unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP IAGO DAVID MATEUS ENTRE O CÉU E A TERRA HÁ MAIS COISAS DO QUE SONHA NOSSA VÃ PERSPECTIVA: UM VOO PANORÂMICO (COM E) PELAS „BORBOLETAS‟ JURUNA ARARAQUARA – SP 2019 IAGO DAVID MATEUS ENTRE O CÉU E A TERRA HÁ MAIS COISAS DO QUE SONHA NOSSA VÃ PERSPECTIVA: UM VÔO PANORÂMICA (COM E) PELAS „BORBOLETAS‟ JURUNA Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, Departamento, Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Exemplar apresentado para exame de defesa. Linha de pesquisa: Estudos do Léxico Orientadora: Profa. Dra. Cristina Martins Fargetti Bolsa: Capes - DS ARARAQUARA – SP 2019 IAGO DAVID MATEUS ENTRE O CÉU E A TERRA HÁ MAIS COISAS DO QUE SONHA NOSSA VÃ PERSPECTIVA: UM VÔO PANORÂMICO (COM E) PELAS „BORBOLETAS‟ JURUNA Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, Departamento, Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Exemplar apresentado para exame de defesa. Linha de pesquisa: Estudos do Léxico Orientadora: Profa. Dra. Cristina Martins Fargetti Bolsa: Capes - DS Data da defesa/entrega: 23/04/2019 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Profa. Dra. Cristina Martins Fargetti Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ Membro Titular: Prof. Dr. Odair Luiz Nadin da Silva Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ Membro Titular: Prof. Dr. Mateus Cruz Maciel Carvalho Instituto Federal de São Paulo – Campus Salto Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS Não é tarefa das mais fáceis relembrar todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a produção deste trabalho. Portanto, estou convicto de que muito provavelmente me esquecerei de explicitar algum nome e, por isso, peço que aqueles que porventura não forem aqui nomeados, de antemão, me desculpem pela falha de memória. Dito isso, abro esta parte pré-textual agradecendo ao amor, carinho, afeto e paciência de Tatiana de Oliveira Mateus, Maria Helena Gonçalves e Liliana Oliani Rotondo, as três mulheres que, na Terra, assumiram o papel de figuras maternas e, ao mesmo tempo paternas, realizando as castrações e punições quando era necessário. Além disso, cabe dizer que o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Apoio e Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Portanto, gostaria também de agradecer à CAPES e ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Unesp FlcAr pela concessão da bolsa, por todo auxílio durante a pesquisa, bem como pela verba para que pudesse ir a campo em meados de 2017 – auxílio pelo qual também devo agradecimento ao CNPq. Meu muito obrigado também a todos os docentes do PPGLLP com os quais entrei em contato durante esses dois últimos anos pelos ensinamentos e direcionamentos com relação à pesquisa. Agradeço obviamente a toda comunidade juruna de Tubatuba por ter me recebido – junto com os outros membros da equipe- mesmo ainda em luto de maneira tão calorosa, solidária e solícita, em especial a Yaba Juruna, Txapina Juruna e Tarinu Juruna, sendo que por este último – a quem por falta de outro item lexical chamo de ―informante‖, mas que me presenteou com algo muito maior do que informações, com seu tempo e amizade- tenho um sentimento de estima e de gratidão tão grandes quanto à sua dedicação e paciência em tentar me explicar seus conhecimentos e em repetir as mesmas respostas ou os mesmo conteúdos para um pesquisador de primeira viagem (em todos os sentidos) que vivia repetindo as mesmas perguntas para confirmar suas impressões. A Mitã Xipaya e às crianças juruna pelo auxílio na busca e captura dos insetos que fizeram parte da pesquisa. Aos biólogos e entomólogos com os quais entrei em contato, em especial a Peterson Lasaro Lopes, Lívia Gruli, Ana Braga, ao Prof. Dr. Fernando B. Noll (do departamento de Zoologia e Botânica do IBILCE de Sâo José do Rio Preto), ao Prof. Dr. Nelson Papavero (a quem, aliás, devo agradecer por ter me dado muitas recomendações sobre a coleta e acondicionamento de insetos), à Profa. Dra. Vera C. Silva (do departamento de Morfologia e Fisiologia Animal da Unesp de Jaboticabal) e também à Profa. Dra. Nilza Maria