FABIO ASSIS PINHO ASPECTOS ÉTICOS EM REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO: em busca do diálogo entre Antonio García Gutiérrez, Michèle Hudon e Clare Beghtol. MARÍLIA 2006 FABIO ASSIS PINHO ASPECTOS ÉTICOS EM REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO: em busca do diálogo entre Antonio García Gutiérrez, Michèle Hudon e Clare Beghtol. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciência da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciência da Informação. Área de Concentração: Informação, Tecnologia e Conhecimento Linha de Pesquisa: Organização da Informação Orientador: Prof. Dr. José Augusto Chaves Guimarães Marília 2006 P654a Pinho, Fabio Assis. Aspectos éticos em representação do conhecimento: em busca do diálogo entre Antonio García Gutiérrez, Michèle Hudon e Clare Beghtol / Fabio Assis Pinho. – – Marília, 2006. vi, 123 f. ; 30 cm. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2006. Orientador: José Augusto Chaves Guimarães. Bibliografia: f. 112-123. 1. Representação do conhecimento. 2. Ética informacional. 3. Ciência da Informação. I. Título. CDD 020 Bendito seja DEUS, Que não afastou minhas súplicas, Nem de mim apartou seu amor. “Deus não só mostra o caminho da sabedoria, mas também dirige o sábio” DEDICO Aos meus pais Taú e Izabel Ao meu irmão Roberto Fontes de profundo amor, minha gratidão e homenagem. “A vida é uma escuridão, exceto quando há impulso. E todo impulso é cego, exceto quando há saber. E todo saber é vão, exceto quando há trabalho. E todo trabalho é vazio, exceto quando há amor.” Gibran OFEREÇO AGRADECIMENTOS Aos meus amigos do mestrado Eliane Borba (Lilica), Jane, Rogério, Marcel, Willy, Maria de Lourdes, Adriana, Alessandra, Ana Cristina e Alexandre. Aos Professores Eduardo Ismael Murguia Marañon, João Batista Ernesto de Moraes, Plácida Leopoldina V. A. C. Santos, Silvana Ap. B. G. Vidotti, Maria Helena T. C. de Barros e Miriam Celí P. P. Foresti. Aos Professores Mariângela Spotti Lopes Fujita e Marcos Luiz Cavalcanti de Miranda pelas sugestões que contribuíram para o aperfeiçoamento deste trabalho. Ao Professor e orientador José Augusto Chaves Guimarães pela confiança e o respeito com que tratou esta pesquisa, tornando-se um exemplo de dignidade. “Ser mestre é ser exemplo, exemplo de dedicação, de doação, de dignidade pessoal e, sobretudo de amor à profissão” Às servidoras Margareth Pigozzi (CEDHUM), Edna Olian, Andréia Teza, Aline Ribeiro, Iara Nunes, Márcia Arakaki (Seção de Pós-Graduação) e Luzinete Euclides (STRAUD) pela colaboração. Aos alunos de graduação Suellen Milani Oliveira e Márcio Barrionuevo Navas pela amizade e momentos de aprendizagem. À Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP – Câmpus de Marília pelas oportunidades oferecidas no decorrer do curso. Ao Serviço Técnico de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias – UNESP – Câmpus de Jaboticabal pelo incentivo. Aos meus companheiros de trabalho Claudemir, Neli, Ana Silvia, Mabel, Marta, Tiêko, Adriana e Regina. A todos aqueles que, direta e indiretamente, colaboraram para minha formação e para mais esta conquista. “O homem de ciência descobre os fatos da natureza, mas o homem de consciência realiza valores dentro de si mesmo” Albert Einstein Obrigado. RESUMO Os instrumentos e os processos de representação do conhecimento refletem as visões políticas e culturais de seus idealizadores e, portanto, não são neutros. Desse modo, e considerando que a ética se estabelece como uma maneira de distanciar o poder sobre os outros, evitando ser objeto de qualquer ideologia, observa-se que, a questão da representação está intimamente ligada a uma dimensão ética, porque deve se preocupar com sua utilidade e confiabilidade para determinados grupos de usuários. Nesse sentido, propõe-se, por meio de pesquisa exploratória de natureza teórico-investigativa, estabelecer, a partir dos estudos de Antonio García Gutiérrez, Michèle Hudon e Clare Beghtol, a identificação de vertentes teóricas convergentes que subsidiem as questões sobre os aspectos éticos nas atividades de representação do conhecimento. Do cotejo e análise crítica das idéias dos referidos autores, observa-se que os mesmos possuem concepções convergentes em relação ao usuário e suas crenças, e complementares em relação à competência profissional, podendo-se concluir que os valores de transculturalidade na mediação, multilingüismo e garantia cultural são inerentes às atividades de representação do conhecimento e determinantes do fazer profissional na área. Palavras-chave: Representação do conhecimento. Ética informacional. Ciência da Informação. ABSTRACT The instruments and the processes of knowledge representation reflect the political and cultural standpoint of its creators and, therefore, they are not neutral. That way, and considering that ethics establishes itself as a way to distance power over others, preventing itself from being the object of any ideology, one can observe that, the issue of representation is linked to an ethical dimension, because it shall concern its utility and reliability for determined groups of users. In this direction, it is considered, by means of exploratory research of theoretical-investigative character, to establish, based on the studies of Antonio García Gutiérrez, Michèle Hudon and Clare Beghtol, the identification of convergent theoretical chains that subsidize the issues on ethical aspects in the activities of knowledge representation. From confrontation and critical analysis of the ideas of the authors listed above, one can observe that the same ones have convergent takes on the user and its beliefs, and complementary takes concerning the professional ability, thus concluding that the values of transcultural ethics of mediation, multilingualism and cultural warrant are inherent to the activities of knowledge representation and determinant to professional performance in the field. Key words: Knowledge representation. Information ethics. Information Science. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO............................................................................................................. 1 2 A ORGANIZAÇÃO E REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO COMO DISCIPLINA.................................................................................................................... 6 2.1 Aspectos Históricos .................................................................................................... 6 2.2 Objeto de Estudo e Conceito.................................................................................... 16 2.3 Fundamentos da Área .............................................................................................. 19 2.4 A Questão da Representação ................................................................................... 25 2.5 Sistema de Classificação de Dahlberg ..................................................................... 32 3 A ÉTICA NAS ATIVIDADES INFORMATIVAS E SEU IMPACTO NA REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO ............................................................. 35 3.1 Ética.......................................................................................................................... 35 3.2 Ética Profissional...................................................................................................... 41 3.3 Ética nas Atividades Informativas........................................................................... 47 3.4 Ética em Representação do Conhecimento: Valores, Problemas e Avanços.......... 51 4 CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS SOBRE QUESTÕES ÉTICAS EM REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO ............................................................. 64 4.1 Antonio García Gutiérrez e a Epistemografia Interativa......................................... 64 4.2 Michèle Hudon e o multilingüismo........................................................................... 82 4.3 Clare Beghtol e a garantia e hospitalidade cultural ................................................. 89 5 DIÁLOGOS SOBRE AS QUESTÕES ÉTICAS EM REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO ....................................................................................................... 97 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 109 REFERÊNCIAS........................................................................................................... 112 1 INTRODUÇÃO A busca pela sedimentação teórica e metodológica da área de Organização e Representação do Conhecimento tem exigido de seus pesquisadores profundos questionamentos, principalmente sobre os fundamentos que norteiam seus pressupostos teóricos. Desde a exigência feita por Henry Evelyn Bliss, em 1933, para que a Organização do Conhecimento tivesse caráter científico até a fundação da ISKO – International Society for Knowledge Organization por Ingetraut Dahlberg, em 1989, mais de meio século de estudos abordaram questões de pesquisa sobre a organização do conhecimento. Atualmente, esse campo científico vem discutindo o seu desenvolvimento teórico e metodológico, inclusive dos instrumentos lógico-semânticos utilizados por profissionais e sistemas para a recuperação da informação. Tais estudos questionaram as estruturas da organização do conhecimento, os processos de indexação, a catalogação e, inclusive, as linguagens documentárias. Tudo isso sob o enfoque de conceitos como o de conhecimento que, apesar de toda a problemática envolvida, tem se concretizado à medida que os fundamentos filosóficos da área são consolidados. Apesar de toda a discussão e divergências, aliás, típico e necessário em toda área do conhecimento, o avanço teórico tem sido realizado e constatado a cada dia, por exemplo, nos questionamentos a respeito de conceitos-chave na área, nas influências de Ranganathan, nas novas metodologias para análise de conteúdo, além do auxílio do desenvolvimento tecnológico. No que tange ao desenvolvimento de ferramentas e instrumentos utilizados na organização do conhecimento, particularmente as linguagens documentárias, observa-se um aspecto relevante para a área no intuito de rever e discutir seus parâmetros. É sabido que esses instrumentos são carregados de ideologias e, por isso, não são neutros em relação às questões políticas e culturais. Desse modo, era de se esperar que os aspectos éticos viriam à tona; entretanto, os estudos relacionados à ética despontaram, principalmente, nas atividades informativas, ou ainda, restritos aos prescritivos códigos de ética profissional. 