ROSIMEIRI DARC CARDOSO MONTEIRO LOBATO: entre o pedagógico e o estético ASSIS – SP 2007 ROSIMEIRI DARC CARDOSO MONTEIRO LOBATO: entre o pedagógico e o estético Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Universidade Estadual Paulista, para a obtenção do título de Doutor em Letras (Literatura e Vida Social). Orientador: Prof. Dr. Carlos Erivany Fantinati. ASSIS - SP 2007 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Cardoso, Rosimeiri Darc C268m Monteiro Lobato: entre o pedagógico e o estético / Rosi- meiri Darc Cardoso. Assis, 2007 148 f. Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista. 1. Lobato, Monteiro, 1882-1948. 2. Literatura infanto- juvenil. 3. Iluminismo. 4. Estética. I. Título. CDD 028.5 869.93 3 ROSIMEIRI DARC CARDOSO MONTEIRO LOBATO: entre o pedagógico e o estético Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras – UNESP para a obtenção do título de Doutor em LETRAS (área: Literatura e Vida Social). Data da Aprovação: 09/02/2007 BANCA EXAMINADORA Presidente: PROF. DR. CARLOS ERIVANY FANTINATI – UNESP/ASSIS Membros: PROF. DR. JOÃO LUÍS CARDOSO TÁPIAS CECCANTINI – UNESP/ASSIS PROFA. DRA. MARIA LÍDIA LICHTSCHEIDL MARETTI – UNESP/ASSIS PROFA. DRA. ALICE ÁUREA PENTEADO MARTHA – UEM/ MARINGÁ PROF. DR. JOSÉ BATISTA SALES – UFMS/TRÊS LAGOAS Ao autor e consumador da minha fé, ao único que é digno de receber toda honra, glória e louvor. 5 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, soberano, a quem devo não só o sopro de vida, mas também a alegria de viver. À minha família, Márcio, Ana Paula e Júlia; Ricardo e Aritana; e Andréia, pelo apoio incondicional, em especial, quando não conseguia escrever. À minha mãe, Cecília, exemplo de força e determinação, pelo incentivo de todas as horas. À minha irmã, Maria Cecília, e meu cunhado, Jefferson, que acompanharam os primeiros escritos, entre os passeios em Bruxelas e o convívio com os meus sobrinhos, Gabriel e Michel; e também compartilharam a preparação para a defesa. À Professora Alice Áurea Penteado Martha, sempre presente em minha vida acadêmica. Ao meu orientador, Professor Carlos Erivany Fantinati, pela orientação e paciência, em especial nos momentos de crise, quando não consegui ver além do texto. Aos professores Maria Lídia Lichtscheidl Maretti e João Luís Cardoso Tápias Ceccantini, pelas contribuições oferecidas no exame de qualificação. À UNESP e aos professores da Pós-Graduação, por dar oportunidade de realizar esse trabalho. Aos meus colegas de trabalho da FAP, que, com paciência, ouviram muitas vezes as idéias que eu não conseguia colocar no papel. Aos meus irmãos em Cristo, pelas orações e súplicas. 6 Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas Como aços espelhados. Clarice Lispector 7 CARDOSO, Rosimeiri Darc. Monteiro Lobato: entre o pedagógico e o estético. Tese (Doutorado em Letras, Área de Conhecimento Literatura e Vida Social) Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Universidade Estadual Paulista, Assis – SP, 2007. Orientador: Prof. Dr. Carlos Erivany Fantinati RESUMO Este trabalho estuda seis obras de Monteiro Lobato consideradas de cunho educativo, buscando identificar a tensão entre o pedagógico e o estético e levando em conta o fato de que o momento histórico e social brasileiro favorecia a publicação de tais obras. Nesse aspecto, convém ressaltar a correspondência de fatores entre o momento de publicação dessas obras (1933-1937) e o momento em que surgiu a Literatura Infantil no século XVIII. Tal fato explica a influência de uma corrente de pensamento denominada Iluminismo ou Ilustração, que proporcionaria condições para que esse gênero circulasse na sociedade da época. Da mesma forma, nas obras de Lobato em questão, pode-se detectar a presença das mesmas idéias, tendo sempre em vista a busca da divulgação do saber e o progresso. Para este fim, utilizou-se, como ponto de apoio teórico, a tese de Rouanet (1987) de que as idéias do Iluminismo não se extinguiram no século XVIII, mas ainda estão presentes neste momento sob nova perspectiva. Tomou- se também, como ponto de apoio, a indicação de Antonio Candido (1993) de que a obra literária apresenta um diálogo entre autor/obra/público, refletindo as estruturas sociais existentes em seu momento de produção. Na análise, foram enfocados os elementos mais importantes das obras, a saber: o narrador, as personagens infantis, as personagens adultas e os conteúdos escolares evocados. Os resultados obtidos indicam a presença dos ideais iluministas na medida em que as obras prezam pela união entre o útil e o agradável, como forma de equilibrar a tensão entre estético e pedagógico. Palavras-chave: Monteiro Lobato – Iluminismo – Pedagogia - Estética 8 CARDOSO, Rosimeiri Darc. Monteiro Lobato: between the pedagogic and the esthetic. Tese (Doutorado em Letras, Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Universidade Estadual Paulista, Assis – SP, 2007. Orientador: Prof. Dr. Carlos Erivany Fantinati ABSTRACT This work studies six books of Monteiro Lobato, considered of an educative approach, trying to identify the tension between the pedagogic and the esthetic, having in consideration the fact that the historic and social moment of Brazil was favor to the publication of such a work. In this manner, is valuable to emphasize the connection of factors between the publication of such works (1993-1937) and the moment when appears Children Literature in the 18th century. This explain the influence of the way of thinking named Enlightenment or Illustration, that provide conditions to the circulation of such kind in that time. In the same manner, in the books of Lobato in question, is detectable the presence of the same ideas, having always in sight the desire to spread knowledge and progress. To this end, was used as point of theory support, the idea of Rouanet (1987) that the ideas of Enlightenment didn’t ended in the 18th Century but still are presents under new perspective. Having also as a theory support the indication by Antonio Candido (1993) that the literary work presents a dialogue between the author, the work and the public, reflecting the social structures existing in the time of production. In the analysis, were in focus the most important elements of the work that is: the narrator, the children persons, the adult persons and the school material evoked. The results indicate the presence of the enlightenment’s ideas because de books value the alliance between the utility and the pleasant, how to equilibrate the tension between the pedagogic and the esthetic. Keywords: Monteiro Lobato – Enlightenment – Pedagogy – Esthetics 9 SUMÁRIO BIBLIOTECA DA F.C.L. – ASSIS – UNESP .......................................................................................................... 3 1 O ILUMINISMO .................................................................................................................................... 19 1.1 HISTÓRICO ................................................................................................................................................ 19 1.2 A HERANÇA ILUMINISTA ............................................................................................................................. 22 1.2.1 O Iluminismo e sua influência na Literatura ..................................................................................... 28 1.2.2 O Iluminismo e sua influência na Educação ...................................................................................... 31 2. A LITERATURA INFANTIL – ENTRE O ESTÉTICO E O PEDAGÓGICO ............................... 38 2.1 O SURGIMENTO DA LITERATURA INFANTIL ..................................................................................................... 38 2.2 LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA ............................................................................................................... 42 2.3 O DISCURSO DA LITERATURA INFANTIL .......................................................................................................... 46 3 O PROJETO CRIADOR DE MONTEIRO LOBATO ....................................................................... 50 3.1 UMA VIDA EM EFERVESCÊNCIA .................................................................................................................... 50 3.2 LOBATO E SUAS RELAÇÕES COM A EDUCAÇÃO ................................................................................................ 59 3.3 LEITURAS DE LOBATO ................................................................................................................................. 61 4 ANÁLISE DAS OBRAS ......................................................................................................................... 89 4.1 AS OBRAS SELECIONADAS ............................................................................................................................ 89 4.1.1 História do Mundo para Crianças .................................................................................................... 89 4.1.2 Emília no País da Gramática ............................................................................................................ 90 4.1.3 Aritmética da Emília ......................................................................................................................... 91 4.1.4 Geografia de Dona Benta .................................................................................................................. 92 4.1.5 História das invenções ...................................................................................................................... 92 4.1.6 Serões de Dona Benta ....................................................................................................................... 93 4.2 O NARRADOR ............................................................................................................................................ 93 4.3 AS PERSONAGENS DO SÍTIO DO PICAPAU AMARELO ....................................................................................... 108 4.5 OS CONTEÚDOS ESCOLARES ........................................................................................................................ 132 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................. 141 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................................... 