UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP JÚLIO DE MESQUITA FILHO - INSTITUTO DE ARTES ISABEL ORESTES SILVEIRA O ENSINO DO DESENHO PARA CRIANÇAS DE 9 A 10 ANOS DE IDADE. UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE DUAS ESCOLAS PÚBLICAS E DUAS ESCOLAS PARTICULARES DA REGIÃO CENTRAL DE SÃO PAULO. São Paulo 2006 ISABEL ORESTES SILVEIRA O ENSINO DO DESENHO PARA CRIANÇAS DE 9 A 10 ANOS DE IDADE. UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE DUAS ESCOLAS PÚBLICAS E DUAS ESCOLAS PARTICULARES DA REGIÃO CENTRAL DE SÃO PAULO. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Estadual Paulista UNESP, em cumprimento às exigências do Curso de Pós- Graduação em Artes, para a obtenção do grau de Mestre. Área de Concentração: Artes Visuais Orientador: Prof. Dr. João Cardoso Palma Filho. São Paulo 2006 ISABEL ORESTES SILVEIRA O ENSINO DO DESENHO PARA CRIANÇAS DE 9 A 10 ANOS DE IDADE. UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE DUAS ESCOLAS PÚBLICAS E DUAS ESCOLAS PARTICULARES DA REGIÃO CENTRAL DE SÃO PAULO. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Estadual Paulista UNESP, em cumprimento às exigências do Curso de Pós- Graduação em Artes, para a obtenção do grau de Mestre. Área de Concentração: Artes Visuais Aprovada em 23 de março de 2006 BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________________________ Presidente: Prof. Dr. João Cardoso Palma Filho Universidade Estadual Paulista _____________________________________________________________________ 1º. Examinador: Dra. Cleusa Kazue Sakamoto Instituto Presbiteriano Mackenzie ______________________________________________________________ 2º. Examinador: Dr. Norberto Stori Universidade Estadual Paulista e Instituto Presbiteriano Mackenzie S587e Silveira, Isabel Orestes O ensino do desenho para crianças de 9 a 10 anos de idade. Um estudo comparativo entre duas escolas públicas e duas escolas particulares da região central de São Paulo / Isabel Orestes Silveira – São Paulo, 2006. 154 f. : il. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Artes) - Universidade Estadual Paulista – Unesp, 2006. Referência Bibliográfica: f..126- 129 1. Desenho infantil. 2. Influência da mídia. 3. Ensino e aprendizagem da arte. I. Título CDD 370 Para José Roberto, Guilherme e André, que desenham a vida juntamente comigo. A vocês minha gratidão! AGRADECIMENTOS Ao Deus eterno. “Tu, Senhor, és a minha lâmpada; o SENHOR derrama luz nas minhas trevas”.(2 Sm.22:29) Ao Prof. Dr. João Cardoso Palma Filho, que de forma tão carinhosa e competente apontou-me diretrizes pertinentes durante todos os estágios da dissertação. À Dra. Cleusa Kazue Sakamoto, que me encorajou a desenvolver esta pesquisa, tornando-se, participante desta empreitada comigo. À Dra. Loris Graldi Rampazzo e ao Dr. Prof. Norberto Stori, que participaram da banca de qualificação, me auxiliando na construção do conhecimento. Aos professores do curso: Dr. João Cardoso Palma Filho, Dr. João Jurandir Espinelli, Dr. Liomar Quinto de Andrade, Dra. Luiza Helena S. Christov, Dra. Mirian Celeste Ferreira Dias Martins, Dr. Percival Tirapeli e Dr. Reynúncio Napoleão de Lima, os quais tornaram possível o meu acesso ao ensino de qualidade. Aos colegas de curso. Minha gratidão e amizade. Um agradecimento especial às professoras e diretoras, da rede pública e particular que se dispuseram a participar da pesquisa. A todas as crianças, verdadeiras mestras em ensinar-nos a arte da inquietação e da busca pelo novo. Jeito simples de ver e esboçar a vida. E, finalmente, minha gratidão aos funcionários do IA – Instituto de Artes da Unesp, e a todos os que direta ou indiretamente, participaram desta pesquisa. Será que algum dia alcançarei o objetivo buscado há tanto tempo e de forma tão sôfrega? Espero. Mas enquanto não é atingido, um sentimento vago de desconforto persiste e não vai desaparecer até que eu tenha alcançado o porto, isto é, até que eu alcance algo mais promissor do que alcancei até agora. Cézanne (1972, p.336) RESUMO Este trabalho de pesquisa propõe uma reflexão sobre o desenvolvimento gráfico da criança numa faixa etária específica que compreende a idade de 9 a 10 anos, tendo como alvo de investigação duas escolas públicas e duas escolas particulares da região central de São Paulo. A investigação da representação pictórica nessa faixa etária, derivou da constatação de que a criança nessa idade modifica seu comportamento no uso da linguagem gráfica, especialmente quando utiliza o desenho como meio de expressão. Tal observação foi decorrente do longo período de tempo de exercício do magistério como arte-educadora. Do processo do espontaneísmo observado nos primeiros anos de escolaridade, a criança vai adquirindo consciência crítica do seu fazer artístico e de suas limitações na medida em que cresce rumo a um realismo visual. Muitas vezes, utilizando a mídia para copiar modelos, a criança deseja que seu desenho se pareça com a realidade que ela percebe e interpreta e que atribui significado. Este trabalho se apresenta com a intenção de lançar bases para uma reflexão sobre a importância de um ensino formal do desenho e das demais disciplinas artísticas a fim de que a criança de 9 e de 10 anos não abandone a prática do desenho e da Arte, pela crença no mito de que apenas alguns poucos são capacitados ou privilegiadamente dotados. Palavras-chave: Desenho infantil. Influência da mídia. Ensino e aprendizagem da arte. ABSTRACT This research proposes a reflection about the children’s graphic development in a specific age - from 9 to 10 years old - having as investigation targets two public and two private schools in the central area of São Paulo city. The investigation of the pictorial representation in this age came from the fact that the child in this age changes his/her behavior with the use of graphic language especially when using the drawing as a mean of expression. That observation came from the long period of teaching experience as an Art educator. From the spontaneous process observed in the first years of schooling the child acquires a critical conscientiousness of his/her artistic making and of its limitations as the visual realism grows. Many times, using the media to copy models, the child wishes that the drawing looks alike the reality that is perceived, interpreted and given a meaning. This work has the intention to launch basis to a reflection about the importance of a formal teaching of the drawing and of the others artistic subjects in order that children from 9 to 10 years old do not abandon the practice of Arts and drawing, due to the belief that only a few are gifted or able to do it. Key words: Children´s drawing. Media influence. Teaching and learning Arts. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 A evolução do desenho da figura humana, realizado por Felipe, uma criança de três anos de idade do sexo masculino. Feito em março 2002................................27 Figura 2 A evolução do desenho da figura humana, realizado por Felipe, uma criança de três anos de idade do sexo masculino. Feito em agosto 2002. ..............................27 Figura 3 A evolução do desenho da figura humana, realizado por Felipe, uma criança de três anos de idade do sexo masculino. Feito em novembro 2002..........................28 Figura 4 Desenho espontâneo – “Figuras humanas”, realizado por André, uma criança de três anos do sexo masculino. .................................................................................30 Figura 5 Desenho espontâneo - “Mãe e filho” realizado por Victor, uma criança de sete anos do sexo masculino. ........................................................................................32 Figura 6 Desenho – “Minha rua”, que foi solicitado ao André, uma criança de oito anos do sexo masculino. .....................................................................................................33 Figura 7 Desenho espontâneo - “Uma luta”, realizado por Ricardo uma criança de oito anos do sexo masculino. ................................................................................................34 Figura 8 Desenho espontâneo – “Uma luta”, realizado por Isaac uma criança de doze anos do sexo masculino. ................................................................................................34 Figura 9 Desenho espontâneo da figura humana, realizado por Viviane, uma criança de nove anos, do sexo feminino. ................................................................................35 Figura 10 Desenho espontâneo da figura humana realizado por Cyistal, uma criança de dez anos do sexo feminino. ..........................................................................................36 Figura 11 Desenho espontâneo, feito por Isabel, uma criança de nove anos do sexo feminino.................................................................................................................39 Figura 12 Desenho espontâneo, feito por Guilherme, uma criança de dez anos do sexo masculino...............................................................................................................39 Figura 13 Desenho de observação – “Cópia da figura do Homem-Aranha”, feito por Ilana, uma criança de dez anos do sexo feminino. ..........................................................43 Figura 14 Desenho de observação – “Cópia da figura do Cavalo Alado”, feito por Aldeniei, uma criança de dez anos do sexo masculino. .......................................................44 Figura 15 Desenho de memória - do brinquedo “Bemblade” (peão que toma parte de um desenho animado japonês da Tv e destes peões surgem monstros que disputam batalhas). Esse desenho foi feito por Guilherme uma criança de nove anos, do sexo masculino...............................................................................................................47 Figura 16 Desenho de memória – representação dos desenhos japoneses da televisão, feito por Henrique, uma criança de nove anos, do sexo masculino...............................48 Figura 17 Desenho espontâneo - “Uma menina”, feito por Lara, uma criança de dez anos, do sexo feminino. .......................................................................................................49 Figura 18 Desenho de memória – “Representação dos desenhos japoneses”, feito por José, uma criança de dez anos, do sexo masculino. .......................................................50 Figura 19 Desenho de memória – “Personagens do jogo eletrônico Ragnarok Online”, . feito por Guilherme, uma criança de doze anos, do sexo masculino.............................51 Figura 20 Desenho espontâneo – “Criação de monstros em situação de luta”, feito por Gustavo, uma criança de dez anos, do sexo masculino. ........................................53 Figura 21 Desenho espontâneo- “Figura humana”, feito por Catherine, uma criança de dez anos, do sexo feminino. .........................................................................................54 Figura 22 Desenho de memória – “Monstros e ações de luta”, semelhantes aos desenhos japoneses da televisão, feitos por Roberto, uma criança de dez anos, do sexo masculino...............................................................................................................55 Figura 23 Desenho de uma paisagem, feito por Bianca, uma criança de dez anos, do sexo feminino.................................................................................................................56 Figura 24 Folder original do Bob Esponja, personagem do desenho animado da televisão..74 Figura 25 Bob Esponja - Desenho espontâneo observando o modelo. Feito por André uma criança de cinco anos do sexo masculino. .............................................................75 Figura 26 Bob Esponja - Desenho orientado observando o modelo, feito por André, uma criança de cinco anos do sexo masculino. .............................................................75 Figura 27 Bob Esponja - Desenho de memória sem modelo, feito por André uma criança de cinco anos do sexo masculino. ..............................................................................76 Figura 28 Cópia de um folder de jogo. Desenho feito por uma criança de dez anos do sexo masculino. .............................................................................................................82 