2 A relação entre ética e ideologia se estabelece à medida que a primeira torna-se uma noção de limite de poder (controle da informação) existente na segunda. A atitude ética se distancia do poder sobre os outros e evita ser objeto de qualquer ideologia. Como a Organização do Conhecimento é eminentemente interdisciplinar, então, com os assuntos éticos não seria diferente. Acontece que os estudos éticos que se aproximam das atividades de organização e representação do conhecimento ainda são incipientes e carecem de discussões e aportes teóricos. É nesse cenário que se estabelece o tema deste trabalho, ou seja, os aspectos éticos na representação do conhecimento, vertente essa já sinalizada por Dahlberg, em 1992, para que os pesquisadores discutissem o assunto, instigando o desenvolvimento teórico tão necessário à área. Por isso, o problema de pesquisa está voltado para a falta de estudos que identifiquem a convergência teórica dos aspectos éticos inerentes à representação do conhecimento e que, dessa forma, apresentem valores inerentes a essa atividade. Esse problema torna-se relevante à medida que as atividades de representação devam respeitar as diferenças e crenças existentes entre os usuários que ali recorrem para orientar-se na busca por informação. Outro agravante se identifica nos incipientes estudos, nas lacunas teóricas e na necessidade de desenvolvimento de pesquisas nessa ramificação temática, uma vez que se verifica a existência de literatura que identifica os problemas éticos na representação do conhecimento, mas não apresenta soluções para esses problemas. Desse modo, o problema relativo à falta de estudos sobre as questões éticas na representação do conhecimento está ligado aos conceitos-chave aqui inerentes, como os conceitos de sistemas de representação do conhecimento, sistemas de classificação, sistemas de organização e representação da informação, sistemas de organização e representação do conhecimento. Esses conceitos, no mais das vezes, estão ligados à atividade ou ao sistema. Em que se pese o afastamento da discussão conceitual, aqui será considerado que os termos usados na área, tais como: ‘representação do conhecimento’, ‘representação da informação’ e ‘representação documentária’ possuem significados similares, uma vez que a representação, no âmbito da Ciência da Informação, visa a promover o acesso ao conteúdo dos documentos para uso e posterior geração de novos conhecimentos. Mesmo assim, foi respeitado o termo designado por cada autor analisado ou referenciado. Entretanto, a dimensão ética tratada neste trabalho estará voltada aos instrumentos de representação do conhecimento (sistemas) e, por isso, não adentrará em questões relativas 3 ao processo de representação do conhecimento (atividade). O problema existe e é necessário que seja encarado e, na medida do possível, solucionado. Algumas iniciativas têm sido apresentadas nos principais eventos que reúnem pesquisadores da área de organização e representação do conhecimento e, dentre essas iniciativas, destaca-se a busca por categorizações de valores que estabelecem parâmetros de atuação profissional; além disso, de acordo com a sistematização da literatura, encontram-se novos fundamentos envolvendo um rompimento com a normativa tradicional para a concepção de instrumentos lógico-semânticos que sejam eticamente aceitáveis. E é exatamente nesse contexto que entra em cena o foco de análise deste trabalho, notadamente a partir dos estudos formulados por Antonio García Gutiérrez, Michèle Hudon e Clare Beghtol que apontaram em suas respectivas teorias algumas soluções para os problemas éticos. A escolha dos referidos autores como foco de análise deve-se ao fato de haverem trabalhado com concepções de representação do conhecimento nelas explicitando e enunciando valores éticos interagentes. Nesse sentido, a proposição deste trabalho é estabelecer, a partir dos estudos desses autores, a identificação de vertentes teóricas que subsidiem as questões sobre os aspectos éticos nas atividades de organização e representação do conhecimento e, a partir daí, no intuito de contribuir para os estudos teóricos que tratam dos aspectos éticos, preencher essa lacuna existente na área. Por isso, o objetivo geral é identificar pontos de convergência entre esses autores, principalmente em relação ao usuário e às competências profissionais, que são dois pontos- chave em relação aos aspectos éticos na representação do conhecimento. Decorrendo disso, tem-se, como objetivo específico, identificar os valores na representação do conhecimento sob a ótica de cada autor e em que medida tais valores interagem quando do desenvolvimento das atividades da área. As competências específicas para os profissionais que trabalham com a questão da representação estão intimamente ligadas a uma dimensão ética, principalmente porque essa atividade deve levar em conta que tanto o sistema quanto o processo de representação devem se preocupar com a utilidade e se são recomendáveis para determinados grupos de usuários. Assim, a justificativa se estabelece à medida que essa proposta de convergência cria pontes entre as teorias desses autores, aumentando a contribuição teórica que se faz necessária nessa ramificação temática da área, possibilitando aprofundar o conhecimento sobre os conceitos propostos pelos autores, favorecendo a identificação de pontos convergentes. Além disso, este trabalho se insere em um Projeto Integrado de Pesquisa 4 (CNPq), coordenado pelo Prof. Dr. José Augusto Chaves Guimarães da UNESP-Marília, cuja preocupação com a dimensão social das atividades de Organização e Representação do Conhecimento, leva ao estudo dos aspectos éticos da área. Desse modo, traz um aporte específico ao referido projeto no sentido de contribuir para a sedimentação da ética, especificamente na representação do conhecimento, obtendo elementos teóricos para a elaboração do quadro preliminar de valores. Este trabalho também busca contribuir com a dimensão teórica e a reflexão sobre a organização do conhecimento, que são pressupostos inerentes à linha de pesquisa onde está inserido. Assim sendo, nesta pesquisa, de caráter exploratório, o método utilizado é eminentemente teórico-investigativo, uma vez que se pretende estabelecer um diálogo entre os autores em questão, no intuito de investigar as questões éticas na representação do conhecimento. Dessa maneira, realizou-se uma pesquisa bibliográfica nas principais revistas e eventos da área, e a partir dessa revisão, foram sistematizadas as questões mais relevantes, para uma maior familiarização com os aspectos éticos. A área de Organização e Representação do Conhecimento possui valores intrínsecos às suas atividades, porém não os assume como tal, principalmente através dos conceitos construídos para os estudos dos aspectos éticos da mesma. Dessa forma, a principal hipótese que se levanta, a partir da delimitação do problema, é que os autores analisados, por meio dos seus conceitos, podem orientar a abordagem de questões éticas nas atividades de representação do conhecimento, inclusive, na indicação de valores. Refletindo tais aspectos, esta dissertação inicia-se com a Organização do Conhecimento, abordando os principais aspectos históricos da área, desde o processo de leitura até a sistematização dos principais autores que orientam sua evolução. Nesse sentido, merece destaque a importância da fundação da ISKO para o desenvolvimento de trabalhos e conseqüentemente da área em si. Discute-se, também, o objeto de estudo e o conceito da organização do conhecimento, juntamente com os fundamentos estudados e desenvolvidos até o momento, que são pilares que constituem esse campo do saber. Por fim, apresenta-se a questão da representação, bem como o Sistema de Classificação de Dahlberg, que foi um marco para a área, mas que não prevê o tema ‘ética’ em sua estrutura. Logo em seguida, aborda-se a questão da ética nas atividades informativas e seu impacto na representação do conhecimento. Essa parte trata do conceito de ética e o seu entendimento realizado pelos filósofos ao longo da história, bem como, discute a ética no âmbito profissional, visto que esse espaço está imbuído de um código moral que orienta a 5 atuação profissional. Além disso, destaca-se a ética motivada principalmente pelo surgimento das tecnologias informacionais e, também, dos valores, avanços e problemas que cercam a ética na representação do conhecimento. A dissertação continua trazendo as principais contribuições teóricas sobre as questões éticas aplicadas à representação do conhecimento, como: Antonio García Gutiérrez e a espitemografia interativa, Michèle Hudon e o multilingüismo, e, Clare Beghtol e a garantia e hospitalidade cultural. Em seguida, trata do diálogo entre esses autores com relação às questões éticas envolvidas em suas teorias, e depois, as considerações finais acerca das contribuições identificadas. 6 2 A ORGANIZAÇÃO E REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO COMO DISCIPLINA Para tratar da Organização e Representação do Conhecimento enquanto disciplina, faz-se necessário apresentar seus aspectos históricos, relatando sua evolução como área de estudos. Além disso, torna-se necessário apresentar as discussões sobre seu objeto de estudo e seu conceito, bem como a organização que congrega os pesquisadores da área e suas pesquisas. 2.1 Aspectos Históricos Os estudos sobre a organização do conhecimento têm ligação com as pesquisas sobre a história do livro e da escrita, uma vez que os meios, utilizados para comunicar as idéias, representam um componente importante na relação leitor-texto, pelo fato de condicionarem os próprios modos de pensar. Dessa forma, a relação que se estabelece entre esses componentes influenciará a produção do conhecimento e, logo, a sua organização. O processo de leitura1 interfere tanto na produção como na recepção textual, que são dotadas de influências culturais e sociais. Assim, para Chartier (1994, p. 9), na recepção que ocorre durante as leituras, “[...] decifradas a partir de esquemas mentais e afetivos que constituem a cultura (no sentido antropológico) das comunidades que as recebem, tais obras se tornam um recurso precioso para pensar o essencial: a construção de um vínculo social, a subjetividade individual, a relação com o sagrado”. Já na criação, o autor menciona que, “[...] inscreve nas suas formas e nos seus temas uma relação: na maneira pela qual – em um dado momento e em determinado lugar – são organizados o modo de exercício do poder, as configurações sociais ou a economia da personalidade”. O círculo da produção e da recepção textual inicia o processo de reflexão no indivíduo que, com toda sua bagagem e inserção cultural, constrói o conhecimento. Então, o ingresso da leitura e da escrita nas sociedades ocidentais tornou-se um fator importante de mudança cultural, visto que o ser humano vem lançando mão dos mais 1 Para Jouve (2002, p. 17), “a leitura é uma atividade complexa, plural, que se desenvolve em várias direções”. 7 variados suportes para se expressar, utilizando desde imagens até a linguagem codificada, no intuito de compartilhar suas vivências e experiências: compartilhar o conhecimento. O direito de acesso aos registros do conhecimento possibilita que o indivíduo possa desenvolver suas atividades. A organização desses registros, e a própria organização do conhecimento, surge como um campo de estudos para resolver os problemas de ordenação e acesso ao conhecimento. O ser humano inicia as tentativas de organizar e representar o conhecimento desde os primórdios da sua própria existência, transformando as formas de sociabilidade e as relações. Portanto, organizar e representar não são uma necessidade atual mas, sim, uma preocupação que surge com a própria evolução da sociedade, que anseia pelo compartilhamento, decifração e uso do conhecimento registrado. As bibliotecas foram sendo constituídas através da posse de livro por indivíduos que podiam adquiri-lo e, que o deixavam guardado em suas residências. O livro podia ser encontrado em qualquer lugar da casa, não tendo um lugar definido; muitas vezes estava em um cômodo único, na cozinha, ou nas diversas dependências menores. Assim, quanto maior o número de livros, maior a necessidade de acessórios para acomodá-los, como um pequeno armário, estante e até armários-bibliotecas, que eram encontrados em qualquer cômodo de uma casa (CHARTIER, 2004, p. 191-192). Com isso, inicia-se um ato de ordenação desses livros, primeiramente realizada por tamanho. Da necessidade de conservar os livros, logo uma dependência da casa passa a ser considerada uma biblioteca, motivada principalmente pela paixão da coleção, ou ainda, pela aparência social ou pelo interesse em manter um gabinete de curiosidades (CHARTIER, 2004, p. 194). Atualmente, à concepção de biblioteca são adicionadas novas acepções. De acordo com Fantinatti e Ceccantini (2004, p. 41), biblioteca é um ambiente como “sala, casa ou edifício público ou particular onde se instalam grandes coleções de livros, arrumados, ordenados e devidamente catalogados, destinados à leitura”. Fantinatti e Ceccantini (2004, p. 43) recordam que a biblioteca surgiu antes do livro, e que “seus antecedentes mais remotos estão na Babilônia, com seus tabletes de argila ou coleção de tijolos gravados com caracteres cuneiformes, materiais que, no Egito, foram substituídos pelo papiro com função de arquivo e documento da escrita”. Isso se verifica, de forma mas específica em Witty (1973, p. 193), ao referir-se, inclusive, a envelopes de argila para expressar o conteúdo dos papiros e pergaminhos. 