145 10 INTRODUÇÃO O século XVIII, também conhecido como Século das Luzes, apresenta o início de transformações profundas, destacando-se entre elas a ascensão da família burguesa, o novo status conferido à infância e o surgimento da Literatura Infantil. A sociedade estava mudando suas estruturas e, de certa forma, em decorrência de uma nova corrente de pensamento, denominada de Iluminismo. As grandes transformações tecnológicas que marcaram o fim do período de transição entre o feudalismo e o capitalismo geraram uma nova expectativa nos indivíduos: alcançar a felicidade comum – entendida como bem-estar social – em função de uma sociedade mais justa, com direitos iguais e oportunidades para todos. Tal pensamento fundamentou a defesa dos ideais iluministas que, firmados na razão, combatiam todas as formas de opressão, pregando uma sociedade livre. Entretanto, mudar socialmente é mais do que atribuir novos nomes, exige também atitudes que contribuam para o fortalecimento da nova ordem estabelecida. Assim, a ciência se desenvolvia e tornava-se o ponto de partida para outras descobertas, outras mudanças e novos conhecimentos. A primeira mudança que deve ser destacada é o modelo familiar. Rompidos os laços de parentescos que sustentavam o feudalismo, surgiu a estrutura unifamiliar privada, cujo interesse centrava-se na preservação dos filhos e do afeto interno, o que pode ser traduzido por privacidade e intimidade doméstica. Em decorrência do novo modelo familiar, tem-se a segunda mudança – a valorização da infância, visto que a criança passou a merecer atenção especial, chegando a ocupar o centro de convergência familiar, cujo esforço estava centrado em proporcionar um crescimento saudável e também uma boa formação intelectual. Diante dessa nova realidade, era preciso criar instrumentos para assegurar a perpetuação do novo modelo. Um dos meios encontrados foi através da escola que, reorganizada, passou a apresentar uma dupla atuação: “introduzir a criança na vida adulta, mas, ao mesmo tempo, a de protegê-la” (ZILBERMAN, 2003, p. 21). Assim, o aperfeiçoamento do sistema escolar, patrocinado pela burguesia ascendente, contribuiu para fortalecer o caráter de dependência e fragilidade da criança em relação ao mundo, bem como de acentuar sua necessidade de proteção. A escola encarregou-se da transmissão do conhecimento e também das normas e valores da classe dominante, de 11 modo que se tornou responsável pelo desenvolvimento da criança, segundo a ótica adulta burguesa. Somam-se a essas mudanças a obrigatoriedade do ensino; a filantropia como forma de sanar as dificuldades da classe proletária com as crianças; a pedagogia e a psicologia como áreas que vieram a colaborar para o fortalecimento da família e, em especial, da criança no seio da sociedade capitalista; e ainda, o progresso das técnicas de industrialização, que favoreceu a produção de obras em série, fato que ligaria o gênero à cultura de massa (ZILBERMAN, 2003). Composto o cenário para o aparecimento da literatura infantil, destaca-se a forte ligação com a pedagogia, visto que seus textos, indicados exclusivamente para crianças, eram escritos por pedagogos e professoras, com intenção educativa. Fato importante também para as reflexões que se pretende apresentar está no vínculo da literatura infantil com a emergência do hábito de leitura, conquista da sociedade burguesa do século XVIII. Zilberman (2003) destaca que a expansão do mercado editorial, além da ascensão do jornal como meio de comunicação, o aumento da rede escolar e também das camadas alfabetizadas são acontecimentos ocorridos durante o Iluminismo, cuja intenção não era outra senão a aceleração do processo civilizatório. “O ler transformou-se em instrumento de ilustração e sinal de civilidade” (ZILBERMAN, 2003, p. 55). Tem-se, assim, a intersecção dessas mudanças, de modo que não é possível tratar de Literatura Infantil sem relacioná-la a todas essas circunstâncias. Pode-se, desta forma, afirmar, como Candido (1976), que a literatura envolve 3 elementos: autor, obra e público. Essa tríade permite investigar as influências dos fatores socioculturais relacionados à estrutura social, aos valores e ideologias às técnicas comunicativas, dentre elas a Literatura Infantil. Essas influências podem ser detectadas pela posição social do artista e dos grupos receptores, bem como em sua forma e conteúdo e na sua produção e circulação. Considerando os fatos descritos, encontra-se uma nova situação que deve ser analisada. Trata-se do aparecimento da Literatura Infantil Brasileira, nas primeiras décadas do século XX, tendo como marco o lançamento de Narizinho Arrebitado: segundo livro de leitura para uso das escolas primárias, de Monteiro Lobato, em 1921. Abolindo formatos tradicionais, a obra de Lobato transcende a intenção didática, pela renovação temática e lingüística e o forte apelo à imaginação (ARROYO, 1990). 12 Tal fato não aconteceu ao acaso; é preciso considerar as questões socioculturais que envolviam a época, principalmente a modernização do país, que favorecia a absorção de novos produtos culturais. A expansão da literatura infantil brasileira compreendida entre 1920-1945 pode ser explicada por um maior número de consumidores que tornavam o mercado favorável, o avanço da industrialização do país e o aumento da escolarização dos grupos urbanos (LAJOLO; ZILBERMAN, 1991). Mais uma vez, a escola também exerceu grande atuação, pois as primeiras obras nacionais, inclusive as de Monteiro Lobato, tinham como público a criança em fase escolar. Além disso, é preciso destacar a influência do movimento da Escola Nova, que se opunha à formação unicamente da elite, visando a uma escolarização em massa da população, por meio de uma maior participação do Estado, a fim de que a educação fosse universal e homogênea. Neste sentido, pode-se, mais uma vez, tomar a afirmação que Candido (1976) faz de que a literatura brasileira traz em seu bojo o reflexo da sociedade da época, influenciando autores, leitores e a própria constituição das obras, e estendê-la à literatura infantil brasileira. Além disso, é possível identificar entre o século XVIII na Europa e o século XX no Brasil fatos correspondentes diante dos quais equivaleria dizer que os ideais Iluministas não se apagaram. Essa afirmação fundamenta-se na tese de Rouanet (1987) de que a Ilustração se apresenta como um período de realização dos ideais do Iluminismo, e são esses ideais que permanecem atualmente tendo como bandeira a defesa dos direitos humanos, o que permite postular o seu alcance por meio de mudanças sociais e políticas, que poderiam garantir a crença no progresso, no bem-estar social. A partir dessas considerações, compreende-se que há um vínculo muito importante entre literatura e sociedade e, por esta razão, a literatura infantil brasileira em seus acontecimentos iniciais apresenta forte ligação com a educação, representada pela escola e também pelo ideal de progresso que dominava o período de seu aparecimento. A literatura infantil brasileira é, portanto, acontecimento recente e encontra em Lobato sua figura de destaque. Sabe-se que o trabalho com a literatura infantil tem encontrado espaço nas academias desde a década de 70, quando houve uma união de esforços dos diferentes níveis de ensino para promover a leitura, para resgatar falhas do sistema educacional brasileiro. 13 Como decorrência desta nova postura, as universidades assumiram os problemas que afetavam o ensino básico e passaram a direcionar pesquisas voltadas ao problema da leitura e literatura infantil em seus aspectos literários, sociológicos, psicanalíticos e educacionais. Em diversos estados foram criados centros que distribuíam livros infantis, além de se voltarem para estudos sobre literatura infantil, e ainda, foram intensificadas a análise de textos de literatura infantil pela crítica literária e a investigação do assunto pelos cursos de pós-graduação. Apesar desse esforço, ainda hoje muitos trabalhos encontram-se por fazer. No que se refere a Monteiro Lobato, apesar de se realizarem muitos estudos a seu respeito, sua obra infanto-juvenil ainda não se encontra sistematicamente estudada, considerando-se a grandeza de seu projeto literário. De grande importância para as pesquisas acerca de Lobato e suas obras é o Projeto Memória da Leitura, da Universidade de Campinas, coordenado pelas pesquisadoras Márcia Abreu e Marisa Lajolo, do qual foram obtidas informações importantes para este trabalho. Convém destacar outro projeto desenvolvido pela UNICAMP, vinculado ao Fundo Monteiro Lobato, que tem por coordenadora Marisa Lajolo, intitulado Monteiro Lobato (1882-1948) e outros Modernismos Brasileiros, cujo objetivo é disponibilizar documentos e informações relativos ao autor de Urupês, bem como divulgar ensaios e estudos resultantes de pesquisas sobre ele. Também deve ser salientado o trabalho de Enio Passiani, Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil (EDUSC, 2003), cujas reflexões, de cunho sociológico, contribuíram para a compreensão do papel de destaque exercido por Monteiro Lobato na formação do campo literário brasileiro, evidenciando como influenciou e foi influenciado pelos acontecimentos de sua época. Inserida na área de estudos da Teoria Literária, a dissertação de Tâmara Maria Costa e Silva Nogueira de Abreu, Um Lobato educador: sob o prisma da fecundidade da obra infantil lobatiana (UFPE, 2004), trata da relação entre Literatura e Educação, trazendo uma análise da coleção Obras Completas, de Monteiro Lobato, à luz dos preceitos escolanovistas, buscando identificar os pontos de interseção entre a sua literatura e a educação praticada por Anísio Teixeira e Paulo Freire. Assim, o presente trabalho destina-se a apresentar uma contribuição na sistematização dos estudos realizados sobre Lobato, como parte de um projeto que está sendo realizado na Pós-Graduação de Assis, com orientandos de Doutorado, Mestrado 14 e Iniciação Científica, e que se ocupa “de recolher a bibliografia crítica e realizar uma análise mais imanente de obras como Reinações de Narizinho, A chave do tamanho, Fábulas, História do mundo para crianças, O Picapau Amarelo, Caçadas de Pedrinho, Memórias de Emília, entre outras” (CECCANTINI, 2004, p. 31). Entre os trabalhos já realizados pela Pós-Graduação de Assis, destacam-se a dissertação de Caroline Elizabeth Brero, A recepção crítica das obras ‘A menina do Narizinho Arrebitado’ (1920) e ‘Narizinho Arrebitado’ (1921) (UNESP-ASSIS, 2003), que apresenta uma sistematização das críticas referentes a essas obras; História meio ao contrário: um estudo sobre ‘História do Mundo para crianças’ de Monteiro Lobato, de Miriam Giberti Páttaro Pallotta, trazendo uma comparação entre a obra original, o texto de Godofredo Rangel e a obra de Monteiro Lobato; O processo estético de reescritura das fábulas por Monteiro Lobato (UNESP-ASSIS, 2004), de Lóide Nascimento de Souza, uma pesquisa sobre a reelaboração da estrutura da fábula concebida por Lobato que conta com a participação dos ouvintes; o trabalho mais recente de Thiago Alves Valente, Uma chave para ‘A Chave do Tamanho’, de Monteiro Lobato (UNESP-ASSIS, 2004), que apresenta a sistematização da fortuna crítica em relação à obra em estudo, além de uma comparação entre a primeira edição e a edição considerada como definitiva pelo autor. Como se pode observar, existem vários trabalhos que procuram apresentar e destacar a importância de Lobato para o panorama cultural do Brasil, visto que o autor apresenta-se como inovador e suas obras, destacadamente as infantis, como instigantes trabalhos de elaboração de linguagem e inventividade. Se o escritor foi original, o empresário e fundador de editoras foi ousado ao investir no mercado de livros infantis, tidos como raros naquela época. A grandeza de Lobato não se restringe apenas a trazer obras para crianças que possam diverti-las, mas busca também motivá-las para o aprendizado, tornando o Sítio um espaço privilegiado para trazer conteúdos escolares para as crianças de uma forma inovadora. Tal fato também desencadeia uma divergência de posicionamentos acerca da produção infantil do escritor. Ao trazer os conteúdos escolares para integrarem o universo ficcional, as obras do escritor passam a receber classificações distintas. Não há um consenso quanto aos critérios de