Figura 29 Desenho espontâneo feito por Guilherme, uma criança de dez anos do sexo masculino, quando relatou que iria iniciar o curso de música e estudar um instrumento musical...............................................................................................82 Figura 30 Desenho de abstração, feito por uma criança de dez anos, do sexo feminino da Escola A, pesquisada. ............................................................................................88 Figura 31 Desenho de abstração, feito por uma criança de dez anos, do sexo masculino da Escola A, pesquisada. ............................................................................................88 Figura 32 Imagem do caderno de artes de uma criança das quintas séries do sexo masculino com inclusão do conteúdo teórico, da Escola A, pesquisada. ...............................89 Figura 33 Personagem de desenho animado japonês. Feito por uma criança de dez anos, do sexo masculino, da Escola A pesquisada...............................................................90 Figura 34 Personagem de desenho animado japonês. Feito por uma criança de dez anos, do sexo masculino, da Escola A pesquisada...............................................................90 Figura 35 Maquete da cidade de São Paulo. Atividade em grupo, feito pelos alunos das quartas séries, da Escola B pesquisada..................................................................91 Figura 36 Maquete da cidade de São Paulo. Atividade em grupo, feita pelos alunos das quartas séries, da escola B pesquisada...................................................................91 Figura 37, 38 e 39 Registro de fotos dos murais da Escola A pesquisada, que demonstram atividades em grupo sobre o conteúdo das aulas (ponto, linha, cor e forma)...................................................................................................92 Figura 40 “Máscaras africanas”. Atividade com sucata, feita pelos alunos das quintas séries da Escola C pesquisada..........................................................................................93 Figura 41 Imagens de um álbum de desenhos do projeto em que a professora utilizou um livro paradidático. Feito por uma criança de nove anos do sexo feminino da Escola D pesquisada..........................................................................................................94 Figura 42 e 43 Atividades de interdisciplinaridade entre as áreas de Arte e História feito em grupo, pelas quintas séries da escola D pesquisada. Painel retratando o Império Romano, bonecos que ilustram a população e o indumentário da época e um jogo de quebra cabeça. ..............................................................95 Figura 44 Atividades interdisciplinares entre as áreas de Arte e Ciências: tema “Alimentação saudável”. Feito em grupo pelos alunos das quartas séries da escola D pesquisada..........................................................................................................96 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Dados pessoais dos sujeitos entrevistados na pesquisa. ...............................98 Quadro 2 Dados acadêmicos dos sujeitos entrevistados na pesquisa...........................98 Quadro 3 Dados profissionais dos sujeitos entrevistados na pesquisa. ......................100 Quadro 4 Dificuldades no exercício docente..............................................................101 Quadro 5 Valorização profissional. ............................................................................102 Quadro 6 Preferência em lecionar para alguma série específica. ..............................104 Quadro 7 Acerca da autoria do planejamento. ...........................................................104 Quadro 8 Acerca da elaboração do planejamento. .....................................................105 Quadro 9 Atividade de interesse dos alunos...............................................................106 Quadro 10 Série que solicita mais auxílio do professor. ..............................................106 Quadro 11 Série ou idade dos alunos que dizem “não saber desenhar”.......................107 Quadro 12 Acerca da existência ou não do “dom”.......................................................109 Quadro 13 Acerca do ensino. .......................................................................................109 Quadro 14 Pontos positivos e pontos negativos da escola púbica e particular.............111 Quadro 15 Visão dos diretores, acerca do ensino e do educando.................................112 Quadro 16 A visão dos diretores das escolas, acerca do corpo docente.......................113 Quadro 17 Grau de importância do ensino da arte .......................................................114 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................13 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO GRÁFICO INFANTIL...............................................................................................................20 2.1 OS ESTÁGIOS DO DESENVOLVIMENTO GRÁFICO.......................................24 2.2 A REPRESENTAÇÃO DA FIGURA HUMANA...................................................29 3 O REALISMO VISUAL ........................................................................................37 3.1 A INFLUÊNCIA DA MÍDIA E A CÓPIA DE MODELOS....................................41 3.2 MODISMO: A INFLUÊNCIA DOS DESENHOS JAPONESES ...........................48 4 A DISCIPLINA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA ......................................................58 4.1 O ENSINO DO DESENHO NAS AULAS DE ARTES .........................................64 4.2 UMA EXPERIÊNCIA DE ENSINAR DESENHO .................................................70 5 ESTUDO COMPARATIVO DO ENSINO DE DESENHO EM DUAS ESCOLAS PÚBLICAS E DUAS ESCOLAS PARTICULARES PARA CRIANÇAS DE 9 E 10 ANOS...............................................................................84 5.1 DESCRIÇÃO DAS ESCOLAS VISITADAS..........................................................85 5.1.1 As Escolas Públicas.................................................................................................87 5.1.2 As Escolas Particulares ..........................................................................................93 5. 2 BREVE RELATO COMPARATIVO SOBRE OS RESULTADOS A SEREM APRESENTADOS .....................................................................................97 5.2.1 O Perfil Pessoal, Acadêmico e Profissional dos Professores das Escolas Públicas e das Escolas Particulares Pesquisadas .................................................97 5.2.2 A Compreensão dos Professores Acerca de seus Alunos ..................................105 5.2.3 Como o Ensino do Desenho é Ministrado...........................................................108 5.2.4 Parecer dos Diretores das Escolas Pública e Particular, acerca de suas Respectivas Escolas...............................................................................................110 5.3 DISCUSSÃO ..........................................................................................................114 6 CONCLUSÃO.......................................................................................................121 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁICAS ..................................................................126 ANEXO 1 – CARTAS...........................................................................................130 ANEXO 2 – MODELO DOS QUESTIONÁRIOS .............................................132 ANEXO 3 - TRANSCRIÇÃO DOS QUESTIONÁRIOS RESPONDIDOS ....136 13 1 INTRODUÇÃO O presente estudo é fruto da experiência que alcancei, ao longo dos anos, no exercício da arte-educação no ensino básico. Tenho observado, nesses dezoito anos como professora da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, que as crianças pequenas manifestam gosto pelo fazer artístico e revelam grande espontaneidade em suas atividades. Expressam-se livremente, diferentemente das crianças mais velhas que já adquiriram maior senso crítico em relação às suas próprias produções. O grupo de alunos do Ensino Fundamental, que compreende a idade escolar de 7 a 10 anos aproximadamente, manifesta via de regra mais interesse pela disciplina de artes, em detrimento de outras disciplinas. Porém, especificamente as crianças na faixa etária dos 9 aos 10 anos revelam insegurança e grande censura com relação ao produto final de seus trabalhos, especialmente em relação ao desenho. Essas crianças solicitam com mais freqüência a professora e buscam sempre uma palavra de apreciação sobre o que estão fazendo. A observação da mudança de atitude das crianças de 9 a 10 anos me estimulou a estudar essa faixa etária no intuito de compreender o porquê do desinteresse de muitas delas em prosseguir desenhando. Interessou-me buscar respostas a questões pertinentes ao desenho. Como o desenho, enquanto disciplina dentro da área de artes, seria ensinado? Os professores desenvolvem alguma técnica formal para que os alunos aprendam esquemas de representação ou as crianças são deixadas livres? Existe técnica para o ensino do desenho ou a expressão infantil livre é a única alternativa possível? É fato que o desenho é um dos meios pelo qual as crianças se expressam, todavia, pude perceber que algumas crianças na faixa etária de 9 e 10 anos, tendiam a desenhar com maior freqüência os personagens dos desenhos animados da televisão que já sabiam fazer de 14 memória, outras buscavam a cópia de modelos, no ato da representação pictórica ou do “desenho livre”, quando solicitados pela professora. Muitas alegavam que não sabiam desenhar, chegando ao ponto de copiarem os desenhos dos colegas. Haviam crianças que recorriam a temas como montanha, sol, casas, paisagens, etc. ou copivam das figurinhas ou álbuns, os personagens de desenho animado da TV. Com esta observação percebemos a influência que as imagens veiculadas na mídia exercem sobre as crianças e no modo com estas desenham. Não há como negar a ação das imagens sobre nós nos dias de hoje. Elas nos cercam e por conseqüência, nos afetam. Nos grandes centros urbanos, a percepção é saturada de imagens produzidas pela mídia. Nesta realidade, o indivíduo mudou seus costumes e alterou seu comportamento. O hábito da leitura, por exemplo, foi sendo substituído pelo rádio, pela televisão e pelo cinema, e assim, a imagem e sua influência passaram a permear a vida social trazendo o consumo, muitas vezes sem crítica. Como McLuhan (1979, p. 257) afirma: “Os anúncios não são endereçados ao consumo consciente. São como pílulas subliminares para o subconsciente, com o fito de exercer um feitiço hipnótico”. Se existe fundamento em tal declaração, podemos considerar que o olhar é direcionado para o consumo, é condicionado para a compra de produtos. Afinal, os comerciais induzem ao ato do consumo, gerando necessidades e ações automáticas. Nesta perspectiva de entendimento, devemos considerar que não apenas os adultos são influenciados pela mídia, mas, que a influência também passa pelo universo infantil. Os meios de comunicação de massa estão ocupando cada vez mais o espaço da vida cotidiana, sendo muitos os programas de televisão dirigidos especialmente para crianças. Constatamos que o mercado voltou seu olhar também para os pequeninos, enquanto consumidores potenciais. O tema do consumo das imagens televisivas e a discussão da influencia da mídia sobre as 15 crianças trazem uma primeira dificuldade: Seria possível detectar com precisão o que é efeito da televisão e o que não é? Atualmente, os pais encontram dificuldades para impor limites aos filhos, alegando temor em frustrá-los. Notamos que existe uma preocupação demasiada, por parte dos pais, de agradar às crianças e satisfazer, seus desejos. Seria possível isolar a televisão das influências do restante da sociedade? Quanto do consumo infantil advém da família e quanto da mídia? Até onde o comportamento negativo da criança é imitação daquilo que ela observa nos enredos de ficção ou do que são apresentados na mídia como possíveis paradigmas sociais? A convivência dos espectadores mirins com a televisão, toda a interferência desta no indivíduo, na sua fase de formação da identidade, são temas polêmicos. Discutem-se