Martinelli que permitiu acompanhar uma de suas aulas – o que, dada, inclusive, a ajuda dos demais pós- graduandos, me rendeu grande aprendizado, sobretudo no que se refere – para nossa ciência entomológica- às partes identificadoras de lepidópteros. A meus queridos amigos (dos quais destaco Daniele Urt, Jéssica Albuquerque, Jéssica Domingues, Rafaela Nascimento, Bruno de Lucas Silva, Larissa e Letícia Bueno da Silva, Carlos Henrique Rodrigues e Paulo Ricardo Pacheco – sendo que a estes dois últimos sou eternamente grato por terem me estendido a mão, me acolhido e me dado muito carinho e afeto quando eu me sentia abandonado) por terem tentado me fazer rir nos momentos difíceis, pelos conselhos, momentos de alegria, desabafos. A meus companheiros na odisseia de aprender grego antigo, sobretudo o Prof. Dr. Marco Aurélio Rodrigues (também por mim chamado de ―orientador de uma nova monografia‖ nas horas vagas), André de Deus Berger e Ana Huang, minha querida ex-vizinha com quem ainda vou dominar o mundo. A esta última agradeço ainda por ter retornado à minha vida e me possibilitar um ouvido e também compor em coro uma reclamação contra tudo e contra todos, estar ao meu lado nos momentos em que mais precisei de apoio e me oferecer o estranhamente muito agradável chão de sua casa quando eu precisava de um lugar no qual desmaiar. Às minhas psicólogas por tentarem manter minha loucura num nível minimante aceitável e por me conduzirem na estrada tão espinhosa e por vezes dolorosa do auto- conhecimento. E, por último, mas não menos importante, agradeço às duas pesquisadores com as quais pude conviver por um período de estadia no Xingu. À primeira delas, Lígia Egídia Moscardini agradeço pelos conselhos acadêmicos e também pelas piadas cretinas que me fizeram rir inclusive quando eu estava em estado convalescente em campo. Já à segunda, a Profa. Dra. Cristina Martins Fargetti (que deixo propositadamente por último, não porque seja menos importante, mais justamente em virtude de sua relevância em minha vida acadêmica), devo gratidão pelo cuidado, carinho que recebi durante a viagem (haja vista que por ela fui tratado como um filho) e também pela paciência, conselhos, atenção, dedicação e por todos os ensinamentos recebidos ao longo de quatro anos sob sua orientação. [...] Não sei dizer o que mudou. Mas nada está igual. Numa noite estranha a gente se estranha e fica mal. Você tenta provar que tudo em nós morreu. Borboletas sempre voltam. E o seu jardim sou eu. Sempre voltam. E o seu jardim sou eu. (Victor e Leo, 2008). RESUMO Este texto é um dos resultados das investigações que foram realizadas em nosso projeto de mestrado ―Estudo etnográfico e terminológico das borboletas juruna para contribuições terminográficas‖. Tal projeto se mostra interdisciplinar por duas razões. Primeiramente porque apresenta os objetivos de compreender, documentar e descrever os papeis linguísticos, mítico-culturais e os demais saberes e práticas dos índios juruna em relação aos animais por nós conhecidos como ―borboletas‖, para discutir qual a melhor forma de inserir esses ―insetos‖ na microestrutura de um dicionário bilíngue Juruna/Português. Em segundo lugar, está o fato de nossos dados coletados sugerirem questões e reflexões críticas ao referencial de Teorias de outras áreas, como o perspectivismo cunhado por Viveiros de Castro (1996). Acresce que, para comprovar que nosso objeto de estudo configura uma área de especialidade entre os referidos indígenas brasileiros e cumprir nossos demais objetivos, nos embasamos na Terminologia Etnográfica de Fargetti (2018) em investigações da Etnoentomologia, como Costa Neto (2004) e também na teoria conceptual da metáfora de Lakoff e Johnson (2002)- tencionando, através deste último referencial, analisar se – dentro do universo linguístico cultural juruna- as construções linguísticas desse povo sobre ‗borboletas‘ ou nas quais esses espécimes aparecem podem ser consideradas metafóricas. Pretendemos, também, abordar neste debate quais as modificações sofridas, em campo, durante nossa ida à aldeia Tuba-Tuba (próxima à BR-80, MT), pela metodologia de coleta