classificação, por isso, de acordo com Debus (2001), os discursos da crítica no período de publicação das obas podem ser divididos em três grupos: o primeiro, formado por Alceu Amoroso Lima, Viriato Corrêa, Jorge 15 Amado, enaltece o conjunto da produção literária de Lobato; o segundo reúne a crítica aos livros de cunho didático-pedagógico, destacando Sylvio Rabelo e Antonio Candido; e o terceiro, o discurso de Cláudio Abramo que nega a sua literatura e o autor. Entretanto, ao longo dos anos, os livros de literatura infantil foram agrupados e subdivididos em áreas de interesses, de acordo com os estudos que se realizaram. Debus (2001) toma a subdivisão feita por três estudiosos brasileiros, João Carlos Marinho, Márcia Kupstas (1988) e Zinda Maria Carvalho de Vasconcellos (1982), para apresentar a subdivisão em três grupos, a partir do teor do seu conteúdo. No primeiro encontram-se os livros puramente ficcionais, cujo interesse é divertir; no segundo estão as obras de caráter didático; e no terceiro, os títulos que pertencem a obras adaptadas ou fora do Sítio. João Carlos Marinho (1982) divide a obra em três grupos, denominados de A, B e C. No primeiro grupo encontram-se as histórias livres ou aquelas em que o didático resolve-se bem com o ficcional: Reinações de Narizinho, O Saci, As caçadas de Pedrinho, Viagem ao céu, O minotauro, Os doze trabalhos de Hércules, A reforma da natureza, A chave do tamanho, Memórias da Emília e O Picapau Amarelo. O grupo “B” traz as histórias puramente didáticas: O poço do Visconde, Aritmética da Emília, Emília no país da gramática, Geografia de Dona Benta, História das invenções, História do mundo para as crianças e Serões de Dona Benta. No grupo “C” estão as histórias “fora do Sítio”: Histórias diversas, Fábulas, Dom Quixote das crianças, As aventuras de Hans Staden, Peter Pan e Histórias de Tia Nastácia. Os outros estudos apresentam divergências mínimas, como a inclusão de Histórias diversas e Peter Pan entre os livros que privilegiam a diversão, por Márcia Kupstas (1988). Já Vasconcellos (1982) apresenta O poço do Visconde como obra de caráter ficcional, devendo ser inserida no grupo “A”. Percebe-se, desta forma, que a subdivisão apresentada destaca obras “em que predominam a intenção didática e não há literatura” (MARINHO, 1982, 192). O autor não deixa de mencionar, contudo, que em O poço do Visconde a “escamoteação história-livre com pretexto de educar é evidente”, o que a diferencia das demais obras do grupo. Diante do exposto, verifica-se que os critérios para a subdivisão não são tão absolutos, de sorte que é possível questionar essa classificação, a partir da própria afirmação de Marinho (1982), que agrupa as sete obras e depois afirma que O poço do 16 Visconde se distingue do conjunto apresentado no grupo “B”; restando, portanto, seis obras em que há predomínio da intenção didática. A partir de tal incerteza, tomou-se como material para análise o conjunto de obras consideradas pelos estudiosos citados como narrativas com claras intenções didáticas, a fim de verificar em que medida tais obras podem exprimir não só os conteúdos escolares, mas ainda momentos em que o estético pode suplantar o pedagógico. Como pressuposto para o estudo, uma das explicações encontradas para a presença da intenção pedagógica no trabalho de Lobato estaria em sua forte ligação com a educação e, por conseguinte, com o ideário iluminista de que a literatura deve não somente agradar mas também instruir, visto que o saber pode proporcionar o desenvolvimento, o progresso. Diante disso, questiona-se: • Em que medida o ideário iluminista poderia influenciar na composição das obras? Como isso poderia equilibrar as dimensões pedagógica e estética? • Se for possível reconhecer um equilíbrio entre estético e pedagógico, existiria unidade na obra ou tensão entre as duas dimensões? • Quais seriam as influências do pensamento progressista de Lobato percebidas nas obras selecionadas para análise? • Entre as seis obras selecionadas, seria possível destacar uma (ou mais) como marcadamente pedagógica ou como marcadamente literária? Diante das questões para investigação, aponta-se como objetivo da pesquisa verificar a presença e a influência do ideário iluminista na construção das obras de caráter pedagógico de Monteiro Lobato dirigidas ao público infantil, a saber, em História do mundo para crianças, Emília no país da gramática, Aritmética da Emília, Geografia de Dona Benta, História das invenções, Serões da Dona Benta, verificando como se resolve a tensão entre pedagógico e estético. Uma vez definido o objetivo geral, foram traçados objetivos específicos que orientaram a realização da pesquisa em suas diferentes etapas. Primeiramente, foi preciso realizar estudos sobre o ideário iluminista tendo por finalidade compreender os seus princípios e sua atuação junto à construção de um projeto editorial e educacional brasileiro; em seguida, realizar leitura e análise das obras selecionadas (citadas acima), procurando observar como os princípios iluministas poderiam ter contribuído para a 17 criação dessas obras. Depois disso, iniciou-se o trabalho de análise para verificar como se dá a tensão entre estético e pedagógico, destacando como essa tensão se equilibra e como o estético pode romper com o pedagógico liberando o texto do utilitarismo. Seguindo esses objetivos, o trabalho compõe-se de uma parte introdutória, três capítulos para apresentar a pesquisa bibliográfica; um capítulo de análise seguido da conclusão e das referências. A introdução tem por finalidade apresentar o trabalho contextualizando-o no conjunto dos estudos literários e destacar os objetivos e perguntas de pesquisa que direcionaram o estudo. No primeiro capítulo, encontram-se as reflexões acerca do Iluminismo, trazendo uma visão histórica do acontecimento no século XVIII e a discussão acerca de uma herança iluminista na educação e nas artes, em especial na literatura. O capítulo II gira em torno da literatura infantil brasileira, apresentando um pouco de sua história, relacionando-a com o contexto sociocultural, para refletir sobre a ligação entre literatura infantil e escola e como isso pode influenciar na constituição das obras. O principal objetivo desse capítulo é discutir essa relação verificando como o estético e o pedagógico se entrelaçam nos textos literários para crianças ou quando um ou outro aspecto se destaca na obra. O capítulo III apresenta o autor em estudo; traz um pouco de sua história e procura enfatizar as concepções de Lobato acerca do livro, da leitura e da própria literatura, bem como sua idéia de modernidade e progresso e como pensava alcançar esse objetivo através da leitura e da circulação de obras literárias. Além disso, procura apresentar a ligação entre Lobato e os educadores brasileiros da década de 30, encerrando com a apresentação de um panorama dos estudos que contribuíram na elaboração deste trabalho. No capítulo seguinte, encontra-se a análise das obras em estudo, destacando aspectos estruturais como o narrador, as personagens infantis e as adultas e ainda os conteúdos escolares veiculados. A análise procura resgatar os aspectos teóricos abordados nos capítulos anteriores, ressaltando como esses aspectos revelam a presença de ideais iluministas que podem influenciar a obra como pedagógica ou inovadora. Após as análises, tem-se a conclusão, que busca retomar as perguntas de pesquisa para verificar se foram ou não atendidos os objetivos propostos. Seguem-se as referências das obras citadas como parte conclusiva do trabalho. 18 1 O ILUMINISMO Neste capítulo, encontram-se os resultados da pesquisa bibliográfica acerca do Iluminismo, corrente filosófica situada historicamente no século XVIII, cujos desdobramentos influenciaram a arte e a educação, tornando possível discutir atualmente a presença desses ideais na constituição da literatura infantil brasileira, em especial nas obras de Monteiro Lobato. 1.1 HISTÓRICO O Iluminismo foi um movimento europeu, presente no século XVIII, que atingiu não só o pensamento filosófico, mas as artes, em especial a literatura, as ciências, a teoria política e a doutrina jurídica. Pode-se afirmar que sua abrangência foi muito grande, tendo em vista que de um movimento cultural amplo repercutiram ações no contexto político e social da época. O Iluminismo apresentou características próprias em países e momentos diferentes, o que leva à conclusão de que se trata de um conjunto de idéias e valores compartilhados por diferentes correntes, que foram expressos nas ciências, nas letras e nas artes (MARCONDES, 2002). É denominado de Iluminismo, Ilustração ou Esclarecimento, em função da metáfora de que a luz (razão) se opõe às trevas (ignorância, superstição). Segundo Marcondes (2002, p.202), o “pressuposto básico do Iluminismo afirma, portanto, que todos os homens são dotados de uma espécie de luz natural, de uma racionalidade, uma capacidade natural de aprender, capaz de permitir que conheçam o real e ajam livre e adequadamente para a realização de seus fins”. Desta forma, tal corrente de pensamento possui um caráter pedagógico no que tange à formação do indivíduo, no sentido de que cabe à filosofia, à ciência e à educação permitir que essa capacidade natural possa ser posta em prática, eliminando o que pode ser considerado como obstáculo à compreensão do real e promovendo o desenvolvimento do indivíduo. É característica do período a noção de progresso racional da humanidade, devendo, portanto, ser identificados todos os elementos que o impedem. Marcondes (2002, p.202) destaca que o iluminismo se contrapõe a toda autoridade, enquadrando aí, a religião, a legislação e a realeza. 19 De acordo com o Dicionário de Filosofia (ABBAGNANO, 2000, p. 534), Iluminismo é uma “linha filosófica caracterizada pelo empenho em estender a razão como crítica e guia a todos os campos da experiência humana”. Segundo o autor, o Iluminismo compreende 3 aspectos: 1) extensão da crítica a todas as áreas do conhecimento e crenças; 2) construção de um conhecimento que inclui seus instrumentos e correção; 3) utilização do conhecimento com vistas à melhoria da vida privada e social dos homens. Sobre o primeiro aspecto, pode-se afirmar que a extensão crítica do Iluminismo atinge todas as áreas não havendo campos privilegiados, estendendo-se à política e à religião, bem como aos fundamentos da vida moral do homem, o que significa dizer que a razão não se restringe aos aspectos cognitivos apenas. Uma forma de exprimir essa atitude crítica está na hostilidade à tradição, o que se configurou como anti-historicismo iluminista ou mesmo antitradicionalismo: “a recusa em aceitar a autoridade de tradição e de reconhecer qualquer valor independente da razão” (ABBAGNANO, 2000, p. 535) O empirismo é a característica fundamental do segundo aspecto citado, visto que só a atitude empirista é capaz de garantir a abertura do conhecimento à crítica da razão, já que consiste no fato de que toda verdade pode e deve ser colocada à prova, admitindo correção, modificação ou até mesmo o abandono. O erro, tomado muitas vezes como tradição, pode ser corrigido, importando muito mais os caminhos percorridos que o resultado em si. Por essa causa, o Iluminismo tem compromisso em não bloquear a razão em nenhum campo e em nenhum nível (ABBAGNANO, 2000). Por fim, o terceiro aspecto, refere-se ao fato de que o Iluminismo propõe-se a utilizar a razão e também a buscar uma melhora na vida dos indivíduos, o que justifica o trabalho realizado na elaboração da Enciclopédia, a luta contra o preconceito e a ignorância. Esse ponto fundamentou a Revolução Francesa, cujo lema, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, tem como meta a felicidade ou o bem-estar do ser humano. Dos três aspectos apresentados, o terceiro contém, segundo Abbagnano (2000), duas concepções fundamentais para a cultura moderna e contemporânea: a concepção de tolerância e de progresso. O princípio da tolerância religiosa passa a ser definido como elemento de cultura e não mais de instrumento de governo, gerando assim a convivência pacífica das várias religiões. A noção de progresso vem alicerçar o compromisso de transformação; vê a história como possibilidade de melhoria do ponto de vista do saber e dos modos de vida do homem, enterrando a idéia de fatalidade histórica que impedia a iniciativa de transformação. 