8 Dessa forma, surgem as demandas para a viabilização de instrumentos e práticas de organização do conhecimento registrado. Belo (2002, p. 41) constata que, com o barateamento e com a multiplicação do número de livros e textos disponíveis, a elaboração de catálogos ou bibliografias das obras impressas, tão antiga como a própria imprensa, tornou-se ainda mais indispensável para a orientação dos leitores no meio de um mar de títulos e temas. Porém, de acordo com Chartier (1994, p. 15), as práticas de organização do conhecimento revelavam as tradições culturais das diferenças sociais, daí, a construção (que continua, aliás, necessária) de indicadores aptos a revelar as distâncias culturais; assim, para determinado tempo e espaço, a porcentagem de inventários póstumos mencionando a posse de livros, a classificação de coleções segundo o número de obras que comportassem, ou ainda, a caracterização temática das bibliotecas privadas em função da parte que nelas têm as diferentes categorias bibliográficas. Assim, os séculos XVII e XVIII presenciaram mudanças surpreendentes na atividade dos bibliotecários e na organização das bibliotecas. A invenção da imprensa influenciou as maneiras de realizar a organização dos livros existentes nas bibliotecas. Mckitterick (2000, p. 95) ensina que, dessas mudanças, decorre a transformação da bibliografia, que se manifesta nas Bibliotecas (ou Bibliografias) de eruditos como Gesner (Pandectae, 1548) ou de Possevinus (Bibliotheca selecta, 1593): temos aí o fundamento dos sistemas bibliográficos e de suas classificações – seja por temas, seja por outras vias. Dentre os estudos recentes que focalizam as tentativas de organizar o conhecimento, estão o levantamento sobre a história dos catálogos realizados por Ruth French Strout (1956) com fatos ocorridos até 1900 e o de Eliane Serrão Alves Mey (1995) com eventos relatados a partir de 1900 a 1995. Em relação ao levantamento histórico sobre as classificações destacam-se, no Brasil, os estudos realizados por Alice Príncipe Barbosa (1969), Maria Antonieta Requião Piedade (1983), Jacques Maniez (1993) e Ana Cláudia Straioto e José Augusto Chaves Guimarães (2004), dentre outros. 9 A criação de esquemas e sistemas de organização e representação do conhecimento2 vai ao encontro de uma outra expectativa do ser humano ao longo da evolução da sociedade: saber tudo o que se tem publicado pelo mundo. No entanto, desde que se busca o conhecimento, essa idéia de controlar os registros não é nova, pois já na Antiguidade se pensava nisso. Dessa forma, as bibliotecas tornaram-se instituições de guarda desse saber registrado. A famosa biblioteca de Alexandria, que reunia inúmeras obras de todo o mundo, inspirou a criação de catálogos e bibliografias com o intuito de controlar o que se havia publicado, além de que, com o aumento da circulação das obras, tornou-se necessário a criação de instrumentos capazes de classificar, identificar e hierarquizar o conhecimento disponível. Os sistemas de organização e representação do conhecimento bibliográfico sofreram influências de filósofos que estavam preocupados com a divisão do conhecimento e deram aporte teórico para o seu desenvolvimento. Dentre esses filósofos destacam-se: Platão (427-234 a.C.), que classificou as ciências, dividindo o conhecimento em Física, Ética e Lógica; Aristóteles (384-322 a.C.), que com sua classificação dicotômica, dividiu as ciências de acordo com suas finalidades em teóricas (pensar), práticas (agir) e poéticas (produzir); e, Francis Bacon (1561-1626), que dividiu as ciências em memória, imaginação e razão (SAN SEGUNDO, 1996). O princípio dos sistemas de organização e representação do conhecimento pode ser conferido a um dos sábios de Alexandria, Calímaco, que por volta de 250 a.C. elaborou seus Pinakes [Tabulas], onde registrava o número de linhas de cada obra, as palavras iniciais e os dados bibliográficos dos autores. Apesar de alguns pesquisadores denominarem o trabalho de Calímaco como catálogo, não se sabe ao certo se foi um catálogo, uma bibliografia ou ambos, pois não restaram vestígios dessas obras (MEY, 1995, p. 13). O sistema de Calímaco obedecia às ordens alfabética e cronológica e sofreu influência da classificação de Aristóteles3. 2 Destaca-se que existe a classificação enquanto instrumento (sistemas de classificação), a classificação enquanto processo mental (ato de classificar), enquanto área do conhecimento (atualmente denominada Organização do Conhecimento), enquanto operação (atribuição de uma notação) e como atividade (caracterização geral de um fazer em um universo social). 3 A classificação de Aristóteles (384-322 a.C.) foi concebida como cinco predicáveis (ou categorias), a saber: Gênero, Espécie, Diferença, Propriedade e Acidente. A partir dos predicáveis, o filósofo subdividiu o conhecimento em: Filosofia Teórica Física, Matemática, Metafísica, Filosofia Prática, Ética, Economia, Política, Filosofia Produtiva, Poética, Retórica e Arte. 10 Alguns sistemas de organização e representação do conhecimento são anunciados por Machado (2003, p. 43) da seguinte maneira: os primeiros catálogos e bibliografias são puramente listas inventariais e não instrumentos bibliográficos. Nas bibliografias, a ênfase é dada aos autores e não aos livros, são biobibliografias; nos catálogos, únicos tipos de listas bibliográficas, a caracterização dá-se pela técnica pouco elaborada, falta de arranjo e transcrição sucinta e pouco precisa dos títulos. Outra importante contribuição se deve ao bibliógrafo suíço Konrad von Gesner (1516-1565), que produziu sua bibliografia denominada Bibliotheca Universalis (1545), cujo interesse era classificar tanto livros como animais, e posteriormente publicou o respectivo índice de assunto denominado Pandectae (1548), que se ocupava da classificação dos temas (BURKE, 2003, p. 88). Esse segundo volume de sua obra estava dividido em 21 seções, começava pelo trivium (gramática, lógica e retórica), seguido pela poesia, quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música), astrologia, adivinhação e magia, geografia, história, artes mecânicas, filosofia natural, metafísica, filosofia moral, filosofia “econômica”, política, direito, medicina e teologia (BURKE, 2003, p. 88). Em 1643, Gabriel Naudé estabeleceu em sua obra Bibliotheca Cordesianae Catalogus um esquema de classificação com a seguinte divisão: teologia, medicina, bibliografia, cronologia, geografia, história, arte militar, jurisprudência, direito canônico, filosofia, política e literatura. Naudé assinalava a importância dos instrumentos de representação como meios de encontrar os assuntos desejados identificando-os bibliograficamente (MEY, 1995, p. 17). Diversos debates se seguiram em relação aos instrumentos de organização e representação alfabéticos e classificados. Anthony Panizzi, advogado, refugiado político italiano que trabalhava no British Museum como bibliotecário assistente, aprovou, junto à comissão do museu, suas 91 regras, no ano de 1839. Já no ano de 1841 publicou as Regras para a Compilação de um Catálogo, iniciando o acesso ao assunto de uma obra por meio de um vocabulário controlado (OLSON, 2002, p. 10). Em 1870, William Torrey Harris desenvolveu seu sistema de classificação baseando-se na ordem indireta da classificação de Francis Bacon, ou seja, razão, imaginação e memória. Sua contribuição influenciou diretamente outros sistemas de classificação. Por volta de 1876, com a publicação da Classificação Decimal de Dewey, os estudos e práticas relacionadas à classificação e indexação dos livros nas bibliotecas toma 11 status profissional. Com isso, tem-se o destaque de pesquisadores que contribuíram para o avanço nos estudos da Organização do Conhecimento, a saber: Charles Ami Cutter (1837- 1903), Melville Louis Kossuth Dewey, conhecido como Melvil Dewey (1851-1931), Henry E. Bliss (1870-1955) e S. R. Ranganathan (1892-1972), entre outros. Charles Ami Cutter, bibliotecário norte-americano, em 1876, publicou suas Regras para um Catálogo Dicionário, como era de fácil entendimento, incluía a catalogação de assuntos (MEY, 1995, p. 21). Cutter criou também um sistema de classificação conhecido como Expansive Classification, que era instituído por sete classificações, sendo cada uma delas mais detalhada que a anterior, com o intuito de acompanhar a expansão do assunto. Sua concepção foi baseada na inversão da classificação de Bacon influenciando outros sistemas de classificação (PIEDADE, 1983). Sua tabela representativa de sobrenomes é usada ainda nos dias atuais. Em Cutter, com a idealização do catálogo dicionário, observa-se uma mudança na lógica de organização, até então basicamente pautada pelo critério sistemático e que, a partir daí, passa a nortear-se, também, pela ordem alfabética. Observa-se, nesse sentido, que os princípios específicos, de uso e sindético preconizados por Cutter continuam a ser, ainda hoje, um dos alicerces sobre os quais se assenta a indexação alfabética. Melvil Dewey também estabeleceu regras simplificadas de catalogação, mas a obra que lhe conferiu reconhecimento foi sua classificação decimal, publicada no ano de 1876, cuja primeira edição era anônima. Dewey utilizou na sua classificação de assuntos uma divisão decimal. Apesar de toda a discussão que envolve sua concepção, a Classificação Decimal de Dewey (CDD) é o sistema mais utilizado no mundo, totalizando mais de 135 países e traduzido para mais de 30 línguas (OLSON, 2002, p. 13), uma vez que consegue reunir, sob uma mesma notação, os aspectos de representação temática e de arranjo físico da obra. Baseada na Classificação Decimal de Dewey surge a Classificação Decimal Universal (CDU), atingindo notoriedade mundial devido ao trabalho dos belgas Paul Otlet (1869-1944) e Henri de La Fontaine (1854-1943), publicada em 1905 como Manuel du répertoire bibliographique universel. Para Piedade (1983, p. 74), a Classificação Decimal Universal “é um sistema hierárquico, com base filosófica, mas no qual, graças à utilização de sinais gráficos, diz-se que surge a tentativa de classificação em facetas, cujo primeiro emprego consciente apareceu na Classificação de Dois Pontos, de autoria de Ranganathan”, 12 que, por sua vez, resgatou e aperfeiçoou a concepção da indexação sistemática de Kaiser4, de 1911. Com a CDU dá-se uma nova perspectiva para superar a rigidez notacional de Dewey, visto que a coordenação e síntese de conceitos compostos passam a ser feitas de forma mais ampla, por meio de sinais como os dois pontos. Destaca-se, também, a preocupação dos idealizadores da CDU, Paul Otlet e Henri La Fontaine, com o resgate do conhecimento registrado até então disponível - por meio de sua Bibliografia Universal - aspecto que lançou as bases para a Documentação e para o Controle Bibliográfico Universal. Nesse momento é interessante apontar que Dewey pensou em uma classificação bibliotecária (organização de livros) e Otlet estava voltado para uma classificação bibliográfica (organização de informação). Já Henry Evelyn Bliss, bibliotecário norte-americano, elaborou a Bibliographic Classification, que para Piedade (1983, p. 74) é “apontada como perfeita no desenvolvimento, quanto ao escalonamento e à subdivisão dos assuntos”, permitindo que um mesmo assunto seja classificado em diferentes pontos do sistema. Além disso, Bliss publicou obras que ganharam destaque nos estudos inerentes à Organização do Conhecimento, visto ter sido o autor que, pela primeira vez, utilizou formalmente a expressão organização do conhecimento. Shiyali Ramamrita Ranganathan, matemático indiano, influenciou os estudos sobre as classificações. Após comparar e questionar diversos sistemas de classificação existentes, decidiu desenvolver um novo sistema de classificação, com intuito de modificar os princípios básicos da classificação. Ranganathan também contribui para que a classificação adquirisse um status científico, transcendendo à prática bibliotecária, principalmente a partir de sua obra Filosofia da Classificação Bibliográfica, onde aborda os campos que têm o conhecimento como objeto de estudo (Filosofia, Epistemologia etc.) Em 1933, Ranganathan estabeleceu a Colon Classification, originando o denominado Sistema de Classificação Facetada, ou Classificação dos Dois Pontos, ou ainda, Classificação Analítico-Sintética. Segundo Piedade (1983, p. 198), “ao lançar o seu sistema, Ranganathan só utilizou o sinal de dois pontos para introduzir qualquer uma das facetas, daí o nome do sistema, Colon Classification, pois a palavra ‘colon’ em inglês significa dois pontos”. Desta forma, o número de classificação é formado por símbolos unidos pelo sinal dos dois pontos, relacionando os assuntos que constam na obra. 4 Julius Kaiser (1868-1927), bibliotecário norte-americano, publicou em 1911 sua obra Systematic Indexing. Kaiser deu seguimento aos estudos de Cutter no que se referia a catalogação alfabética de assunto (STRAIOTO; GUIMARÃES, 2004, p. 111). 