ANA CRISTINA DO AMARAL CAMOSSA “O FAZER TEÓRICO-PRÁTICO DO NUTRICIONISTA NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS PROFISSIONAIS DAS EQUIPES” DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM ALIMENTOS E NUTRIÇÃO DA FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS DA UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” – UNESP – CAMPUS DE ARARAQUARA, COMO PARTE DOS REQUISITOS PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM ALIMENTOS E NUTRIÇÃO, SOB ORIENTAÇÃO DO PROF. DR. RODOLPHO TELAROLLI JUNIOR E CO-ORIENTAÇÃO DA PROFª DRª MARIA LÚCIA TEIXEIRA MACHADO. Araraquara Julho de 2010 2 BANCA EXAMINADORA __________________________________________________________________ Prof. Dr. Rodolpho Telarolli Junior __________________________________________________________________ Profª. Drª. Fátima Neves do Amaral Costa __________________________________________________________________ Profª. Drª. Maria Jacira Silva Simões 3 Dedico este trabalho à minha filha Júlia, que, com apenas sete aninhos, soube (e várias vezes não soube) entender os muitos momentos de minha ausência. Minha vida... 4 AGRADECIMENTOS A Deus, que, tenho certeza, esteve sempre ao meu lado, A minha Mãe, Márcia do Amaral Camossa, pelo amor incondicional e pela torcida silenciosa, Especialmente ao meu Pai, José Camossa, o “avô preferido”, por sempre acreditar em mim e por ter estado por perto em todos os momentos, me apoiando e oferecendo sua necessária ajuda, Aos meus irmãos, Paulo Henrique e Denise, mesmo que de longe, Ao Mario, por ficar ao meu lado e me ajudar com as questões prát icas de informática, A minha grande amiga Tânia, a quem me recebeu como uma irmã quando cheguei a São Carlos, À Gisele Castro, a quem eu chamo de “anjo”, por ter dado novo sent ido a minha vida, Aos meus primos Duda e Michael, por terem sido, nos últ imos anos, a minha família em São Carlos, À Profª Drª Fát ima Neves do Amaral Costa, pelo incentivo e por ter me iniciado nessa jornada. Ela foi, na verdade, a principal responsável por tudo isso, À Profª Drª Maria Lúcia Teixeira Machado, a quem já posso chamar de amiga, pela generosidade em me co-orientar e pelas valiosas contribuições, 5 Ao Prof. Rodolpho Telarolli Junior, pela compreensão e acolhida, À Profª Drª Maria Jacira Silva Simões, pelas valiosas contribuições ao trabalho e pela disposição em part icipar da banca examinadora, Aos professores do mestrado, especialmente à Profª Drª Aureluce Demonte, pela competência e exemplo, À amiga Sílvia, pela amizade e disposição em ouvir minhas angúst ias do dia a dia, Aos colegas do mestrado, em especial à Tania, Paulinha, Ana, Dani, Grace, Vavá, Priscila, pelos momentos de risos e momentos difíceis que passamos juntas. Vocês serão inesquecíveis! Aos profissionais das Unidades de Saúde da Família do Jardim São Carlos e Romeu Tortorelli, que se dispuseram a emit ir suas opiniões durante as entrevistas, proporcionando as valiosas informações que são discut idas neste trabalho, Enfim, meu sincero agradecimento a todos, que direta ou indiretamente, tornaram este trabalho possível. 6 (ODE, Fernando Pessoa) “Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em toda coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes, Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive.” 7 RESUMO A nutrição exerce um papel fundamental na promoção da saúde dos indivíduos e na redução dos fatores de risco para o desenvolvimento de doenças, realizando ações de caráter coletivo e preventivo. No entanto, estudos demonstram um número reduzido de nutricionistas atuando em Saúde Coletiva. Recentemente, a Estratégia Saúde da Família foi apresentada como proposta de reorientação do modelo assistencial em saúde, substituindo o modelo médico hegemônico. Embora preconize o trabalho interdisciplinar e multiprofissional, o que se observa, na prática, é a predominância de equipes mínimas, com a participação do nutricionista em menos de 5% das equipes. Neste contexto, o objetivo do trabalho foi conhecer as representações sociais construídas pelos profissionais das equipes de saúde da família sobre o fazer teórico-prático do nutricionista. A pesquisa foi realizada em duas Unidades de Saúde da Família de um município do interior do estado de São Paulo e os sujeitos do estudo foram 27 profissionais das equipes de saúde da família, eleitos por critério intencional. Tratou-se de um estudo descritivo-exploratório com abordagem qualitativa, apropriando-se do referencial teórico das Representações Sociais. A coleta de dados foi realizada no período de dezembro de 2008 a março de 2009, por meio de entrevistas semi-estruturadas. Para a interpretação dos dados, seguiram-se os passos operacionais propostos por Minayo (2007). Da análise dos dados, emergiram 5 grandes temas: o nutricionista na ESF, a abordagem de questões alimentares pelos profissionais da equipe de saúde da família, a educação nutricional, problematizando a ausência do profissional nutricionista nas equipes de saúde da família e o trabalho em equipe. As principais representações obtidas com relação ao nutricionista foram aquelas relacionadas ao seu papel de prescrever dietas. No entanto, os resultados também revelaram um movimento de mudança na concepção do papel do profissional, evidenciado por um conhecimento mais amplo sobre as funções e atribuições do nutricionista. A maioria dos profissionais de saúde se sentiu despreparada para lidar com as questões alimentares e não houve dúvidas sobre a importância da educação nutricional na promoção de práticas alimentares saudáveis, apesar dos sujeitos terem demonstrado uma visão superficial e pouco abalizada teoricamente sobre o tema. A ausência do nutricionista na equipe de saúde da família foi atribuída a fatores como: falta de reconhecimento governamental, falta de recursos financeiros, baixo reconhecimento social e desvalorização profissional, tempo de existência da profissão, desconhecimento do núcleo de competência do nutricionista, manutenção do modelo médico-hegemônico e fraca organização da categoria. Em relação ao trabalho em equipe, os depoimentos evidenciaram uma concepção de que este é difícil de ser definido e difícil de ser vivenciado, ao mesmo tempo em que é necessário e enriquecedor. Palavras-chave: Nutricionista. Representações Sociais. Estratégia Saúde da Família. Educação Nutricional. Trabalho em equipe. Pesquisa Qualitativa. 8 ABSTRACT Nutrition plays a fundamental role in promoting the health of individuals and reducing risk factors for the development of diseases, performing collective and preventive actions. However, studies show a small number of dietitians working in Public Health. Recently, the Family Health Strategy was presented as a proposal to reorient the health care model, replacing the hegemonic medical model. While advocating an interdisciplinary and multidisciplinary work, which is observed in practice is the dominance of teams minimum, with the participation of nutritionists in less than 5% of the teams. In this context, the objective was to understand the social representations built by the professionals of family health on the work of nutritionist. The survey was conducted in two units of Family Health of a municipality in the State of São Paulo and the study subjects were 27 professionals of teams of family health, elected by intentional criteria. This was a descriptive exploratory study with a qualitative approach, appropriating the theoretical framework of Social Representations. Data collection was conducted from December 2008 to March 2009, through semi-structured interviews. In interpreting the data, we followed the operational steps proposed by Minayo (2007). Five major themes emerged from data analysis: dietitian in the ESF, the approach to food issues by the team of family health, nutrition education, questioning the absence of professional nutritionists in family health teams and teamwork. The main representations with respect to nutritionist were those related to their role in prescribing diets. However, results also revealed a movement for change in the conception of professional role, as evidenced by a wider knowledge about the functions and duties of the dietitian. Most health professionals feel unprepared to deal with food issues and there was no doubt about the importance of nutrition education in promoting healthy eating practices, despite the subjects have demonstrated a superficial view on the subject. The absence of a nutritionist on staff family health was attributed to factors such as lack of government recognition, lack of financial resources, low social recognition and professional devaluation, length of existence of the profession, lack of knowledge within the competence of the nutritionist, maintenance of the hegemonic medical model and poor organization of the category. In relation to teamwork, the testimony showed that this is difficult to define and difficult to be experienced at the same time it is necessary and enriching. Key-words: Nutritionist. Social Representations. Family Health Strategy. Nutrition Education. Teamwork. Qualitative Research. 9 LISTA DE SIGLAS ACS – Agente Comunitário de Saúde ARES – Administração Regional de Saúde CAPS – Centro de Atenção Psicossocial CAPS-ad – Centro de Atenção Psicossocial – álcool e drogas CEO – Centro de Especialidades Odontológicas CEME – Centro Municipal de Especialidades CFN – Conselho Federal de Nutricionistas CGPAN – Coordenadoria Geral da Política de Alimentação e Nutrição DGCA – Departamento de Gestão e Cuidado Ambulatorial DCN – Diretrizes Curriculares Nacionais EAN – Educação Alimentar e Nutricional EN – Educação Nutricional ENDEF – Estudo Nacional de Despesa Familiar ESF – Estratégia de Saúde da Família FADISC – Faculdades Integradas de São Carlos IDH – Índice de Desenvolvimento Humano MS – Ministério da Saúde NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família PAD – Programa de Atendimento Domiciliar PAS – Promoção da Alimentação Saudável PNAN – Política Nacional de Alimentação e Nutrição PNH – Política Nacional de Humanização PNSN – Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição PROESF – Projeto de Expansão e Consolidação do Programa de Saúde da Família PSF – Programa de Saúde da Família RMSFC – Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade RS – Representação Social 10 SAIBE – Serviço de Acompanhamento ao Bebê de Risco SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência SAN – Segurança Alimentar e Nutricional SESI – Serviço Social da Indústria SMS-SC – Secretaria Municipal de Saúde de São Carlos SUS – Sistema Único de Saúde TRS – Teoria das Representações Sociais UBS – Unidade Básica de Saúde UFSCar – Universidade Federal de São Carlos UNICEP – Centro Universitário Central Paulista UPA – Unidade de Pronto Atendimento USF – Unidade de Saúde da Família USP – Universidade de São Paulo VD – Visita Domiciliar 11 LISTA DE QUADROS QUADRO 1: PERFIL DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE DE EQUIPES DE SAÚDE DA FAMÍLIA, DE ACORDO COM SEXO, IDADE E TEMPO DE SERVIÇO. SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE SÃO CARLOS/SP - 2009. ......................................................................................................71 QUADRO 2: AÇÕES DO PROFISSIONAL NUTRICIONISTA NAS UNIDADES DE SAÚDE DA FAMÍLIA, CITADAS PELOS PROFISSIONAIS DAS EQUIPES DE SAÚDE DA FAMÍLIA. SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE SÃO CARLOS/SP - 2009. ..........................................................................75 12 SUMÁRIO CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO 1.1. O NUTRICIONISTA NO CAMPO DA SAÚDE COLETIVA E NO CONTEXTO DA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA .............................................................................................16 1.2. EDUCAÇÃO NUTRICIONAL: CONSIDERAÇÕES INICIAIS .............................................23 1.3. OBJETIVOS ........................................................................................................27 1.3.1. OBJETIVO GERAL .........................................................................................................27 1.3.