20 Kant (1784)1 assim definiu o Iluminismo: O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir a si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo. Como bem ressalta Kant (1784), a maioridade do homem diz respeito à possibilidade de pensar por si mesmo, de modo independente, proporcionando ao Iluminismo, além do caráter formador, um caráter ético e emancipador, pois propõe que se volte contra toda autoridade que não se submeta à razão e à experiência, que seja incapaz de justificar-se racionalmente recorrendo ao medo, à força, à superstição, à submissão. Acreditava-se que, se todos fizessem parte de uma sociedade justa, com direitos iguais, a felicidade comum seria alcançada. Por esta razão, eram contra as imposições de caráter religioso, contra as práticas mercantilistas, contrários ao absolutismo do rei, além dos privilégios dados à nobreza e ao clero. A Ilustração pode ser considerada uma forma de pensar herdeira da tradição do Renascimento e do Humanismo, visto que defende a valorização do homem e da razão. Mais intenso na França, o Iluminismo influenciou a Revolução Francesa, mas também outros movimentos sociais no mundo, como a independência das colônias inglesas, na América do Norte, e a Inconfidência Mineira, no Brasil. Foram grandes as influências dos ideais iluministas na sociedade dos séculos XVIII e XIX. As revoluções (Francesa e Industrial) trouxeram um progresso contínuo e avassalador, propondo tempos melhores para a humanidade. Os filósofos estabeleceram o Império da Razão: o otimismo pedagógico; a racionalização do Estado via contrato jusnaturalista; a dessacralização da natureza e do mundo pela técnica; a naturalização da moral (SILVA2) Entretanto, como bem ressalta Silva (s/d, on line), no século XIX, as “Luzes” perderam intensidade. A partir da segunda metade deste século, o Império racionalista 1 Data referente à primeira publicação do artigo. Este documento encontra-se on line em: http://web.educom.pt/~pr1327/online/iluminismo.rtf Acesso em 15/12/2005. 2 Documento on line, sem data de publicação, disponível em: http://www.sedes.org.br/Centros/Filosofia/foucault_o_iluminismo_e_a_modernidade.htm Acesso: 13 de janeiro de 2006. 21 http://www.sedes.org.br/Centros/Filosofia/foucault_o_iluminismo_e_a_modernidade.htm http://web.educom.pt/~pr1327/online/iluminismo.rtf começou a ser destruído por algumas críticas, como a marxista, a nietzschiana e a freudiana, arrasando as bases econômicas, políticas, morais e culturais da Modernidade. É interessante ressaltar que, ao se afirmar que o movimento perdeu sua intensidade, não se quer dizer que se extinguiu. Neste trabalho, adotou-se como perspectiva a afirmação de Rouanet (1987, p. 28) para os termos Ilustração e Iluminismo. O primeiro é entendido como “corrente de idéias que floresceu no século XVIII”. O segundo é usado para “designar uma tendência intelectual, não limitada a qualquer época específica, que combate o mito e o poder a partir da razão”. Conclui-se que, para o autor, o Iluminismo não pode ser limitado ao século XVIII, época em que a Ilustração deu corpo aos ideais iluministas. Esta análise faz sentido quando se volta aos objetivos pretendidos pelo Iluminismo e que ainda fazem parte do pensamento contemporâneo. Abbagnano (2000, p. 537) afirma: “(...) se e quando a filosofia quiser assumir a tarefa (...) de transformar o mundo humano, a atitude iluminista e seus pressupostos fundamentais são as primeiras condições dessa tarefa”. 1.2 A HERANÇA ILUMINISTA Embora o movimento Iluminista tenha sofrido críticas, vale lembrar que, em sua continuidade, algumas idéias dessa corrente de pensamento ainda continuam em discussão. A principal delas envolve a busca do saber e a conseqüente felicidade que dele advém. Trata-se de estabelecer a relação entre o bem-estar da civilização ante os progressos obtidos pelo desenvolvimento do saber. Gianetti (2002) salienta que a base do Iluminismo europeu consistia na harmonia entre os dois aspectos apresentados, tendo como resultado a construção de um mundo “como nunca se vira na história desde a expulsão do primeiro casal do paraíso” (p.22). Os iluministas pressupunham que o aumento da felicidade e o progresso da civilização não só caminhavam juntos como haveria entre eles um processo de cooperação mútua a partir de algumas transformações, como: • o avanço do saber científico; • o domínio crescente da natureza pela tecnologia; • o aumento exponencial da produtividade e da riqueza material; 22 • a emancipação das mentes após séculos de opressão religiosa, superstição e servilismo; • a transformação das instituições políticas em bases racionais; e • o aprimoramento intelectual e moral dos homens por meio da ação conjunta da educação e das leis. (GIANETTI, 20002, p.23) Essas mudanças, ou indicadores de mudanças, sinalizavam para o domínio do homem sobre as técnicas de transformação, no sentido de tornar o seu mundo melhor, considerando que ele próprio é produto desse ambiente. Assim, se o homem é capaz de modificar o ambiente onde vive, também deveria ser capaz de moldar sua conduta de acordo com os princípios que regem essas transformações. Gianetti (2002, p. 30) apresenta uma análise dessa relação, propondo a seguinte reflexão: “Por que a promessa de felicidade do projeto iluminista não se cumpriu?”. A questão proposta traz implícita a idéia de que o Iluminismo tinha como objetivo muito mais do que realmente alcançou. O autor propõe a reflexão a partir do que denomina de bifurcação pós-iluminista, em que se identificam duas tendências: a primeira denomina- se tese da incompletude e a segunda, tese da permuta civilizatória. Para o autor, a primeira explicaria o fato de que a transformação proposta pelo Iluminismo não se completou. Retomando os ideais iluministas, verifica-se que a promessa de felicidade proposta é de expansão de oportunidades, proporcionando às pessoas viverem segundo seu melhor potencial, e respeitando suas escolhas, de modo que possam fazer sempre o melhor. Nas palavras de Kant, já citadas anteriormente, viver pelos seus próprios pensamentos sem a influência de outrem. Depara-se, portanto, com a pergunta proposta no parágrafo acima, que pode ser apresentada da seguinte forma: se as pessoas realizam o melhor de si, se o ambiente em que vivem está se transformando, a tecnologia avançando, o que as impede de alcançar a felicidade? Silva (s/d, on line) vale-se do pensamento de Foucault para explicar essa ambivalência, visto que podem ser observadas duas questões: na superfície da realidade, ocorreu o triunfo da razão, com a dessacralização do mundo, a cidadania, a democracia representativa, a liberdade de expressão etc...; nos subterrâneos, houve um processo desumano de disciplinarização, que anulou a experiência subjetiva das pessoas, confinando-as nos limites da normalidade. 23 Entende-se, assim, que, ao buscar seus objetivos, com a proteção das instituições já estabelecidas, o mundo urbano-industrial criado pelo progresso exigia a constituição de uma tecnologia política, com disciplinas e normas para garantir o seu pleno funcionamento. Prossegue Silva (s/d, on line) discutindo o que os iluministas entendiam por Razão: “Conceberam-na como luz natural, em oposição à fé, luz sobrenatural; como princípio intrínseco ao homem, uma faculdade inteiramente humana, disponível ao domínio humano, imanente ao homem”. Para Foucault (apud SILVA, s/d, on line), os discursos da razão nasceram da junção das ciências, instituições, comportamentos e regras, trazendo em seu bojo a idéia de normalidade. Daí decorre a idéia de que as ciências contribuiriam para a desmistificação do mundo que, até então, era explicado pela religião; entretanto, isto não foi possível, visto que as ciências “surgiram das relações entre poderes e saberes”, existentes entre as instituições, ficando à mercê dos jogos de poder, das lutas de classes e das relações de força. Outro ponto em discussão é o otimismo pedagógico. Segundo Silva (s/d, on line), os iluministas acreditavam que a instituição escolar poderia preparar as pessoas para viverem socialmente sob a direção da razão. Assim, a escola deveria educar a todos, seguindo os princípios da razoabilidade, da adesão ao formalismo, ao mundo jusnaturalista, contratual. Entretanto, Foucault (apud SILVA, s/d, on line) afirma que a escola tornou-se o lugar de adestramento, colaborando definitivamente para o processo de normalização. Chega-se, então, a uma ambivalência em relação às questões educacionais. A educação é portadora de um poder capaz de transformar a natureza pela técnica, mas também é o ponto de convergência de diferentes instituições que buscam o poder pelo saber. Reside neste ponto o caráter de adestramento que Foucault destaca. O saber está a serviço do poder, fato que leva a uma desmistificação de que o homem pode escolher livremente seu destino, uma vez que sua escolha pela satisfação total contribui para a solidificação de uma classe que já está consagrada pelo poder. Uma questão importante que permeia essa discussão e que se encontra nas duas teses consiste na definição de felicidade. Gianetti (2002, p. 37) adota o sentido que atende aos objetivos de sua discussão, “(...) o grau de satisfação global com a vida que se tem – o ser feliz mais que o estar feliz”. Além disso, analisa o fato de que ser feliz abarca duas dimensões: uma objetiva, que pode ser observada, medida, sendo, portanto, 24 externa; e outra subjetiva, que se refere à experiência interna do indivíduo. A felicidade existiria na conjunção dessas duas dimensões. Na tese da incompletude, a questão do fracasso do projeto iluminista se deve ao fato de que, ao atingir o progresso, na dimensão objetiva, mediante diversas transformações, o indivíduo viu-se frustrado na dimensão subjetiva, visto que existe na noção de progresso, como apresenta Foucault, uma disciplina, uma normalização que restringe a experiência individual. Além disso, como já discutido nos parágrafos anteriores, o maior problema foi não ter dado seqüência prática, continuidade, ao projeto, causando assim um mal-estar característico de uma tarefa incompleta. A tese da permuta civilizatória, segundo Gianetti (2002, p. 113), procura explicar o fracasso do projeto iluminista a partir da idéia “de que a razão e o bem-estar subjetivo não são convergentes”. Em outras palavras, significa que o avanço da civilização pela racionalidade apresenta um preço a ser pago pelo bem-estar subjetivo, ocasionando uma “corrosão progressiva da alegria de viver e do que se chamou certa feita de ‘o doce sentimento da existência’. O processo civilizatório traz benefícios, mas implica custos. Há uma troca incontornável” (GIANETTI, 2002, p. 35). Segundo essa tese, existem certos valores presentes em cada sociedade que são compatíveis com os avanços daquela época mas não podem ser comparados com os valores de outra época. Isto significa que o que é bem-estar para uma determinada sociedade pode não o ser para outra, fato que leva a crer que as aspirações do passado podem não corresponder ao que se encontra no presente nem ao que se pretende para o futuro. Diante disso, o que se destaca mais claramente nessa tendência está em discutir quais valores foram eliminados em função de um bem-estar objetivo. Gianetti (2002) apresenta como argumento a afirmação de Nietzsche3 de que a civilização exigiu a imposição de leis severas e punições que fizeram com que os valores mais primários do homem se voltassem contra ele mesmo. O mesmo autor afirma que Freud também seguiu o pensamento de Nietzsche, concluindo que a constituição psíquica do homem não aceita bem as interdições, pressões e normas de convivência impostas pelas mudanças advindas do progresso, necessitando de um tempo para adaptar-se. Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes não só à sexualidade humana, mas à sua agressividade, podemos entender melhor por que é tão difícil para o homem ser feliz na civilização. De fato, o homem primitivo estava em situação 3 Genealogia da Moral (1887) 25 vantajosa por não conhecer restrições ao instinto. Em contraposição a isso, sua perspectiva de usufruir desta felicidade por qualquer intervalo maior de tempo era diminuta. O homem civilizado trocou uma parcela das suas possibilidade de felicidade por uma parcela de segurança. (FREUD apud GIANETTI, 2002, p. 109) Pode-se concluir que o progresso não é um estado definitivo, mas transitório, isto é, existem possibilidades para as gerações futuras que nem são sonhadas na atualidade, mas que certamente cobrarão uma parcela de liberdade individual. Assim, as expectativas e aspirações podem estar condenadas ao desapontamento se calcadas sob o ponto de vista frio da razão. O que importa não é estabelecer uma ou outra parte como vencedora do embate que se trava no desenrolar da história, mas a qualidade da tensão que se encontra nesse embate. Rouanet (1987, p. 27) destaca que a “Ilustração foi, apesar de tudo, a proposta mais generosa de emancipação oferecida ao gênero humano”. A ressalva feita refere-se ao fato de que suas aspirações desembocaram no individualismo egoísta, destruindo as bases dos valores humanos, o que significou uma regressão, uma vez que o progresso criou outras formas de dominação, deixando de lado a promoção da felicidade coletiva. Os ideais iluministas pressupunham o homem livre da tirania da superstição, capaz de construir racionalmente seu destino, tendo na ciência um bem a seu serviço, suficiente para o desenvolvimento de forças produtivas que suprissem suas necessidades. Além disso, propunha a paz e a tolerância, a moral livre e a liberdade concreta, sem opressão do Estado ou da religião. A proposta do autor é de que o Iluminismo seja retomado, uma vez que apresenta considerações muito importantes para a sociedade atual. Esse resgate deverá partir da indicação dos elementos estruturais do Iluminismo, traçando uma base normativa que o vincule a raízes sociais contemporâneas. O ponto de partida, segundo Rouanet (1987), é o próprio projeto da Ilustração, definido por Kant (1874) como superação da minoridade que o próprio homem se colocou, pois apresenta os dois elementos estruturais: a razão e a crítica. Entretanto, a crítica e a razão propostas pelo novo Iluminismo não são as mesmas do século XVIII. A nova razão deve ser “capaz de crítica e autocrítica, apta a devassar em suas verdadeiras estruturas as leis e instituições, armada para desmascarar os discursos pretensamente racionais e consciente de sua vulnerabilidade ao irracionalismo” (ROUANET, 1987, p. 31). 26 Da mesma forma, a nova crítica também deve sofrer alterações, porque seu objeto – a atualidade – não é o mesmo da Ilustração. Assim, Rouanet (1987, p.32) destaca para a nova crítica uma modernidade madura, sob uma perspectiva neomoderna, “que nem idealiza a modernidade nem a rejeita em bloco, mas procura compreendê-la em sua unidade contraditória e a critica em sua dimensão repressiva, utilizando sempre que necessário as grades teóricas desenvolvidas pela própria modernidade”. Há de se ressaltar ainda a necessidade de um conjunto de valores que permita o combate às distorções do presente, o que significa dizer que é preciso estabelecer um fundamento normativo para que a crítica seja verdadeiramente racional. “Sem uma ética, a crítica seria cega, anárquica e niilista” (ROUANET, 1987, p.32). Nesse aspecto, não se trata apenas de resgate, mas de uma ‘correção’ no que se considera como falha do projeto inicial do Iluminismo, cujo ápice aconteceu no século XVIII. Nas palavras de Rouanet (1987, p.32), o novo Iluminismo Revive a crença no progresso, mas o dissocia de toda filosofia da história, que o concebe como uma tendência linear e automática, e passa a vê-lo como algo de contingente, probabilístico e dependente da ação consciente do homem. O único progresso humanamente relevante é o que contribui de fato para o bem-estar de todos e os automatismos do crescimento econômico não bastam para assegurá- lo. O progresso, nesse sentido, não é uma doação espontânea da técnica, mas uma construção intencional, pela qual os homens decidem o que deve ser produzido, como e para quem, evitando ao máximo os custos sociais e ecológicos de uma industrialização selvagem. E prossegue, enfatizando: O Iluminismo mantém sua fé na ciência, mas sabe que ela precisa ser controlada socialmente e que a pesquisa precisa obedecer a fins e valores estabelecidos por consenso, para que ela não se converta numa força cega, a serviço da guerra e da dominação. (...) Assume como sua bandeira mais valiosa a doutrina dos direitos humanos, sem ignorar que na maior parte da humanidade só profundas reformas sociais e políticas podem assegurar sua fruição efetiva (ROUANET, 1987, p. 33). Ciente de sua estrutura e de base normativa, o novo Iluminismo deve vincular-se às raízes sociais contemporâneas, o que pode ser estabelecido a partir das estruturas da comunicação cotidiana, na qual é possível encontrar tanto a razão quanto a crítica. Sua importância reside no fato de que a comunicação traz implícitos os valores iluministas, em constante atualização, porque no discurso os interlocutores dispõem de autonomia 27 suficiente para proporcionar o diálogo, o entendimento mútuo, o saber, a verdade e a justiça. Rouanet (1987, p. 35) conclui: Hoje como ontem, é preciso combater todas as instâncias que promovem a infantilização do homem, impedindo a realização do ideal maior da Ilustração, a maioridade, a Mündigkeit. No passado, o homem lutou contra a religião, que submetia o homem a poderes heterônomos. Mas o trabalho de secularização ficou incompleto, e devemos continuar combatendo as religiões profanas – as da nação, da raça, da classe, do Estado -, que engendram um fanatismo tão obscurantista quanto o que Voltaire quis combater no século XVIII. Dessa forma, faz sentido falar sobre um Iluminismo como uma tendência intelectual que não acabou no século XVIII, mas que prevalece através dos tempos e se faz necessária na contemporaneidade, visto que ainda existem muitos aspectos dos quais o homem precisa libertar-se. Além disso, uma das bandeiras do Iluminismo, a educação, tem sofrido pressões ideológicas que afastam o homem de uma educação libertária. 1.2.1 O Iluminismo e sua influência na Literatura Nas artes, o pensamento iluminista também apresentou sua contribuição. Bosi4 (1994, p.55) declara que, no século XVIII, os preceitos iluministas passam a compor um estilo voltado para “o racional, o claro, o regular, o verossímil”. Para o autor, a literatura nesse momento propõe, de um lado, o encontro do homem com a natureza representado ainda pela tradição clássica; e, de outro lado, a presença da ideologia do momento em que a burguesia culta se contrapõe aos abusos do clero e da nobreza. Candido5 (1993, p.41) prefere utilizar o termo Ilustração, apresentando-o como o conjunto das tendências ideológicas do século XVIII, a saber: “exaltação da natureza, divulgação apaixonada do saber, crença na melhoria da sociedade por seu intermédio, confiança na ação governamental para promover o bem-estar coletivo”. Ainda afirma seu aspecto filosófico: “fundem-se nela racionalismo e empirismo; nas letras, pendor didático e ético, visando empenhá-las na propagação das Luzes”. 4 Data da 1ª edição: 1970. 5 Data da 1ª edição: 1959. 28 Para o autor, a Ilustração, o Neoclassicismo e o Arcadismo são correntes de gosto e pensamento presentes no século XVIII que se misturam com freqüência para caracterizar o período. Tal pensamento pode ser expresso pela fórmula: Arcadismo = Classicismo francês + herança greco-latina + tendências setecentistas. (...) A literatura seria, conseqüentemente, expressão racional da natureza, para assim manifestar a verdade, buscando, à luz do espírito moderno, uma última encarnação da mimesis aristotélica (CANDIDO, 1993, p.42). Entende-se, assim, que, ao imitar os objetos da natureza, a arte persegue o verossímil, estreitando os laços entre o racional e o natural. É importante destacar que o projeto criador não visava apenas à cópia ou reprodução, mas à apreensão de uma verdade ideal, em que o belo configura o verdadeiro depurando-se o natural pelo filtro da razão. Bosi (1994, p. 56) destaca a procura pelo verossímil como “denominador comum das tendências arcádicas”, embora possa ser percebido em graus diversos, já que para alguns o bom gosto reside na mediação entre o natural e o ideal; para outros o bom gosto é o resultado da justa mimese do Bom e do Verdadeiro. Candido (1993) afirma que não só a mimese aristotélica prevalecia no Arcadismo, mas outras tendências desequilibravam esse padrão. Uma delas buscava tratar de problemas políticos e intelectuais, como forma de representação do mundo natural e social, deixando para segundo plano o deleite estético. Em função disso, justifica-se a presença da orientação didática em grande parte da literatura neoclássica, bem como a apresentação de formas ideais de convivência, que apontariam para uma reforma do indivíduo pela educação. É oportuno lembrar o conselho de Horácio, de que a arte deveria unir o útil ao agradável, posicionamento que leva a arte a exercer um papel pedagógico. Advém dessa postura a busca pela verdade científica e pela verdade social, com destaque ao poema didático, à epistola e à sátira. Bosi (1994, p. 81) ressalta: “O Iluminismo favorecia o gosto pedagógico, ministrando o útil, enquanto cabia ao idílio árcade providenciar o agradável”. Confirma-se, assim, o posicionamento de Candido de que Arcadismo e Ilustração se misturam com freqüência. A busca pela simplicidade e a harmonia da natureza refletiu-se na literatura árcade em seus temas pastoris, fato que pode ser explicado pela necessidade de 29 liberdade, uma vez que evocar a vida campestre significa retomar uma vida anterior perdida, um sentimento de frustração: Antes