13 Conforme Straioto e Guimarães (2004, p. 117), “esse sistema significou expressivo avanço na área, pela possibilidade de inter-relação de conceitos, rompendo com a tradição demasiadamente hierárquica”. Os autores relatam, ainda, que “a Colon Classification divide o universo do conhecimento em quarenta e duas classes principais (ou áreas do conhecimento), sendo formada por tabelas com base em uma única característica que posteriormente passou a ser conhecida por faceta”. Sob a influência dos estudos de Ranganathan surgiu, no ano de 1952, em Londres, o CRG (Classification Research Group), como resultado de um convite recebido em 1951 por B. C. Vickery. Straioto e Guimarães (2004, p. 119) informam que “deveriam formar um grupo com o objetivo de cuidar do trabalho da comissão criada para analisar a situação da classificação e para verificar e seguir caminho que levasse à melhoria dos métodos referentes à organização da informação especializada”. Assim, os profissionais envolvidos com as questões da organização do conhecimento teriam um espaço para desenvolver seus estudos. Para Gomes (1996), o Classification Research Group “desenvolveu os estudos de classificação não apenas para produzir esquemas de classificação, mas para aprofundar os princípios e métodos, para melhor conhecer o objeto de seus estudos”. Então, a idéia de organizar e mapear as publicações existentes, enquanto representantes de um conhecimento registrado tornou-se expressiva, e denomina-se controle bibliográfico5, que pressupõe um domínio completo sobre os itens que registram o conhecimento, no intuito de identificá-los, localizá-los e obtê-los, que por sua vez, passam a necessitar de toda uma atenção de estudos que envolvam esses aspectos. Desse modo, a organização do conhecimento passa a ganhar espaço não apenas como uma necessidade pragmática para o universo documental, mas como um campo de reflexão e produção teórica, notadamente a partir da criação da ISKO - International Society for Knowledge Organization. A ISKO foi fundada em 22 de julho de 1989, em Frankfurt/Main, na Alemanha. É a principal sociedade internacional para a organização do conhecimento, tendo um alcance amplo e interdisciplinar. Sua missão é avançar os trabalhos conceituais na organização do conhecimento em todas as suas formas, e para todos os tipos de propostas, tais como base de dados, bibliotecas, dicionários e internet. Entretanto, a iniciativa de criar esta sociedade traz à luz alguns fatos interessantes. Em 1977, Ingetraut Dahlberg finalizou seus trabalhos no Thesaurus Committee da German 5 Este conceito foi inicialmente introduzido por Jesse Shera (1975) a partir de um enfoque sociológico, fazendo parte do sistema geral de comunicação da sociedade. 14 Documentation Society para fundar a Society for Classification, que pretendia abranger todos aqueles que estavam interessados no estudo e aplicação das abordagens para a classificação, por meio de tesauros, taxonomias para ordenar objetos e taxonomia numérica, usando métodos formais e matemáticos para o reconhecimento de classes de objetos de acordo com suas características (DAHLBERG, 1995, p. 9). Foram 12 anos de conferências anuais, totalizando 17 anais (Studien zur Klassifikation), além de alguns grupos de trabalhos. Porém, esses trabalhos não resultaram em um consenso, visto que os matemáticos eram maioria no conselho dessa sociedade. Então, a Society for Classification foi deixada para os matemáticos e estatísticos, pois possuíam a atenção voltada para os métodos de análise de dados. Dessa forma, uma nova sociedade foi fundada, desta vez com a atenção voltada para a organização do conhecimento, indicando que o conceito de ‘classificação’ seria interpretado como um método de classificar, agrupando aquilo que pertence a uma mesma classe. Aqui ‘organização do conhecimento’ é entendida de forma mais ampla como uma estrutura, sinalizando como o conhecimento pode ser entendido, organizado, descrito e representado, bem como o caminho em que ele possa ser acessado e disponibilizado (DAHLBERG, 1995, p. 10). Estava assim criada a ISKO, que, como uma sociedade interdisciplinar, traz consigo profissionais de muitas áreas diferentes, contando atualmente com mais de 500 membros em todo o mundo, oriundos de áreas como ciência da informação, filosofia, lingüística, ciência da computação, além de áreas específicas como informática médica. Para alcançar sua missão e seus objetivos, a ISKO trabalha para promover a pesquisa, o desenvolvimento e a aplicação dos sistemas de organização do conhecimento que avancem nas abordagens filosófica, psicológica e semântica para ordenar o conhecimento. Além disso, procura providenciar os recursos de comunicação e de rede de trabalho sobre organização do conhecimento para os seus membros, e funcionar como uma conexão entre as instituições e sociedades nacionais, trabalhando com os problemas relacionados à organização conceitual e o processo do conhecimento. Entre as principais atividades da ISKO destacam-se: a promoção de uma conferência internacional a cada dois anos (Darmstadt, Alemanha em 1990; Madras, Índia em 1992; Copenhagen, Dinamarca em 1994; Washington, Estados Unidos em 1996; Lille, França em 1998; Toronto, Canadá em 2000; Granada, Espanha em 2002; Londres, Inglaterra em 2004; Viena, Áustria em 2006); a promoção de conferências nacionais e regionais sobre assuntos específicos; 15 a publicação da principal revista científica da área: a Knowledge Organization (KO) que outrora recebia o título de International Classification (iniciada em 1974, e com a mudança de título ocorrida em 1993); a publicação da ISKO News (atualmente incorporada à KO); a publicação das séries Advances in Knowledge Organization (AKO) e Knowledge Organization in Subject Areas (KOSA). Todos esses produtos editoriais possuem um considerável nível de impacto na área. A ISKO6 está organizada da seguinte forma: um Comitê Executivo composto por 7 membros e um Conselho Científico Consultor com 22 membros, possuindo 17 capítulos nacionais, sendo que 9 desses estão atualmente ativos, como a República da China, República Tcheca, França, Alemanha (conjuntamente com a Áustria e a Suíça), Índia, Itália, Rússia, América do Sul e Espanha. Além disso, a ISKO coopera com organizações nacionais e internacionais, como a UNESCO, a Comissão Européia e a ISO (International Organization for Standardization). Também possui ligação com a IFLA (International Federation of Library Associations and Institutions), especialmente com a Seção sobre Classificação e Indexação; com a ASIS&T SIG/CR (Special Interest Group on Classification Research of the American Society for Information Science and Technology); com a NKOS (Networked Knowledge Organization Systems/Services); e o Infoterm (International Information Centre for Terminology). Portanto, a ISKO está concebida como um círculo internacional de pesquisadores, especialmente aqueles inerentes à Ciência da Informação, que trabalham com os problemas relacionados à organização conceitual do conhecimento, trazendo influências das teorias desenvolvidas por Ranganathan e pelo Classification Research Group. Assim, com o exposto até o momento, é possível entender e discutir o surgimento da Organização do Conhecimento enquanto área de estudos que procura abarcar, dentre outros aspectos, o tratamento temático da informação, mas para isso é necessário entender o que vem a ser Organização do Conhecimento. Como aqui o conhecimento é o objeto de estudo em questão, necessário se faz buscar subsídios para sua definição e entendimento, como é tratado a seguir. 6 Atualmente, a presidência da ISKO encontra-se sob a responsabilidade de Ia McIlwaine, da University College London, Inglaterra. 16 2.2 Objeto de Estudo e Conceito Como a atenção estava mais voltada para o tratamento descritivo das obras, ou seja, uma preocupação com o acervo documental, o paradigma da informação7 remete ao tratamento temático uma discussão acerca de seus estudos teóricos (fundamentação) e aplicados (construção de ferramentas). Quando a Organização do Conhecimento é focalizada no âmbito da Ciência da Informação8 tem-se uma área de estudos voltada às atividades de ordenação, representação e recuperação da informação registrada. Sua forte ligação com a Biblioteconomia inicia-se com os aportes teóricos desenvolvidos sobre os sistemas de representação da informação, aos quais se dedicam, por meio de estudos e práticas, os bibliotecários e demais profissionais da informação ligados à área. Henry Evelyn Bliss foi o primeiro pesquisador a utilizar a expressão “Organização do Conhecimento” em seus livros, a saber: The Organization of Knowledge and the System of Sciences, publicado em 1929; e, Organization of Knowledge in Libraries and the Subject Approach to Books9, datado de 1933. Em seguida, a expressão é usada no ano de 1971, na tese do alemão Dagobert Soergel, cujo tema era Organization of Knowledge and Documentation. Já no ano de 1973, Ingetraut Dahlberg defende sua tese com o título Foundations of Universal Organization of Knowledge. Atualmente o termo utilizado é, em inglês, Knowledge Organization, representado pela sigla KO (DAHLBERG, 1995, p. 10). A definição do objeto de estudo da Organização do Conhecimento ainda não alcançou um consenso entre os pesquisadores da área. Afinal, a que modalidade de conhecimento a área se dedica? Segundo Dahlberg (1995, p. 10), “conhecimento é a certeza subjetiva e objetivamente conclusiva da existência de um fato ou do estado de um caso. Conhecimento não é transferível. Ele pode somente ser adquirido por alguém através de sua própria reflexão”. 7 O paradigma da informação está amplamente relatado e discutido em Valentim (1996). 8 Apesar da necessária reflexão epistemológica e de toda a problemática envolvida, uma definição clássica da Ciência da Informação diz que essa ciência tem como objeto a produção, seleção, organização, interpretação, armazenamento, recuperação, disseminação, transformação e uso da informação (GRIFFITH, 1980). 9 Ressalta-se aqui que Bliss já preconizava o reconhecimento da Organização do Conhecimento enquanto um campo autônomo no sistema das ciências. 