entre os educadores a problemática dos efeitos exercidos pela televisão na sociedade contemporânea. Neste sentido, gostaria de pensar um pouco nas crianças maiores, que já conquistaram o domínio da linguagem, articulam com mais consciência o pensamento, a leitura e a escrita, sendo capazes de se expressar facilmente de forma oral. Refiro-me às crianças na faixa etária dos 9 e 10 anos, do nível escolar do Ensino Fundamental I com as quais trabalhei como professora de Artes Plásticas nos últimos anos e também as crianças das quintas séries do Ensino Fundamental II, que estão dentro da mesma faixa etária deste universo de idade. Realizei em minha prática pedagógica as mais variadas propostas e utilizei diferentes técnicas voltadas para a expressão plástica das crianças que manusearam materiais diversificados nas aulas. Várias foram as modalidades expressivas ministradas tais como modelagem, pintura, desenho, composição, recorte e colagem, dentre outras que apontam possibilidades para o desenvolvimento da criança. Observei que meus alunos revelavam não só o gosto pela disciplina como também sensibilidade no fazer artístico. Expressavam em suas produções seus sentimentos e sua imaginação. Todavia percebi que, dentro da disciplina de Desenho, as crianças de 9 e 10 anos 16 são as que mais se organizavam socialmente. Observei que, no ato de desenhar, elas procuravam mais umas às outras, ora investigavam o desenho dos colegas ora por curiosidade, ora com a intenção de copiarem o desenho do outro, alegando que “não sabiam o que fazer” ou que estavam sem idéias. Geralmente buscavam também o auxílio da professora, querendo um comentário apreciativo ou mesmo uma interferência. Observando o comportamento das crianças no cotidiano da sala de aula, percebi que a espontaneidade no desenho livre se fazia mais presente nas crianças menores da Educação Infantil e nas séries iniciais, como a primeira e a segundas séries. À medida que as crianças cresciam, a espontaneidade se mostrava cada vez mais ausente. Por alguma razão, o desinteresse em desenhar se manifestava em algumas crianças, especialmente naquelas para as quais o mito de que “não levavam jeito pra artes” se fazia presente. Sendo assim, escolhi investigar a faixa etária dos 9 aos 10 anos buscando compreender como o processo de aquisição de conhecimentos em desenho ocorre. Quem é essa criança? Quais são seus gostos, como pensa e o que os estudiosos têm descoberto acerca do assunto. Tais questões poderiam vir a enriquecer a minha prática profissional. A pesquisa proposta não pretende dar conta do universo do conhecimento relativos ao ensino da arte, mas sim contribuir para o esclarecimento de certos aspectos relativos ao desenho infantil. Busquei também investigar como esta área é vista por outros professores, tendo o propósito último de refletir sobre a pratica pedagógica. Para isso observei os seguintes procedimentos metodológicos: Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa com a finalidade de observar a dinâmica do processo ensino-aprendizagem do desenho em duas escolas públicas e em duas escolas particulares da região central de São Paulo. O critério de escolha das escolas foi baseado na possibilidade de se obter um acesso facilitado em virtude da pesquisadora também morar na região central. 17 Os professores de artes das respectivas escolas e seus diretores foram convidados a participarem da pesquisa respondendo um Questionário semi-aberto. Das duas escolas públicas pesquisadas, somente um diretor aceitou responder o Questionário e a mesma experiência foi vivenciada na escola particular. Somente um diretor participou. As respostas ao questionário que encaminharam a coleta de dados, foram analisadas qualitativamente. As etapas da pesquisa levaram em conta o: 1) Levantamento bibliográfico: num primeiro momento procuramos fazer uma leitura crítica dos textos que abordam direta ou indiretamente o objeto da pesquisa, buscando com isso nos familiarizarmos com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito na construção de hipóteses. 2) Participantes: um grupo de quatro escolas, duas públicas e duas particulares da região central de São Paulo. 3) Instrumento: foi solicitado o preenchimento de um Questionário, aos professores específicos da área de artes e aos diretores respectivos das escolas a fim de que pudéssemos ter contato com a visão destes sobre o ensino e a importância da arte. 4) Procedimento: a) os professores foram convidados através de explicação verbal, a responderem um Questionário semi-aberto. O objetivo era de traçarem um perfil pessoal, acadêmico e profissional do professor de artes, além de observar sua visão sobre a criança e em especial a criança de 9 a 10 anos de idade e por fim como o professor ministra suas aulas. b) a observação direta das aulas, não foi possível em todas as escolas, em virtude da burocracia que muitas vezes entravou o acesso às mesmas. 5) Análise dos dados: a coleta de dados permitiu verificar em primeiro lugar, como é trabalhado o conteúdo na disciplina de artes para as crianças de 9 e 10 anos de idade, em segundo lugar, se o professor que ministra aulas para esta idade leva em consideração que 18 estas crianças modificam seu comportamento no ato da representação pictórica, e em terceiro lugar, se é ensinado desenho ou se o livre fazer espontâneo é o único recurso proposto. Seria interessante esclarecer ainda, que não foi tarefa fácil, encontrar escolas que se dispusessem a aceitar o convite à pesquisa. Nesse processo de busca, nas duas escolas públicas que entrei em contato, obtive uma resposta positiva logo na primeira tentativa. O mesmo não ocorreu nas escolas particulares. De oito escolas que procurei, apenas duas aceitaram participar. As ilustrações que seguem no corpo do trabalho, são desenhos que me foram doados por antigos alunos com os quais tive o prazer de conviver e para facilitar a compreensão da autoria dos desenhos utilizei-me de nomes fictícios. Todavia na pesquisa de campo, pude registrar através de fotos, os desenhos das crianças da rede pública e da rede particular, com os quais ilustro o último capítulo. Com o propósito de contribuir com um questionamento sobre o aprendizado do desenho, na primeira parte desta pesquisa, apresentarei uma reflexão sobre o desenvolvimento gráfico infantil em suas diferentes fases para, em seguida, priorizar na segunda parte, a fase do realismo visual que corresponde à faixa etária da criança de 9 a 10 anos de idade. Na tentativa de aprofundar o assunto, na terceira parte, apresentarei considerações sobre a visão de alguns educadores sobre as aulas de artes e sobre o ensino do desenho. Considero que este estudo poderá ampliar um diálogo acadêmico importante sobre a nossa profissão de educadores e sobre a disciplina de artes. Na quarta e última parte, apresentarei uma amostragem comparativa de como é ministrado o ensino de desenho em escolas da rede particular e pública, buscando também precisar o perfil do professor que leciona artes a faixa etária de 9 a 10 anos. O objetivo é responder se o desenho é ou não ensinado formalmente e como o professor percebe essa criança. 19 Este estudo ofereceu a oportunidade de me sentir realizada ao pesquisar o tema e aprofundar um diálogo sobre o ensino do desenho infantil, especialmente por que acredito na criança e, na profissão de educadora. A essa crença se soma uma vontade enorme de realizar mudanças e, de alguma forma, contribuir com colegas que ministram aulas na mesma área. 20 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO GRÁFICO INFANTIL Quando queremos refletir sobre algo relacionado com o ser humano estamos nos aventurando a penetrar num mundo fascinante, misterioso e por demais complexo. Pensar sobre a criança, sobre seu desenvolvimento e sua arte, implica utilizarmos a nossa sensibilidade e termos em conta, a fantasia. A expressão é inerente ao ser humano e a criança inicialmente se expressa de forma aparentemente sem objetivo, ao sentir prazer ou raiva, mas também de forma a garantir a satisfação de seus desejos. Herbert Read (2001, p.120), ao escrever o livro A educação pela arte, faz uma citação de um educador conhecido como Froebel, que afirma: Brincar é a mais elevada expressão do desenvolvimento humano da criança, pois constitui a única expressão do que está na alma da criança. É o produto mais puro e mais espiritual da criança, sendo, ao mesmo tempo um tipo e uma cópia da vida humana em todos os seus estágios e em todas as suas relações. No ato de brincar, a criança organiza os processos mentais e se desenvolve nas atividades físicas. A brincadeira proporciona repetição das experiências, além de estimular a fantasia e a cooperação. No mesmo livro citado, Read (2001, p.121), menciona o comentário de Margaret Lowenfeld que segundo a qual: “[...] nas crianças a brincadeira é a expressão de sua relação com o todo da vida”. É então, através da brincadeira que a criança é estimulada a se desenvolver. Ela vai adquirindo controle motor e, pouco a pouco, passa a dominar seu corpo e acredita que pode dominar também o mundo. Esta onipotência pode ser agravada pela dificuldade que tem de diferenciar o seu eu do outro. Ela entra em contato com o mundo através de seu envolvimento espontâneo com ele e todas as energias físicas, emocionais, racionais ou intuitivas, são contidas ou liberadas através das brincadeiras. Para Vygotsky (2000), o brincar é a fonte condutora do desenvolvimento no pré- escolar e o principal meio através do qual a aprendizagem de regras é dominada. 21 Howard Gardner (1997, p.178), em seu livro As artes e o desenvolvimento humano, pressupõe que o brincar seja um parceiro insubstituível do desenvolvimento e afirma: Em resumo, as artes, embora não sejam os principais modos de desenvolvimento, tendem à integração e organização da experiência de uma maneira mais abrangente; a arte é uma forma de brincar dirigida para um objetivo. O brincar difere das artes em sua fonte e em seu destino formal. A arte poderá ser uma alternativa para as diferentes manifestações da espontaneidade infantil. Por isso cabe ao adulto fazer com que a criança tenha acesso a materiais diversos e se expresse livremente em suas experiências no decurso de seu processo de desenvolvimento. O ato de pegar um lápis para desenhar ou um pincel para pintar pode ser considerado uma atividade espontânea como a brincadeira, já que a criança o faz por vontade própria. Herbert Read (2001, p.125) considera que os produtos das atividades expressivas da criança são, em algum sentido, inspirados. Ele questiona se, de alguma forma, tais produtos podem ser “descritos como artísticos”, ou seriam apenas uma forma de brincar. O autor prossegue citando com indignação os comentários pejorativos que a dra. Montessori faz acerca dos desenhos infantis: Esses desenhos horrorosos, tão cuidadosamente recolhidos, observados e catalogados por modernos psicólogos como documento da mente infantil, não passam de monstruosos, expressões de leviandade intelectual, eles apenas mostram como o olhar da criança é deseducado, a mão inerte, a mente insensível tanto ao belo quanto ao feio, cega com relação ao verdadeiro ou falso [...] eles não revelam a alma, mas os erros da alma [...] Read (2001, p. 315) reitera suas idéias acerca da necessidade de se educar a criança através do ensino da arte. Sustenta seu pensamento embasado no filósofo grego Platão, que se posicionava alegando que: Uma educação estética é a única educação a trazer graça para o corpo e nobreza para a mente e que devemos tomar a arte como base da educação porque ela consegue operar na infância, durante o sono da razão, e, quando a razão surgir, a arte já lhe terá preparado um caminho e ela será saudada como uma amiga cujas características essenciais há muito são familiares. 