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS ..............................................................................................27 1.4. JUSTIFICATIVA ....................................................................................................28 CAPÍTULO 2 – REFERENCIAIS TEÓRICOS 2.1. POLÍTICA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO E SEUS FUNDAMENTOS: SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL E DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA ........................................................................................................30 2.2. PROMOÇÃO DA SAÚDE E A ESTRATÉGIA DA PROMOÇÃO DA ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL ..........................................................................................................................33 2.3. EDUCAÇÃO NUTRICIONAL – REVISÃO CONCEITUAL ................................................36 2.4. CONCEITOS IMPORTANTES PARA A ORGANIZAÇÃO DO PROCESSO DE TRABALHO NA ESF ..................................................................................................................42 2.4.1. EQUIPES DE REFERÊNCIA E APOIO MATRICIAL COMO ARRANJOS ORGANIZACIONAIS PARA A ATENÇÃO BÁSICA ..........................................................................................................42 2.4.2. CAMPO E NÚCLEO DE COMPETÊNCIA .............................................................................44 2.4.3. CLÍNICA AMPLIADA COMO NOVA PROPOSTA PARA AS PRÁTICAS EM SAÚDE ......................45 2.5. EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE ...................................................................46 2.6. TRABALHO EM EQUIPE MULTIPROFISSIONAL E A QUESTÃO DAS DISCIPLINAS .............48 CAPÍTULO 3 – MATERIAIS E MÉTODOS 3.1. REFERENCIAL METODOLÓGICO ...........................................................................54 3.2. CARACTERIZAÇÃO DO LOCAL DO ESTUDO .............................................................57 3.2.1. SISTEMA DE SAÚDE ...........................................................................................57 13 3.3. SUJEITOS DO ESTUDO .........................................................................................61 3.4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS .....................................................................62 3.4.1. COLETA DOS DADOS .....................................................................................................62 3.4.2. ANÁLISE DOS DADOS ....................................................................................................65 3.5. ASPECTOS ÉTICOS .............................................................................................68 CAPÍTULO 4 – RESULTADOS E DISCUSSÃO 4.1. PERFIL DOS ENTREVISTADOS ...............................................................................70 4.2. CATEGORIAS EMPÍRICAS .....................................................................................74 4.2.1. O NUTRICIONISTA NA ESF ............................................................................................74 4.2.1.1. MATRICIAMENTO COMO MODELO DE ATUAÇÃO DO NUTRICIONISTA NA ESF .................90 4.2.2. ABORDAGEM DE QUESTÕES RELATIVAS À ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO PELA EQUIPE DE SAÚDE DA FAMÍLIA ........................................................................................................94 4.2.2.1. A ABORDAGEM .........................................................................................................94 4.2.2.2. DIFICULDADES PARA A ABORDAGEM ........................................................................104 4.2.2.3. FACILIDADES PARA A ABORDAGEM ..........................................................................115 4.2.3. EDUCAÇÃO NUTRICIONAL ...........................................................................................118 4.2.3.1. AS CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO NUTRICIONAL .......................................................118 4.2.3.2. EDUCAÇÃO NUTRICIONAL X ORIENTAÇÃO NUTRICIONAL ..........................................122 4.2.3.3. AÇÕES DE EDUCAÇÃO NUTRICIONAL NA ATENÇÃO BÁSICA ........................................124 4.2.3.4. EDUCAÇÃO NUTRICIONAL – ATRIBUIÇÃO PRIVATIVA DO NUTRICIONISTA? ..................130 4.2.4. PROBLEMATIZANDO A AUSÊNCIA DO NUTRICIONISTA NA EQUIPE DE SAÚDE DA FAMÍLIA ...................................................................................................................................134 4.2.5. TRABALHO EM EQUIPE ................................................................................................154 4.2.5.1. ASPECTOS POSITIVOS ............................................................................................154 4.2.5.2. ASPECTOS QUE DIFICULTARAM O TRABALHO EM EQUIPE ..........................................160 CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................169 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................174 14 APÊNDICES ................................................................................................................196 APÊNDICE I – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ............................197 APÊNDICE II – DADOS CADASTRAIS DO ENTREVISTADO .............................................198 APÊNDICE III – ROTEIRO DE ENTREVISTA PARA PROFISSIONAIS DAS USF ..................199 APÊNDICE IV – ROTEIRO DE ENTREVISTA PARA DIRETORA DO DGCA/SMS-SC .........200 ANEXOS .....................................................................................................................201 ANEXO A – AUTORIZAÇÃO DA SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE SÃO CARLOS PARA A EXECUÇÃO DA PESQUISA ........................................................202 ANEXO B – PROTOCOLO DE APROVAÇÃO PELO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS DA UNESP – CAMPUS DE ARARAQUARA ....................................................................................203 15 CCAAPPÍÍTTUULLOO 11 –– IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO 16 1.1. O NUTRICIONISTA NO CAMPO DA SAÚDE COLETIVA E NO CONTEXTO DA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA No cenário mundial, a Nutrição, seja como ciência ou como profissão, é um campo relativamente recente, do início do século XX. No entanto, as primeiras pesquisas, os primeiros cursos de formação de profissionais e as primeiras medidas de intervenção em nutrição datam do período entre as duas Guerras Mundiais. No Brasil, a Nutrição surgiu no decorrer dos anos 1930-1940, aliada ao projeto de modernização da economia brasileira, constituída basicamente por duas correntes bem definidas e distintas do saber. A primeira, a perspectiva biológica, preocupada com os aspectos fisiológicos, de consumo e de utilização biológica dos nutrientes, deu origem à Nutrição Clínica – Dietoterapia e à Nutrição Básica e Experimental. A segunda corrente, a perspectiva social, preocupada com aspectos relacionados à produção, à distribuição e ao consumo de alimentos pela população brasileira, deu origem à Alimentação Institucional – Alimentação Coletiva e à Nutrição em Saúde Pública. Tais especializações constituem as principais áreas de atuação da Nutrição e constituem também os eixos organizadores do currículo de formação dos nutricionistas (BOSI, 1996; VASCONCELOS, 2002; ALVES et al., 2003). Segundo Vasconcelos (2002, p.133), a Nutrição em Saúde Pública, também reconhecida por Nutrição em Medicina Preventiva, Nutrição Social, Nutrição Comunitária, Nutrição Aplicada ou Nutrição em Saúde Coletiva, foi “um produto do processo histórico de especialização e divisão do trabalho/saber no interior da complexa e multidisciplinar ciência da nutrição”. Atualmente, é claro que a nutrição exerce um papel fundamental na promoção da saúde dos indivíduos e na redução dos fatores de risco para o desenvolvimento de doenças. A Nutrição em Saúde Pública, enquanto área de atuação, consolidou-se na década de 1960 e ficou caracterizada particularmente por: “realização de ações de caráter coletivo e preventivo, visando contribuir para que a produção, a distribuição e o consumo de alimentos sejam adequados e 17 acessíveis a todos os indivíduos da comunidade, desenvolvendo-se principalmente em instituições públicas, vinculadas aos setores saúde, educação, assistência social e desenvolvimento comunitário” (ALVES et al., 2003, p.297). Estudos anteriores demonstraram que a saúde coletiva absorvia um número bastante inferior de nutricionistas em relação às áreas de clínica e alimentação institucional (BOSI, 1996). O pequeno número de profissionais atuando na área foi constatado por Boog et al. (1988), Rotemberg & Prado (1991) e Rodrigues (2004), que encontraram em seus estudos as seguintes proporções, respectivamente: 6,3%, 10,9% e 11%. Além do pequeno número de profissionais, Prado & Abreu (1991) demonstraram que a maioria dos nutricionistas que exercia a profissão na saúde pública, trabalhava em merenda escolar, e não em serviços de saúde. Em pesquisa realizada em 1997, com egressos do curso de nutrição da Universidade de São Paulo, Gambardella et al. (2000) também observaram um exíguo contingente (7,0%) atuando na área. Em 2003, outro estudo revelou que 12,6% dos nutricionistas egressos da Universidade Federal de Santa Catarina trabalhavam em saúde pública, em comparação às demais áreas de atuação (ALVES et al., 2003). Lima et al. (2000), analisando as práticas de educação em saúde e nutrição no município de João Pessoa/PB, reiteraram que a inserção do nutricionista nos serviços de saúde ainda era modesta, o que se verificou pela falta deste profissional em mais da metade dos serviços investigados. Do total de 65 unidades de saúde estudadas, 90,8% (59) eram serviços públicos de saúde (municipal, estadual ou federal), e apenas 32,3% (21) das unidades apresentaram nutricionistas em seus quadros. Pádua & Boog (2006) realizaram um trabalho na rede básica de saúde dos municípios pertencentes à região metropolitana de Campinas/SP, com o objetivo de descrever e avaliar ações desenvolvidas por nutricionistas. Concluíram que menos da metade dos municípios contava com nutricionista na rede básica: o número de profissionais era insuficiente, o nutricionista tendia a acumular funções em diferentes setores e havia predomínio das atividades assistenciais em detrimento de atividades de promoção à saúde. Neste mesmo trabalho, quando indagados sobre a essência 18 do trabalho do nutricionista em saúde coletiva, os sujeitos da pesquisa – nutricionistas – manifestaram surpresa com a pergunta e se calaram, não sabendo respondê-la. Dessa forma, poder-se-ia questionar qual seria o significado do próprio nutricionista não saber responder sobre o seu papel na saúde coletiva. No que se refere às ações de reabilitação em saúde, a Portaria nº 818 do Ministério da Saúde, de 5 de junho de 2001, criou mecanismos para a organização e implantação das redes estaduais de assistência à pessoa portadora de deficiência física no Brasil, exigindo um profissional nutricionista nas equipes dos serviços de referência em medicina física e reabilitação (BRASIL, 2001). No entanto, poucos estudos trazem referências sobre a participação efetiva do profissional nestas equipes (OLIVEIRA & RADICCHI, 2005). Uma pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Nutricionistas durante o ano de 2005 teve como objetivo identificar as áreas de atuação do nutricionista e suas atribuições, tendo como base a inscrição nos Conselhos Regionais de Nutricionistas. No estado de São Paulo, pertencente ao CRN-3ª região, a prevalência de nutricionistas trabalhando na área de saúde coletiva foi de 7,5%, ainda menor que a média nacional de 8,8%. A pesquisa revelou que esses profissionais