da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, o burguês, ainda sob a tutela da nobreza, via o campo com olhos de quem cobiça o Paraíso proibido idealizando-o como reino de espontaneidade: é a substância do idílio e da écloga árcade. Com o triunfo de ambas as revoluções, a burguesia mais próspera tomará de vez o poder citadino, e será a vez do nobre ressentido cantar a paz do mundo não maculado pela indústria e pela vulgaridade do comércio (BOSI, 1994, p.58-59). Verifica-se, contudo, que a exaltação à natureza não é particular apenas de um momento na literatura. Em especial para o Brasil, a valorização do rústico, da natureza, pode ser relacionada à sua condição de colônia, ressaltando o contraste cultural presente entre a aspiração à expressão literária, pela valorização do componente local, e os cânones da Europa. Em outros momentos da literatura brasileira, a natureza alcançou valor supremo, como no Romantismo e no Modernismo. Ainda em relação ao Brasil, o século das Luzes apresentou aspectos diferenciados de outros países, destacando-se como “beato, escolástico, inquisitorial; mas elas [as Luzes] se manifestaram nas concepções e no esforço reformador de certos intelectuais e administradores, enquadrados pelo despotismo relativamente esclarecido de Pombal” (CANDIDO, 1993, p.63). O autor ainda menciona que, por influência de Pombal, buscou-se a renovação, o desejo de saber, a adoção de novos pontos de vista na literatura e na ciência, como forma de combater a tirania intelectual do clero. Também deve ser ressaltado o fato de que as idéias iluministas foram fundamentais para a formação ideológica da literatura infantil, servindo aos interesses de dominação da burguesia como instrumento da escola na manipulação da criança. Diante dessa circunstância histórica, Zilberman (2003, p. 59) destaca: Reproduz assim, de certo modo, a situação de seu leitor, não por incorporar as qualificações de menoridade ou inferioridade, mas porque, para ambos, urge o rompimento do círculo de giz da dominação burguesa que, por intermédio da ideologia da superioridade adulta, decreta sua submissão e manipula seu descrédito. Desvenda-se a utopia do gênero, que assinala, por outras vias, seu fundamento humanista e a eventualidade de uma índole progressista, voltada à abertura de novos horizontes, dentro dos quais ela pode mesmo desaparecer, assim como a condição de puerilidade atribuída a seu recebedor. 30 Pode-se, então, concluir que a Ilustração deixou marcas importantes na arte e, por extensão, na literatura brasileira, destacando em sua temática a realidade local, as populações aborígines (o nativismo), a busca do progresso do país, a incorporação dos padrões europeus. Além disso, fundamenta o aparecimento da literatura infantil em um momento histórico e social que, mais tarde, tornar-se-ão obstáculos para sua libertação na busca de autonomia e realização artística. 1.2.2 O Iluminismo e sua influência na Educação Considerando que os ideais do Iluminismo permeiam a contemporaneidade, vale ressaltar a sua participação na educação. Como já comentado anteriormente, o Iluminismo defendia uma escola como lugar de conhecimento, onde o indivíduo seria preparado para viver numa sociedade transformada pelo progresso resultante do avanço da ciência. Tal pensamento é apresentado da seguinte forma por Candido (1980, p. 85): A partir do século 18 as ideologias do progresso forjaram a imagem de um homem perfectível ao infinito graças à faculdade redentora do saber. Era como se a mancha do pecado original pudesse ser lavada e o paraíso, em vez de ter existido no passado, passasse a ser uma certeza gloriosa do futuro. O século 19 se embalou na ilusão de que quando a instrução fosse geral acabariam os ‘males da sociedade’, - como se ela pudesse substituir as reformas essenciais na estrutura econômica e social que, estas sim, são requisito para se tentar a melhoria da sociedade e, portanto, dos homens. Verifica-se, desse modo, que o ideário da instrução iluminista foi além do século XVIII, influenciando o pensamento educacional do século XIX, que transferiu para a educação a tarefa de outras instituições sociais. Fica claro que houve uma distorção do que estava sendo proposto e o que realmente aconteceu, visto que o saber acabou sendo privilégio de poucos e sempre a serviço de uma elite dominante. Um exemplo dessa forma de manipulação, citado por Candido (1990), aconteceu no processo de independência política dos países da América Latina, que acreditaram que o saber, em especial proveniente da Europa, do colonizador, deveria orientar o futuro das jovens nações. Entretanto, “estas convicções e atitudes de cunho acentuadamente ideológico tiveram, ao contrário, a conseqüência de fechar e restringir 31 a iniciação na cultura intelectual, bem como o seu uso social e político”. (CANDIDO, 1990, p. 91) Uma das explicações para esse fato reside na importância que esse saber, como parte de um sistema de dominação imposto pelo colonizador, marcou grandemente aspectos como língua, religião e valores morais. Essa imposição acaba apontando para uma contradição na ideologia ilustrada para a América Latina, em função das condições locais. Afirma Candido (1999, p. 92) que: Sendo imposição, ela deixa claro que se tratava realmente de dominação, e explica por que a ilustração latino-americana foi uma tendência dilacerada, cuja dimensão utópica pressupunha a felicidade geral por meio do saber redentor, e cuja dimensão prática redundou na sua restrição aos grupos e classes dominantes, que o utilizavam como instrumentos de poder. Os colonos que fizeram a independência conservaram este estado de coisas, apesar da sinceridade retórica dos pronunciamentos, porque mantiveram o sistema de castas e das formas tradicionais de espoliação econômica. Tal situação se manifesta na questão escolar, tanto no nível superior quanto no nível fundamental; basta observar como o sistema educacional, em especial no caso do Brasil, evoluiu após sua independência política. No período colonial, não havia escolas de nível superior. As primeiras instituições apareceram após a vinda de D. João VI para o Brasil, sob a orientação militar. Os cursos existentes – Direito, Medicina e, depois da República, Engenharia – destinavam-se à formação de quadros para dirigir o país e atender às necessidades essenciais. No período republicano, o número de instituições superiores cresceu e já havia a preocupação com a formação de profissionais destinados a outras áreas que não mais a direção política do país. Já por volta de 1920, houve uma pressão da classe média pelo ensino laico, moderno, prático e a criação das primeiras universidades. A partir de 1930, essas exigências indicavam para uma democratização do sistema escolar. Candido (1999, p.93) destaca: Pode-se dizer que as camadas dominantes diversificaram a formação de seu pessoal e alargaram o recrutamento, abrindo canais para novos setores da classe média, oriundos sobretudo da imigração e da urbanização. Estas foram as grandes beneficiárias, no ensino secundário e no superior. Mas o povo continuou excluído, mesmo do nível primário (...). 32 Com efeito, após a Segunda Guerra Mundial, movidas pelo progresso industrial, as camadas médias alcançaram mais facilmente o ingresso à universidade. Por sua vez, a universidade passou a apresentar uma diminuição na qualidade do ensino, como resultado de práticas governamentais que procuravam, de um lado, eliminar o analfabetismo e, de outro lado, facilitar o acesso ao nível superior, pela redução dos requisitos de ingresso e a abertura de novas instituições deste nível de ensino. Aranha (1996) afirma que a industrialização crescente da sociedade contemporânea exigia que se ampliasse a rede escolar, a fim de que o aluno fosse preparado para o novo, de modo que a adequada escolarização pudesse promover a ascensão social. De acordo com Cunha (2001, p.87), “a escola era vista como espaço privilegiado para a inserção do ímpeto transformador; uma escola transformada, evidentemente, uma educação nova, como se pôde ver no Manifesto dos Pioneiros de 1932”. A idéia de inovação encontra no Renascimento os seus antecedentes, conforme salienta Aranha (1996), como as críticas feitas por Rabelais à escola autoritária. Há de se destacar também a importância de Rousseau (século XVIII) que precedeu uma descentralização da figura do professor, colocando a criança no eixo do processo pedagógico. As teorias surgidas no final do século XIX e começo do século XX forneceram as bases para as teorias da inovação escolar. Parte dessas teorias nasce do ideal iluminista, pelo fato de que o Iluminismo defendia a “exaltação do poder da razão que levaria o homem a conquistar a ‘maioridade’ como ser autônomo” (ARANHA, 1996, p.169). Entretanto, também há o posicionamento contrário, buscando recuperar valores vitais que estavam esquecidos. Destacam-se as críticas de Nietzsche (visa recuperar as forças inconscientes, vitais, instintivas, subjugadas pela razão durante séculos) e de Freud (compreensão da natureza sexual da conduta e a questão do inconsciente). Tal situação aponta para a contradição dos princípios ilustrados presente na questão educacional brasileira, sem, contudo, desmerecer o potencial social da educação escolar. Candido (1999, p. 94) afirma que “o Brasil possui uma elite intelectual de alta qualidade e muitas instituições de ensino cujo padrão é de franca excelência. Por isso, a sua produção científica, literária, artística é intensa e valiosa”. Esta afirmação reitera o fato de que o homem é capaz de encontrar solução para muitos de seus problemas, sinalizando mais intensamente para um progresso construído cotidianamente, a partir de certas condições econômicas, sociais e políticas. Assim, 33 confirma-se a questão de que o saber sozinho não é capaz de resolver os problemas, embora seja requisito fundamental para tal. Nas palavras de Candido (1980, p. 86), O progresso requer, para se realizar de fato e não num aparente ‘desenvolvimento’, as reformas de estrutura econômica e social, das quais a instrução é ingrediente, podendo-se até observar o contrário da posição ilustrada: em vez da instrução fazer as transformações, freqüentemente as transformações políticas e sociais é que tornam possível o desenvolvimento da instrução (...). Com efeito, verifica-se que as mudanças políticas e econômicas estão na base do desenvolvimento educacional e cultural, visto que é necessário que haja condições mínimas de bem-estar objetivo para que se alcance o bem-estar subjetivo. Também é possível concluir, como Rouanet (1987), que os ideais iluministas não morreram, mas permanecem sob uma nova roupagem, assumindo novas posturas normativas e crítica atualizada frente aos problemas que se apresentam no momento. É importante ressaltar que neste trabalho a preocupação está em investigar a presença dessa nova vertente do Iluminismo em obras de Monteiro Lobato, um dos maiores escritores do gênero, considerado o pai da literatura infantil brasileira. A investigação parte do pressuposto de que há uma ligação entre o gênero e o Iluminismo, considerando que os dois são criações do século XVIII e resultados da ascensão burguesa, que provocou mudanças estruturais na sociedade. É igualmente importante destacar que o sistema educacional brasileiro, mais especificamente o movimento da Escola Nova, recebeu influências dessa corrente de pensamento. O Movimento da Escola Nova surgiu no final do século XIX, mas só começou no Brasil no século XX, com reformas esparsas de ensino, tendo suas idéias expressas de modo claro no Manifesto dos Pioneiros da Educação, que representou uma tomada de consciência da defasagem existente entre educação e as exigências de desenvolvimento. O manifesto surgiu em uma época de conflito entre adeptos da escola renovada e os católicos conservadores, detentores do monopólio da educação elitista e tradicional (ARANHA, 1996). Com base nesta disputa, o movimento escolanovista apresentava como meta a superação da pedagogia da essência (a necessidade de educar o homem submetendo-o a valores e dogmas tradicionais) pela pedagogia da existência (o indivíduo visto como ser único e diferenciado que vive e interage com o mundo que o cerca que, por sua vez, é dinâmico, não pára, está sempre se modificando). 