22 Essas considerações possuem relevância para o nosso tema estudado, o desenvolvimento gráfico infantil. Obviamente poderíamos refletir sobre o que acontece quando uma criança começa a desenhar e como se dá esse processo. A criança, ao desenhar, se projeta no mundo. Seu traço no papel, no muro, na areia, quando utiliza qualquer signo gráfico sobre qualquer suporte, imediatamente é humanizado pela simples presença do gesto que é pessoal, ali expresso. O gesto possui identidade e presença e com ele se origina a linha, a forma e a imagem. O suporte pode oferecer resistência, mas isso não tira o prazer que a criança sente em representar algo; ao contrário, impulsiona e estimula o seu fazer. O corpo inteiro da criança desenha e, neste ato, a criança experimenta formas, imagens e significados, estabelecendo um elo de participação com o mundo. Nasce, assim, a representação gráfica dotada de intencionalidade. Segundo Vygotsky (2000), com o desenvolvimento da linguagem, a criança passa a sofrer a mediação dos conteúdos culturais e sua percepção é fortemente influenciada pelos aspectos sociais; de igual modo, seu conhecimento sobre o mundo e suas experiências vivenciadas são frutos de um contexto social. Portanto, ao desenhar, a criança estará revelando o que percebe dentro de sua cultura, sua percepção gera formas e o desenho se origina pela articulação das mãos e dos olhos, pela utilização do material disponível, cujo resultado enfim, é gerado do imaginário da criança. Sob esse prisma, o que a criança registra ou representa desenhando, sendo consciente ou não, encontra significado quando visto no contexto da sua história pessoal e social e do grupo social ao qual ela está vinculada. É portanto significativo, apontarmos algumas fases em que a criança passa à caminho do desenvolvimento. 23 Howard Gardner (1997, p.33) questiona a afirmação central da psicologia desenvolvimental, segundo a qual, após passar por uma série de estágios, o individuo obtém o pensamento operacional formal, o que se dá no início da adolescência. Tal noção foi proposta por Jean Piaget (1896-1980) em sua teoria sobre o desenvolvimento cognitivo. Gardner (1997, p.47) dedicou-se a pesquisar como a criança poderia ser considerada uma artista passando por estágios diferentes dos apontados por Piaget. Afirma o autor: De acordo com minha formulação, a criança fluente no uso dos símbolos já pode ser considerada um artista, mas precisa atravessar outros estágios separados antes de ser considerado cientista. Mesmo assim, num sentido mais profundo do que o do cientista, o desenvolvimento do artista continua por toda vida. O que Gardner (1997) procura mostrar é que os agrupamentos ou operações descritos por Piaget não parecem essenciais para o domínio ou entendimento da linguagem humana, da música ou das artes plásticas. Ele irá considerar que as artes são aprendidas pelo intelecto, mas ao mesmo tempo, elas provocam respostas afetivas e preocupam-se com a qualidade dos sentimentos. Sendo assim, o autor aponta a existência de três sentidos para o desenvolvimento artístico, o sentido do fazer, o sentido do perceber e o sentido do sentir. Esses seriam, portanto, os padrões ou esquemas comportamentais: o que faz, o que percebe e o que sente. Neste contexto, o desenvolvimento ocorreria dentro do próprio meio, através de uma exploração e uma amplificação correta dessas propriedades. Em síntese, a criança ao representar graficamente, operacionaliza um processo de percepção dinâmica. A criança se percebe existindo, percebe seu meio social e expressa sua vivência na representação pictórica. A sua percepção ativa seus sentidos, possibilitando sua apropriação do mundo e assim ela é capaz de gerar formas pela articulação de elementos, seja pela utilização do material, da técnica empregada, seja pelo imaginário, ou seja, pelo projeto poético. 24 2.1 OS ESTÁGIOS DO DESENVOLVIMENTO GRÁFICO Quando desenham, as crianças expressam suas preferências bem como as coisas que lhes desagradam. Suas reações emocionais também podem ser expressas no desenho de modo que, desenhando, as crianças, revelam seu próprio mundo interior como também o mundo que as cerca. Desta forma, as crianças conseguem combinar, segundo Victor Lowenfeld (1976), dois fatores muito importantes: seu conhecimento das coisas e sua relação, individual e própria, com elas. À medida que crescem, maior é a variedade de elementos que acrescentam na sua representação gráfica, de acordo com o significado que tais elementos têm para elas. Lowenfeld (1976, p. 17) enfatiza o fato de que tudo o que uma criança faz e todas as experiências por que passa exercem influência sobre ela. E continua: [...] se a criança, em seu trabalho criador, procura continuamente relacionar entre si todas as suas experiências, tais como pensar, sentir, perceber, ver, tocar... tudo isso também deve exercer um efeito de integração sobre sua personalidade. Os desenhos infantis equivalem, portanto, às palavras; são meios pelos quais as crianças expressam e comunicam como se sentem e como sentem os outros. Bernard Blot (apud. PORCHER 1982, p.115 a 131), no livro Educação Artística - luxo ou necessidade escreve sobre algumas características comuns nas crianças em suas diferentes fases cronológicas e apresenta sugestões para educadores no trabalho com elas. O autor divide em três fases principais o processo do desenvolvimento do desenho infantil. De 0 aos 6 anos, tem-se a fase da garatuja até a figuração. Dos 6 anos até aos 9, é importante o professor variar e enriquecer as técnicas e estimular a auto-confiança. E, por fim, dos 9 aos 10 anos, a criança passa do realismo intelectual ao realismo visual. Na mesma perspectiva de proposição dos estágios do desenho infantil, observamos as considerações feitas por Herbert Read (1968, p. 130 a 132), quando descreve o trabalho de 25 dois pesquisadores: o professor inglês Ebenezer Cooke e o psicólogo inglês James Sullly, que, em 1885, foram os primeiros a dividirem em “estágios” o desenvolvimento do desenho infantil. Apresento a seguir, um resumo dos estágios retomados por Herbert Read, enfatizando sua opinião sobre a fase do realismo visual. São eles: • Rabiscos - 2 - 5 anos de idade. Subdivide-se em: rabiscos sem objetivo, rabiscos propositais, rabiscos imitativos e, por fim, rabiscos localizados. • Linha - 4 anos de idade. A figura humana torna-se o tema favorito. • Simbolismo descritivo – 5 - 6 anos (desenho primitivo, esquema lunar do rosto humano) e, aos 6 anos, tratamento mais sofisticado da figura humana; • Realismo descritivo - 7 aos 8 anos (a criança registra o que sabe, não o que vê). • Realismo visual - 9 aos 10 anos. A criança passa do estágio do desenho de memória e imaginação para o estágio de desenho da natureza. Existem duas fases: a) fase bidimensional – só o contorno é usado. b) fase tridimensional – o volume é tentado. Dedica-se atenção à sobreposição e à perspectiva. Um pouco de sombreado e um escorço ocasional são tentados. É tentado o desenho de paisagens. • Repressão - 11 aos 14 anos (a criança fica desestimulada, pois o processo de tentativa de reproduzir objetos é laborioso; o interesse é transferido para a expressão por meio da linguagem; a figura humana se torna rara e só se desenha o convencional). • Renascença artística - início da adolescência, o gosto dos meninos se diferencia do das meninas. 26 Di Leo (1991, p. 41) preocupou-se em registrar também os estágios do desenvolvimento do desenho da criança, todavia ele o fez por comparação com os estágios do desenvolvimento cognitivo propostos por Piaget. Na fase que compreende o realismo visual, o autor amplia a idade cronológica para a idade de 7 a 12 anos, pois esta coincidiria com o estágio das operações concretas, proposto por Piaget. Neste estágio o das operações concretas, a criança pensa logicamente e atinge o nível de reversibilidade concreta, ou seja a capacidade de seguir na linha de raciocínio de volta ao ponto de partida. Já no realismo visual a subjetividade diminui e a criança desenha o que realmente é visível. Se antes os desenhos eram transparentes e mostravam o interior da casa como um “raio x”, agora são realistas inclusive no uso que é feito das cores e também se apresentam mais proporcionais. Nesta fase, quando desejam que seus desenhos se tornem mais realistas, as crianças solicitam com mais freqüência o estímulo ou auxílio de um adulto e em especial a ajuda de seu (sua) professor (a) de artes. Todavia, variadas serão as maneiras como a criança irá apresentar seus desenhos. Quando muito pequena utilizará a garatuja, que consiste nos simples rabiscos ainda desprovidos de controle motor. Nesta fase, ela ignora até mesmo os limites do papel e se torna natural o fato de mexer todo o corpo para desenhar. Suas garatujas poderão se caracterizar pelas linhas retas, longitudinais ou circulares e até soltas na página. Posteriormente, irá surgir a representação da figura humana e este fato é de suma importância, pois desenhar um ser humano reconhecível caracteriza um grande salto no desenvolvimento gráfico da criança. No exemplo abaixo, observamos a evolução do desenho da figura humana, realizado por uma criança de três anos de idade. 27 Figura 1 - A evolução do desenho da figura humana, realizado por Felipe, uma criança de três anos de idade do sexo masculino. Feito em março 2002. Figura 2 – A evolução do desenho da figura humana, realizado por Felipe, uma criança de três anos de idade do sexo masculino. Feito em agosto 2002 28 Figura 3 – A evolução do desenho da figura humana, realizado por Felipe, uma criança de três anos de idade do sexo masculino. Feito em novembro 2002 Os volumes começam a aparecer e novos elementos surgem para compor o cenário de sua criação. Algumas crianças mostram-se detalhistas ao desenhar, outras, caprichosas, elas se envolvem demoradamente colorindo com paciência suas produções. Existem aquelas que se mostram rápidas e se soltam com gestos mais rústicos. De qualquer modo, para todas é fato o uso do desenho como forma de representação de seus sentimentos, emoções, idéias, ou ainda, como forma de representação de algo do mundo real, na tentativa de reproduzirem o que é visto. A criança encontra no desenho, um recurso prazeroso para liberar sua espontaneidade e criatividade. É comum observarmos, em todas as fases da infância, a representação gráfica da figura humana. Por isso, vale aprofundar um pouco mais este assunto, que considero relevante no contexto do desenho infantil. 29 2.2 A REPRESENTAÇÃO DA FIGURA HUMANA A noção de beleza assumiu diferentes significados ao longo da história da humanidade. Harmonia e equilíbrio e a figura humana, em cada cultura têm uma significativa importância que transcendem o próprio tempo. Percebemos isto quando consideramos especialmente as pinturas das cavernas e observamos o que o homem pré-histórico nos legou. Imagens de figuras humanas que correm com lanças nas mãos atrás de bisões, retratam uma época e um modo de vida que se eterniza através da pintura rupestre. Desde que foram feitos os primeiros registros de tais desenhos, o homem evoluiu e articulou novas formas de linguagem. Na história da arte, percebemos a forma do corpo, o qual é objeto de pesquisa na busca de um realismo perfeito. Diferentes pintores se propuseram a eternizar o corpo através da pintura, conseguindo que os indivíduos de diferentes épocas se impressionassem, por exemplo, com a obra de Leonardo da Vinci, a Gioconda ou Mona Lisa, como ficou mais conhecida. O ser humano, quando retratado na arte, pode se mostrar ora revestido de uma aura espiritual que o endeusa, ora revelado de uma forma profana em sua fragilidade e limitação humana. Seja qual for o tema de uma obra, quando ela revela a figura humana, se torna cativante e atrai o olhar do espectador. 30 Figura 4 – Desenho espontâneo – “Figuras humanas” realizados por André, uma criança de três anos do sexo masculino. As crianças, de igual modo, se interessam pela figura humana e tendem a representá-la em seus desenhos. Por este motivo, muitos especialistas do desenvolvimento infantil utilizam os desenhos das crianças para avaliar a sua maturidade intelectual ou o seu ajustamento emocional. O desenho da figura humana parece ser uma atividade tão espontânea e natural: as figuras são apresentadas em diferentes cenas ou isoladas. Os desenhos representativos começam a ocorrer por volta dos 3 ou 4 anos e, nesse estágio, descobrimos que as garatujas podem significar alguma coisa do mundo visível. Di Leo (1991, p. 102) lembra que nos primeiros desenhos feitos pela criança aparece uma cabeça com alguns membros e sempre a figura humana persistirá como tema. Ele afirma que este fato é observado nos desenhos infantis estudados por diversos pesquisadores. O mesmo pensamento é compartilhado por Edith Derdyk (1990, p. 108): O processo de aquisição da representação da figura humana nos faz pensar na nossa própria constituição como ser no mundo. A representação da figura humana estabelece vínculos de identidade profunda com nós mesmos, estamos ali expressos. A necessidade de capturar a si mesma, definindo sua imagem e sua figura no mundo, se expressa na insistência natural que a criança tem em desenhar figuras humanas. São desejos de se situar na fresta da vida, de sentir o que é vivo, o que tem movimento. 