atuavam desenvolvendo ações voltadas à Promoção de Saúde (45,8%) e Assistência à Saúde (18,2%), ambas vinculadas à atenção básica; à Vigilância Sanitária (19%); e, ainda, participando na execução de Políticas e Programas Institucionais relacionados à Alimentação e Nutrição (17,2%) (CFN, 2006). Segundo Oliveira & Radicchi (2005), os gestores dos serviços públicos de saúde não têm clareza da importância da participação do profissional nutricionista nas equipes e não compreendem o seu papel na saúde coletiva. Ainda, a demanda de alguns profissionais em relação à atividade do nutricionista resume -se à redução de peso dos pacientes que são encaminhados. Segundo os estudos citados, a participação do nutricionista em serviços de saúde coletiva tem sido, historicamente, inexpressiva. No cenário deste estudo, a inserção do nutricionista no serviço público de saúde data do início do ano de 2002, 19 com a contratação por concurso público de um profissional para a Secretaria Municipal de Saúde. Como prenúncio da alteração deste contexto, o Ministério da Saúde vem desenvolvendo há alguns anos o Programa de Saúde da Família – PSF, como estratégia importante para a reorganização da atenção básica1. O PSF foi concebido como proposta de renovação do modelo de assistência à saúde desenvolvido a partir da atenção básica, substituindo o modelo médico hegemônico e hospitalocêntrico tradicional, com o objetivo de levar a saúde para mais perto das famílias. Neste novo processo de trabalho, as equipes de saúde da família necessitam conhecer as famílias do território de sua abrangência, identificando os problemas de saúde e as situações de risco na comunidade, ao passo que devem elaborar planos de ação para enfrentar os desafios do processo saúde-doença, enquanto desenvolvem ações de promoção de saúde, prevenção de doenças, tratamento e reabilitação, no âmbito da atenção primária em saúde (BRASIL, 2007). Pode ser caracterizado como uma estratégia2 que visa à reestruturação do sistema de saúde no Brasil, operacionalizado mediante a implantação de equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde. O caráter multiprofissional é essencial para o cumprimento do princípio da integralidade do SUS, onde a atenção 1 (GIL, 2006). Para Gil (2006), alguns autores utilizam os termos atenção primária à saúde e atenção básica à saúde como sinônimos. No período anterior à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a Atenção Primária à Saúde representava um marco referencial para a reorganização do modelo assistencial. No entanto, com o desenvolvimento do SUS e de seus mecanismos financeiros e operacionais, este referencial parece perder gradativamente sua potência sendo, cada vez mais, substituído pela concepção da Atenção Básica à Saúde (GIL, 2006). Dessa forma, e também por ser o termo comumente utilizado nos documentos oficiais do município pesquisado, optou-se pela utilização do termo atenção básica no decorrer do presente trabalho. 2 (GIL, 2006). Atualmente, a denominação que vem sendo utilizada com maior frequência é a de Estratégia Saúde da Família (ESF). Apesar de concebido inicialmente como Programa de Saúde da Família, pode-se considerar que o PSF avançou de programa para estratégia, por se tratar efetivamente de uma estratégia para reorganização da atenção básica, negando as versões de que seria um arranjo contemporâneo da medicina simplificada ou apenas mais um programa baseado na medicina familiar. Para Gil (2006), trata -se mais de uma estratégia do que propriamente uma proposta de programa por ter como objetivo produzir mudanças no interior do sistema de saúde e transformações das pessoas e de suas práticas. 20 primária deve abranger todos os aspectos do ser humano, na direção do fortalecimento das ações de promoção e proteção da saúde (ASSIS et al, 2002; CAVALIERI, 2008). A ESF experimentou um crescimento significativo desde o seu lançamento em 1994, constituindo-se, atualmente, na principal estratégia de configuração da atenção básica à saúde dos municípios brasileiros. Dentro dos seus princípios, a ESF não é centrada no trabalho médico e sim, no trabalho de uma equipe multiprofissional (ASSIS et al, 2002; GIL, 2005). O Ministério da Saúde reconhece a equipe multiprofissional como um dos princípios da ESF ao afirmar que: “a equipe de Saúde da Família é composta minimamente por um médico generalista ou de família, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de quatro a seis agentes comunitários de saúde ... outros profissionais poderão ser incorporados nas unidades de saúde da família ou em equipes de supervisão, de acordo com as necessidades e possibilidades locais” (BRASIL, 2001). Embora o Ministério da Saúde preconize o trabalho interdisciplinar e multiprofissional, na prática, o que se observa é uma ampla predominância de equipes que contam apenas com médicos, enfermeiros e dentistas (equipe mínima). Uma avaliação realizada pelo próprio Ministério junto às Secretarias Municipais de Saúde de todo o país (BRASIL, 1999) revelou a predominância da equipe mínima e a relatividade da multiprofissionalidade na prática: em 1999, havia médicos em 98,2% dos municípios, enfermeiros em 97%, auxiliares ou técnicos de enfermagem em 93,2%, agentes comunitários de saúde em 97,4%, odontólogos em 28,8%, assistentes sociais em 9,3% e psicólogos em 5,3%. No caso específico da nutrição, dados do mesmo período revelaram que, em menos de 5% das equipes de saúde da família havia profissionais desta área (BRASIL, 1999). O município de São Carlos vem experienciando a inserção de diferentes profissionais, dentre eles o nutricionista, em algumas Unidades de Saúde da Família (USF), por meio do programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e 21 Comunidade (RMSFC), oferecido pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do município. Neste ponto, destaca-se a necessidade de que as ações de alimentação e nutrição façam parte da ESF. A inclusão de profissionais da área de nutrição nas unidades de saúde da família faz-se necessária, principalmente, quando consideramos a transição nutricional pela qual passa o país. Sabe-se que, hoje, o Brasil enfrenta simultaneamente, problemas de ordem de carência nutricional e de distúrbios de alimentação como a obesidade, ocasionando graves consequências para a saúde da população, em geral. Dessa forma, pressupõe-se que as ações de alimentação e nutrição são indispensáveis em toda a estratégia que tenha por finalidade promover a saúde da população, como é o caso da ESF (ASSIS et al., 2002). Dentro desse enfoque, em janeiro do ano de 2008, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº. 154, oficializou o campo de trabalho na área de atenção básica à saúde para os nutricionistas do país quando criou os Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF, com o objetivo de ampliar a abrangência e o escopo das ações da atenção básica, bem como sua resolubilidade. O perfil epidemiológico do município e do território é a base para que os gestores municipais definam o perfil dos profissionais que farão parte dos núcleos. A Coordenação Geral da Política de Alimentação e Nutrição (CGPAN) recomenda a inclusão do nutricionista nos NASF. Nestes, o nutricionista teria como atribuições: “coordenação das ações de diagnóstico populacional da situação alimentar e nutricional; promoção da alimentação saudável para todas as fases do curso da vida; estímulo à produção e o consumo dos alimentos saudáveis produzidos regionalmente; capacitação da ESF e participação de ações vinculadas aos programas de controle e prevenção dos distúrbios nutricionais como carências por micronutrientes, sobrepeso, obesidade, doenças crônicas não transmissíveis e desnutrição; elaboração das rotinas de atenção nutricional e atendimento para doenças relacionadas à Alimentação e Nutrição, de acordo com protocolos de atenção básica, organizando a referência e a contra-referência do atendimento; e promoção da articulação intersetorial para viabilizar as ações voltadas para a Segurança Alimentar e Nutricional” (CFN, 2008a, p.28). 22 Dados recentes da CGPAN evidenciaram a instalação do NASF em quase todos os municípios com mais de 200 mil habitantes, sendo que o profissional nutricionista estava presente em 536 (70,8%) dos 757 NASF implantados até julho de 2009 (BRASIL, 2010). É importante ressaltar que o NASF tem o potencial de proporcionar uma inserção sistemática e qualificada de ações de alimentação e nutrição na atenção básica à saúde. Representa uma conquista no que se refere à legitimação e institucionalização dessas ações, constituindo-se numa possibilidade concreta de inserção do nutricionista (BRASIL, 2010). O trabalho na ESF ainda é muito novo para o profissional, pouco discutido e pensado. Dessa forma, um dos maiores desafios para a inserção dos nutricionistas na ESF passa a ser a adequação da sua atuação aos objetivos desse modelo de atenção à saúde. No município estudado, o Projeto de Implantação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família estabelece duas equipes de NASF. A proposta é a adesão ao NASF 1, modalidade que pressupõe, de acordo com a portaria, a constituição de equipes compostas por, no mínimo, cinco profissões de nível superior. O Nutricionista está programado para ambas as equipes, além de Terapeuta Ocupacional, Fonoaudiólogo, Psicólogo e Assistente Social, visto que o município já conta com Fisioterapeuta, Farmacêutico e Psiquiatra , no apoio matricial às equipes de saúde da família (SÃO CARLOS, 2008). O projeto vislumbra a Alimentação e Nutrição como uma das áreas estratégicas do NASF, constituindo-se no: “desenvolvimento de ações de promoção de práticas alimentares saudáveis em todas as fases do ciclo da vida e respostas às principais demandas assistenciais quanto aos distúrbios alimentares, deficiências nutricionais e desnutrição, bem como aos planos terapêuticos, especialmente nas doenças e agravos não-transmissíveis” (SÃO CARLOS, 2008, p.10). No entanto, até maio de 2010, o município de São Carlos/SP ainda não havia implantado nenhuma equipe de NASF. 23 1.2. EDUCAÇÃO NUTRICIONAL: CONSIDERAÇÕES INICIAIS A educação nutricional constitui importante estratégia de ação em saúde coletiva, é disciplina obrigatória nos cursos de Nutrição e deve fazer parte das ações do nutricionista em todos os campos de atuação. Entretanto, por razões históricas, ao longo das décadas de 1970 e 1980, pouco se desenvolveu (BOOG, 1997; 2004). No Brasil, o interesse pela educação nutricional surgiu na década de 1940, quando a orientação nutricional da população trabalhadora era considerada um dos pilares dos programas governamentais de proteção ao trabalhador, que se preocupavam com a alimentação dos mesmos e com a reprodução da força de trabalho (BOOG, 1996; 1997). Entre as décadas de 1950 e 1960, a educação nutricional voltava-se para as campanhas direcionadas à introdução de soja na alimentação, devido a interesses político-econômicos. Na época do pós-guerra, o governo brasileiro firmou um convênio de ajuda alimentar internacional com o MEC/USAID (United States Agency for International Development), que tinha o objetivo de aliviar os excedentes agrícolas americanos, mantendo, assim, o preço de seus cereais no mercado internacional. Neste momento, a educação nutricional foi acionada com o objetivo de induzir a população a consumir os alimentos enviados ao país, o que legitimaria o recebimento desta ajuda externa (BOOG, 1996; 1997). Na década de 1960, a educação nutricional ocupava-se, apenas, da divulgação de folhetos destinados ao público. Também nesta época, o Serviço Social da Indústria (SESI), através dos seus Centros de Aprendizados Domésticos, iniciou os cursos de educação alimentar para a população, os quais existem até os dias atuais (BOOG, 1996; 1997). Com a instauração do regime militar, a partir de 1964, a educação nutricional passa a privilegiar medidas de suplementação alimentar e atividades de combate às carências nutricionais específicas. Além disso, a indústria de alimentos