34 Há de se destacar a relação estabelecida entre educação, épocas e sociedade, visto que “a educação varia sempre em função de uma concepção de vida, refletindo, em cada época, a filosofia predominante que é determinada, a seu turno, pela estrutura da sociedade” (GHIRALDELLI, 2003, p.33). Assim sendo, o Manifesto propunha como princípio filosófico a queda dos modelos tradicionais que perpetuavam a estrutura de classes e a artificialidade do ensino, instaurando uma educação nova, não-artificial, pragmática, levando a educação para além dos limites de classes, sendo preparatória de uma hierarquia democrática, composta por capacidades presentes em todos os grupos sociais. Quanto à política educacional, o Manifesto de 32 tratou de 3 importantes temas: a educação como função essencialmente pública; a questão da escola única; e a laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e co-educação. Tais temas revelam que a educação coloca-se como ponto fulcral para a construção de uma sociedade democrática, visto que sugere a união de Estado e família em torno da educação, acessível a todos, indiscriminadamente. Ainda em relação à política educacional, o Manifesto considerou a autonomia da função educacional, a unidade da função educacional e o problema da descentralização. Sobre o processo educativo, o Manifesto apresentou alguns princípios das relações pedagógico-didáticas, destacando o fato de que o professor deveria conhecer o educando e oferecer a ele um ambiente favorável ao intercâmbio de reações e experiências. Caberia à criança aprender seguindo a sua lógica e não a lógica do adulto, isto é, as programações oferecidas pela Escola Nova deveriam respeitar o desenvolvimento psicológico, os interesses e as aptidões das crianças (GHIRALDELLI, 2003). Para a nova perspectiva, conforme afirma Aranha (1996), a criança passa a ser o centro do processo educacional, sendo necessário levar em conta sua natureza psicológica, que determina a escolha dos conteúdos, buscando satisfazer sua curiosidade infantil, sem cercear sua espontaneidade, de modo que o professor torna-se apenas um facilitador da aprendizagem. Como forma de superar o intelectualismo da escola tradicional, o movimento propõe o princípio do “aprender fazendo”, exigindo para tanto que as abstrações resultem da experiência do próprio aluno. Nas palavras de Aranha (1996, p. 168), “Se o processo do conhecimento é mais importante do que o produto, o conteúdo que é o objeto da aprendizagem precisa ser compreendido e não decorado”. Para a autora, “é 35 preciso educar para o improvável, para o novo, daí ser necessário preparar para a autonomia” (ARANHA, 1996, p. 168). Como é importante partir do concreto para o abstrato, estimulam-se as pesquisas e as experiências, privilegiando uma pedagogia da ação. Isso significa que novas metodologias também devem fazer parte desta inovação, de modo que as escolas deveriam equipar-se com laboratórios, oficinas, hortas e até imprensa, não desprezando ainda os jogos que passam a constituir-se atraentes facilitadores da aprendizagem (ARANHA, 1996). Segue a mesma linha de pensamento a proposta do pragmatismo, tendência filosófica que também inspirou o Manifesto, ao privilegiar a prática e a experiência em oposição ao conhecimento puramente contemplativo. Para Dewey (apud ARANHA, 1996, p.169), principal representante do pragmatismo, “o conhecimento é uma atividade dirigida e não tem um fim em si mesmo, mas está voltado para a experiência”, de modo que se subentende uma crítica severa ao intelectualismo e à ênfase na memorização, típicos da escola tradicional. Cunha (2001) destaca que as idéias de Dewey foram divulgadas no cenário nacional por Anísio Teixeira, que defendia a premissa de que escola, sociedade e progresso científico não podem assumir formas estáticas e definidas, visto que a sociedade em constate mudança abre a possibilidade para a discussão, a reflexão e amplo debate em favor da coletividade. Nesta sociedade, a escola deveria ultrapassar o nível descritivo dos fenômenos e tratar de situações que envolvessem problemas práticos, a fim de favorecer a pesquisa, a reflexão e a discussão. O autor ainda menciona o fato de que o movimento escolanovista se desenvolveu em um quadro marcado pelo avanço capitalista, cuja ênfase residia na necessidade e urgência de aceitação da ordem estabelecida. Desta forma, o pensamento educacional brasileiro também foi marcado por um escolanovismo taylorista e funcionalista, que, em função da idéia de progresso inevitável, promovia a redução dos fins educacionais à assimilação dos meios sugeridos pelas revelações científicas (CUNHA, 2001). Desta forma, o pensamento educacional brasileiro assimilou tendências diversas, sempre tendo em mente o desenvolvimento tecnológico e científico como promotor de transformações sociais, cuja finalidade era o bem-estar coletivo. Entretanto, não foram consideradas as contradições presentes tanto entre as tendências assimiladas como na própria estrutura social brasileira. 36 Verifica-se, então, que os ideais iluministas não se extinguiram com o século XVIII, mas encontraram caminhos distintos, quer nas artes, quer na educação, para continuar a luta pela maioridade do homem. Entende-se, como bem afirma Rouanet (1987), que o embate que se trava hoje em torno dos direitos humanos e da cidadania é fruto da permanência desses ideais ao longo do tempo. É bom frisar, finalmente, que, ainda que não seja de modo explícito, a linguagem artística possibilita ao homem emancipar-se, uma vez que, por meio da obra de arte, ele pode experimentar ou vivenciar emoções que produzam, no cotejo com a realidade, o amadurecimento. Observa-se, assim, que o ideal artístico presente no século XVIII, que pregava a união entre o útil e o agradável, permaneceu sob diferentes nuances, visto que a arte é emancipadora e libertária. 37 2. A LITERATURA INFANTIL – ENTRE O ESTÉTICO E O PEDAGÓGICO Neste capítulo, pretende-se apresentar uma visão geral da literatura infantil, tomando como ponto de partida a sua origem no século XVIII como ponto fundamental para compreender a ligação que decorre entre o gênero, o Iluminismo e a escola. A compreensão desse fato possibilita a reflexão sobre a constituição de uma literatura infantil brasileira e a investigação acerca da tensão entre pedagógico e estético, destacando o fato de que o momento histórico e social, tanto do aparecimento da Literatura Infantil quanto de sua manifestação no Brasil, apresenta relações de correspondência. 2.1 O SURGIMENTO DA LITERATURA INFANTIL O aparecimento da Literatura Infantil no século XVIII deu-se em função de quatro causas: a ascensão da família burguesa, o novo status conferido à infância, a associação com a pedagogia e a reorganização da escola. Zilberman e Magalhães (1984) salientam que, diante do contexto da Revolução Industrial, a família demonstra uma evolução em relação ao modelo de família da Idade Média, cujos valores centravam-se na manutenção da propriedade por meio da transmissão por herança, fato que engrandece os laços de parentesco. Mas, a partir do século XVII, com a centralização do poder em torno de um governo absolutista, os grupos de parentescos se enfraqueceram. Foi preciso formar uma aliança entre o Estado Moderno (governo absolutista) e a família burguesa (capitalista), a fim de promover uma ideologia firmada no individualismo, na privacidade e na promoção do afeto. Observa-se, segundo Zilberman e Magalhães (1984), na Inglaterra e na França do século XVIII, diferentes modos de valorizar a criança, mas nos dois países a edição de tratados de pedagogia escrita por protestantes teve grande contribuição, pois trouxeram para o centro das reflexões questões relacionadas à infância. Na verdade, houve uma mudança no modelo familiar, que busca a preservação dos filhos, provocando uma ascensão da mulher no ambiente doméstico. 38 Vale ressaltar que a figura materna foi valorizada de forma mais visível na família burguesa; na classe proletária isso não aconteceu em função da necessidade de sobrevivência, o que levou ainda ao abandono das crianças nas creches ou ao trabalho precoce. Isso quer dizer que tal valorização acontece apenas em relação à organização do lar, mas não atinge a esfera pública. O modelo familiar burguês não alcançou universalidade, pois manteve a divisão social, convergindo para o interesse do Estado Moderno, além de ter contribuído para o isolamento da criança do mundo adulto e da realidade exterior. Diante disso, coube à escola assumir duplo papel: o de introduzir a criança na vida adulta, e, ao mesmo tempo, o de protegê-la contra as agressões do mundo exterior. A escola passou a atuar de forma complementar à família; ambas funcionando como espaços de mediação entre a criança e a sociedade. Daí decorre a ligação natural da literatura infantil que surgia, a escola e a concepção utilitarista dada ao texto literário para crianças. Sobre o assunto, Zilberman e Magalhães (1984, p.22) afirmam que a literatura infantil “assume traços educacionais, fazendo-se útil à formação da criança e capturando-a efetivamente ao transformar o gosto pela leitura numa disposição para o consumo e para a aquisição de normas”. As autoras destacam também que a importância da literatura infantil está na sua duplicidade: sob a ótica do adulto, ela assume caráter pedagógico; sob o ponto de vista da criança, transforma-se num meio de acesso ao real. Com efeito, se a criança tem necessidade de um meio que lhe proporcione acesso ao real, e seja exterior a ela, a literatura pode preencher esse espaço ainda vazio, como bem salienta Zilberman (2003), por não ter condições ainda de ordenar suas vivências. A pedagogia não pode fazer isso nem os ensinamentos escolares, mas torna- se perfeitamente possível pela literatura que oferece à criança, por meio da história, as relações presentes na realidade, tendo como mediadora a linguagem com função de conhecimento. Por essa razão, a literatura infantil contraria uma certa pedagogia. Zilberman (2003, p. 46) destaca: “Sua atuação dá-se dentro de uma faixa de conhecimento, não porque transmite informações e ensinamentos morais, mas porque pode outorgar ao leitor a possibilidade de desdobramento de suas capacidades intelectuais”. Nesse sentido, pode-se trazer a afirmação de Candido (1972) de que a literatura apresenta três funções: a psicológica, satisfação da necessidade de ficção e fantasia; a formativa, não segue a pedagogia oficial, mas busca contribuir na