31 Todos os desenhos possuem uma cabeça em forma de círculo. Quanto a esse dado, o pensamento de Pennick (1980, p.16) considera que: “Talvez o círculo tenha sido o símbolo mais antigo desenhado pela raça humana. Simples de ser executado, é uma forma cotidiana encontrada na natureza, vista nos céus como discos do sol e da lua”. Da cabeça circular expressa pela criança, surgem os membros. Ao longo do processo evolutivo da criança, a figura humana será aprimorada através de inúmeras repetições, observando-se também o processo de apropriação dos códigos socioculturais. Cada desenho é particular na sua maneira de comunicar. É resultado da percepção da criança que evoca, desperta e recria a experiência do real. As imagens que a criança percebe têm efeito direto em seus sentidos e encontram correspondência com sua emoção, servindo de estímulo para que, no desenho ela comunique sua visão de mundo. Jung (apud. READ 200, p.202) refere-se ao “[...] inconsciente coletivo que constitui uma base psíquica de natureza suprapessoal e presente em cada um de nós”. O conteúdo do inconsciente coletivo ele chamou de “arquétipos”. Herbert Read (2001, p.204) lembra que até nas atividades artísticas das crianças estes arquétipos estão presentes e principalmente no uso dos círculos. Estes seriam mandalas, como os círculos ou anéis medievais tratando-se de um símbolo recorrente no Oriente e na Europa medieval, freqüente na arte cristã e bizantina. Arnheim (apud. DI LEO 1991, p.102) afirma que as primeiras representações dos desenhos infantis, são em forma de círculos. Posteriormente, segundo ele, a criança vai “adicionando olhos, boca e o nariz e mais tarde outro círculo será o tronco”. Surge, então, a figura humana e outros temas, como casa, árvores e o sol, aparecem repetidas vezes. Aparecem os “exageros”, certas cenas ou partes do corpo ganham, muitas vezes, proporções determinadas pela emoção. 32 Os desenhos podem aparecer em uma só linha ou na beira do papel, que é considerada como sendo uma “linha de base”. Outras vezes, encontramos desenhos dispersos na folha sem relação entre si. O céu geralmente aparece no alto da folha e poderá se mostrar como parte de uma concepção de céu. Figura 5 – Desenho espontâneo - “Mãe e filho”, realizado por Victor, uma criança de sete anos do sexo masculino. Dos 7 aos 9 anos, a criança poderá usar esquemas para representar o conceito de espaço, utilizando a forma de “dobragem” ou “rebatimento”. Neste caso, uma parte do desenho se apresenta com linha de base e outra de cabeça para baixo ou invertido. Na ilustração que segue a criança está tentando projetar, por exemplo, o quarteirão formado pelas ruas e nessa tentativa se apropria de régua para satisfazer sua necessidade de expressar os prédios com maior realismo possível, sem que nenhum adulto houvesse solicitado que o fizesse. Por isso o desenho será sempre, uma expressão pessoal, assim como o seu significado. O desenho será um reflexo da personalidade de quem o fez. 33 Figura 6 – O desenho com o tema “Minha rua”, foi solicitado ao André, uma criança de oito anos do sexo masculino. Nas palavras de Di Leo (1991, p. 44): “Ao desenhar, a criança parece projetar um objeto ou talvez uma tentativa de possuir o objeto; se na realidade não o obtém, pelo menos tem uma imagem do mesmo”. Na medida em que cresce, a criança vai incorporando os movimentos às cenas desenhadas. Ela não se satisfaz com figuras frontais e estáticas e, ao tentar desenhar o “movimento”, descobrirá o perfil. 34 Figura 7 – Desenho espontâneo – “Uma luta”, realizado por Ricardo uma criança de oito anos, do sexo masculino. . Figura 8 – Desenho espontâneo – “Uma luta”, realizado por Isaac, uma criança de doze anos, do sexo masculino. Ao longo do processo de desenvolvimento, verificamos que a criança pequena percebe o mundo através do toque. O toque estimula seus olhos e, ambos, mãos e olhos, se associam na apreensão das formas. Paulatinamente, o ato do desenho se torna revestido de 35 intencionalidade. A criança rabisca, cria forma, dá significado, usa toda sua energia neste ato para criar seu repertório gráfico e, assim, tudo vai pouco a pouco se tornando pretexto para o desenho que realiza. De um modo geral, as crianças de 9 aos 10 anos de idade, além de desenhar figuras humanas desejam também desenhar novos temas, experimentar diferentes materiais artísticos, conhecer técnicas de adultos e manifestam a vontade de desenhar como os objetos “são de verdade”, além de possuírem boa memória visual. Todavia a figura humana continuará sendo um dos temas presentes em suas representações. Figura 9 – Desenho espontâneo da figura humana, realizado por Viviane, uma criança de nove anos, do sexo feminino. 36 Figura 10 – Desenho espontâneo da figura humana, realizado por Crystal, uma criança de dez anos, do sexo feminino. A tomada de consciência da forma surge e, então, aproximadamente dos 9 aos 10 anos de idade, o pensamento visual da criança vai se estruturando no sentido do “realismo visual”, período destacado no presente estudo. 37 3 O REALISMO VISUAL Na idade que compreende os 9 aos 10 anos, percebemos que apesar do interesse pelo desenho, algumas crianças já manifestam insegurança na escolha de temas que elas pretendem representar. Neste momento elas já possuem maior consciência do meio em que vivem graças às múltiplas experiências a que foram submetidas e, conseqüentemente, não obstante ao fato de algumas se sentirem inseguras, experimentam a sensação de provar a si mesmas que são capazes de se expressar através do desenho. Por isso, muitas crianças nessa fase, recorrem à repetição do mesmo tema várias vezes. Victor Lowenfeld (1976) caracteriza essa fase como período de “repouso” e acrescenta que é mediante a repetição que nós nos certificamos da nossa competência. Di Leo (1991, p.18), em seu livro A interpretação do desenho infantil, diz que “a repetição de um mesmo tema é um fenômeno notável”, sustentando que tais repetições podem ser símbolos gerais ou meios afetivos de comunicação. Ele afirma, reportando-se a Carl Jung (1875-1961), que um símbolo pode emergir de um arquétipo ligando a realidade externa com o mundo interno da criança e, nesta visão, explica a diferença básica entre sinal e símbolo. Nas palavras de Di Léo (1991, p.18), para Jung: O sinal é convencionado pelo homem, sem significado em si mesmo, representa por consentimento comum um objeto ou instrução, como por exemplo, os sinais de “pare” ou “siga” no trânsito. Um símbolo é basicamente muito diferente. É um fenômeno espontâneo e natural cujo significado é subjacente a sua forma mais óbvia. Em contraste com o sinal, ele representa mais do que aparenta. Sonhos e pensamentos inconscientes, sentimentos e ações são fontes de símbolos. Eles requerem interpretação no contexto de uma única realidade: a da pessoa que sonha, que atuou ou desenhou. Gardner (1997, p.146) considera a importância do símbolo, afirmando que “o uso dos símbolos e dos sistemas simbólicos são o maior evento desenvolvimental nos primeiros anos da infância, um evento decisivo para a evolução do processo artístico”. 38 Na fase do realismo visual, a criança utiliza inúmeros símbolos na tentativa de manifestar seus sentimentos. Adicionando ao conteúdo dos símbolos seus sentimentos, encontra expressão nas linhas, no uso do espaço e no ato da representação. Para Di Leo (1991, p. 41), a passagem do estágio anterior ao realismo visual acontece de modo bastante interessante. Em suas palavras: Por volta dos 7 aos 8 anos, ocorre uma mudança qualitativa e quantitativa, quanto ao realismo intelectual, dando lugar ao realismo visual, uma mudança que encontra correspondência no conceito piagetiano de substituição do estágio pré-conceitual pelo estágio das operações concretas. Estes termos expressam em substância a metamorfose de um pensamento egocêntrico para uma crescente visão objetiva do mundo. O autor considera que a criança, na fase pré-conceitual do pensamento, comete alguns “erros” ao desenhar. Ela desenha com “transparência”. As pessoas são vistas através das paredes. Uma casa pode ser vista de forma simultânea, ou seja, dos três lados, além de outras características próprias dessa fase. Segundo Di Leo (1991, p. 41): Todos esses erros serão banidos gradualmente à medida que o realismo visual tomar lugar. Então a criança tentará desenhar coisas como são vistas externamente, preferencialmente à visão interna. Objetos distantes serão desenhados menores, as chaminés que eram oblíquas, por estarem perpendiculares ao teto serão feitas verticais, a técnica do raio x, será abandonada por ser ilógica e pessoas não mais serão vistas através das paredes. De forma geral, no período que compreende dos 9 aos 10 anos, os meninos costumam retratar mais ação e as meninas parecem mais interessadas nos detalhes e acabamentos. Todavia, ambos os sexos, sem diferença, desejam que seus desenhos sejam, além de identificáveis, desejam que se tornem visualmente realistas. Nesta idade, as crianças consideram que os desenhos devem ser parecidos com a “coisa” de verdade. 39 Figura 11 – Desenho espontâneo, feito por Isabel, uma criança de nove anos, do sexo feminino. Figura 12 – Desenho espontâneo, feito por Guilherme, uma criança de dez anos, do sexo masculino. Antes do “realismo visual”, as crianças se mostram dispostas e desinibidas para desenhar. Porém, aos poucos elas começam a se preocupar extremamente com que os objetos 40 de seus desenhos fiquem parecidos com o real. Nesta tentativa realista de representação, algumas crianças recorrem ao uso de régua e borracha. Percebo no cotidiano da sala de aula que as crianças dessa faixa etária são as que mais solicitam auxílio individualizado, pois em geral elas reconhecem suas dificuldades. Ao abordar este assunto, Maureen Cox (2001, p. 6), em seu livro Desenho da Criança refere que: A maioria precisará de um ensino mais dirigido e estruturado, mas como em geral não recebem o auxílio de que precisam e portanto nunca aprendem a satisfazer os novos e exigentes padrões que impuseram a si mesmas, concluem que não sabem desenhar. Tenho observado nas aulas que de diversas maneiras a criança busca escape para a “crise ou desconforto” em se que encontra ao tentar tornar seus desenhos figurativos, reconhecíveis. Uma alternativa é a prática da cópia de modelos. A criança traz para a aula alguns brinquedos que estão na moda, revistas com temas de seu universo pessoal, além de outros materiais de que dispõe. Se a proposta da aula envolve desenho de livre expressão, ou seja, “desenho livre”, para o qual o aluno pode utilizar os materiais de que dispõe como canetas e lápis coloridos sobre papel, com liberdade para executar sua produção, muitas vezes essa criança recorre ao material trazido. As crianças que possuem algo do gênero e não trouxeram para o ateliê pedem insistentemente autorização para ir buscar na mala deixada na classe. A constatação de que as crianças de 9 e 10 anos utilizam modelos como base para a realização de desenhos de livre expressão tem dirigido minha curiosidade. A busca de aprofundar o entendimento do desenho infantil, do uso de modelos e da influência destes na representação gráfica poderá ser base para pesquisas futuras, todavia cabe apresentar aqui, ainda que de forma resumida, como este dado se torna evidente nesta faixa etária, o que discutirei a seguir. 