priorizava a pesquisa de tecnologias para produção de “novos alimentos” que o Estado compraria 24 para distribuição nos programas de suplementação alimentar. Neste co ntexto, segundo Boog (1997), a educação nutricional começa a perder a força. Novas mudanças no cenário surgiram a partir da década de 1970: o Estudo Nacional de Despesa Familiar (ENDEF) mostrou que o principal obstáculo à alimentação adequada era a baixa renda da população, sendo necessário, portanto, transformações no modelo econômico para solução dos problemas alimentares. Desta forma, o “binômio alimentação / educação” até então utilizado, foi substituído pelo “binômio alimentação / renda”, fazendo com que os programas de educação nutricional fossem relegados a segundo plano e vistos como uma “estratégia para ensinar o pobre a comer” (BOOG, 1996; 1997). Isto fez com que a educação nutricional permanecesse ausente dos programas de saúde pública até a década de 1990. Uma nova abordagem, conhecida como educação nutricional c rítica, começou a ser desenvolvida em meados de 1980, na Universidade Federal de Santa Catarina, defendendo a tese de que a educação nutricional tradicional desvia a atenção daqueles que passam fome dos reais mecanismos que a causam, favorecendo, assim, a manutenção dos processos sociais de exploração. Assim, caberia à educação nutricional crítica proporcionar a difusão de conhecimentos nos grupos sociais para a transformação concreta da realidade, sempre a partir da problemática real, sentida e vivida pelo indivíduo ou coletividade em questão (VALENTE, 1989). No início da década de 1990, os resultados da Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN), realizada pelo Ministério da Saúde, mostraram expressivo aumento na prevalência de obesidade e incremento importante no consumo de alimentos mais calóricos e menos nutritivos, além de decréscimo no consumo de frutas, cereais e leguminosas. Por outro lado, ficou evidente a constatação científica de que a alimentação de má qualidade é fator de risco para doenças crônicas. Assim, a educação nutricional ressurgiu neste contexto (BOOG, 2004). A educação nutricional sempre esteve, e continua presente na prática profissional dos nutricionistas, além de constituir atividade privativa deste 25 profissional, segundo a Lei Federal n° 8.243/91. Segundo Monteiro et al. (2000), a educação nutricional é apontada como estratégia de ação a ser adotada prioritariamente em saúde pública, para conter o avanço da prevalência de doenças crônicas não transmissíveis. Os autores recomendam, ainda, que se reserve “lugar de destaque a ações de educação em alimentação e nutrição que alcancem de modo eficaz todos os estratos econômicos da população” (MONTEIRO et al., 2000, p.254). Atualmente, a promoção de práticas alimentares e estilos de vida saudáveis faz parte das diretrizes da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), do Ministério da Saúde, e apresenta interface importante com a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), que tem como meta a reconstrução de um mundo livre de fome (BRASIL, 2000; BOOG, 2004). Porém, há um paradoxo: ao mesmo tempo em que a educação nutricional é valorizada, ela se dilui no conjunto de propostas, na medida em que não estão estabelecidas claramente as bases teórico-conceituais e operacionais que a fundamentam. O seu espaço não se apresenta claramente definido. A educação nutricional está em todos os lugares, mas não está em nenhum lugar definido (SANTOS, 2005b). É inegável a importância de ações de educação nutricional em todos os programas de saúde, pois a mesma está inserida na educação em saúde, que tem por finalidade a formação de atitudes e práticas conducentes à saúde. Vários trabalhos mostram a receptividade, o interesse e a necessidade social de ações educativas na área de alimentação e nutrição. Entretanto, Boog (1999) evidencia que inexiste o espaço institucional da educação nutricional, entendido por cargos e funções nos serviços públicos de saúde. A constatação da pouca inserção do profissional nutricionista na rede de atenção básica à saúde até o momento, como já colocado anteriormente, e, conseqüentemente, de ações de educação nutricional, levou a alguns questionamentos que serão discutidos no presente trabalho. Neste contexto, surgiram as seguintes indagações: Como os profissionais que já atuam no serviço de saúde percebem a chegada do nutricionista na equipe e que concepções apresentam sobre o papel do profissional? Como se caracteriza a participação do profissional nutricionista na ESF, que se apresenta como alternativa 26 ao modelo tradicional de assistência à saúde? Como esses mesmos profissionais concebem a educação nutricional? Na falta do nutricionista, como eles abordam as questões relativas à alimentação e nutrição na sua prática, e quais as dificuldades encontradas? Considerando o exposto, a questão de pesquisa investigada foi: Quais são as representações sociais de profissionais da equipe mínima da ESF sobre o fazer teórico-prático do nutricionista e sobre a educação nutricional em equipes de saúde da família do município de São Carlos/SP? Sendo assim, o presente trabalho encontra-se estruturado de modo a familiarizar o leitor com os referenciais teóricos uti lizados durante o percurso da investigação e com os aspectos relacionados à temática das representações sociais e aos estudos desenvolvidos sob a metodologia qualitativa. A seguir serão apresentados os referenciais teóricos, os objetivos e a justificativa do presente trabalho, além dos materiais e métodos utilizados para a obtenção dos dados. Na sequência serão reveladas as categorias presentes nas falas, podendo sinalizar algumas representações, bem como as análises pertinentes, encerrando com as considerações finais. 27 1.3. OBJETIVOS 1.3.1. OBJETIVO GERAL � Conhecer as representações sociais construídas pelos profissionais das equipes de saúde de duas Unidades de Saúde da Família (USF) do município de São Carlos/SP sobre o fazer teórico- prático do Nutricionista. 1.3.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS � Conhecer as representações dos sujeitos sobre a Educação Nutricional. � Comparar as representações presentes nas falas dos sujeitos com os fundamentos teóricos sobre Educação Nutricional. � Identificar como ocorreu a inserção do Nutricionista nas equipes por meio da residência multiprofissional em saúde da família. � Comparar as representações presentes nas falas dos sujeitos com os fundamentos teóricos sobre o trabalho em equipe. 28 1.4. JUSTIFICATIVA Ao se determinar as representações sociais, pretende-se captar as percepções e as imagens que os profissionais de saúde , sujeitos da pesquisa, têm sobre o nutricionista e, dessa forma, antever comportamentos, condutas e práticas, que poderão interferir na composição e formação das equipes multidisciplinares de saúde, ou, ainda, no processo de trabalho em saúde, nas unidades estudadas. A obtenção de dados a esse respeito poderá contribuir para um melhor conhecimento da imagem profissional que se construiu do nutricionista, no serviço público de saúde. Poderá, a partir disso, contribuir para uma discussão que busca esclarecer o papel do nutricionista como profissional de saúde, reconhecido como tal, capacitado a integrar equipes multi/interdisciplinares e atuar em serviços básicos de saúde. Supondo que o conhecimento específico do Nutricionista como educador nutricional, e o reconhecimento da importância da participação do mesmo nas equipes de saúde, sejam aspectos que possam contribuir na geração de trabalhos interdisciplinares, justifica-se o presente trabalho. A relevância dessa investigação reside, ainda, no fato de a mesma proporcionar, potencialmente, discussão para um maior embasamento do fazer teórico-prático do nutricionista que atua em unidades de saúde da família e na atenção básica à saúde. 29 CCAAPPÍÍTTUULLOO 22 –– RREEFFEERREENNCCIIAAIISS TTEEÓÓRRIICCOOSS 30 2.1. POLÍTICA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO E SEUS FUNDAMENTOS: SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL E DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA A Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), aprovada em 1999 pelo Ministério da Saúde e integrante da Política Nacional de Saúde, está inserida no contexto da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e compõe o conjunto das políticas de governo voltadas à concretização do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) (BRASIL, 2003). A adoção dessa Política pelo setor saúde configura um marco importante, na medida em que a alimentação e a nutrição constituem requisitos básicos para a promoção e a proteção da saúde. Para o alcance do propósito da PNAN, estão estabelecidas sete diretrizes orientadoras (BRASIL, 2003, p.7): 1. Estímulo a ações intersetoriais com vistas ao acesso universal aos alimentos; 2. Garantia da segurança e qualidade dos alimentos; 3. Monitoramento da situação alimentar e nutricional; 4. Promoção de práticas alimentares e estilos de vida saudáveis; 5. Prevenção e controle dos distúrbios e doenças nutricionais; 6. Promoção do desenvolvimento de linhas de investigação; 7. Desenvolvimento e capacitação de recursos humanos em saúde e nutrição. No contexto deste trabalho, destacam-se principalmente três diretrizes da PNAN: o “monitoramento da situação alimentar e nutricional”, com a atenção básica configurando-se como importante espaço para as ações de vigilância; a “promoção de práticas alimentares e estilos de vida saudáveis”, inserida no contexto da adoção de estilos de vida saudáveis, componente importante da promoção da saúde, na qual as ações de educação nutricional desempenham uma função estratégica; e a “prevenção e controle dos distúrbios e doenças nutricionais”, a qual está diretamente relacionada à abordagem dos problemas alimentares e nutricionais e ao núcleo de competência específico do nutricionista. 31 Um dos fundamentos da PNAN é a SAN, cujo conceito está definido a seguir: “Segurança alimentar e nutricional consiste em garantir a todos condições de acesso a alimentos básicos, seguros e de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis, contribuindo assim para uma existência digna em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana” (VALENTE, 2002, p.48). Pinheiro (2004) reforça que o conceito de SAN considera a obesidade e a desnutrição como duas faces da insegurança alimentar no país: aquela associada à negação do DHAA e aquela resultante da alimentação inadequada ou não saudável, agregando valor à dimensão qualitativa da alimentação em seu próprio conceito. Para Pinheiro & Carvalho (2010), a questão da SAN precisa ser entendida a partir da problematização da alimentação como um direito humano e social da população brasileira, frente às emergentes demandas geradas para o atendimento das necessidades humanas. Assim, a SAN pressupõe a garantia do DHAA. Entende-se que direitos humanos são aqueles direitos que os seres humanos possuem, única e exclusivamente, por terem nascido e serem parte da espécie humana. A PNAN estabelece que o DHAA é condição indispensável à vida e à construção da cidadania (BRASIL, 2003). Nesse sentido, “DHAA é um direito humano indivisível, universal e não discriminatório que assegura qualquer ser humano a se alimentar dignamente, de forma saudável e condizente com seus hábitos culturais” (PINHEIRO, 2004, p.3). De acordo com a autora, o poder público é um dos principais atores para a garantia da SAN e do DHAA, pois precisa estabelecer políticas que melhorem o acesso da população ao conhecimento para a seleção adequada dos alimentos, além de recursos para a produção e aquisição dos mesmos (PINHEIRO, 2005). Neste enfoque, além das dimensões de dignidade humana, quantidade, regularidade e sustentabilidade presentes no conceito tradicional da SAN, a qualidade da alimentação torna-se também um objetivo a ser alcançado e a alimentação saudável incorpora-se definitivamente no conceito (PINHEIRO, 2004). 