17 A declaração anterior remete ao conceito de conhecimento enquanto um processo individual. Entretanto, Guimarães (2000b, p. 208) observa que para a Organização do Conhecimento, enquanto área de pesquisa, o objeto de estudo é “algo sobre o qual existe um certo consenso social. Trabalha-se aqui com o conhecimento registrado e divulgado”. Esse aspecto é compartilhado por Barité (2001, p. 41) quando afirma que o objeto de estudo da Organização do Conhecimento é o “conhecimento socializado”, e relaciona, entre as suas nove premissas, uma onde se destaca que o conhecimento, enquanto objeto de estudo da área, é o registrado. Por outro lado, Jaenecke (1994, p. 4) expõe a necessidade de distinguir primeiramente conceitos da teoria da comunicação como mensagem e informação. Para o autor a mensagem “enquanto conjunto de caracteres existe independentemente do receptor”; e, informação está sempre relacionada a um destinatário. Isso pode levar a se colocar no mesmo nível ‘conhecimento’ e ‘conteúdo da mensagem’, visto que, neste último, “o conhecimento está contido em forma de declarações válidas universalmente” (grifo nosso), pois o conteúdo da mensagem “é a soma de todas as informações que podem ser extraídas dele”. É reconhecida a necessidade de organizar o conhecimento registrado, o que envolve representantes de diversas áreas, uma vez que essa organização tem a finalidade de disponibilizar o conhecimento para ser recuperado e assimilado, para gerar novos conhecimentos. Nesse sentido, Guimarães (2000b, p. 210) aponta que a Organização do Conhecimento possui uma dimensão cíclica, como “o estudo das possibilidades de organização de um conhecimento registrado sob a perspectiva de geração de novo conhecimento que, uma vez registrado, transforma-se em informação (conhecimento em ação, na concepção de Dahlberg, 1993, p. 214) para gerar novo conhecimento”. Ao analisar a literatura da área, os pesquisadores apresentam definições de Organização do Conhecimento com algumas dúvidas em relação ao seu alcance e significado. A partir do apontamento de Dahlberg (1993, p. 214) no qual é colocado que, “estamos vivendo em um mundo inundado por informação que necessita urgentemente ser ordenada e compilada para disponibilizar o conhecimento, não somente o conhecimento pessoal, mas o interpessoal, objetivo e público também”, tem-se uma seqüência de definições que expressam uma preocupação em relação às práticas que envolvem o tratamento que é dado ao conhecimento, bem como as formas e os instrumentos que permitem sua representação e recuperação (grifos nossos). 18 Para Hjørland (2003, p. 87), o conceito de Organização do Conhecimento para a comunidade da Biblioteconomia e Ciência da Informação “significa especialmente a organização da informação em registros bibliográficos, incluindo índices de citação, texto completo e internet”. No mesmo sentido, Smiraglia (2002, p. 331) relata que a Organização do Conhecimento, no âmbito da Biblioteconomia e Ciência da Informação é “o ramo do conhecimento da construção de ferramentas para o armazenamento e recuperação de entidades documentárias” (grifo nosso). Na reflexão de Barité (2001, p. 41), a Organização do Conhecimento “como disciplina dá conta do desenvolvimento de técnicas para a construção, a gestão, o uso e a avaliação de classificações científicas, taxonomias, nomenclaturas e linguagens documentárias”. Sigel (2000), por sua vez, trabalha sobre uma definição de que a “Organização do Conhecimento é uma atividade cultural interdisciplinar que adiciona valor informacional às coleções que contém conhecimento” (grifo nosso). O autor ainda complementa a definição relatando que, “atribui pontos de acesso de assunto aos itens nos quais as necessidades dos grupos de usuários do sistema de informação associado são melhores servidas”. Para Anderson (1996, p. 337), a Organização do Conhecimento é definida como “a descrição de documentos, seu conteúdo, características e propósitos, e a organização destas descrições, para fazer destes documentos e de suas partes acessíveis às pessoas, buscando-os ou as mensagens que eles contêm” (grifo nosso). Em sua preocupação, o autor continua seu relato mencionando que, “a organização do conhecimento cerca todo tipo e método de indexação, resumo, catalogação, classificação, gerenciamento de registros, bibliografia e a criação de bases de dados textuais ou bibliográficos para a recuperação da informação”. De acordo com García Marco (1995, p. 220), a Organização do Conhecimento é “uma disciplina científica (isto é, sujeita ao método científico) e social, de caráter aplicado”. E Esteban Navarro (1995, p. 66) coloca que a “Organização do Conhecimento apresenta-se como uma plataforma de integração das ciências documentais” (grifo nosso). Miranda (1999, p. 69) relata que, a Organização do Conhecimento se constitui em disciplina científica, inter e transdisciplinar, cujo objetivo é gerir e difundir em nível de excelência a informação no âmbito dos arquivos, bibliotecas, centros de informação/documentação e museus. Pressupõe análise, reflexão e aplicação de fundamentos científicos. 19 Estes conceitos permeiam a história da organização e representação do conhecimento ao longo dos tempos, principalmente no âmbito das bibliotecas, incentivando a pesquisa sobre o avanço teórico da área. Como se pode observar nos grifos que realizamos nos parágrafos anteriores, para a Ciência da Informação, a organização se desenvolve a partir de um conhecimento que possui materialidade, aspecto que demonstra a necessidade de uma maior delimitação na definição original de Dahlberg (1995, p. 10). 2.3 Fundamentos da Área Com os aspectos históricos pontuados anteriormente, bem como o conceito e objeto de estudo da Organização do Conhecimento abordados, têm-se alguns elementos que permitem iniciar uma discussão acerca dos fundamentos teóricos que envolvem a área. Ao analisar o panorama histórico verifica-se que muitos instrumentos de organização e representação do conhecimento foram estruturados de acordo com uma determinada época, um dado idealizador e uma posição filosófica assumida. Para Smiraglia (2002, p. 330), “no século dezenove, Panizzi (1841), Cutter (1876) e Dewey (1876) desenvolveram muitas ferramentas pragmáticas (isto é, catálogos e classificações), explicando como eles interpretavam os princípios nos quais suas ferramentas eram construídas”. Um passo adiante foi dado por Otlet e La Fontaine na tentativa de reunir, descrever e sistematizar o conhecimento produzido e disponibilizá-lo, de modo a que o mesmo pudesse ser tanto repertoriado (a idéia de bibliografia universal) quanto localizado (a idéia de notação classificatória). É necessário destacar que esses trabalhos estão envolvidos na premissa de que um dos fundamentos teóricos da Organização do Conhecimento reside no fato de que qualquer organização do conhecimento está baseada em unidades do conhecimento, conhecidas como conceitos. Os conceitos, por sua vez, são compostos de elementos, conhecidos como características do conceito. Então, é por esse item, importante na teoria da Organização do Conhecimento, que se torna possível a construção de sistemas de organização e representação do conhecimento (DAHLBERG, 1993, p. 211). 20 Para que se possa entender o progresso dos estudos na Organização do Conhecimento existe a necessidade de compreender o seu próprio significado e sua abrangência dentro da área da Ciência da Informação, que também procura consolidar-se. Dessa maneira, não é possível ignorar que os resultados de pesquisas acumulados ao longo dos tempos resultam em um grande número de padrões e diretrizes, bem como os desenvolvimentos teóricos como os princípios de Cutter, de 1904, os avanços na análise facetada e as mudanças na tecnologia da informação (HJ∅RLAND, 2003, p. 88). Entretanto, é difícil esboçar o progresso teórico e científico da área visto que, nesse campo, a maior parte dos pesquisadores segue linhas de pensamento diferentes, além de estar fragmentado, ocasionando a falta de uma melhor fundamentação teórica sobre a própria área, tais como: conceitos, critérios para inclusão de classes, significação, indexação, relações semânticas, assuntos, pontos de acesso por assunto, entre outros. Esse aspecto pode ser observado pela importação, para a Organização do Conhecimento, de paradigmas de outras áreas, resultando em uma verdadeira confusão paradigmática, pois são os estudos dos paradigmas que preparam os indivíduos para atuarem em uma determinada comunidade científica, unindo-os de forma articulada. No caso do Brasil, percebe-se que os grupos de pesquisa baseiam-se em paradigmas oriundos de pesquisas estrangeiras (MIRANDA, 1999, p. 69; 76). Não obstante, faltam à Organização do Conhecimento maiores explorações em relação à sua base metodológica, uma vez que seu desenvolvimento parece, na prática, influenciado muito mais pelo progresso da tecnologia da informação que pelo progresso da Organização do Conhecimento propriamente dito (HJ∅RLAND, 2003, p. 88). Essa incipiente preocupação metodológica pode estar relacionada com as fundamentações teóricas já desenvolvidas sobre sistemas de organização e representação do conhecimento, especialmente classificações e tesauros. Para Fujita (2001, p. 29), “os sistemas de classificação idealizados com base em concepções da teoria do conhecimento marcam os primórdios da organização do conhecimento em Biblioteconomia e Documentação”. Nesse cenário, Mai (2004, p. 39) discute a relatividade e a estabilidade inerentes à pesquisa sobre os sistemas de classificação, apontando para necessidade de mudanças, levando em consideração um contexto específico. 21 O autor diferencia teoria da classificação10 moderna da pós-moderna, apontando que, enquanto a classificação moderna visa a representar o universo do conhecimento, a pós- moderna visa a fornecer uma ferramenta pragmática para domínios específicos. Farradane (1955, p. 188 apud MAI, 2004, p. 40) observa que, “o objeto da ciência da classificação é ter certeza que a ‘classificação é uma representação da verdadeira estrutura do conhecimento’” (grifo nosso). Porém, os esquemas de classificação bibliográficos são produtos de seu tempo e de seus criadores, influenciados pelos momentos histórico e sócio-político nos quais vivem. Os esquemas de classificação gerais e universais foram construídos tendo como base filosófica uma visão de que o ser humano é o foco central do universo, que acredita no progresso através da ciência e da pesquisa e que privilegia a documentação escrita sobre outras formas (RAFFERTY, 2001, p. 184). Nesse sentido, o desenvolvimento da área parece estar influenciado pelo progresso da tecnologia da informação; porém, isso revela um sinal de crise, pois o desenvolvimento não está ocorrendo pela sua própria pesquisa. Na literatura, é destacado que o progresso da Organização do Conhecimento é influenciado por cinco estágios direcionados pela tecnologia da informação, a saber: indexação manual e classificação em bibliotecas e serviço de referência; documentação e comunicação científica; armazenamento e recuperação da informação por computadores; recuperação baseada em citação e Organização do Conhecimento; texto completo, hipertexto e internet (HJ∅RLAND, 2003, p. 88-91). Para Hjørland (2003, p. 93), a Organização do Conhecimento envolve dois tipos de organização: a organização intelectual do conhecimento, ou organização cognitiva do conhecimento, que utiliza conceitos, sistemas conceituais e teorias; e, a organização social do conhecimento, que é a organização em profissões, negócios e disciplinas. Essa divisão resulta na existência de diferentes teorias ou estruturas conceituais destes dois tipos de organização. E Hjørland (2003, p. 93) continua explicando que o primeiro tipo de organização admite conceitos científicos, teorias e campos como reflexo de uma realidade neutra e objetiva (a “ciência como espelho”, relacionada ao racionalismo), ao passo que o segundo tipo de organização aceita conceitos científicos, teorias e campos como ferramentas úteis 10 Teoria da classificação é freqüentemente encontrada na literatura como idéias ou princípios de classificação (SMIRAGLIA, 2002, p. 330) 22 construídas de forma a permitir aos seres humanos acomodarem as demandas da vida (a “ciência como mapa”, relacionada ao pragmatismo). Nesse sentido, Smiraglia (2002, p. 330) relata que, na Organização do Conhecimento, a “geração de teoria tem se movido de uma posição epistêmica de pragmatismo (baseada na observação da construção de ferramentas de recuperação), para o