de dados que havíamos previamente programado, pois não nos foi permitido, por exemplo, realizar abates das borboletas que foram momentaneamente capturadas em seu habitat natural com auxílio dos próprios juruna (de maneira manual ou por meio de um puçá) para que as fotografássemos para depois libertá- las. Todos os registros fotográficos foram identificados por um especialista da comunidade com os termos e histórias míticas em juruna. Cabe mencionar ainda que as definições enciclopédico-terminográficas aqui apresentadas são protóticos que serão debatidas e revisadas com os falantes nativos juruna em uma segunda ida a campo ou em reuniões online. Palavras-chave: léxico, língua juruna, borboletas. RÉSUMÉ Ce texte est l‘un des résultats des recherches que nous avons menées au sein de notre projet de master ―Étude ethnographique et terminologique des papillons juruna pour des contributions terminographiques‖. Un tel projet s'avère interdisciplinaire pour deux raisons. Premièrement, parce qu'il expose les objectifs de comprendre, documenter et décrire des rôles linguistiques, mythicoculturels et les autres savoirs et pratiques des indigènes juruna en ce qui concerne les animaux que nous appelons de ―papillons‖, pour échanger sur la meilleure manière d'inscrire ces ―insectes‖ dans la microstructure d‘un dictionnaire bilingue Juruna/Portugais. En second lieu, puisque les données générant des questions et réflexions à l'égard du référentiel de théories d‘autres domaines tels que le perspectivisme de Viveiros de Castro (1996).De plus, pour démontrer que notre objet d‘étude est un domaine de spécialité de ces indigènes brésiliens, et afin d‘accomplir les autres objectifs de cette étude, nous nous basons sur la Terminologie Ethnographique de Fargetti (2018), sur des recherches d‘Ethnoentomologie - tels ceux de Costa Neto (2004), aindsi que sur la théorie conceptuelle de la métaphore de Lakoff et Johnson (2002) - pour analiser si, dans l‘univers linguistique- culturel juruna, les constructions linguistiques de ce peuple à propos des ―papillons‖, ou dans les constructions linguistiques dans lesquelles ces animaux apparaissent, peuvent être considérées métaphoriques.Nous avons aussi l‘intention d‘aborder dans ce débat les modifications subies , sur le terrain, durant notre voyage à Tuba-tuba (près de la voie BR-80, dans l‘État du Mato Grosso) dans la méthodologie que nous avions programmée, car il ne nous a pas été possible de réaliser, par exemple, les abattages des papillons capturés momentanément dans leur habitat naturel avec l‘aide des juruna (manuellement ou au moyen d'un ―puçá‖), pour les photographier et ensuite les libérer. Tous les documents photographiques ont été identifiés par un spécialiste de la communauté avec les termes et les histoires mythiques en juruna. De plus, il convient encore de mentionner que les définitions encyclopédiques et terminolographiques montrées ici sont des prototyques qui seront débattues et révisées avec les locuteurs natifs Juruna dans un deuxième voyage à Tuba-tuba ou lors de réunions en ligne. Mots-clés: lexique, langue juruna, papillons. LISTA DE FIGURAS Figura 1 Triângulo semiótico................................................................................... 58 Figura 2 Ilustração das margens de um lepidóptero imaturo................................... 99 Figura 3 Ilustração de banda transversal de ganchos de um lepidóptero imaturo... 99 Figura 4 Vistas lateral e dorsal de uma lagarta........................................................ 100 Figura 5 O sistema folk de classificação universal................................................... 116 Figura 6 Critérios de distinção juruma para ―borboletas‖ e classificação ocidental................................................................................................... 139 LISTA DE DESENHOS Desenho 1 Partes e funções do aparelho bucal de lepidópteros........................... 96 Desenho 2 Partes de uma pata de lepidóptero....................................................... 97 Desenho 3 Tipos de possíveis processos cuticulares externos.............................. 