atmosfera que o poema perpetua. O estilo próprio das crianças é mantido na forma como as ideias são encadeadas no poema. Como se trata de uma espécie de narração (o poema conta um episódio envolvendo o menino e a turma), a história vai avançando a partir do uso de alguns conectivos comuns aos textos infantis - de quando as crianças narram histórias ou de quando narramos histórias para 24 as crianças (ex.: “primeiro”, “e”, “logo”, “mas”) -, e do uso dos verbos no pretérito perfeito, próprio da narração (ou contação de histórias). O recurso da repetição também é usado na sequenciação das ideias (a conjunção “mas”, por exemplo, aparece três vezes no poema). Além disso, o poeta, algumas vezes, para avançar, retoma (repetindo) o que foi dito em verso anterior (ex.: “apertar parafuso no vento”; “o vento nem tem organismo” - “o vento tinha organismo”). Outro importante fator de coesão no texto é o da definitivização. Segundo Luiz Antonio Marcuschi (2012, p. 59), “em geral, postula-se que o artigo definido especifique ou introduza apenas entidades de algum modo previamente mencionadas ou conhecidas. E que o artigo indefinido introduza o novo”. Pela regra, portanto, ao introduzir o menino e a turma, em seu poema, Manoel de Barros deveria ter usado o artigo indefinido (um menino e uma turma), ao contrário do que ele faz. Essa atitude, porém, não é ingênua. O autor não entende essa turma e esse menino como entidades específicas, ou seja, aquele menino em específico e aquela turma em específico. Trata-se, nesse caso, de representações, de alegorias. O menino representa, universalmente, todas as crianças que enxergam além do socialmente aceitável e postulado como natural. E a turma representa o seu oposto, isto é, representa aqueles que perderam a capacidade de imaginar, de pensar “fora da caixa”, de questionar o natural. A turma, então, apenas continua e perpetua o pensamento dominante, pois ele parece o correto, a verdade. Essa turma vê, no menino (e no poeta), alguém que não se encaixa e que, portanto, não precisa ser levado em consideração. Assim, não há necessidade de apresentar essas personagens, pois eles já são conhecidos dos leitores de Manoel de Barros e recorrentes em sua obra. Outro ponto formal importante, no poema, é a inserção do discurso direto, introduzido por dois-pontos (ex.: “Ele disse: Dava a impressão que a lata amparava o dia”, no oitavo verso; e “A turma falou: Mas como você pode apertar parafuso / no vento”, nos versos onze e doze). Há, ainda, um verso que traz um discurso indireto conectado pelo pronome que: “Logo o menino contou que viu o dia parado em cima” (verso cinco). A presença do discurso, tanto o direto quanto o indireto, também é típica da narração. Tendo em vista o que foi apresentado nesta subseção, pode-se dizer que a forma do poema, que nos remete a uma narração infantil, também é coerente com a intencionalidade do poeta, que é baseada nas regras da imaginação, tão efervescente na infância. 25 3.4 Poemas rupestres 1ª parte 1. Por viver muitos anos dentro do mato 2. moda ave 3. O menino pegou um olhar de pássaro – 4. Contraiu visão fontana. 5. Por forma que ele enxergava as coisas 6. por igual 7. como os pássaros enxergam. 8. As coisas todas inominadas. 9. Água não era ainda a palavra água. 10. Pedra não era ainda a palavra pedra. 11. E tal. 12. As palavras eram livres de gramáticas e 13. podiam ficar em qualquer posição. 14. Por forma que o menino podia inaugurar. 15. Podia dar às pedras costume de flor. 16. Podia dar ao canto formato de sol. 17. E, se quisesse caber em uma abelha, era 18. só abrir a palavra abelha e entrar dentro 19. dela. 20. Como se fosse a infância da língua. Esse poema fala sobre um menino que, como aquele menino do poema O Vidente, anteriormente estudado, enxerga além das aparências e das convenções. O menino desse poema, além disso, está próximo da natureza: viveu muitos anos dentro do mato, “moda ave”, contraindo um olhar de pássaro, isto é, uma “visão fontana”, panorâmica. É importante esclarecer, para compreender melhor as significações que o poema propõe, que as aves, por terem os olhos separados, um de cada lado da cabeça (nas têmporas, ou seja, nas fontes), atingem uma visão diferente da dos mamíferos, por chegar, muitas vezes, a 360°. É essa visão fontana que permite que esse menino veja o mundo “por igual”, atribuindo valores semelhantes a coisas grandes e pequenas. Mais uma vez, vemos, na obra de Manoel de Barros, o tema da criança que, como o poeta, vê o mundo de um modo particular, com os olhos da imaginação, e não da realidade. Nesse plano criado pela imaginação da criança e do poeta, é possível reinventar nomes, 26 inaugurar