41 3.1 A INFLUÊNCIA DA MÍDIA E A CÓPIA DE MODELOS Os elementos visuais de comunicação estão presentes no cotidiano do estudante através dos quadrinhos, da televisão, do videocassete, dos outdoors, etc, estabelecendo uma comunicação visual de massa ou entretenimento massificado. Muniz Sodré (1987, p. 51), afirma que o fascínio do homem contemporâneo pela imagem atinge também as crianças, na medida em que elas se identificam com a imagem vista. Em suas palavras menciona: Esse processo identificatório tem nas crianças os seus melhores agentes. De fato, as observações sociopsicológicas têm localizado, na infância, uma facilidade toda especial para imitar os comportamentos e atitudes vistas no vídeo, como se a representação televisiva da presença física desencadeasse um processo equivalente ao efeito da presença real. A criança exposta aos vários códigos e convenções socioculturais de representação vai reconhecendo-os: identificando, nomeando e construindo uma compreensão para tudo, encontrando um sentido de maneira contextualizado nos conteúdos de sua experiência. Edith Derdyk (1990, p. 110), referindo-se ao desenho infantil, especialmente à questão da representação da figura humana nos desenhos, comenta que a criança constrói sua representação de acordo com o desenvolvimento de cada faixa etária, sendo também influenciada pelo coeficiente sociocultural. Para ela, Esse coeficiente sociocultural manifesta-se a partir de uma curta idade numa escala crescente, resgatando outros elementos gráficos, contribuindo com códigos e convenções da representação, pertinentes à sociedade ou cultura que tal criança vivencia. No desenho esse coeficiente se expressa principalmente nos detalhes, na caracterização dos tipos de personagens, nas roupas e objetos, nas atividades e funções que o corpo humano exerce em tais territórios. A autora sustenta que, por volta dos 6 ou 7 anos, coincidindo com o inicio da vida escolar, a criança passa a esbarrar mais frontalmente com as convenções e os códigos socioculturais de representação. A descoberta gráfica da criança logo é socializada e 42 dimensionada pelo olhar sociocultural. A criança não somente absorve como também reproduz visualmente as informações que recebe. É assim que a percepção da criança irá se processando, não apenas pelo reconhecimento das imagens, mas também pela compreensão e interpretação destas imagens. Nesse sentido, o ato da imitação e o da repetição e da automatização, fazem parte do processo de aquisição do conhecimento. Então, a criança passa a imitar o que vê, pois a imitação é um mecanismo humano. Sem se dar conta, empresta coisas do mundo, incorporando esse repertório, organizando uma representação do mundo dentro de si. Apropria-se dos conteúdos da mídia e copia no desenho, as imagens que vê. Na fase do realismo visual, a criança se interessa pela cópia de modelos, desejosa de que o produto final “se pareça mesmo” com o modelo observado. A ocorrência da cópia neste momento parece apontar para um interessante recurso no processo do desenvolvimento gráfico infantil. Na compreensão do processo artístico por meio do qual a criança, aprende a se expressar graficamente, é preciso prestar atenção na sua autocrítica que surge na fase do realismo visual. Em se tratando da criança de 9 a 10 anos de idade e da maneira como ela se expressa graficamente através do desenho, estamos necessariamente refletindo sobre como esta criança se apropria de imagens para representá-las. 43 Figura 13 – Desenho de observação – “Cópia da figura do Homem- Aranha”, feito por Ilana, uma criança de dez anos, do sexo feminino. Sobre a cópia no desenho, Louis Porcher (1982, p. 123) afirma: “[...] embora o período de cópia seja inevitável a maior parte do tempo, é até mesmo útil, pois propõe uma resposta provisória que terá que ser ultrapassada [...]”. O mesmo autor considera que na idade de 9 e 10 anos, que o ensino do desenho poderá ser melhor orientado, pois nesse estágio a criança já descobriu o espaço e a noção de profundidade e tem a consciência de suas carências técnicas. Acrescenta ainda, que a criança percebe o vazio da reprodução fiel da realidade, salientando: “A criança torna-se inibidora. Ela copia e tem consciência das imperfeições de sua cópia. Ela desanima e passa a fazer decalques.” (Porcher, 1982, p. 128) Na opinião de Herbert Read (2001, p. 136), “[...] é essa atividade imitativa que desempenha um papel importante no desenvolvimento do desenho infantil em direção ao realismo”. 44 Figura 14 – Desenho de observação - Cópia de uma figura do “Cavalo Alado”, feito por Aldeniei, uma criança de dez anos, do sexo masculino. Rudolf Arnhein (1989, p. 253) em seu livro Intuição e intelecto na Arte, faz menção a Victor Lowenfeld (1903-1960), um dos grandes nomes da educação artística nos Estados Unidos, que declara: “[...] a cópia fiel de modelos, longe de ser o único critério de qualidade, impedia o desenvolvimento da livre-expressão criadora”. Rudolf Arnheim (1989) conta que quando Victor Lowenfeld chegou aos Estados Unidos, na década de cinqüenta, havia uma ênfase sobre a aprendizagem das artes dominada 45 pela técnica tradicional do “desenho correto”. O ensino das artes estava começando a surgir como especialidade profissional e precisava de princípios que possibilitassem a condução do trabalho de acordo com a doutrina da educação progressiva. Então, Lowenfeld introduziu a liberdade e a naturalidade. Das contribuições de Lowenfeld (1976) permaneceu o pensamento de que o professor não deve de modo algum impingir sua forma particular de expressão à criança e também não deve mostrar como se pinta ou qual é o modo correto de desenhar. Ao contrário, o professor deve deixar as crianças desenvolverem por si sua própria técnica, mediante a experimentação. Arnhein (1989) aponta vários equívocos de Lowenfeld, mas por mais que pesquisadores posteriores o questionassem, seu pensamento sobre a “livre expressão” da criança ganhou força, influenciando o ensino das artes de forma geral. Podemos concluir, assim, que entre os diversos autores que escreveram sobre a arte infantil não existe uma posição única sobre a prática da cópia de modelos. Alguns apóiam o fato e o reforçam, considerando que faz parte do desenvolvimento humano e em nada parece prejudicar a criança que o faz. Outros, no entanto, dispõem de pouca apreciação para esta atitude e alegam que tal prática pode frustrar toda a intenção criativa da criança. Encontramos por exemplo a posição de Maureen Cox (2001, p.186), que argumenta a favor da experiência de copiar. O autor afirma: “Creio, porém, que, sem a experiência de copiar, esses reles mortais não apenas deixarão de progredir como, sobretudo, não irão muito longe artisticamente”. O debate sobre a validade ou prejuízo do uso de cópia de modelos, poderá futuramente ser objeto de pesquisa, e então abordado detalhadamente, especialmente porque o argumento de possuir um referencial ou um modelo para ser observado é muito antigo, tão antigo que o autor André Richard (1988, p.9), registra o comentário feito por Cennini, discípulo de Agnolo Gaddi que escreveu em 1437: 46 O mais perfeito guia que se poderia ter, a melhor direção, a porta triunfal que conduz ao desenho é a natureza. Desenhar tomando por modelo a natureza está em primeiro lugar. É preciso que você se dedique a isso com ardor e confiança, principalmente quando começar a ter algum sentimento do desenho, e continue com perseverança, não passando nem um dia sequer sem desenhar alguma coisa. Por menor que faça, será o suficiente, o bastante talvez para conduzi-lo à excelência. Richard (1988, p.13) prossegue argumentando que até o século XIX persistiu a idéia de que um bom desenho ou uma boa pintura seria o resultado da semelhança com o modelo. O autor cita Auguste Rodin (1840-1917), segundo o qual “o único princípio em arte é copiar o que se vê”. Sabemos, todavia, que o critério de semelhança desapareceu da crítica contemporânea e hoje se solicita ao pintor ou ao que desenha uma criação expressiva e pessoal. Alguns teóricos chegam a invalidar o aprendizado do desenho, como por exemplo, Bruno Murani (2001 p.7) que escreve “[...] E tampouco acredito que hoje, com todos os meios que estão à nossa disposição, seja necessário aprender a desenhar o que se pode fotografar”. Contudo, considero interessante para o momento deixar claro que as crianças na fase do realismo visual tendem a “copiar” sim, um modelo visto. Copiando desenhos animados da TV, cartoons, objetos ou mesmo brinquedos, parecem encontrar uma saída para o desafio de prosseguir no gosto pelo desenho e nas descobertas. 47 Figura 15 – Desenho de memória - do brinquedo “Bemblade” ( peão que toma parte de um desenho animado japonês da TV e destes peões surgem monstros que disputam batalhas). Esse desenho foi feito por Guilherme, uma criança de nove anos, do sexo masculino. A experiência com crianças permite observar que elas ora desenham livremente, ora copiam, ou ainda, se apropriam das imagens re-criando novas figuras a partir das que já aprenderam a fazer, ou seja, a partir do repertório que já conquistaram. Sendo assim, muitos professores de artes para crianças ao observarem os desenhos das crianças, freqüentemente irão encontrá-los recorrendo aos modelos de desenhos japoneses vistos na mídia, pois o discurso televisivo se torna fonte mobilizadora de repertório para a criação infantil. A criança de certa forma é incitada pelos estímulos fantasiosos da televisão. No momento, no repertório de símbolos utilizados pelas crianças, o que sobressai são os desenhos japoneses, a “moda” no meio infantil. 48 3.2 MODISMO: A INFLUÊNCIA DOS DESENHOS JAPONESES Tenho observado que as crianças na idade de 9 a 10 anos, estão cada vez mais se apropriando dos modelos dos desenhos japoneses para suas cópias e representações, o que provavelmente se deve aos modismos impostos pela mídia. Os desenhos animados japoneses tornaram-se produtos de exportação para o mercado mundial e sua divulgação também encontrou espaço nas emissoras da televisão brasileira. Os personagens criados se espalharam em vários produtos como bolsas, camisetas, fitas cassetes e de vídeo, nos tênis, bottons, álbuns, pôsteres, balas, chicletes, cds, bonecos, jogos, revistas e outros tantos objetos, que atraem as crianças para o consumo. Figura 16 – Desenho de memória – Representação dos desenhos japoneses da televisão, feito por Henrique, uma criança de nove anos, do sexo masculino. A influência dos desenhos japoneses se tornou grande, ao ponto de mobilizar o mercado de HQs americano. O jornal Folha de São Paulo, publicou no dia 13 de setembro de 2002, uma matéria intitulada: “Golpe de misericórdia” (ASSIS, 2002, p. E1, E4). Segundo a 49 matéria os heróis da maior editora de HQs dos Estados Unidos, rendiam-se ao universo do mangá, pois os heróis como Homem-Aranha, Marvel, Super-Homem, X-Men e outros, foram redesenhados no estilo japonês para continuarem no mercado. Os desenhos japoneses quer os de animação televisiva ou apresentados em forma de história em quadrinhos ou de videogame, são os que mais atraem a atenção das crianças atualmente, pois o uso constante de cores quentes como o vermelho e o amarelo atrai o olhar. Figura 17 – Desenho espontâneo – “Uma menina,” feito por Lara uma criança de dez anos, do sexo feminino. O uso de linhas simples, bem como o uso dos contornos, de igual modo destaca a figura da cena. Quando a história em quadrinhos se apresenta em preto-e-branco o destaque do desenho é obtido pela técnica do autocontraste, isto é, a figura que se apresenta no primeiro plano é pintada de preto, resultando o efeito de claro-escuro. Nesses casos, é comum o uso de semitons e sombreamentos nos desenhos, que produzem efeitos de tridimensionalidade. A narrativa, por sua vez, conquista a criança pela abrangência dos 50 assuntos e pela disposição em capítulos – cada episódio termina num ponto de suspense, para aguçar a curiosidade com relação ao episódio seguinte. Geralmente é abordada a temática dos desafios: os personagens devem conquistar determinado tesouro ou mesmo obter vitória e ser campeões. A temática do conflito entre o bem e o mal também está sempre presente, ocorrendo lutas violentas permeadas por golpes e raios energéticos. Figura 18 – Desenho de memória, - Representação dos desenhos japoneses feito por José, uma criança de dez anos, do sexo masculino. Tudo isso num cenário que abrange elementos cativantes da natureza, cidades imaginárias, cidades reais, espaço cósmico ou formas abstratas. Nos personagens, encontramos comportamentos variados. Nos heróis estão presentes a garra, a coragem, a generosidade, a força, a honestidade, a sabedoria, entre muitos outros atributos. Nos inimigos, sempre a vingança, a maldade, a força. Muitas vezes, em personagens 51 tanto do bem como do mal, percebemos os estereótipos ligados à beleza física, que se associam à jovialidade. Nos videogames, de igual modo, a atenção é capturada pela história, que muitas vezes pode ser construída pela própria criança na medida