formação da 39 personalidade, agindo indiscriminadamente na própria vida, como forma de educar, mostrando a vida como ela é; e a função de conhecimento do mundo e do ser, visto que não pode desvincular-se das fontes inspiradoras no real, visando assim a uma autonomia de significação. Desta forma, a literatura infantil vive um mundo de contradições. Busca satisfazer à necessidade de ficção e fantasia da criança, mas precisa conter-se num mundo verossímil, onde a imaginação só se justifica através de técnicas e recursos particulares, como o faz-de-conta. Ainda cabe dizer que, ao retratar uma realidade possível, o texto literário para crianças pode cair no didatismo, cuja função principal é perpetuar o sistema dominante. Sobre a questão da contradição entre realismo e fantasia presente na literatura infantil, Zilberman (2003) salienta que essa dificuldade reside na diversidade de tratamentos que a sociedade proporciona às crianças. Embora a criança do século XVIII tenha alcançado determinado status, ainda foi possível detectar uma ruptura nesse processo: a diferença de classes permaneceu – de um lado, a criança burguesa, que era preparada para assumir uma posição de comando; e de outro, a criança da classe operária, que precisava ser amparada e tornar-se mão-de-obra necessária ao desenvolvimento previsto. Na mesma direção, tem-se a afirmação de Perrotti (1986, p. 16): A literatura para crianças e jovens apresentou-se quase sempre munida de um discurso que visava em primeiro lugar a atuar junto ao leitor, no sentido de integrá-lo à ordem social dominante. Não se tratava, portanto, de mero processo de assimilação social, mas de um discurso classista, identificado com as forças sociais dominantes. Mais uma vez convém retomar as palavras de Candido (1976), ao afirmar que é preciso observar as relações sociais para entender quais juízos estão presentes no momento de criação daquela obra, para, a partir desse fato, poder estabelecer uma análise mais complexa da obra. Por extensão, o estudo das relações sociais é de suma importância para compreender o aparecimento da literatura infantil, fato que passa pela valorização do escritor e a constituição do público leitor. De acordo com Borelli (1996), a formação de um mercado editorial tem início em meados do século XIX, quando se segmenta em torno de públicos particulares. O público infantil e juvenil passa a fazer parte desse mercado com as modificações nos 40 métodos de ensino e o uso de livros no universo escolar, mas a fabricação de livros escolares é bastante precária até as duas décadas finais do século XIX. Nesta época, no Brasil, as editoras existentes – Paula Brito e Garnier – publicavam romances-folhetins, que, posteriormente, também apareceram sob forma de livros. Mas foi com a incorporação da criança e do jovem nesse mercado que outras editoras, como a Laemmert, a livraria Quaresma, a Weiflog e a Monteiro Lobato & Companhia, posteriormente Companhia Editora Nacional, receberam um forte impulso. Ganha destaque, nesse momento, o movimento editorial brasileiro, que tinha, até então, grande parte das obras publicadas em Portugal. Entre as décadas de 20 e 40, porém, o Brasil assistiu a muitas transformações que contribuíram para que uma literatura infantil brasileira propriamente dita surgisse. Graças ao atrelamento entre os interesses do Estado e as instituições que o serviam, tanto a literatura infantil como a cultura popular expandiram-se. O primeiro passo foi em direção à escola. Segundo Arroyo (1990, p. 198), são três os grandes livros de literatura escolar brasileira: Através do Brasil, de Manuel Bonfim e Olavo Bilac; Saudade, de Tales de Andrade; e Narizinho Arrebitado¸ de Monteiro Lobato. Apesar de aparecer como “literatura escolar”, o livro de Lobato possui “características de uma literatura capaz de transcender o simplesmente pedagógico, a obra de intenção didática ou educativa”, que não estavam presentes nos outros dois livros. Para Arroyo, a obra de Lobato serviu de fundamento para a verdadeira literatura infantil brasileira pelo apelo à imaginação em sintonia perfeita com o ambiente nacional, valendo-se de renovação temática e lingüística. Yunes e Pondé (1988) salientam que o texto literário para crianças alcança, na década de 20, um momento de renovação, fugindo de seu caráter pedagógico vinculado em sua origem ao surgimento da burguesia e ao crescimento do hábito de leitura. Por causa dessa ligação, estabelecer uma separação entre literatura escolar e literatura para crianças constitui-se uma tarefa difícil, pois, de maneira geral, existe uma atitude social que concebe a literatura para crianças como instrumento de formação. Perrotti afirma: A concepção de literatura infantil que vigoraria no Brasil seria, portanto, a concepção utilitarista já em vigor na Europa, mas ampliada pela contaminação criada pela “condição colonial”. Em outras palavras, como faltasse no Brasil material de literatura para crianças, a “literatura escolar” funcionou enquanto modelo do que seria essa literatura. (PERROTTI, 1986, p. 59) 41 A afirmação de Perrotti revela que no Brasil, em face da herança colonial, havia um atraso que precisava ser vencido e esse desejo de superação tornava favorável a ligação, quase que indissolúvel, entre literatura para crianças e pedagogia. Por meio de uma valorização da escola e da literatura infantil, a sociedade buscava consolidar uma mudança em busca da modernização. As transformações alcançadas possibilitaram o surgimento de um público consumidor virtual, resultado também de um projeto mais amplo de alfabetização realizado e liderado por intelectuais, políticos e educadores. Essas mudanças também podem ser observadas pelas obras que circulavam no país; editadas principalmente em Portugal, elas se reduziam a traduções ou adaptações de contos clássicos correntes na Europa, cuja característica principal consistia numa adaptação de linguagem. Lobato também realizou traduções e adaptações, entretanto, tais obras distinguem das citadas anteriormente porque buscam aproximar o leitor dos fatos narrados, por meio de estratégias como a contação de história, como se observa em História do Mundo para crianças e Peter Pan. Nesse momento, também há de se destacar que os autores responsáveis pelas publicações estavam muito próximos do ambiente escolar; eram pedagogos, professores, jornalistas renomados. Grande parte das obras era destinada a livros de leitura das séries iniciais; daí seu caráter utilitarista, servindo ao propósito de cultivar valores cívicos e morais. Havia, portanto, interesses mútuos. De um lado, a escola e seus leitores mirins; de outro, o Governo e seus projetos de modernização e incentivo à leitura. Sobre o assunto, Lajolo e Zilberman (1984) destacam o fato de que tais interesses forneceram aos escritores para crianças temas e posicionamentos, permitindo que adentrassem a rede escolar, cujo número de estudantes havia sido ampliado. 2.2 LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA Nos primeiros anos do século XX, a literatura infantil ainda caminhava marcada pelo transplante de temas e textos europeus adaptados à linguagem brasileira. Logo depois, na década de 20, aconteceu uma renovação, atendendo aos apelos da necessidade de livros brasileiros para crianças brasileiras. Diante disso, a temática do nacional foi amplamente adotada. Perrotti destaca: 42 A brasilidade é atitude que os autores pretendem impor ao espírito do pequeno leitor que no futuro deverá zelar pela Pátria. E o próprio Lobato é atingido por essa preocupação, ainda que sua obra consiga superar, nos textos propriamente literários, o didatismo pragmático presente em seus antecessores. (PERROTTI,1986, p. 60) Pode-se entender que também em Lobato é possível encontrar marcas de um projeto de brasilidade, mas, por outro lado, salta aos olhos em suas obras aquele componente lúdico que eleva a literatura e subjuga a pedagogia. O trabalho de Lobato com os livros para crianças e jovens impulsionou a literatura infantil brasileira, agregou autores consagrados da literatura não-infantil e promoveu intensamente a leitura, numa tentativa pioneira de desvincular a literatura dessa concepção utilitarista, conferindo ao texto literário para crianças uma valorização estética. Um olhar sobre a história da literatura infantil no Brasil mostra que Lobato foi realmente um divisor de águas. Antes dele, a literatura infantil era marcada por uma necessidade de formar, de educar, que conferia à obra um caráter pedagógico que era posto acima de qualquer qualidade estética. Desde a matéria a ser narrada até a linguagem utilizada, tinha-se em vista artifícios para ensinar. Essa relação advém do público a que a literatura infantil se destina – o leitor imaturo em fase de aprendizado, razão suficiente para fazer dessa literatura um agente de transmissão de valores às novas gerações. A mudança dessa concepção teve início, primeiramente, com a preocupação de alguns autores com a distância entre o português falado no Brasil e o que era veiculado nos livros editados em Portugal, levando-os a “retraduções”, pois os valores estavam presentes no código lingüístico, o que exigia uma mudança para garantir a compreensão do que se queria veicular. Com Lobato, essa tentativa assumiu feição de mudança mais profunda, de acordo com a afirmação de Coelho (2000, p.149): No novo panorama cultural daquele início de século, o livro de Lobato vinha abrir um novo caminho literário. Superava os esquemas tradicionais e, “sem revolução”, isto é, sem tentar derrubar os velhos valores e preconceitos, por meio de “escândalo” público, acabou por abalá-los por meio do riso, do ludismo, da inteligência construtiva. Através dos anos e de dezenas de novos títulos, Lobato foi conscientemente aprofundando suas invenções do “novo” e tornando suas estórias cada vez mais modernas, mais “sintonizadas” com o novo mundo que o progresso trazia para o século XX. 43 Arroyo (1990) destaca o fato de a obra de Lobato ter surgido no ambiente escolar como uma imposição do momento e do desenvolvimento histórico da literatura infantil. Apesar de destinada a escolares, seu conteúdo contraria essa premissa mostrando o lúdico sobrepondo-se ao didático. Depois do sucesso de Narizinho arrebitado e de outras publicações do gênero, Lobato reformulou algumas histórias, lançando-as em um único volume intitulado Reinações de Narizinho. Zilberman e Lajolo (1993) afirmam que, após o sucesso de Saudade e Narizinho arrebitado, as editoras mostraram grande interesse pelo gênero, mas, mesmo assim, o êxito alcançado não atingia a imagem de seus autores. O estímulo para escrever para crianças e jovens voltava-se para o mercado escolar, exigindo dos escritores uma adequação ao ambiente e às imposições escolares. As autoras salientam que a ampla expansão da literatura infantil esteve cercada por efeitos de alterações sofridas em vários campos da sociedade. O desejo desenvolvimentista muito contribuiu para a implantação do capitalismo industrial brasileiro, que, economicamente, favorecia a consolidação da indústria local de livros, com agilização da produção e circulação das obras; politicamente, esses interesses, somados à expansão da ideologia nacionalista, forneciam os temas e as posições favoráveis à introdução dos escritores na rede escolar, já ampliada. Do ponto de vista estético, a linguagem modelar deu lugar à coloquial