32 Dessa forma, a discussão da SAN, no Brasil, deve considerar o tema da alimentação saudável como um de seus eixos fundamentais. Segundo Pinheiro (2004), uma alimentação saudável deve ser entendida enquanto um direito humano que compreende um padrão alimentar adequado às necessidades biológicas e sociais dos indivíduos de acordo com as fases do curso da vida. Além disso, deve ser baseada em práticas alimentares assumindo os significados sócio-culturais dos alimentos como fundamento básico conceitual. 33 2.2. PROMOÇÃO DA SAÚDE E A ESTRATÉGIA DA PROMOÇÃO DA ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL Leavell & Clark (1976, apud FERREIRA & MAGALHÃES, 2007) apropriaram- se dos conceitos de promoção e prevenção ao formularem o modelo da história natural da doença. Segundo os autores, a medicina preventiva compreenderia três níveis de prevenção e a promoção da saúde estaria incluída no nível primário, relacionada à saúde e ao bem estar dos indivíduos. Na área da saúde, o termo prevenção tem a conotação de atuação ou ação na forma de prevenir o adoecimento, visando geralmente reduzir seus fatores de risco na vida individual e coletiva. Embora o termo promoção da saúde tenha sido usado a princípio para caracterizar um nível de atenção da medicina preventiva, seu significado foi mudando, passando a representar, mais recentemente, um enfoque político e técnico em torno do processo saúde-doença-cuidado (BUSS, 2000). Segundo o autor, as diversas conceituações disponíveis para a promoção da saúde podem ser reunidas em dois grandes grupos. No primeiro, a promoção da saúde consiste nas atividades dirigidas à transformação do comportamento dos indivíduos, por meio de atividades educativas. Já no segundo grupo, há a constatação da influência dos determinantes gerais sobre as condições de saúde, onde se entende que a saúde é produto de variados fatores relacionados com o ambiente num sentido mais amplo, necessitando, portanto, de políticas públicas e de condições favoráveis ao seu desenvolvimento (BUSS, 2000). Buss (2000) sintetizou de forma apropriada a proposta de promoção da saúde ao afirmar: “Partindo de uma concepção ampla do processo saúde-doença e de seus determinantes, propõe a articulação de saberes técnicos e populares, e a mobilização de recursos institucionais e comunitários, públicos e privados, para seu enfrentamento e resolução” (BUSS, 2000, p.165). 34 Para Ferreira & Magalhães (2007), a promoção da saúde, enquanto importante estratégia de saúde coletiva, reaparece nos últimos vinte anos como resposta à crescente medicalização, à baixa eficácia dos serviços de saúde e aos altos custos do setor, visando a enfrentar os limites do modelo biomédico hegemônico e dos modelos tradicionais de intervenção em saúde. De acordo com as autoras, a promoção da saúde incorpora um conceito ampliado de saúde. A perspectiva da promoção da saúde se apresenta na PNAN e é apontada como uma de suas diretrizes por meio da “promoção de práticas alimentares e estilos de vida saudáveis”, cuja ênfase está na “socialização do conhecimento sobre alimentos e o processo de alimentação bem como acerca da prevenção dos problemas nutricionais, desde a desnutrição - incluindo as carências específicas - até a obesidade” (BRASIL, 2003, p.22). Sem ter a intenção de fazer uma discussão aprofundada do tema, considera- se pertinente afirmar que a Promoção da Alimentação Saudável (PAS) configura-se como estratégia importante da promoção da saúde, dando ênfase ao desenvolvimento de processos educativos permanentes relacionados às questões de alimentação e nutrição, devendo estar focada na atenção básica (BRASIL, 2003; 2010). A PAS, de um modo geral, deve prever um escopo amplo de ações que apóiem as pessoas em todas as fases do curso da vida, desde o início da formação do hábito alimentar, isto é, do nascimento à velhice. Segundo a PNAN, ações de PAS demandam enfoque prioritário ao resgate de hábitos e práticas alimentares regionais em direção ao consumo de alimentos locais de baixo custo e elevado valor nutritivo, bem como de padrões alimentares mais variados, desde os primeiros anos de vida até a idade adulta e a velhice (BRASIL, 2003). É importante favorecer o consumo de alimentos mais saudáveis, respeitando as identidades socioantropológicas e culturais da alimentação nos grupos sociais (PINHEIRO, 2005). 35 Uma maneira de viabilizar essa transformação do hábito alimentar é ampliar o acesso à informação para a escolha e adoção de práticas alimentares saudáveis, promovendo a autonomia decisória dos sujeitos, na escolha e aquisição dos alimentos. Assim, a educação nutricional, na perspectiva do DHAA e da SAN, desempenha uma função estratégica para a promoção de hábitos alimentares saudáveis (OLIVEIRA & OLIVEIRA, 2008). 36 2.3. EDUCAÇÃO NUTRICIONAL – REVISÃO CONCEITUAL Sabe-se que o conceito de educação nutricional passou por modificações ao longo do tempo, conforme discutido anteriormente. A educação nutricional já foi considerada como uma “estratégia para ensinar o pobre a comer” (BOOG, 1996), como uma prática domesticadora, ou ainda, foi criticada por contribuir para desviar a atenção dos reais mecanismos que causam a fome, favorecendo assim a manutenção dos processos sociais de exploração (VALENTE, 1989). Foi apontada também como uma importante estratégia no campo da saúde coletiva , por auxiliar na prevenção de doenças crônicas não transmissíveis (MONTEIRO et al., 2005). Segundo Lima et al. (2003), historicamente a educação nutricional foi constituída sob orientação social como instrumento de correção dos hábitos alimentares errôneos e pautada na premissa da ignorância alimentar, tendo bastante acentuado o seu caráter intervencionista e técnico. Representações da educação nutricional tradicional e prescritiva são reforçadas, muitas vezes, pelo desconhecimento por parte dos profissionais de saúde de outras formas de abordar o problema, repetindo a noção de práticas alimentares dicotomizadas, ou seja, comer certo e comer errado. A indicação de dietas padronizadas, listas de alimentos proibidos e permitidos, conduz o indivíduo a um comportamento submisso perante os problemas alimentares e suas estratégias de enfrentamento. Dessa forma, há uma valorização da “obediência” às recomendações dietéticas, em detrimento do estímulo à autonomia na tomada de decisões sobre alimentação no cotidiano, impedindo o sujeito de to rnar-se ativo no cuidado à sua saúde (RODRIGUES & BOOG, 2006). Em consonância com essas representações, tem-se o proposto por Gouveia (1999), para quem os objetivos da educação nutricional tradicional concentram-se no sentido de garantir o acesso às informações, para a obtenção de uma dieta balanceada que conduza a um melhor estado de saúde, sendo seu objetivo 37 fundamental persuadir as pessoas a mudar seu comportamento alimentar inadequado. Na abordagem tradicional mantém-se um enfoque centrado na imposição de normas e regras a serem seguidas, em detrimento da reflexão (OMETTO, 2006). Assim, desde a sua origem, as práticas educativas em nutrição têm sido pautadas por processos verticais e autoritários, centrada em modelos prescritivos e biologicistas, menosprezando o diálogo, a autonomia do educando e os aspectos sócio-culturais que envolvem as práticas alimentares (BOOG, 1997; LIMA et al., 2003; SANTOS, 2005b; CASTRO et al., 2007). Boog (2004) apresentou um conceito que procura esclarecer o contexto no qual devem estar inseridas as iniciativas de educação nutricional: “... um conjunto de estratégias sistematizadas para impulsionar a cultura e a valorização da alimentação, concebidas no reconhecimento da necessidade de respeitar, mas também modificar crenças, valores, atitudes, representações, práticas e relações sociais que se estabelecem em torno da alimentação, visando o acesso econômico e social a uma alimentação quantitativa e qualitativamente adequada, que atenda aos objetivos de saúde, prazer e convívio social” (BOOG, 2004, p.18). Educar no campo da nutrição, para a autora, significa ampliar a compreensão sobre a multidimensionalidade da alimentação humana e implica em criar novos sentidos e significados para o ato de comer. Portanto, trata-se de tarefa complexa, visto que mudanças de atitudes relativas ao universo da alimentação demandam reflexão, tempo e orientação competente (BOOG, 2004). Nesse sentido, a educação nutricional diz respeito a um processo de aprendizagem e não de adestramento (FERREIRA & MAGALHÃES, 2007). Outro conceito de educação nutricional contemporâneo foi elaborado em estudo que buscou conhecer o processo de construção do conhecimento dietoterápico de pacientes diabéticos atendidos no programa de saúde da família no município de Araras/SP. Para elaboração do conceito, mais adequado ao propósito 38 do trabalho, a autora considerou o caráter transformador e libertador do processo educacional: “Educação Nutricional é, pois, um processo educativo no qual, através da união de conhecimentos e experiências do educador e do educando, vislumbra-se tornar os sujeitos autônomos e seguros para realizarem suas escolhas alimentares de forma que garantam uma alimentação saudável e prazerosa, propiciando, então, o atendimento de suas necessidades fisiológicas, psicológicas e sociais” (LIMA, 2004, p.81). Segundo autores conceituados na área (BOOG, 1997; CERVATO et al., 2004), é necessário que a educação nutricional seja fundamentada em teorias pedagógicas, cabendo ao profissional se especializar nessas teorias. Para Boog, a fim de que o processo de educação nutricional se estabeleça, há a necessidade do educador possuir conhecimentos não somente acerca da dietética como também da antropologia da alimentação, da filosofia da educação e da pedagogia (BOOG, 1997). Para Manço & Costa (2004), a educação nutricional não deveria mais ser concebida apenas como a mudança de hábitos alimentares inadequados à saúde, uma vez que é necessário incorporar outras características às práticas de Educação Nutricional, desejáveis para torná-la mais eficiente e adequada às necessidades do ser humano, como os aspectos culturais, sociais e psicológicos da alimentação. Nesse contexto, o campo da educação nutricional ressente-se de uma maior discussão sobre abordagens pedagógicas, modelos e teorias para a sua prática. Santos (2005b) ressalta que, no campo da educação nutricional, é comum não se dar importância às abordagens educativas apropriadas, somente aos conteúdos técnicos de alimentação e nutrição. Em outras palavras, qualquer ação na área de educação deve ser refletida com base em referenciais teóricos adequados. Dessa forma, qualquer programa de educação nutricional que não considere uma metodologia de ensino-aprendizagem adequada pode ter sua qualidade e eficácia comprometidas. O profissional que 39 desconsidera estes aspectos compete com o leigo que também faz educação alimentar (FERREIRA & MAGALHÃES, 2007). Nesse sentido, sabe-se que o entendimento da alimentação e nutrição como um fenômeno apenas biológico associado a abordagens pedagógicas tradicionais, verticais e autoritárias, contribui para a dificuldade de inserção dessa temática nas práticas cotidianas dos serviços de saúde (PINHEIRO et al., 2008). Sabe-se que, atualmente, a educação nutricional, como um enfoque da educação em saúde, deve seguir um modelo de educação que busque promover a reflexão e consciência crítica sobre os aspectos da realidade pessoal e coletiva (BOOG, 2004). Ao estudar as bases teóricas da educação nutricional nos cursos de Nutrição, Franco (2006) concluiu que não há uma delimitação teórica para a disciplina Educação Nutricional, porém o estudo realizado aponta para um processo embrionário de construção teórica em torno do pensamento pedagógico de Paulo Freire (FRANCO, 2006). Paulo Freire foi um importante educador brasileiro, que se destacou por seu trabalho na área da educação popular. Propôs uma nova concepção de educação, capaz de proporcionar aos educandos a possibilidade de se tornarem sujeitos do processo que estão vivendo, de participarem de forma reflexiva e crítica da construção