empirismo (baseada nos resultados de pesquisa empírica)”. Entretanto, Rafferty (2001, p. 184) observou que é enfatizada a natureza pragmática dos esquemas de classificação bibliográficos, porém o pragmatismo é um termo incerto, pois é definido, às vezes, como aquele que é bom ou para que serve; no entanto, em uma aproximação crítica, pode-se perguntar para quem o esquema é bom ou para quem ele serve. Dessa forma, tem-se que a classificação bibliográfica reflete, ou tem a ela atribuída, uma ideologia11 dominante, como as decisões sobre as classes principais, as divisões, as subdivisões e a ordem das coisas. No que se refere aos métodos de organização do conhecimento, como os de construção de classificações e tesauros, bem como o processo de indexação e de classificação, é necessário distinguir entre classificação nas ciências e, especificamente, na Ciência da Informação, uma vez que os métodos da Organização do Conhecimento em Ciência da Informação estão conectados aos mesmos paradigmas fundamentais da epistemologia, como os métodos de classificação em ciências e outros campos, implicando em uma discussão fundamental de base ligada à discussão de diferentes teorias epistemológicas (HJ∅RLAND, 2003, p. 104). A essa discussão estão aliados os nove princípios de organização do conhecimento, estabelecidos por Hjørland (1994, p. 91-100), que visam a minimizar os problemas de busca e recuperação da informação, preocupando-se com os problemas da organização do conhecimento. Os princípios são baseados em uma visão de conhecimento como um produto desenvolvido historicamente, a saber: 1) a percepção realístico-ingênua de estruturas do conhecimento não é possível em ciências mais avançadas (critério esse baseado na filosofia da ciência); 11 Ideologia é um termo inventado pelo sensualismo de Destutt de Tracy, em 1796, no seu Project d’Élements d’Idéologie, e significa ciência das idéias, o estudo sistemático e crítico dos fundamentos das idéias. Sofre uma evolução semântica: de ciências das idéias passa a aspiração reformista envolvendo um programa político. Foi Karl Marx quem começou a fazer uso político dela quando escreveu um livro junto com Friedrich Engels, intitulado ‘A ideologia alemã’. Nessa obra eles mostram como, em toda a sociedade dividida em classes, aquela que domina as demais faz de tudo para não perder essa condição (CHAUI, 1981). 23 2) categorizações e classificações devem reunir assuntos relacionados e separar assuntos distintos; 3) para fins práticos, o conhecimento pode ser organizado de diferentes formas, e com diferentes níveis de ambição; 4) qualquer categorização deve refletir seu próprio objetivo; 5) categorizações científicas concretas e classificações sempre podem ser questionadas; 6) o conceito de polirrepresentação12 é importante; 7) diferentes artes e ciências podem, de certo modo, ser entendidas como diferentes formas de organizar os mesmos fenômenos; 8) a natureza das disciplinas varia; 9) a qualidade da produção do conhecimento em muitas disciplinas enfrenta uma situação confusa. Aliadas a estes princípios estão as dez premissas básicas que dão razão de ser e justificação intelectual à Organização do Conhecimento, propostas por Barité (2001, p. 42- 53). São elas: 1) o conhecimento é um produto social, uma necessidade social e um dínamo social; 2) o conhecimento se realiza a partir da informação, e ao se socializar se transforma em informação; 3) a estrutura e a comunicação do conhecimento formam um sistema aberto; 4) o conhecimento deve ser organizado para seu melhor aproveitamento individual e social; 5) existem “n” formas possíveis de organizar o conhecimento; 6) toda organização do conhecimento é artificial, provisional e determinista; 7) o conhecimento se registra sempre em documentos, como conjunto organizado de dados disponíveis, e admite usos indiscriminados; 8) o conhecimento se expressa em conceitos, e se organiza mediante sistemas de conceitos; 9) os sistemas de conceitos se organizam para fins científicos, funcionais ou de documentação; 10) as leis que regem a organização de sistemas de conceitos são uniformes e previsíveis, e se aplicam por igual a qualquer área disciplinar. Nos princípios mencionados por Hjørland (1994) existem, implicitamente, as preocupações com a questão representativa e de recuperação do conhecimento. Os princípios 1, 2 e 3 tratam da percepção da estrutura do conhecimento, levando em consideração que a 12 Proposto por Ingwersen (1994). 24 organização deste esteja baseada em teorias desenvolvidas por disciplinas científicas, em critérios da filosofia da ciência, no intuito de separar ou unir assuntos que possam ser tratados na perspectiva de uma classificação pragmática ou de uma classificação científica. Também se expressam as formas de representação por meio de conceitos, bem como os devidos questionamentos sobre tais representações (princípios 4, 5 e 6), que consideram as distintas naturezas das ciências, bem como seu entendimento sobre um determinado fenômeno, o que se reflete na forma de representá-lo e organizá-lo (princípios 7 e 8). O princípio 9 trata especificamente da problemática que envolve a qualidade da produção do conhecimento em muitas disciplinas. O autor sugere que a organização do conhecimento poderia ajudar os usuários a identificar e distinguir entre documentos relevantes e não relevantes. Neste sentido, Jaenecke (1994, p. 5) argumenta que antes de discutir a forma e o objetivo da Organização do Conhecimento, é necessário discutir para que ela serve. E para isso, o pesquisador aponta a existência de conhecimento-núcleo, de conhecimento-periférico e de pseudoconhecimento13, relatando que estes dois últimos causam uma desordem no estoque do conhecimento, necessitando que a área encontre medidas para contê-los, como a exclusão de documentos que contêm pseudoconhecimento, avaliações de qualidade e sintetização do próprio conhecimento. Entretanto, Kiel (1994, p. 152) rejeita a tese de Jaenecke (1994), argumentando que a Organização do Conhecimento necessita de uma abertura epistemológica que proporcione suporte aos usuários em vez de controlá-los. Por sua vez, Barité (2001) em suas dez premissas aponta a transformação da informação em conhecimento, devido ao fato de ser um produto social que se constitui em um sistema aberto (premissas 1, 2 e 3). E que, o conhecimento registrado pode ser organizado, através de diferentes formas específicas e determinadas (premissas 4, 5, 6 e 7), pois este se expressa em conceitos e os sistemas de conceitos se organizam com uma finalidade científica, funcional, documentária e serve para qualquer área ou campo do saber (premissas 8, 9 e 10). Então, isso revela que desde a construção de ferramentas pragmáticas, como os sistemas de classificação, até a discussão dos princípios propostos por esses pesquisadores, o ponto fundamental da Organização do Conhecimento reside em que sua base é fortemente 13 No conhecimento-núcleo encontra-se a base e a episteme de um determinado conhecimento, enquanto que o conhecimento-periférico se forma paralelamente ao núcleo, acrescentando a este último novos aspectos ou ainda corrigindo-os. Já o pseudoconhecimento em nada contribui, uma vez que este se forma pelo imenso fluxo de mensagens, composto de idéias vagas e incertezas (JAENECKE, 1994, p. 5). 25 conectada à discussão de diferentes bases epistemológicas14, uma vez que a Organização do Conhecimento não pode ignorar conceitos e teorias de disciplinas específicas, pois tanto os métodos quanto a teoria do conceito estão ligados às teorias epistemológicas (HJ∅RLAND, 2003, p. 107). As teorias epistemológicas que embasam os pressupostos teóricos e os métodos da Organização do Conhecimento constituem, como ressalta Hjørland (1998, p. 608), mais especificamente, no Empirismo (derivado da observação e experiência), no Racionalismo (derivado do emprego da razão), no Historicismo (derivado da hermenêutica cultural) e no Pragmatismo (derivado da consideração dos objetivos e suas conseqüências). Dessa forma, para se alcançar uma estrutura teórica desejada para explicar os fenômenos acerca da Organização do Conhecimento faz-se necessária uma variedade de posições epistêmicas. Para Smiraglia (2002, p. 341), “o pragmatismo pode sugerir o que fazer, o empirismo pode descrever os fenômenos únicos em contextos isolados, o racionalismo e o historicismo podem nos ajudar a descobrir as verdades inevitáveis da ordem natural das entidades do conhecimento”. Assim, é possível entender que não há uma simples e formal declaração sobre a teoria da Organização do Conhecimento, mas estudos que buscam entender as limitações e possibilidades que a compõem. De Calimacus até hoje, a organização do conhecimento e, por decorrência, sua representação, têm sido estabelecidas de acordo com teorias epistemológicas que podem melhor explicar seus fenômenos e estudos. Portanto, faz-se necessário o entendimento sobre a questão da representação, como é tratado a seguir. 2.4 A Questão da Representação A palavra representação tem sido empregada, no âmbito ocidental, como uma forma de apreender um objeto ou conceito, tratando-se de uma significação, simbolização ou referência a uma coisa distinta de si mesma, estabelecendo uma relação com aquilo que se representa ou substitui (SAN SEGUNDO MANUEL, 2003, p. 395). 14 Segundo Smiraglia (2002, p. 342), “Epistemologia é a divisão da filosofia que investiga a natureza e origem do conhecimento”. 26 Aristóteles considerava que é a mente humana que busca a ordem já existente no universo. Assim, a concepção de representação está diretamente ligada à correspondência da realidade. Essa concepção é considerada obsoleta, uma vez que parte da inexistência de representações. Kant por sua vez, propõe uma concepção de representação inversa à de Aristóteles, visto que considera que o sujeito pensante é quem intervém e impõe uma ordem mental à realidade e aos fenômenos (SAN SEGUNDO MANUEL, 2003, p. 396). No tocante ao universo informacional, Charles Sanders Pierce, filósofo pragmático, sustenta que o conhecimento será mediado pelo seu contexto e pelo próprio sujeito, admitindo a existência das coisas à margem do pensamento, mas para que essas sejam percebidas existe um condicionamento sobre as mesmas que determina seu conhecimento. Tem-se aqui a influência significativa do Pragmatismo, que é uma corrente filosófica que propõe a idéia de verdade como princípio prático, apontando para um idealismo transcendental que reitera o caráter construtivo dos conceitos, chegando a sua própria realidade (SAN SEGUNDO MANUEL, 2003, p. 396). A Filosofia da Linguagem também abordou a questão da representação enquanto aspecto da linguagem e não mais da mente. Encontram-se, nesse sentido, as propostas de Ludwig Wittgenstein frente ao problema da representação: o Tractatus Logico-Philosophicus, que considera a linguagem como representação, pois representa o mundo; e o Investigations Philosophiques, que considera a representação como um jogo de linguagem. Nessa corrente de pensamento o conhecimento não se refere à realidade e, sim, à linguagem (SAN SEGUNDO MANUEL, 2003, p. 397). De acordo com San Segundo Manuel (2003, p. 397), o pragmatismo atual considera que não existe representação estrita como tal. [...] A representação como espelho é uma metáfora física que vem a expressar que o representado e o representante são muito semelhantes, não obstante as representações estão impregnadas pelo sujeito que as prescreve. A priori, as correntes filosóficas não abordam a questão da representação de forma singular e muito menos consensual. De uma forma geral, para a Filosofia a noção de representação está diretamente ligada à realidade. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos através de seus postulados sobre hermenêutica propõe duas rupturas epistemológicas, a saber: a de ir contra o senso comum, no intuito de fazer ciência; e a de integrar o senso comum à reflexão, evitando uma excessiva racionalização. Assim, Boaventura Santos compreende a noção de representação sob um 27 caráter mais sociológico e pedagógico, propondo um método para analisar as formas de conhecimento (LARA, 1999, p. 34). Dessa maneira, Boaventura Santos não segue com a noção de que as representações são cópias da realidade, como proposto por Kant. Para o autor, a exatidão da representação é oriunda da filosofia natural que concebe a mente como um espelho que contém várias representações (LARA, 1999, p. 35). Ressalta-se que foi o autor quem atribuiu a importância do critério social para a definição da utilidade da representação. Para Lara (1999, p. 37), Richard Rorty contribuiu significativamente com a questão da representação. Assim como Boaventura Santos, Rorty também rompeu com a normativa positivista, porém, definiu-se como partidário de um ‘behaviorismo epistemológico’. Para Rorty (1988, p. 300), a representação está ligada a sua justificação, sendo sua legitimação sempre temporária, local e variável. As representações são sempre hipóteses válidas circunstancialmente e justificadas à base de crenças e convicções particulares, o que leva a questionar as propostas que se pretendem universais, pois não há como chegar a descrições únicas da realidade. Com esse cenário é que se aborda a questão da representação no âmbito da Ciência da Informação, especificamente na Biblioteconomia e Documentação. Em que se pese o afastamento da discussão conceitual, aqui será considerado que os termos ‘representação do conhecimento’, ‘representação da informação’ e ‘representação documentária’ possuem significados similares, uma vez que a representação, no âmbito da Ciência da Informação, visa a promover o acesso ao conteúdo dos documentos para uso e posterior geração de novos conhecimentos. Além disso, o termo ‘representação do conhecimento’ é adotado e reconhecido pela ISKO e, no mais das vezes, ligado a uma dimensão temática. San Segundo Manuel (2003, p. 398) constata que a Biblioteconomia recolhe os postulados do pragmatismo para fundamentar um conceito de representação mais preciso como aplicação e preservação de estruturas, o que resulta em uma tendência reducionista, propondo que as representações servem para reduzir a realidade supérflua. Miranda (1999, p. 68) destaca que as representações, enquanto ponto de partida para ações sociais, refletem momentos históricos, teorias, paradigmas, ideologias e culturas, mas que, embora se aproximem da realidade, podem ter interpretações variadas. O autor prossegue relatando que, 28 a representação não deve alterar o objeto representado mas isto torna-se impossível na medida em que a representação é uma leitura do objeto e sofre diversas influências que dificultam a manutenção de parâmetros culturais no intercâmbio representacional. Como a tarefa de representar resulta em uma maneira de compreender a realidade, a ela necessita-se empreender uma expressão de racionalidade, associando princípios, categorias, procedimentos e normas, a fim de que essa atividade se torne estável (MIRANDA, 1999, p. 68) (grifo nosso). O conceito de ‘representação do conhecimento’ é explicado de forma concisa e, por vezes, congruentes pela literatura da área, mesmo em que pese à utilização distinta do termo. Para San Segundo Manuel (2003, p. 398), representação do conhecimento significa a simbolização de livros ou documentos, possuindo raízes nas correntes filosóficas do pragmatismo e do reducionismo. Assim, no contexto científico, a representação abarca a descrição física e de conteúdo dos livros e documentos, eliminando a ‘complexidade supérflua’, fazendo com que, os objetos representantes sejam substitutos dos objetos representados. Nesse sentido, Guimarães (2000c, p. 51) afirma que o tratamento de conteúdo assume uma dimensão estratégica, tendo em conta que o documento (registro do conhecimento) se transforma em representante ou substituto de idéias e criações de um gerador de conhecimentos que geralmente não pode estar presente15. Segundo Barité (1997, p. 135), a representação do conhecimento é um ramo da Organização do Conhecimento que compreende o conjunto dos processos de simbolização notacional ou conceitual do saber humano no âmbito de qualquer disciplina. Na representação do conhecimento se compreende a classificação, a indexação e o conjunto de aspectos informáticos e lingüísticos, relacionados com a tradução simbólica do conhecimento. Nesse sentido, Guimarães (2003, p. 102) explica que essa representação é parte integrante de um âmbito maior de estudo denominado Análise Documentária, que compreende um conjunto de procedimentos a serem efetuados com o objetivo de facilitar o uso da informação. Esses procedimentos são operações fundamentais e interdependentes tais como a produção, a organização, a recuperação, a disseminação e o uso da informação. 15 O autor resgata, aqui, a idéia de “surrogate of knowledge” atribuída ao documento. 29 Dessa forma, para o autor, a Análise Documentária agrega, nos termos da literatura francesa e espanhola, os conceitos de análise e documento, assumindo a dimensão de forma e de conteúdo, distribuídas em dois níveis: - Análise formal: abrange a descrição bibliográfica com o objetivo de criar registros, com a finalidade de identificá-los e localizá-los. - Análise de conteúdo: abrange o processo de condensação documentária e de representação por meio de linguagens documentárias, com a finalidade de produzir resumos e índices. Assim, a Análise Documentária visa a expressar os aspectos descritivos e temáticos do documento. Entretanto, em relação aos seus procedimentos, alguns pesquisadores têm destacado que na literatura da área existe uma identidade entre o tratamento temático e a indexação. Por outro lado, outros estudiosos entendem que a análise documentária é uma área na qual se insere a indexação, que por sua vez reflete a representação documentária, utilizando-se das linguagens documentárias para gerar produtos documentários, como os índices e as notações (GUIMARÃES, 2003, p. 103). Lara (1999, p. 143-153) apresentou algumas características em relação à natureza da representação do conhecimento, que são: a) ambivalente, pois ocorrem operações de agregação e desagregação, reconhecendo que o excesso de regulamentação das linguagens documentárias leva ao enrijecimento das relações comunicativas, fazendo parecer o fundamento da informação; b) dinâmica, pois se compõe de signos construídos; c) funcional, pois seu valor se dá temporal e circunstancialmente; d) intencional, visto que a informação documental conduz à interpretação; e) mediadora entre linguagem do sistema e a do usuário. Nesse sentido se identifica dois tipos de representação no processo de Análise Documentária, sendo que, no primeiro, a representação é construída através de um processo de condensação intensiva do texto original, gerando vários produtos documentários (tipos distintos de resumos). No segundo tipo, a representação é realizada através de uma linguagem documentária, no intuito de normalizar as unidades conceituais (LARA, 1999). 30 Então, a Análise Documentária propicia a identificação dos produtores, do contexto da produção, além dos conteúdos informacionais (GALVÃO, 2003, p. 232), ou dito de outra forma, explicita os aspectos intrínsecos e extrínsecos do documento, através de um conjunto de procedimentos de natureza analítico-sintética (GUIMARÃES, 2003, p. 103). Esse conjunto de procedimentos de natureza analítico-sintética é especificado na literatura como análise, síntese e representação do conhecimento, e atuam de forma interdependente. A análise tem por objetivo a identificação de conteúdos informacionais, exigindo do profissional conhecimento e identificação tipológica do texto, bem como de suas superestruturas, além do conhecimento das políticas institucionais e o perfil dos usuários. A síntese, por sua vez, envolve a seleção e a coleta do conteúdo informacional, tornando-se uma fase intermediária entre a análise e a representação. Já a representação irá explicitar forma e conteúdo dos documentos, sendo que o conteúdo pode resultar em índices e resumos (GALVÃO, 2003, p. 232). Guimarães (2003, p. 104) apresentou um resgate histórico relativo a Análise Documentária e, ressaltou que, nas discussões pela busca metodológica que justifique esse conjunto de procedimentos cientificamente, pouca atenção tem sido dada à etapa de análise, visto que essa etapa de localização e identificação de conceitos através da leitura, era encarada como uma operação empírica, que resultava em diversos critérios sem parâmetros científicos que lhes conferissem autenticidade. Entretanto, destacam-se as atuais pesquisas desenvolvidas no âmbito da leitura no processo de análise documentária com o uso do protocolo verbal por Fujita (2003). Na literatura da área, as etapas do processo de análise documentária são diferentemente denominadas, mas não diferem quanto ao conteúdo. Guimarães (2003, p. 112) sistematizou as etapas no tocante às etapas de análise e síntese, reproduzidas a seguir: - Etapa analítica: - Leitura técnica do documento, em que o documentalista adentra na estrutura do documento, buscando tomar contato com as partes que revelem maior conteúdo temático valendo-se, para tanto, de um conjunto de estratégias metacognitivas. - Identificação de conceitos: uma vez identificadas as partes mais significativas tematicamente, aplica-se ao documento um conjunto de categorias conceituais, visando à construção de enunciados de assunto. 31 - Etapa sintética: - Seleção de conceitos: os enunciados de assunto são, então, categorizados em principais, secundários e periféricos, e ordenados logicamente, tendo como parâmetros a estrutura, a função e os usos (tipo de busca informacional a que se presta o documento). - Condensação documentária: redução do documento original a um microdocumento (resumos). - Representação documentária: tradução do conteúdo temático do documento em linguagem de indexação, representando-o por meio de índice. De certa forma, observa-se uma convergência nas idéias de Guimarães e Galvão, à medida que interpretam a questão da representação enquanto um processo da análise documentária. Enquanto produtos documentários gerados durante as etapas de condensação e representação têm-se, respectivamente, o resumo e o índice. Galvão (2003, p. 232) ressalta que, os índices associam assuntos, termos, palavras e/ou descritores aos vários conteúdos informacionais, que podem estar dispersos em vários textos, permitindo assim a identificação, seleção e recuperação [...]. Os resumos são condensações intensivas dos conteúdos informacionais dos textos originais, mas que preservam suas estruturas e vocabulários. O processo de condensação não será aqui objeto de discussão mas sim, o processo de representação, uma vez que é necessário conhecer os fenômenos que interferem no tratamento e no acesso à informação, especialmente nesse caso, os desvios que se encontram no momento da representação. Os instrumentos usados no processo de representação são as linguagens documentárias, que são linguagens artificiais e padronizadas que visam a representar o conteúdo informacional para posterior recuperação. Guimarães (2003, p. 103) entende as linguagens documentárias também como linguagens de indexação e as denomina como “conjunto de instrumentos ou ferramentas para a representação padronizada do conteúdo temático dos documentos”, consistindo em sistemas de classificação, tesauros e listas de cabeçalhos de assunto. 