palavras e criar relações semânticas entre palavras tão díspares, como pedra e flor, canto e sol etc. Nesse plano, é possível “abrir a abelha e entrar dentro/dela” (versos dezoito e dezenove), “Como se fosse a infância da língua” (verso vinte), ou seja, momento em que nada é estanque, tudo está em constante transformação. O poema todo serve como pano de fundo a uma metáfora sobre o fazer poético. Ao tratar dessa quase infância da língua, o eu-lírico nos mostra que o poeta, assim como a criança, deve ter – e normalmente tem – essa visão destoante do mundo e é somente com essa percepção diferenciada que é possível fazer poesia. Dessa forma, ao propor que sejam dados costumes de flor a uma pedra, por exemplo, o eu-lírico aproxima o menino do poeta, que, pela língua, ou seja, por meio do uso de palavras (linguagem verbal), cria belas imagens (metáforas) que transcendem o trivial, o prosaico, o ordinário. Sobre a coerência do poema, cabe, mais uma vez, evidenciar o valor do conhecimento de mundo do leitor, para a construção dos sentidos, no texto. O leitor, diante de qualquer texto, precisa acionar os seus conhecimentos prévios para compreender o que está sendo dito. Para esse poema em específico, é importante que o leitor saiba, por exemplo, minimamente como funciona a visão dos pássaros, para compreender melhor a comparação entre o menino e o pássaro feita no poema. Além disso, se o leitor conhecer outros poemas do Manoel de Barros, também ficará mais acessível para ele a analogia implícita entre o poeta e o menino. As inferências, sempre necessárias na interpretação de qualquer texto, mas ainda mais necessárias na análise de poemas (devido à quantidade significativa de mensagens implícitas em imagens concisas), ocorrerão mais facilmente, a depender do repertório do leitor e do quanto ele consegue fazer as associações. Até mesmo a ideia de que pedras e flores têm “costumes” diferentes provém do conhecimento internalizado do leitor (e da sociedade, em geral) - são “verdades” que Manoel de Barros, muitas vezes, quer colocar em xeque. Nesse sentido, pode-se dizer que também tem importância, na construção dos sentidos do texto, não apenas o conhecimento de mundo do leitor, mas também o conhecimento compartilhado entre o leitor e o autor (neste caso, o poeta). Em seu texto Introdução à Linguística Textual: trajetória e grandes temas, Koch (2015, p. 53-54) afirma que: não só os conhecimentos prévios são de extrema importância no processamento textual e, portanto, para o estabelecimento da coerência, como também os conhecimentos partilhados ou pressupostos como partilhados – entre os interlocutores, que vão determinar, por exemplo, o balanceamento entre o que precisa ser explicitado e o que pode ficar implícito no texto. 27 Os recursos coesivos adotados no poema são, na maior parte das vezes, os mesmos já vistos no poema anterior (O Vidente). Há, tanto na referenciação, quanto na sequenciação, repetições de palavras e sentenças, remetendo ao estilo dos textos infantis (ex.: “o menino”, “as coisas”, “por forma”, “não era ainda a palavra”, “podia dar”). Além disso, nota-se o uso de parcos conectivos ou de pronomes, tanto na referenciação (ex.: “ele”, no verso cinco, para se referir a “menino”; e “dela”, no verso dezenove, para se referir à “palavra abelha”), quanto na sequenciação (ex.: “e”, “e tal”). É importante observar que esses poucos conectivos e pronomes empregados como elementos coesivos do poema são bastante simples, também próprios do discurso infantil. Vemos, aqui, mais uma vez, a harmonia entre a coesão e a coerência do poema, nessa relação entre os elementos linguísticos empregados na superfície textual e o assunto tratado no poema. Por fim, também como no poema O Vidente, o menino desse poema é introduzido por um artigo definido, e não por um artigo indefinido. A definitivização, aqui, explica-se pelo mesmo motivo exposto anteriormente, para a análise do poema O Vidente: esse menino, além de já ser conhecido pelos leitores de Manoel de Barros, é uma representação das crianças, de um modo geral, que pensam de forma diferente, sem impor limites à imaginação e à criação. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao analisar os poemas tendo como ponto de partida a Linguística Textual, podemos chegar a algumas conclusões em relação à construção da coesão e da coerência na obra de Manoel de Barros. Com relação à coesão, um dos recursos de Manoel de Barros que nos chamou a atenção foi o da definitivização: como alguns personagens são recorrentes na obra de Manoel de Barros e normalmente representam categorias (grupos de pessoas, e não uma personagem, em específico), a introdução dessas personagens, nos poemas analisados, é feita, em geral, por meio do uso de um artigo definido (ex.: “o menino”), e não de um artigo indefinido (“um menino”). Cabe ressaltar que o menino e o poeta, por exemplo, são personagens, na obra de Manoel de Barros, que representam os poetas e as crianças, de um modo geral, e que pensam de forma diferente das demais pessoas (adultos não-poetas), porque se deixam levar pela imaginação e entram em outro mundo, onde as regras são diferentes das nossas, que são construídas socialmente. Além disso, este trabalho mostra que alguns recursos coesivos são recorrentes nos poemas de Manoel de Barros, como o da repetição, por exemplo, tanto para a referenciação, 28 quanto para a sequenciação. É importante ressaltar, contudo, que esse recurso da repetição, em geral, aparece aliado a uma tentativa de harmonizar a coesão com a coerência dos poemas, buscando empregar elementos da superfície textual (coesão) que estivessem relacionados aos sentidos mobilizados na estrutura profunda do texto (coerência). Assim, para remeter o leitor ao universo das crianças abordadas no poema, Manoel de Barros lança mão de recursos coesivos próprios da linguagem infantil, como a repetição, por exemplo. Por esse mesmo motivo, os poemas de Manoel de Barros, analisados neste trabalho, que trazem a criança como personagem, quando empregam conectivos e pronomes, na sequenciação e na referenciação, esses elementos coesivos são simples e pouco diversificados, também típicos do discurso infantil. Já a coerência, na obra de Manoel de Barros, é construída, em geral, por meio da contestação do conhecimento de mundo do leitor. Em outras palavras, a coerência dos poemas de Manoel de Barros só será admitida pelos leitores, se estes conseguirem se distanciar (e até se desvincular, em certa medida) de algumas das “verdades” que internalizaram, a partir de suas vivências (como a de que “imbecil”, por exemplo, é um xingamento, e não um elogio). Devido a isso, é imprescindível, na interpretação da obra do autor, a abordagem dos fatores de intencionalidade e de aceitabilidade. Os poemas de Manoel de Barros, normalmente, propõem ideias que correspondem ao exato oposto daquilo que, em nossa sociedade, vemos como normal ou padrão. É preciso, portanto, que o leitor entenda que o poeta tem uma intenção, ao criar esse novo e diferente mundo, e que aceite o propósito do autor. Isso nos leva, na maioria das vezes, a perceber nosso mundo de maneira diferente, pois acabamos por questionar seus postulados e naturalizações. Assim, os poemas sobre as coisas comuns e cotidianas, típicas de Manoel de Barros, apresentam também uma coerência (e uma intertextualidade) entre si, no todo de sua obra, pois percebemos diversas características comuns entre eles. Esse fato não diminui a imensidade lírica do poeta, pois o autor das pequenezas continua nos surpreendendo. Ao falar de coisas banais, ele nos faz refletir sobre nosso mundo, nossas verdades e sobre aquilo a que nós damos tanto valor em oposição àquilo que não nos parece ter serventia. Fica a questão – que para Manoel de Barros parece estar resolvida – de qual é, de fato, o valor das coisas. 29 Referências: ANTUNES, I. Lutar com PALAVRAS – coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. BENTES, A. C. Linguística Textual. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (Org.). Introdução à Linguística: domínios e fronteiras, 2. ed. São Paulo: Cortez, 2011. (p. 245- 287) DICIONÁRIO AULETE. Disponível em: http://www.aulete.com.br/ninguem. Acesso em 07 Dez. 2017 FENSKE, E. K. Manoel de Barros – a natureza é a sua fonte de inspiração, o pantanal é a sua poesia. Disponível em http://www.elfikurten.com.br/2011/02/manoel-de-barros-natureza- e-sua-fonte.html. Acesso em 05 Set. 2017. KOCH, I. G. V.; TRAVAGLIA, L. C. A coerência Textual, 18. ed. São Paulo: Contexto, 2011. ____________. O texto e a construção dos sentidos. 9. ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2010. ____________. Introdução à Linguística Textual: trajetória e grandes temas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2015. MARCUSCHI, L. A. Linguística de Texto: o que é e como se faz? – São Paulo: Parábola Editorial, 2012. STESSUK, S. Poéticas do Detrito: Kurt Schwitters e Manoel de Barros – São Paulo: Portal Literário, 2007. REVISTA SUPER INTERESSANTE. Nada passa desapercebido. Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/nada-passa-desapercebido. Acesso em 02 Nov. 2017. http://www.aulete.com.br/ninguem http://www.elfikurten.com.br/2011/02/manoel-de-barros-natureza-e-sua-fonte.html http://www.elfikurten.com.br/2011/02/manoel-de-barros-natureza-e-sua-fonte.html