de conhecimentos, sempre dentro de sua própria realidade. Trata -se do ensino problematizador, no qual o aluno deve ser ensinado a pensar e não simplesmente a aceitar o conteúdo que lhe foi transmitido. Essa concepção problematizadora de educação requer o diálogo entre educador e educando (FREIRE, 2004). Para Freire, esse modelo deve investir em um educando crítico e questionador e em um educador facilitador das descobertas e reflexões dos sujeitos, auxiliando o educando a encontrar estratégias para lidar com os problemas, novos comportamentos e novas maneiras de pensar. Dessa forma, as mudanças de comportamento alimentar deveriam ser consequência de um processo reflexivo, 40 dialógico, participativo e emancipatório, por meio do qual o educando, com o apoio do educador, conhece e explora o problema, sem esperar uma mera transmissão de informação sobre o que fazer (FREIRE, 2004). O modelo de educação alimentar e nutricional deve, da mesma forma, considerar e dialogar com o saber popular, criando condições reais de trocar experiências e conhecimentos que permitam a adoção de valores que sejam saudáveis e ao mesmo tempo culturalmente referenciados (BRASIL, 2010). Qualquer método que desqualifique o saber e as iniciativas apresentadas pela população apresenta limites para alcançar os seus objetivos (VASCONCELOS, 1997). Enfim, frente às constatações de vários trabalhos (LIMA, 2004; MANÇO, 2005; ALENCAR et al., 2008; GUEDES et al., 2008; VASCONCELOS et al., 2008) que apontam evidências quanto à importância da educação nutricional sustentada nos fundamentos da educação crítica, com ênfase na concepção pedagógica problematizadora de Paulo Freire, considera-se fundamental discutir as abordagens teórico-metodológicas uti lizadas nas práticas educativas em alimentação e nutrição nessa direção. Nesta abordagem, a educação nutricional deve prever que o profissional de saúde assuma seu papel de educador e busque nos aportes das ciências humanas e sociais alternativas para adotar um papel de facilitador do processo de ensino- aprendizagem (ALENCAR et al., 2008). Enquanto estratégia para o enfrentamento dos problemas alimentares e nutricionais no Brasil, a educação nutricional deve ser transformadora. Para tanto, deve basear-se numa perspectiva problematizadora, que ultrapasse a visão puramente instrumental e instrucional da educação (OLIVEIRA & OLIVEIRA, 2008). A educação nutricional, quando pautada nos princípios da educação problematizadora, pode promover o desenvolvimento da capacidade de compreensão dos hábitos alimentares, proporcionando ao indivíduo condições para que possa tomar decisões para resolução de seus problemas nutricionais. Assim, o processo de educação nutricional não deve impor ao paciente respostas prontas 41 para o problema, por meio da prescrição de dietas, mas sim estabelecer uma relação de ajuda entre este e o profissional educador (RODRIGUES & BOOG, 2006). Ela não deve ser uma ferramenta mágica para se “obedecer à dieta”, com o objetivo de um resultado em curto prazo, ao contrário, deve ser um processo de conscientização do indivíduo da importância da alimentação, realizado de forma libertadora (BOOG, 1999). Segundo tais princípios, o profissional de saúde, como educador, instiga o paciente ao questionamento e à construção de conhecimentos críticos, capazes de levá-lo de fato a mudanças em sua vida, em sua residência e em sua comunidade (LIMA, 2004). Enfim, a educação nutricional deve considerar e dialogar com o saber popular, criando condições reais de trocar experiências e conhecimentos, visando ao desenvolvimento de habilidades pessoais, possibilitando o reforço da autonomia dos sujeitos na construção do conhecimento e cidadania, e também a construção de formas coletivas e individuais de promover a saúde em todos os seus espaços de atuação (BRASIL, 2010). 42 2.4. CONCEITOS IMPORTANTES PARA A ORGANIZAÇÃO DO PROCESSO DE TRABALHO NA ESF 2.4.1. EQUIPES DE REFERÊNCIA E APOIO MATRICIAL COMO ARRANJOS ORGANIZACIONAIS PARA A ATENÇÃO BÁSICA Equipes de referência e equipes de apoio matricial constituem arranjos organizacionais propostos para a atenção básica com o objetivo de produzir novos padrões de relacionamento entre os profissionais de saúde e os usuários dos serviços, favorecendo a troca de informações e a ampliação do compromisso dos profissionais com a produção de saúde. O apoio matricial é um arranjo na organização dos serviços que complementa as equipes de referência. É, portanto, uma forma de organizar e ampliar a oferta de ações em saúde, que lança mão de saberes e práticas especializadas, sem que o usuário deixe de ser cliente da equipe de referência. Esta, por sua vez, é a equipe multiprofissional de caráter transdisciplinar, variando segundo o objetivo e a característica do serviço, que se responsabilizam pela saúde de certo número de pacientes inscritos, segundo sua capacidade de atendimento e gravidade dos casos. Cada equipe de referência torna- se responsável pela atenção integral do doente, cuidando de todos os aspectos de sua saúde, elaborando projetos terapêuticos e buscando outros recursos terapêuticos, quando necessário, acionando o apoio matricial. Nesse novo arranjo, cada unidade de saúde é organizada em equipes básicas de referência, compostas segundo o objetivo, as características e disponibilidade de recursos, de forma multiprofissional e variável conforme o tipo de atenção oferecida, as quais detêm, então, a responsabilidade de atenção integral à saúde para a clientela adscrita ao longo do tempo, ou seja, de maneira longitudinal (CAMPOS, 1999). O apoio especializado matricial objetiva assegurar retaguarda especializada, com saberes e práticas especializadas, à equipe de referência encarregada de determinada população. O apoiador matricial é um especialista com um núcleo de 43 conhecimento e um perfil distinto daquele dos profissionais da equipe de referência, mas que pode contribuir com intervenções próprias que aumentem a capacidade de resolver problemas de saúde da população adscrita ou com intercâmbio sistemático de conhecimentos entre as várias especialidades e profissões (CAMPOS, 1999; CAMPOS & DOMITTI, 2007). Segundo Feuerwerker (2009): “O apoio matricial é um modo de organizar o trabalho que, de diversas maneiras, aproxima os especialistas das equipes de atenção primária, criando a possibilidade de discussão conjunta de casos e manejo articulado de situações complexas, aumentando a resolubilidade, fortalecendo o trabalho em equipe, ampliando o repertório dos profissionais da atenção primária, sem quebrar a lógica do cuidado ou dissolver a responsabilidade pelo enfrentamento dos problemas de saúde” (FEUERWERKER, 2009, mimeo). A organização dos serviços em equipes de referência e equipes de apoio matricial busca enriquecer as possibilidades de composição dos projetos terapêuticos e criar mecanismos para a integralidade da atenção, já que se considera que nenhum especialista poderá assegurá-la de modo isolado (CAMPOS, 1999; CAMPOS & DOMITTI, 2007). Essa compreensão está de acordo com a proposta do NASF, a qual mantém os profissionais como especialistas apoiadores, e não como membros de equipes da atenção básica. De acordo com Maxta et al. (2010), o apoio matricial em saúde vem sendo reconhecido como uma metodologia para a gestão do trabalho em saúde na perspectiva da clínica ampliada e da integração dialógica entre distintas especialidades e profissões em torno de objetivos comuns. Dessa forma, o matriciamento se constitui em uma ferramenta que pressupõe um compartilhamento de conhecimento e de responsabilidade e pode ser entendido como a construção de momentos relacionais onde se estabelece troca de saberes entre os profissionais, de diferentes serviços de atenção, envolvidos no cuidado aos usuários. 44 Para Campos & Domitti (2007), o apoio matricial pode ser efetivado de três maneiras distintas: atendimentos e intervenções conjuntas entre os profissionais da equipe de referência e os matriciadores; intervenções especializadas do núcleo profissional do apoiador, mantendo sempre o contato com a equipe de referência; e troca de conhecimento e de orientações entre equipe de referência e apoiadores sobre determinados casos. O apoio matricial e a construção de linhas de cuidado têm sido estratégias utilizadas para enfrentar a fragmentação do cuidado e superar as diferentes lógicas de operação da atenção básica e da atenção especializada, proporcionando a qualificação do cuidado e a aproximação da atenção à saúde das necessidades dos usuários (CAMPOS & DOMITTI, 2007). Nesse contexto, o NASF se configura como dispositivo de implantação do apoio matricial na estratégia saúde da família com quatro áreas estratégicas, sendo uma delas a Alimentação e Nutrição. Em outras palavras, o apoio matricial caracteriza a organização do processo de trabalho no NASF e, portanto, o nutricionista atuaria como apoiador matricial das equipes de referência. 2.4.2. CAMPO E NÚCLEO DE COMPETÊNCIA “Campo de competência” e “Núcleo de competência” são dois conceitos operativos para redefinição da abrangência e da responsabilidade das práticas em saúde, propostos por Campos et al. (1997). Segundo os autores, o campo de competência se configura em um campo de intersecção das diversas áreas da saúde, não caracterizando monopólio de nenhuma profissão ou especialidade. Já o núcleo de competência é mais específico e inclui as atribuições exclusivas de determinada profissão ou especialidade, justificando, portanto, a sua existência como uma nova área. Dessa forma, o campo de competência apresenta limites e contornos menos precisos e o núcleo, ao contrário, definições bastante delineadas (CAMPOS et al., 1997). A construção do núcleo que circula dentro de um campo auxilia na definição de responsabilidades científicas e políticas de cada área (CAMPOS, 2007). 45 O núcleo demarca a identidade profissional e disciplinar de cada profissão, constituindo a sua identidade social, e o campo, um espaço de limites imprecisos onde cada disciplina e profissão buscam em outras, apoio para cumprir suas tarefas teóricas e práticas (CAMPOS, 2000). 2.4.3. CLÍNICA AMPLIADA COMO NOVA PROPOSTA PARA AS PRÁTICAS EM SAÚDE A proposta da Clínica Ampliada é ser um instrumento para que os trabalhadores e gestores de saúde possam enxergar e atuar para além dos pedaços fragmentados representados pelo seu núcleo profissional, sem deixar de reconhecer e uti lizar o potencial desses saberes. Portanto, a clínica ampliada propõe que o profissional de saúde desenvolva a capacidade de ajudar as pessoas a resolverem suas necessidades de saúde, mesmo que não pertencentes ao seu núcleo profissional. Dessa forma, a clínica ampliada busca integrar várias abordagens para possibilitar uma atuação eficaz diante da multicausalidade dos problemas de saúde na atualidade. A complexidade do trabalho em saúde, por sua vez, exige o trabalho em equipe multiprofissional (BRASIL, 2007). Dessa forma, essa nova proposta que se coloca para o trabalho em saúde apresenta como características fundamentais: a compreensão ampliada do processo saúde-doença, buscando evitar uma abordagem que privilegie excessivamente algum conhecimento específico ou núcleo profissional; a construção compartilhada dos diagnósticos e terapêuticas, tanto na direção da equipe de saúde quanto na direção do próprio usuário; a ampliação do “objeto de trabalho”, que deve ser a atuação sobre pessoas e não sobre doenças; a transformação dos “meios” ou instrumentos de trabalho, por meio de arranjos ou dispositivos de gestão que facilitem a comunicação transversal na equipe entre equipes, além do desenvolvimento de técnicas relacionais como a capacidade de escuta do outro; e o suporte para os profissionais de saúde, para que eles possam lidar com as próprias dificuldades inerentes ao trabalho em saúde (BRASIL, 2009a). 