32 As linguagens documentárias são estáticas e homogêneas, porque seguem convenções estabelecidas no conjunto do próprio sistema. Entretanto, elas não se livram de interferências culturais, pois são construídas a partir da linguagem natural (CINTRA et al., 2002, p. 16). Gardin et al. (1968 apud CINTRA et al., 2002, p. 35) destacou que uma linguagem documentária “é um conjunto de termos, providos ou não de regras sintáticas, utilizadas para representar conteúdos de documentos técnico-científicos com fins de classificação ou busca retrospectiva de informações”. São elementos integrantes de uma linguagem documentária: o léxico (lista de descritores), a rede paradigmática (relação lógico-semântica entre os descritores, a classificação), a rede sintagmática (relação contingente entre os descritores, o tema). Nesse contexto os tipos básicos de relações existentes nas linguagens documentárias são as Hierárquicas (genéricas, específicas e partitivas); e as não hierárquicas ou seqüenciais, denotando coordenação ou associação não linear de termos, e em termos lingüísticos, deparam-se com a necessidade de resolução de problemas como polissemia e ambigüidade (diferentes interpretações e diferentes significados para um mesmo significante); Sinonímia (que leva ao delineamento da relação de equivalência) e Hiponímia (relações gênero-espécie), dentre outros (CINTRA et al., 2002, p. 55-66). Em termos concretos, para a representação do conhecimento em bibliotecas, por exemplo, destacam-se como instrumentos os sistemas de classificação, as listas de cabeçalhos de assunto e os tesauros. Existe para a área de Organização e Representação do Conhecimento uma classificação específica, estabelecida por Ingetraut Dahlberg (1993). A seguir está um relato sobre essa classificação. 2.5 Sistema de Classificação de Dahlberg A partir dos princípios teóricos e metodológicos discutidos ao longo da temática da área de organização do conhecimento, destacam-se os trabalhos da ISKO, em especial o desenvolvimento de um sistema de classificação para a literatura de organização do conhecimento, proposto por Ingetraut Dahlberg (1993, p. 213). 33 Esse sistema de classificação possui uma divisão em dez grupos, numa seqüência de 3 x 3, designada de Systematifier. Segundo Dahlberg (1993, p. 212), “é uma seqüência de facetas, que pode ser usada em todas as áreas e campos de assunto e ajuda a memorizar o que precisa ser considerado como objeto para cada campo de assunto”. O sistema tem o seguinte nível primário: 0 Divisões de Forma. 1 Fundamentos Teóricos e Problemas Gerais de Organização do Conhecimento. 2 Sistemas de Classificação e Tesauros. Estrutura e Construção. 3 Metodologia de Classificação e Indexação. 4 Sistemas de Classificação Universais. 5 Sistemas de Classificação de Objetos Especiais (Taxonomias). 6 Sistemas de Classificação de Assuntos Específicos. 7 Representação do Conhecimento por meio de Linguagem e Terminologia. 8 Classificação e Indexação Aplicadas. 9 Ambiente da Organização do Conhecimento. O primeiro grupo (0) está voltado exclusivamente à forma do documento. Os grupos 1-3 representam as divisões de campo caracterizadas por: fundamentos teóricos; estrutura e construção de sistemas de classificação e tesauros; e, classificação e indexação. Os grupos 4-6 representam a aplicação das divisões como: sistemas universais; sistemas de classificação orientados a objeto e tesauros; e, sistemas de classificação orientados a assuntos especiais e tesauros. Os grupos 7-9 representam a influência, aplicação e o ambiente da área de Organização do Conhecimento, tais como: problemas de representação do conhecimento por meio de linguagem e terminologias; aplicação da classificação e indexação para diferentes tipos de dados e documentos; e, organização do campo em níveis nacional e internacional, seus projetos educacionais e de treinamento, seus aspectos legais e econômicos, além de estudos de usuários e padrões. O Sistema de Classificação para a Literatura de Organização do Conhecimento, que se chamava Classificação da Literatura de Classificação (CFC), estrutura a Bibliografia Internacional de Classificação e Indexação, além de contribuir para o entendimento do alcance, das possibilidades e das implicações da área, que são representados pelos trabalhos publicados. Dessa forma, o sistema idealizado por Dahlberg tem sido utilizado como parâmetro para entender o progresso da área e também como subsídio para pesquisas. Guimarães e Fernández-Molina (2003, p. 812) utilizaram esse sistema para amparar 34 metodologicamente um trabalho que objetivou apontar aspectos éticos de organização e representação do conhecimento em artigos publicados na revista Knowledge Organization, com a justificativa de que, sendo um sistema de estrutura decimal, “parte de uma classe inicial teórica (classe 1) para, em continuação, centrar-se na construção de instrumentos (classe 2) e no desenvolvimento de processos da área (classe 3)”. Os autores relatam ainda que, “as classes 4, 5 e 6, por sua vez, dedicam-se aos instrumentos gerais e específicos da área no âmbito da classificação para, na classe 8, centrar- se no processo de representação por meio da linguagem e da terminologia”. E eles finalizam assimilando que, “a classe 9 é a que, a nosso ver, representa a dimensão da atuação profissional na organização e representação do conhecimento”. Entretanto, ao analisar esse sistema, Guimarães e Fernández-Molina (2003, p. 813) notaram que o tema ‘ética’ não está contemplado no próprio instrumento. Assim, os autores sugerem que a ética deva ser um ramo temático da área, de maneira que fosse contemplado com uma notação específica. Essa notação, segundo os pesquisadores, poderia estar inserida na classe 9 (Ambiente da Organização do Conhecimento), pois as notações 912 (Questões Profissionais) e 96 (Questões Legais) são adequadas para recepcionar a temática. Os autores também analisaram a notação 17 (Problemas em Organização do Conhecimento), entretanto, essa notação estaria voltada para as questões intrínsecas dos instrumentos da área. Pelo até então exposto, observa-se que a área vem percorrendo uma trajetória que reúne a dimensão pragmática dos instrumentos à busca por uma base epistemológica que a explique e sustente. No entanto, tais dimensões encontram, na atualidade, um ponto de confluência que nos leva a uma reflexão específica: os valores envolvidos nessa trajetória, desde seus aspectos teóricos até os aspectos mais pragmáticos do exercício profissional da área de informação. Desse modo, logo a seguir será abordada uma temática que, notadamente a partir do impacto das novas tecnologias na representação do conhecimento, vem merecendo estudos: a ética em representação do conhecimento. 35 3 A ÉTICA NAS ATIVIDADES INFORMATIVAS E SEU IMPACTO NA REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO Aqui se encontra o conceito de ética e seu entendimento realizado por filósofos ao longo da história, bem como, discute a ética no âmbito profissional, visto que esse espaço está imbuído de um código moral que orienta a atuação profissional. Além disso, traz a ética nas atividades informativas, motivada principalmente pelo surgimento das tecnologias informacionais; e também, dos valores, avanços e problemas que cercam a ética na representação do conhecimento. 3.1 Ética A sociedade, na busca por sua evolução encontra, no bem-estar dos indivíduos, um aspecto que possa contribuir para esse crescimento. Nesse sentido, é possível avaliar as atitudes das pessoas como certas ou erradas, ou ainda, como boas ou ruins. A ética, enquanto ramo da Filosofia, busca estudar o modo de agir do ser humano junto aos seus semelhantes. Então, para entendê-la, Martins (1994, p.3) ensina que, “a ética, também chamada filosofia moral, é a parte da filosofia que reflete sobre os princípios da vida moral, isto é, dos valores em sociedade”. Guimarães (2000a, p. 65) destaca que se tem na ética o “estudo do bem-fazer ou do bem-agir no âmbito da interação humana, pressupondo uma concepção de homem como ser livre, autônomo e dono de suas próprias idéias e atos”. Para Sá (2001, p. 16), a ética é estudada sob dois aspectos: 1º como ciência que estuda a conduta humana dos seres humanos, analisando os meios que devem ser empregados para que a referida conduta se reverta sempre em favor do homem. [...], 2º como ciência que busca os modelos da conduta conveniente, objetiva, dos seres humanos. É possível observar, então, que a ética busca entender o ato comportamental do ser humano, além de estudar como se dá um determinado comportamento ou conduta. Porém, 36 muitos confundem ética com moral. Para explicar esse mal-entendido, Martins (1994, p. 3) relata que, “enquanto a primeira reflete sobre os fundamentos e princípios da vida moral, a moral estabelece as regras do que é considerado boa conduta, dentro de um tempo histórico e de uma cultura determinada” (grifo nosso). Com isso, o ser humano vai construindo sua conduta16, discernindo entre o certo e o errado, através de meios emancipatórios de bem-estar coletivo, visto que a ética pode ser entendida através de problemas morais práticos, mesmo que voltada à realidade de cada época. Ao longo da história, o estudo da ética dividiu-se em quatro doutrinas: Ética Grega (sofistas, Sócrates, Platão, Aristóteles, estóicos e epicuristas); Ética Cristã Medieval (Ética Religiosa, Ética Cristã Filosófica); Ética Moderna (Ética Antropocêntrica no Mundo Moderno, Ética de Kant); e Ética Contemporânea (de Kierkegaard ao Existencialismo, Pragmatismo, Psicanálise e Ética, Marxismo, Neopositivismo e Filosofia Analítica) (SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 1975 apud GUIMARÃES, 2005b). Diversos filósofos, oriundos de diferentes escolas de pensamento, buscaram entender essa procura do ser humano pelo bem17. Tais estudos são concebidos como clássicos na literatura e foram influenciados por aspectos políticos, religiosos e econômicos. Alguns filósofos que se dedicaram ao assunto são18: Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês que apresentou, não de uma maneira lógica científica e nem epistemológica, porém com convicção suficiente, estudos determinando sua forma de entender a conduta do ser humano como um meio de conservar a si mesmo. Baruch Espinosa (1632-1677), filósofo holandês, que mesmo sendo seguidor de um racionalismo religioso, entendeu que era necessário desejar o bem para si mesmo com o intuito conveniente de conservar o bem-estar. John Locke (1632-1704), filósofo inglês, que defendeu a experiência como método, auxiliada pela sensação e reflexão, acompanhando a tendência de conservação do ser. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), filósofo alemão, que produziu uma doutrina idealista, entendendo que as normas da moral não são inatas, existindo sim, verdades inatas. 16 Segundo Sá (2001, p. 24), “a conduta do ser é sua resposta a um estímulo mental, ou seja, é uma ação que se segue ao comando do cérebro que, manifestando-se favorável, também pode ser observada e avaliada”. 17 Aqui entendido como um valor ético por excelência, como em Martins (1994, p. 3). 18 Extraídos, principalmente, de Sá (2001, passim). 37 David Hume (1711-1776), filósofo inglês, criador da filosofia fenomenista, destacou-se como um questionador das causas promotoras das virtudes e foi precursor de conceitos sobre os móveis da conduta humana, aqui entendidos, dentre outros, como os valores. Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão, autor da obra Crítica da Razão Pura, datada de 1781, isolou a metafísica da moral, revelando que o ambiente produz a sensação, mas é o cérebro que prevalece sobre tudo. Dessa forma, ele atribuiu à razão a origem das ações éticas, sugerindo que a vontade humana é regida por imperativos categóricos19 pois, para o filósofo, a conduta do ser humano deve estar em consonância com princípios universais. Jeremy Bentham (1748-1832), filósofo inglês, radicalista e utilitarista, considerou a moral como uma das quatro fontes que produzem o prazer e a dor nos seres humanos. Henri Bergson (1859-1941), filósofo francês, que enfocou seus estudos no que denominou moral fechada e moral aberta, aceitando a ética como uma finalidade a ser perseguida. Já os propulsores dos estudos sobre o valor, na ética, foram os filósofos alemães Max Scheler e Edward Von Hartmann, que desenvolveram pesquisas sobre a substituição da noção de bem que predominava na área, pela noção de valor, onde dissertavam didaticamente sobre os valores éticos. É necessári