em que joga. A cada fase, o nível de dificuldade aumenta, o que seduz pelo dinamismo da ação proposta. Figura 19 - Desenho de memória – Personagens do jogo eletrônico Ragnarok Online, feito por Guilherme, uma criança de doze anos, do sexo masculino. Segundo Patrícia Maria Borges (1998), em sua dissertação de mestrado Um estudo sobre a influência do Desenho animado através da televisão na representação pictórica da criança de 9 aos 12 anos, os desenhos animados da televisão contêm uma mistura de lendas gregas, misticismo, movimentos artísticos europeus, processos norte-americanos de criação cinematográfica e a característica mestra do artista moderno, a velocidade. A autora analisa especificamente o desenho “Cavaleiros do Zodíaco” e discute a relação de identidade e cumplicidade entre os heróis e a criança. Embora tenha se limitado a um único desenho, que havia se tornado popular na época da elaboração de sua dissertação, a autora contribuiu com considerações pertinentes e ainda hoje válidas sobre a “invasão” dos 52 desenhos japoneses na telas da televisão e na mídia de forma geral. O que ela discute se estende, a meu ver, aos demais desenhos animados atuais. Ela mostra que os sentimentalismos dos personagens atraem o espectador infantil especialmente pelas expressões faciais. Os olhos geralmente são grandes e brilhantes e revelam ódio, amor, fraternidade, amizade, felicidade, sofrimento e angústia, além disso, os personagens aparecem sempre acompanhados de fundo musical. Segundo Borges (1998, p. 79), o objetivo de sua dissertação é verificar se a preferência pelos heróis dos desenhos animados da TV aparecem espontaneamente nas representações gráficas. Após observar 600 desenhos livres de diferentes crianças, a autora constata que os heróis dos desenhos animados, especialmente os “Cavaleiros do Zodíaco”, não aparecem na grande maioria nos desenhos infantis e afirma: “[...] não podemos relacionar o fato das crianças terem preferências e identificação com seus heróis com o fato de representá-las graficamente”. Refletindo a respeito das contribuições de Borges (1998), considero que a presença dos desenhos japoneses cresceu nesses últimos anos, tanto no que diz respeito à variedade de personagens, quanto com relação ao número de canais em que são exibidos. Aumentou também o tempo de exibição nos diferentes horários, de modo que os desenhos têm a audiência de um maior número de crianças. Os produtos com a marca dos personagens também se multiplicaram, influenciando decisivamente o gosto infantil. Considero que, se solicitarmos hoje às crianças da mesma faixa etária pesquisada por Borges (1998) para que façam “desenhos livres”, a maioria provavelmente se expressará a partir dos métodos de representação gráfica que já conhecem. Quer dizer, as crianças irão desenhar temas como casa, sol, montanhas, figura humana, etc., e não necessariamente os seus heróis prediletos. Penso que o resultado a que chegou Borges se repetiria nos dias de hoje, apesar do modismo mais acentuado do desenho japonês. 53 Ao solicitarmos às crianças “desenhos livres”, como na pesquisa de Borges (1998), encontraremos desenhos variados e será possível observar como as crianças por volta dos 9 anos se encontram constrangidas por achar que “não sabem” desenhar e, portanto, não podem desenhar “livremente”. Estas crianças talvez façam os velhos jargões que conhecem. Por outro lado, outras crianças, acostumadas a copiar inúmeras vezes modelos dos desenhos japoneses, irão reproduzir de memória seus heróis e personagens, como aconteceu com um pequeno grupo de crianças na pesquisa de Borges. Outras irão criar figuras novas a partir do repertório de que dispõem, tirando proveito da grande familiaridade com os traços do desenho japonês. Elas conseguirão “re-criar”, produzindo novas imagens, como os monstros variados com formas de dragão ou as figuras humanas de olhos grandes, pernas muito longas e cabelos espetados, tipicamente japonesas. Figura 20 – Desenho espontâneo - “Criação de monstros, em situação de luta”, feito por Gustavo, uma criança de dez anos, do sexo masculino. 54 Figura 21 – Desenho espontâneo – “Figura humana”, feito por Catharine uma criança de dez anos, do sexo feminino. Estou obviamente considerando de forma hipotética, que os resultados de uma pesquisa realizada hoje em dia com as mesmas propostas feita por Borges (1998), seriam os mesmos, visto que não pretendo, nesta dissertação repetir a mesma experiência de verificação, porém tais hipóteses encontram fundamento no fato de que as crianças, nesta faixa etária, assumem papéis sociais no ato de representarem. O que eu quero dizer é que a criança desenha por inúmeras razões. Desenha para a sua própria satisfação interna e desenha como gesto social, como sinal de simpatia ou imitação com relação a uma pessoa. Ao observarmos o desenho infantil hoje, especialmente os que são feitos “livremente” pela criança, considero que iremos ver um pouco do universo televisivo a que a criança tem acesso, encontrando não apenas a reprodução de um personagem específico, mas o desenrolar de um acontecimento, encenado com muita ação e efeitos visuais fantásticos. 55 Figura 22– Desenho de memória – “Monstros e ações de luta”, semelhantes aos desenhos japoneses da televisão, feitos por Roberto, uma criança de dez anos, do sexo masculino. Na discussão apresentada até aqui, cabe chamar a atenção dos professores de artes para o fato de que as crianças podem aprender desenho através do ato imitativo da cópia, não devendo ser censuradas por isso. Quando esse espaço não lhes é concedido, ou quando percebem o desprezo do professor com relação à cópia, os alunos podem se sentir inibidos e ocultar o que já dominam no ato de desenhar, pelo constrangimento de estar copiando ou reproduzindo de memória os personagens da televisão. A inibição da cópia de modelos pode levar as crianças a desenhar as famosas montanhas, sol, nuvens e casinha, para agradar o gosto adulto. Em minha rotina, observei grupos de crianças que, estando de posse de um lápis grafite e de folhas de papel, se punham a desenhar enquanto eu organizava a sala ou preparava o material para o início da aula de artes. Os desenhos eram feitos e mostrados aos colegas, que manifestavam entusiasmo. Em uma das ocasiões, verificando que as crianças pareciam envolvidas com essa atividade do desenho espontâneo, formalizei o pedido para que todos 56 fizessem um “desenho livre”. Para minha surpresa, os desenhos já começados, cheios de ação, com monstros, fogos, rochas e muitos raios, foram abandonados e as crianças pegaram novas folhas para começar um novo desenho. Uma delas, que havia acabado de fazer um lindo desenho, começou a desenhar do lado direito da folha um volume que se repetia em forma de montanha até a extremidade do lado esquerdo, reproduzindo a famosa cena de paisagem com rochas e um sol no centro. O dinamismo do desenho anterior e toda a espontaneidade haviam desaparecido, dando lugar a um desenho estereotipado e desvitalizado. Figura 23 – Desenho de uma paisagem, feito por Bianca uma criança de dez anos, do sexo feminino. Concordo, então, com Herbert Read (2001, p. 136) quando considera: Um fato quase incrível, capaz de perturbar todas as idéias preconcebidas que se baseiam em um conceito por demais simplificado da mente infantil, mas cuja verdade não pode ser negada. A criança não só reconhece que outras pessoas desenham num estilo diferente do seu, não só espera que essas pessoas observem a mesma fidelidade no estilo que ela observa no seu, mas também, quando desenha para outra pessoa, adota, por essa ocasião, o estilo da pessoa em vez do seu [...] a universalidade desse fato curioso, que poderíamos chamar de ‘’duplicidade de estilos’’, está acima de qualquer dúvida quando se examinam os desenhos que encontramos nas paredes e calçadas de nossas cidades...Portanto, é necessário admitir que o artista infantil usa, simultaneamente para o mesmo objeto, dois estilos diferentes de representação: um para satisfação pessoal e outro para a satisfação de outras pessoas. 57 Neste sentido, podemos constatar que as crianças utilizam como modelos as figuras dos desenhos japoneses também para satisfazer sua necessidade natural de expressar o que pensam e o que sentem para si mesmas e para os outros, num gesto imitativo. Para concluir a discussão sobre a cópia na expressão gráfica da criança, gostaria de lançar luz ao pensamento de dois autores. O primeiro é Rudolf Arnheim (1991, p.162), que considera: “A espontaneidade é controlada pela intenção de imitar propriedades de ações ou objetos.” O segundo autor é Maureen Cox (2001, p. 10), que diz: Embora desaprovada por muitos professores, nossa capacidade de copiar é importante na obtenção de muitas habilidades básicas. Na falta de ensino específico de desenho algumas crianças mais velhas aumentam seus repertórios de esquemas adotando o estilo Cartum, com freqüência copiando de revistas em quadrinhos ou de figuras de desenhos animados. Considero que, ao representar graficamente os desenhos japoneses, através da cópia de imagens ou de forma espontânea, as crianças estão se apropriando do estilo mangá e também articulando um conhecimento maior acerca dos quadrinhos. A influência japonesa pode se tornar positiva, pelo fato de despertar na criança o desejo de continuar desenhando. Cabe, agora, verificar como ocorre o processo da representação gráfica infantil especificamente em sala de aula, nas aulas de artes, para, em seguida, refletir sobre como tem sido a prática do professor de artes ao ensinar desenho, especialmente para as crianças de 9 a 10 anos de idade, em escolas públicas e particulares na região central de São Paulo. 58 4 A DISCIPLINA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA Dentre as inúmeras definições de educação, encontro em Duarte Junior (2001, p. 25) a que considero satisfatória para a complementação do nosso raciocínio. Ele considera: Educação como processo vital e consciente de contínua retomada da percepção de si mesmo, aprofundamento da própria personalidade, procura de novos caminhos de auto-realização e de integração criativa e responsável no contexto social. Considerada dessa maneira, a educação exerce um papel fundamental no desenvolvimento humano, pois, além de propiciar o crescimento individual, promove a consciência do pertencimento a um grupo social. Neste sentido, poderíamos considerar que, se a educação se voltar para o ensino da estética, estará contribuindo para a formação da criança, para a relação harmoniosa do indivíduo com o mundo. Herbert Read (2001) escreve sobre a visão que o filósofo grego Platão tinha da função da arte na educação, em termos diretamente aplicáveis às nossas atuais necessidades e condições. Todo o seu pensamento se apóia na tese de que a arte deveria ser a base da educação, através de uma educação da sensibilidade estética. Herbert Read (2001, p. 75) assim resume um dos pensamentos de Platão: [...] o objeto da educação imaginativa seria dar ao indivíduo uma concreta consciência sensorial da harmonia e do ritmo que entram na constituição de todos os corpos e plantas existentes, consciência essa que é a base formal de todas as obras de arte, a fim de que a criança, em sua vida e em suas atitudes, compartilhe da mesma graça e beleza orgânica. Por meio dessa educação, tornamos a criança consciente daquele “instinto de relação” que, mesmo antes do advento da razão, capacitará a criança a distinguir o belo do feio, o bem do mal, o padrão correto de comportamento do padrão errôneo, a pessoa nobre da ignóbil. Apoiando tal consideração, penso que o ensino de artes é capaz de dar à criança um conhecimento de si mesma, e sensibilidade no relacionamento com o outro, estimulando a manifestação de um comportamento mais ajustado, além de integrar os diferentes saberes adquiridos. É a arte que pode resgatar a unidade entre o cognitivo e o afetivo, a criatividade e 59 a criticidade. A arte é um dos caminhos para se compreender a própria vida e possibilita a transformação da sociedade. Considerando a importância da arte no desenvolvimento integral das crianças, é interessante ressaltar o aspecto significativo que o ensino do desenho pode demonstrar, quando inserido no contexto da disciplina artística e ministrado de maneira mais formal em nossas escolas. Quando utilizo a expressão “ensino formal” refiro-me