46 2.5. EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE Conforme definida na Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, a educação permanente refere-se à aprendizagem no trabalho, acontece no cotidiano das pessoas e das organizações e se baseia na aprendizagem significativa. Propõe que os processos de educação dos trabalhadores da saúde se façam a partir da problematização do processo de trabalho, pautada pelas necessidades de saúde das pessoas e populações. Os processos de educação permanente em saúde têm como objetivos a transformação das práticas profissionais e da própria organização do trabalho (BRASIL, 2009c). A educação permanente pode abranger em seu processo diversas ações específicas de capacitação. Por outro lado, nem toda ação de capacitação, embora vise à melhoria do desempenho dos profissionais, implica um processo de educação permanente, pois nem toda ação representa parte substantiva de uma estratégia de mudança institucional, orientação essencial nos processos de educação permanente. Ainda que em alguns casos se alcance aprendizagens individuais por meio da capacitação, elas nem sempre se traduzem em aprendizagem organizacional (BRASIL, 2009c). As capacitações tradicionais no setor saúde podem representar uma continuidade do modelo escolar ou acadêmico, centralizado na atualização de conhecimentos técnicos. Por isso, geralmente se produz uma distância entre a prática e o saber teórico e uma desconexão do saber como solução dos problemas da prática. Além disso, configuram-se como uma estratégia descontínua por se tratarem de cursos periódicos sem seqüência constante. O enfoque da educação permanente, ao contrário, representa uma importante mudança na concepção e nas práticas de capacitação dos trabalhadores dos serviços, por meio da aprendizagem no contexto do trabalho na área da saúde. Supõe inverter a lógica do processo, incorporando o ensino e o aprendizado à vida cotidiana das organizações e às práticas sociais e laborais, no contexto real em que ocorrem. As estratégias educativas utilizadas partem da prática como fonte de conhecimento e de problemas, 47 problematizando o próprio fazer, além de colocar as pessoas como atores reflexivos da prática e construtores do conhecimento e de alternativas de ação, ao invés de simples receptores de informações teóricas (BRASIL, 2009c). 48 2.6. TRABALHO EM EQUIPE MULTIPROFISSIONAL E A QUESTÃO DAS DISCIPLINAS Piancastelli et al. (2000) constataram dificuldades em realizar o trabalho em equipe, devido às diferentes concepções do que seja uma equipe, apresentadas a seguir: � “conjunto ou grupo de pessoas que se aplicam a uma tarefa ou trabalho”; � “conjunto ou grupo de pessoas que partilham de um mesmo objetivo”; � “conjunto ou grupo de pessoas que ao desenvolver uma tarefa ou trabalho, almejam um objetivo único, obtido pelo consenso/negociação”; � “conjunto ou grupo de pessoas que tem objetivos comuns e está engajado em alcançá-los de forma compartilhada”, e � “conjunto ou grupo de pessoas com habilidades complementares, comprometidas umas com as outras pela missão comum, objetivos comuns (obtidos pela negociação entre os atores sociais envolvidos) e um plano de trabalho bem definido” (PIANCASTELLI et al., 2000, p.46). Deixaram claro, também, que os conceitos apresentados vão sendo ampliados – no sentido de transformar um grupo de trabalhadores em uma equipe de trabalho – e sofrem a incorporação de mais idéias para o desenvolvimento do processo de trabalho. Uma dessas idéias é a de que os componentes da equipe deverão criar as condições necessárias ao crescimento individual e do grupo. Em seu trabalho, Peduzzi (2001) investigou as concepções dos profissionais de saúde sobre o trabalho em equipe multiprofissional, resultando em um conceito e uma tipologia de trabalho em equipe. De acordo com a autora, existem duas modalidades de trabalho em equipe: a equipe como agrupamento de agentes e a equipe como integração de trabalhos. Com base nessa distinção, construiu-se uma tipologia referente a duas modalidades de trabalho em equipe: “equipe agrupamento, em que ocorre a justaposição das ações e o agrupamento dos agentes, e equipe integração, em que ocorre a articulação das ações e a interação dos agentes” (PEDUZZI, 2001, p.106). A autora afirma que, em ambas as equipes, estão presentes as diferenças técnicas dos trabalhos especializados e a desigualdade de valor atribuído a esses 49 distintos trabalhos, as tensões entre as diversas concepções e os exercícios de autonomia técnica, bem como entre as concepções quanto à independência dos trabalhos especializados ou a sua complementaridade objetiva. Apresentou, ainda, critérios que podem auxi liar no reconhecimento das equipes de trabalho enquanto pertencentes a uma modalidade ou outra. Dessa forma, a comunicação (entre os profissionais) intrínseca ao trabalho, um projeto assistencial comum, a flexibilidade da divisão do trabalho e a autonomia técnica de caráter interdependente seriam características de uma equipe integração; enquanto que a comunicação externa ao trabalho, a comunicação (entre os profissionais) estritamente pessoal, a autonomia técnica plena para alguns profissionais e a ausência de autonomia técnica para outros, seriam características de uma equipe agrupamento. Em ambos os tipos de equipe, porém, estariam presentes as características de diferenças técnicas entre os trabalhos especializados e a desigualdade de valor atribuído a esses diferentes trabalhos. Também em ambas, estariam presentes tensões relacionadas à autonomia técnica e à independência ou complementaridade dos trabalhos especializados (PEDUZZI, 2001). Ao se discutir a multiprofissionalidade das equipes de saúde, torna -se também relevante discutir a disciplinaridade e suas variantes – multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Tais conceitos estão sendo exaustivamente discutidas atualmente no campo da saúde coletiva (GOMES & DESLANDES, 1994; FEUERWERKER & SENA, 1999; COSTA, 2002; BENITO et al., 2003; VILELA & MENDES, 2003; ALMEIDA FILHO, 2005; GATTÁS & FUREGATO, 2006), quase sempre com significados distintos e de difícil compreensão. Este trabalho não tem a pretensão de trazer outras contribuições para precisar estes conceitos, portanto, serão apresentadas as definições já discutidas por estudiosos do tema. Jantsch (apud ALMEIDA FILHO, 2005) propôs, em 1972, uma detalhada classificação evolutiva das alternativas de interação ou integração de distintos campos disciplinares. Essa classificação foi repensada e adaptada, a posteriori, por outros autores (VASCONCELOS, 2002; BIBEAU, 1996 apud ALMEIDA FILHO, 2005) 50 e apresentada por Almeida Filho (2005). De acordo com o exposto pelo autor, a multidisciplinaridade diz respeito ao conjunto de disciplinas que simultaneamente tratam de uma dada questão, problema, assunto ou temática, sem que os profissionais implicados estabeleçam entre si efetivas relações no campo técnico ou científico. Pode ser exemplificada com vários profissionais reunidos, em que cada um trabalha isoladamente, sendo que a ausência de uma articulação não significa, no entanto, uma ausência de relação entre estes profissionais. A pluridisciplinaridade implica a justaposição de diferentes disciplinas científicas, com objetivos comuns, podendo existir algum grau de cooperação mútua entre as disciplinas. Pode ser exemplificada por meio de um paciente que procura atendimento do médico endocrinologista e, após receber orientação e prescrição psicofarmacológica, é encaminhado, pelo próprio endocrinologista, a um nutricionista para um trabalho de educação nutricional; assim, a cooperação não é automática, mas estabelece contatos entre os profissionais e suas áreas de conhecimento Em ambas, multi e pluridisciplinaridade, ocorre a justaposição das disciplinas em um único nível hierárquico, com a diferença de que, na multidisciplinaridade há total ausência de cooperação sistemática entre os diferentes campos disciplinares, enquanto que na pluridisciplinaridade, há uma perspectiva de complementaridade, sem que haja, contudo, uma coordenação das ações (ALMEIDA FILHO, 2005). Na interdisciplinaridade, as relações entre as disciplinas são definidas a partir de um nível hierárquico superior, ocupado por uma delas, que seria determinada por sua maior proximidade à temática em questão. Por exemplo, uma equipe de um determinado ambulatório oncológico, composta de médicos oncologistas, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e nutricionistas, contudo, prevalecendo o saber médico, cabendo a coordenação e a tomada de decisão a estes profissionais. A interdisciplinaridade se baseia em um trabalho conjunto, gerando aprendizagem mútua, que não se efetuaria por simples adição ou mistura das disciplinas, mas por uma recombinação entre elas (ALMEIDA FILHO, 2005). 51 Em relação à transdisciplinaridade, o autor propõe uma integração total das disciplinas, com uma coordenação assegurada pela finalidade comum do trabalho, sem que haja uma coordenação fixa, com tendência à horizontalização das relações de poder. A transdisciplinaridade significaria uma radicalização da interdisciplinaridade, com a criação de um campo disciplinar novo, devendo ser encarada como meta a ser alcançada e não como algo pronto, contribuindo para que todos os membros da equipe estejam atentos para eventuais centralizações de poder (ALMEIDA FILHO, 2005). A despeito de todos esses dispositivos conceituais apresentados, Almeida Filho propõe uma: “possibilidade de comunicação não entre campos disciplinares mas entre agentes em cada campo, através da circulação não dos discursos (pela via da tradução) mas pelo trânsito dos sujeitos dos discursos” (ALMEIDA FILHO, 2005, p.43). Para o autor, somente dessa forma seria possível dar conta de um objeto tão complexo como a saúde-doença, por meio de práticas cotidianas “transversais” dos sujeitos do conhecimento. Gattás & Furegato (2006) enfatizam que há unanimidade quanto à falta de compreensão do tema da interdisciplinaridade. Trata-se de um tema de abordagem difícil de ser entendida e aplicada. No entanto, concordam que depende da construção de um trabalho coletivo e que não envolve somente os saberes, mas também intersubjetividades, isto é, o processo no nível das relações interpessoais. Os autores levantaram os principais estudos sobre a interdisciplinaridade e obtiveram como aspecto comum a todos a percepção da interdisciplinaridade como: “atitude, postura profissional que envolve capacidade de cooperação, respeito à diversidade, abertura para o outro, vontade de colaboração, diálogo, humildade, ousadia” (GATTÁS & FUREGATO, 2006, p.327). Ainda, o aspecto fundamental do trabalho interdisciplinar é a troca de conhecimentos que se estabelece no interior das interações, com enriquecimento 52 dos conhecimentos e ampliação dos campos de visão dos profissionais envolvidos (GATTÁS & FUREGATO, 2006). Feuerwerker & Sena (1999) propõem também uma diferenciação entre interdisciplinaridade, trabalho multiprofissional e trabalho em equipe. De acordo com as autoras, interdisciplinaridade é um conceito que se aplica às ciências, à produção do conhecimento e ao ensino. O trabalho multiprofissional diz respeito à prática, na medida em que se organiza o trabalho considerando a complementaridade dos diversos saberes e práticas profissionais e buscando a integralidade do cuidado. No trabalho multiprofissional, existe uma interação entre os vários conhecimentos técnicos específicos para produzir uma solução ou intervenção que não seria produzida por nenhum dos profissionais isoladamente. Já o trabalho em equipe pressupõe o comparti lhar do planejamento, a divisão de tarefas, a cooperação e a colaboração, seja entre profissionais de uma mesma formação, de uma mesma carreira, ou entre profissionais de formações diferentes, dentro da equipe multiprofissional (FEUERWERKER & SENA, 1999). Sendo assim, a ESF constitui-se de equipes multiprofissionais que devem atuar em uma perspectiva interdisciplinar (PEDROSA & TELES, 2001). Peduzzi (2001) coloca que a disciplinaridade e suas alternativas de interação dizem respeito à produção de conhecimento, enquanto que a multiprofissionalidade diz respeito à atuação conjunta de várias categorias profissionais. Conforme Almeida & Mishima (2001), a construção de um trabalho multiprofissional na prática dos serviços de saúde requer um trabalho com interação social entre os trabalhadores, com maior horizontalidade e flexibilidade dos diferentes poderes, possibilitando maior autonomia e criatividade dos profissionais. 