à gramática visual, que deve ser um dos conteúdos propostos pelo professor de artes que ministra artes visuais às crianças. Neste contexto me reporto ao pensamento de Wucius Wong (1998, p.42), que em seu livro Princípios de formas e desenho considera quatro tipos de elementos de um desenho: elementos conceituais, o ponto, a linha e o plano; elementos visuais, formato, cor, tamanho e textura; elementos relacionais, direção, posição, espaço e gravidade, e por fim os elementos práticos. Estes últimos se manifestam na representação (realista, estilizada e abstrata), no significado, na função, na moldura de referência, no plano da imagem e por fim na forma e na estrutura. De igual modo, Donis A. Dondis (2002, p.26), no livro Sintaxe da Linguagem Visual, escreve sobre os elementos de que se compõem as mensagens visuais, ressaltando a importância de desenvolver noções de gramática visual, a saber: ponto, linha, textura, formas, contraste, instabilidade, equilíbrio, simetria, assimetria, cores, etc. Dondis afirma que: “Não existe nenhuma maneira fácil de desenvolver o alfabetismo visual, mas este é tão vital para o ensino dos modernos meios de comunicação quanto a escrita e a leitura foram para o texto impresso”. Vale a pena considerar ainda o fato de os alunos e professores nas aulas, enfatizarem demais o “fazer artístico”. Toda aula deve incluir atividades manuais e pouca atenção e tolerância se adquire no ato de apreciar as belas artes, no processo do aprendizado de percebê- las e valorizá-las. O aluno já vem às aulas com a postura mais livre, o que é positivo, mas às vezes, é confundida com brincadeiras e recreação. Já na formação da fila, perguntam o que 60 vão fazer hoje, no que vão mexer. Se o professor organizou-se para uma breve exposição sobre determinado conteúdo teórico, o aluno mostra-se impaciente perguntando outra vez: “Professora, o que vamos fazer hoje?”. A própria criança já está tão acostumada aos materiais que estranha quando logo não os recebe de imediato, revelando sua ansiedade. Existe uma alternativa mais enriquecedora para o ensino da arte nas escolas? Há uma saída que concilie a prática, o fazer, com o conhecimento humano, de modo a garantir o acesso do aluno à cultura e à ampliação da sensibilidade estética? Ostrower (1987 p. 26) compartilha sua experiência de ensino com um grupo de operários e escreve: Ver quadros tornou-se um hábito, sem que houvesse nada extraordinário nisso. Mesmo sem comentar sobre este ponto, era possível observar que, lentamente formava-se um clima de convivência com a arte e que sobretudo ampliava-se a sensibilidade das pessoas diante de fenômenos visuais. Tenho perguntado em minhas reflexões se então seria possível, que de igual modo esta experiência pudesse ser vivenciada com crianças, a fim de ampliarem seu repertório imagético, bem como sua sensibilidade. Por isso passo a incluir, nesta perspectiva, o pensamento de alguns pesquisadores que serviram de referenciais para esta pesquisa. Estarei abordando de forma resumida o pensamento de cada um, acerca de como pode ser ministrado o ensino da arte para as crianças e de como a disciplina do desenho em especial, é de igual modo considerado. Para Ralph Simith (apud BARBOSA, 1999. p. 99), “a meta geral do ensino da arte é o desenvolvimento da disposição de apreciar obras de arte, em função da experiência maior que a arte é capaz de proporcionar”. O professor poderá levar imagens para a sala de aula, para serem apreciadas, debatidas, criticadas e pesquisadas. Levar imagens para a sala de aula é levar o cotidiano, é estudar a produção artística do homem em diversos períodos culturais através da história. Por isso, Vincent Lanier (apud BARBOSA, 1999, p. 46) afirma que o professor poderia ampliar a experiência visual de seus alunos, incrementando o que já existe neles antes da escola. 61 Poderia, ainda, incluir artesanato e arte popular, além da mídia eletrônica, como cinema e televisão. Porém, o autor acredita que o centro do currículo deveria ser a educação estética, através da demonstração dos envolvimentos estéticos que já existem no ambiente natural dos alunos, a saber, o artesanato e as artes populares. O ensino pautado também na apreciação das Belas Artes tem seu lugar e o aluno assim poderia desenvolver seu gosto estético, discriminar o real e o simulacro e apreciar com senso crítico o trabalho como produto de um outro indivíduo. Esse raciocínio é um dos desafios para o educador visto que para Ana Mae (1989, p.123) se faz necessário ainda pautar o ensino, levando em conta o contexto do aluno e tendo em vista esse desafio, a autora argumenta: [...] é um desafio, conhecer as experiências estéticas anteriores dos alunos bem como, conhecer os valores artísticos trazidos pelos alunos e analisar as condições propícias para uma aprendizagem, para embasar o ensino e torná- lo instrumento de: reflexão crítica, extensão e aprofundamento do universo cognitivo, afetivo e social. Robert Willian Ott (apud BARBOSA, 1999, p. 130) considera a importância de ensinar a crítica de arte através da visitação aos museus. Ele propõe cinco passos, a saber: descrever, analisar, interpretar, fundamentar e revelar. Este último seria o ato de expressão individual da criança. Com essas abordagens, estaremos nos propondo não só a educar a sensibilidade das crianças através das artes visuais, mas, sobretudo, a auxiliar na criação de uma consciência exigente e ativa em relação ao meio ambiente, despertando preocupações sobre a qualidade de vida e ajudando a estabelecer uma visão mais completa sobre si mesmo e o outro. Para Herbert Read (2001, p. 231) há três atividades que devem ter lugar na educação através da arte: primeiro, a auto-expressão, por ser inerente ao indivíduo o desejo de comunicar a outros seus pensamentos e emoções. Nessa questão o professor assumiria um papel de atendente, guia, inspirador, parceiro psíquico. Em segundo lugar, o autor considera a 62 observação, que é o desejo de comunicar impressões sensoriais e, através delas, classificar um conhecimento conceitual do mundo. O autor concorda que a observação é uma habilidade que pode ser adquirida e desenvolvida no processo de aprendizagem. Por fim, o autor lembra a apreciação, a resposta do indivíduo aos meios de expressão de outras pessoas e aos valores do mundo, habilidade que de igual modo pode ser desenvolvida no aluno. Não poderia deixar de mencionar a influência de Ana Mae Barbosa, já citada várias vezes, que desde os anos 90 vem contribuindo com reflexões sobre o ensino de arte para crianças aqui no Brasil. Maria Christina de Souza Rizzi (apud BARBOSA, 2002, p. 66) escreve um artigo onde se lê: Dos anos 90 em diante, temos aqui no Brasil, sistematizada por Ana Mae Barbosa, uma concepção de construção de conhecimento em artes denominada “Proposta Triangular do Ensino da Arte”, nela se postula que a construção do conhecimento em Arte acontece quando há interseção da experimentação com codificação e com informação. Considera-se como sendo objeto de conhecimento dessa concepção, a pesquisa e a compreensão das questões que envolvem o modo de inter-relacionamento entre Arte e o público, propondo-se que a composição do programa do ensino de Arte seja elaborado a partir das três ações básicas que executamos quando nos relacionamos com arte: ler obras de arte, fazer arte e contextualizar. Enfim, as idéias relevantes dos autores citados podem ser assim sintetizadas: • Ralph Smith (apud BARBOSA, 1999, p. 99) defende que no ensino da arte deve-se apreciar obras de arte. • Vincent Lanier (apud BARBOSA, 1999, p.46) reforça a idéia de que o professor deve ampliar a experiência visual de seus alunos, incrementando o que já existe neles antes da escola. • Robert Willian Ott (apud BARBOSA, 1999, p 130) considera a importância de ensinar a crítica de arte através da visitação aos museus. • Herbert Read (2001, p. 231) enumera três atividades que devem ter lugar na educação através da arte: a auto- expressão, a observação e apreciação. Estas posições, ainda que não se estabeleçam como uma “receita” poderá ser desenvolvida em sala de aula. Quando o professor domina o conteúdo, bem como os métodos 63 para transmitir o conteúdo pretendido, seu procedimento didático-pedagógico, estará centrado nas competências técnicas apropriadas. Muitas considerações seriam ainda cabíveis, em se tratando de uma discussão acerca do aprendizado da arte e do desenvolvimento do desenho da criança, que inclui rever como as aulas de artes poderiam ser melhor aproveitadas. Sem a possibilidade de esgotar o debate, gostaria de, ao lado das opiniões dos diferentes pesquisadores observados até aqui acerca do ensino geral de artes, incluir e relembrar o que dizem os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 2000, p.78), especificamente sobre o ensino do desenho. Mesmo revelando o descaso de que o professor de arte e sua disciplina, são vítimas nas escolas, podemos sentir-nos ainda desafiados a procedermos com maior interesse pelo ensino de desenho às crianças. Somando o número de horas dedicadas ao desenho, ao longo do processo de escolarização, podemos perceber como é pequeno o tempo que a escola lhe dedica. [...] O que podemos perceber é que a análise da distribuição do tempo traz, sem dúvida, uma informação sobre a importância que a escola dá à expressão artística. Os Parâmetros Curriculares Nacionais situam a “Área de Arte” como um tipo de conhecimento que envolve a experiência de aprender arte por meio tanto de obras originais, de reproduções e de produções sobre a arte, tais como textos, vídeos e gravações, como do fazer artístico propriamente dito. Neste sentido, cabe então ao professor, no processo de ensino-aprendizagem, estimular não só a produção livre, mas a compreensão do que fazer e de como fazer. Desse modo, o aluno poderá compreender as bases do fazer artístico, poderá apreciar o valor das obras de arte e poderá adquirir competência, estabelecendo uma noção de conjunto, enriquecendo a percepção estética, no contato com as obras de arte. É interessante discutirmos, neste sentido, como tem sido realizado o ensino de desenho, considerando o enfoque técnico escolhido pelo professor, a sua postura didática etc. Para isso vale um olhar sobre o passado, vale retomar nossa história e relembrar ainda que de 64 forma sucinta quando e como a Educação Artística surgiu como disciplina, sem deixar de considerar a formação do professor de artes. 4. 1 O ENSINO DO DESENHO NAS AULAS DE ARTES Em minha experiência, a área de artes era compartilhada por dois professores, eu era responsável pelas aulas de artes plásticas e outro profissional ministrava música. Então o aluno vinha para as aulas semanais, de cinqüenta minutos. Ao professor cabia acomodar os alunos que se deslocavam da sala de aula para o ateliê, tarefa que despendia energia, tendo em conta que cada classe tinha uma média de trinta crianças. Após a acomodação dos alunos, havia a necessidade de manter um clima motivador e favorável, em que houvesse disciplina, pois a empolgação das crianças pela aula sempre se manifestava. Para o professor que dispõe de tão pouco tempo, torna-se um grande desafio incentivar a produção artística através da auto-expressão, de modo que os alunos possam comunicar seus pensamentos e emoções, e ainda ministrar conteúdos pertinentes à área, levando a classe a observar e a apreciar os valores culturais. Esse contexto descrito, por mais desafiador que pareça, pode ser considerado ainda um privilégio, tendo em vista o espaço físico disponível, a diversidade de materiais artísticos para a realização das atividades e ainda o número de alunos, pois a maioria das escolas não possui um local específico para as aulas de artes e tem turmas com um número maior de crianças. Estando consciente de tantos outros desafios que os professores enfrentam, julgo ser necessário abordar tal assunto com mais vagar no quarto capítulo, todavia, para o momento, considero importante voltarmos a atenção para as atividades propostas pelo professor no ensino do desenho. Tenho observado que o ensino do desenho e as demais atividades relacionadas à arte, ministradas no Ensino Fundamental, geralmente se caracterizam pela “liberdade de criação”. 65 O professor de artes, de acordo com os recursos com que conta, disponibiliza para seus alunos diversos materiais plásticos e geralmente solicita o d