53 CCAAPPÍÍTTUULLOO 33 –– MMAATTEERRIIAAIISS EE MMÉÉTTOODDOOSS 54 3.1. REFERENCIAL METODOLÓGICO Trata-se de uma investigação exploratória com abordagem qualitativa , com delineamento de corte transversal. Essa abordagem foi eleita devido à complexidade do campo da saúde e a natureza do objeto de estudo, uma vez que, como destaca Minayo (2000), esta modalidade de pesquisa permite verificar os significados atribuídos pelos sujeitos à realidade de suas práticas, além de visar ao aprofundamento no mundo dos significados, relações humanas, atitudes, crenças e valores. Nesta abordagem, segundo a autora, não há preocupação em quantificar, mas, sim, em compreender e explicar a dinâmica das relações sociais. O estudo está fundamentado teoricamente no constructo da Teoria das Representações Sociais como marco teórico-metodológico, pois esta lida com os aspectos psicossociais do cotidiano dos sujeitos da pesquisa, contribuindo para conhecer a imagem de um determinado objeto formulada por determinados sujeitos. Para Moscovici, criador do conceito, as representações sociais são como ”uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos” (MOSCOVICI, 1978, p.26). Assim, conforme o autor, a representação produz e determina comportamentos. “Por representações sociais, entendemos um conjunto de conceitos, proposições e explicações, originado na vida cotidiana no curso de comunicações interpessoais. Elas são o equivalente, em nossa sociedade, dos mitos e sistemas de crenças das sociedades tradicionais; podem também ser vistas como a versão contemporânea do senso comum” (MOSCOVICI, 1978, p.181). As representações sociais são entendidas como um saber presente no senso comum e refletindo-se no cotidiano de um determinado grupo social. Trata-se de um conhecimento que circula da ciência para o senso comum e vice-versa. Dessa forma, são consideradas “teorias” sobre saberes populares e do senso comum, elaboradas e partilhadas coletivamente com a finalidade de construir e interpretar o real (GUARESCHI & JOVCHELOVITCH, 2003). 55 Muitos estudos foram realizados com o intuito de entender de que forma os indivíduos vêem determinada realidade ou concebem determinado objeto, como a representação social do cuidado no PSF (RODRIGUES et al., 2008), a representação social sobre a integralidade (REIS & ANDRADE, 2008), outros foram realizados com o objetivo de identificar as representações sociais de determinadas categorias profissionais (MORE et al., 2004; PRAÇA & NOVAES, 2004; GOMES & OLIVEIRA, 2005; COSTA et al., 2008; LAHM & BOECKEL, 2008); além das representações sociais sobre educação em saúde de equipes de saúde da família (SCHWINGEL & CAVEDON, 2004). Para Cabecinhas (2004), as representações sociais podem ser representativas de determinado grupo social, influenciando na forma como outros grupos o percebem e se relacionam com ele. Elas contribuem para definir um grupo social na sua especificidade. Nesse sentido, uma representação é constituída de um conjunto de crenças, informações, de opiniões e de atitudes a propósito de um dado objeto social (GOMES & OLIVEIRA, 2005). Conforme Praça & Novaes (2004), a Teoria das Representações Sociais reside na idéia de que os sujeitos buscam explicações, criam teorias próprias sobre uma série de assuntos que prendem a atenção e a curiosidade, demandando compreensão e pronunciamentos cotidianos a respeito dos temas. Tais explicações não são simples opiniões, mas possuem uma lógica própria, baseada nas mais diferentes informações e em julgamentos valorativos, originados de diferentes fontes, além de fundamentarem-se também em experiências pessoais e grupais. Às representações sociais são atribuídas a capacidade de transformar o que não é familiar em algo próximo e prático, visando torná-lo conhecido, passível de entendimento. Além desse aspecto essencial, apresentam também a função identitária, que possui relação com a imagem do grupo e suas especificidades; e a função justificadora, que agrega os valores que possibilitam a diferenciação de um grupo entre os demais (LAHM & BOECKEL, 2008). 56 Para Lahm & Boeckel (2008), as representações sociais têm implicações no cotidiano, pois influenciam o comportamento e a comunicação. Dessa forma, o profissional nutricionista, visto como sujeito integrado às equipes de saúde da família estudadas, por meio dos residentes, contribui para as inter-relações dos sujeitos e para o contexto que os rodeia, bem como para o estabelecimento de representações sociais acerca de seu papel e de sua prática. A representação social pode ser acessada de diversos modos. Segundo Herzlich (2005), que aplicou o conceito a estudos na área da saúde: “... o mais das vezes, ela [a Representação Social] é parte de um material verbal constituído, seja através de respostas a um questionário, seja através do discurso emitido em entrevistas individuais. Isso coloca, de início, o problema da mediação da representação pela linguagem. Mas, por outro lado, a partir desses discursos específicos, dessas expressões particulares, o pesquisador tenta apreender a lógica comum subjacente, o código partilhado, portanto mais geral, que se aplica a todas essas discussões, que é o nível das representações sociais” (HERZLICH, 2005, p.65). Esta foi a opção aqui adotada, já que o material empírico desta pesquisa foi constituído por depoimentos coletados individualmente de um tipo determinado de ator social: os profissionais de saúde de equipes de saúde da família. Assim, as representações sociais possuem como materiais fundamentais de estudo as concepções verbalizadas, as atitudes e os julgamentos individuais e coletivos sobre determinada realidade. 57 3.2. CARACTERIZAÇÃO DO LOCAL DO ESTUDO O estudo foi realizado no município de São Carlos, que dista 206 km da capital São Paulo. O município pertence à região nordeste do Estado de São Paulo. Possui uma área de 1.141 km² e a população é de aproximadamente, 220.463 habitantes (IBGE, 2009). Conta com dois distritos: Água Vermelha, com cerca de 3.296 habitantes, e Santa Eudóxia, com 3.034 habitantes. Situa-se em uma das macro- regiões mais desenvolvidas do país. O crescimento demográfico anual é de 2,4%, a renda per capita de US$ 3,5 mil e o PIB do município é de US$ 675 milhões. Apresenta Índice de Desenvolvimento Humano – IDH de 0,841 (SÃO CARLOS, 2009). A economia do município é agro-industrial. Possui duas grandes universidades públicas (USP, UFSCar) e mais duas universidades particulares (FADISC, UNICEP). O vigor acadêmico, tecnológico e industrial conferiu à cidade o título de “Capital da Tecnologia”. Suas universidades e centros de pesquisa são reconhecidos pela excelência e diversidade. A Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) oferecem ensino gratuito e de qualidade (SÃO CARLOS, 2009). Já a atividade industrial é marcada pela presença de grandes indústrias: Volkswagen (motores), Tecumseh (compressores), Faber Castell (lápis), Electrolux (geladeiras e fogões), além de empresas têxteis, de embalagens, de máquinas, tintas, lavadoras, equipamentos ópticos e indústrias médias e pequenas dos vários setores de produção (SÃO CARLOS, 2009). 3.2.1. SISTEMA DE SAÚDE A Prefeitura Municipal conta com 18 Secretarias, sendo uma delas a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), que desenvolve e executa a política de saúde do município, gerenciando as atividades de assistência à saúde local. Coordena 58 também os assuntos ligados ao Fundo Municipal de Saúde e apóia os conselhos municipais ligados ao setor. Compõem o sistema de saúde municipal, as Unidades Básicas de Saúde (UBS e USF), a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) para urgência e emergência, o Programa de Atendimento Domiciliar (PAD), o Centro de Especialidades Odontológicas (CEO) e o Centro Municipal de Especialidades (CEME) (SÃO CARLOS, 2009). A rede de atenção básica é constituída atualmente de 11 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 16 Unidades de Saúde da Família (USF). A população coberta pela Estratégia Saúde da Família em 2006 era de aproximadamente, 16% (SÃO CARLOS, 2006). Atualmente, a cobertura gira em torno de 24% (SÃO CARLOS, 2009). A atenção especializada acontece no Centro Municipal de Especialidades (CEME) e no Centro de Especialidades Odontológicas (CEO). O primeiro caracteriza- se pela oferta de: consultas médicas especializadas nas áreas de angiologia, cardiologia, cirurgia plástica, cirurgia oncológica, cirurgia pediátrica, dermatologia, endocrinologia, gastroenterologia, cirurgia geral, geriatria, hematologia, infectologia, nefrologia, neurologia, oftalmologia, oncologia, ortopedia, otorrinolaringologia, pneumologia, proctologia, reumatologia, tisiologia e urologia; cirurgias ambulatoriais; serviço de reabilitação em fonoaudiologia; ambulatório de DST/AIDS; ambulatório de doenças infecto-contagiosas; ambulatório de violência sexual; ambulatório de gastroenterologia pediátrica e nutrição; exames especializados de eletroencefalograma, ultra-sonografia, patologia clínica, exames de radiodiagnóstico, anatomo-patologia e citopatologia. O CEO é responsável por ações especializadas em odontologia. Existem ainda as seguintes unidades: Serviço de Acompanhamento ao Bebê de Risco (SAIBE); CAPS e CAPS-ad, responsáveis pela atenção em saúde mental do município; e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). 59 É importante resgatar que a política de saúde, enquanto política pública mais concreta e planejada, foi bastante incipiente em São Carlos/SP até o final do ano 2000. A despeito de a cidade ser reconhecida como Capital da Alta Tecnologia, em função do grande número de empresas consideradas de ponta, o setor saúde não acompanhou esse desenvolvimento no mesmo ritmo, visto que a rede básica não era expressiva até essa data, “exceto pela instalação do Programa de Saúde da Família e da Municipalização da Saúde – Gestão Plena, ambos iniciados em 1998, por meio de processos muito lentos, com nítidos movimentos de resistência à efetivação do SUS” (MACHADO, 2007, p.166)3. Segundo Machado (2007), uma nova gestão do município a partir do ano de 2001 abriu possibilidades de mudanças na história da cidade e, em particular, da sua atenção à saúde. Neste contexto, foi proposto, em 2003, um rearranjo organizacional pela Secretaria Municipal de Saúde. O município foi, então, dividido em seis Administrações Regionais de Saúde (ARES). Em 2007, aconteceu a inauguração do 1º módulo do Hospital-Escola Municipal “Prof. Dr. Horácio Carlos Panepucci”, um marco histórico na construção do sistema de saúde de São Carlos. O Hospital integra a Rede Escola de Cuidados à Saúde e se configura numa nova concepção na promoção de cuidado à saúde das pessoas, através de equipes de referência multidisciplinar (SÃO CARLOS, 2009). O modelo de atenção à saúde vem sendo reorientado pela SMS-SC, no sentido de uma transformação progressiva, adotando a ESF como eixo estruturante da rede de atenção básica à saúde. Para tanto, aderiu ao Projeto de Expansão e Consolidação do Programa de Saúde da Família (PROESF) do Ministério da Saúde, que tinha como meta estabelecida alcançar, até o final de 2007, uma cobertura de 3 (MACHADO, 2007) Com o objetivo de conhecer e compreender melhor o objeto de estudo, Machado (2007) subdivide a atenção à saúde no município de São Carlos/SP em oito períodos históricos que tratam de seu surgimento e de sua trajetória. A autora, por meio de uma investigação de natureza qualitativa, utilizou como principais metodologias a história oral temática e a pesquisa documental para caracterizar a história da saúde no município. 60 70% da população assistida pela ESF, correspondendo a 36 equipes de saúde da família. No entanto,