101 Desenho 4 Ilustração de um juruna (humano prototípico) indo flechar o veado... 111 Desenho 5 O veado que cantava e dançava ao redor do rio................................. 111 Desenho 6 Ilustração de duas nasusu no céu......................................................... 114 Desenho 7 Ilustração das partes do corpo de um kamaperuperu.......................... 118 LISTA DE FOTOS Foto 1 Vista da beira do Rio Xingu...................................................................... 25 Foto 2 Vista da Aldeia Tuba-tuba......................................................................... 26 Foto 3 Telhado tradicional de casa juruna............................................................ 28 Foto 4 Casa em construção................................................................................... 28 Foto 5 Aldeia Tuba-tuba....................................................................................... 29 Foto 6 Vista microscópica de lagarta com processo cuticular pinacular.............. 101 Foto 7 Lagarta com verrículas.............................................................................. 101 Foto 8 Lagarta com verrugas................................................................................ 102 Foto 9 Borboletas popularmente conhecidas como olho-de-coruja..................... 121 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Partes do corpo de um kamaperuperu conhecido como olho-de- onça............................................................................................................ 118 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS FCLAr Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara FUNAI Fundação Nacional do Índio Linbra Grupo de Estudos de Línguas Indígenas Brasileiras TCT Teoria Comunicativa da Terminologia TE Terminologia Etnográfica TGT Teoria Geral da Terminologia Unesp Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ Sumário 1Introdução................................................................................................................. 14 2 A relevância do estudo de saberes indígenas brasileiros quanto às línguas autóctones e a conhecimentos tradicionais divididos em campos específicos... 18 2.1 Problemas em estudos sobre índios brasileiros.................................. 18 2.2 Caminhos teórico-metodológicos novos quanto ao estudo do léxico de línguas indígenas brasileiras........................................................ 21 2.3 Desafios que ainda persistem no estudo da área do léxico e sua relevância sócio-científica para as comunidades estudadas........................ 24 2.4 Sobre os juruna...................................................................................... 25 2.5 Justificativas para o estudo e a documentação de insetos..................... 30 2.6 Relevância de estudos sobre léxico....................................................... 31 3 Aporte teórico.................................................................................................. 39 3.1. A relação entre signo e referente: entre a experiência com um mundo empírico ―anterior‖ à língua e o mundo construído pelo idioma falado por dada comunidade........................................................................ 39 3.1. 1. Inovações do léxico e ―limites‖ entre léxico e gramática............ 54 3.1.2 Explicitando alguns conceitos: sinonímia, significante e significado, homonímia e polissemia, tipos de lexias, partes estruturais de obras sobre o léxico, tipos de definição............................................. 56 3.2 Embamentos teóricos de nossa metodologia......................................... 65 3.2.1 As Ciências do Léxico: onde alocar a Terminologia Entnográfica de Fargetti (2018)?.................................................................. 67 3. 2. 2 ―Falando‖ sobre metáforas.............................................................. 74 3. 2. 3 A relevância da Etnoentomologia................................................ 75 3. 2. 4 Como um eu se constrói a partir de um Outro e como o enxerga.................................................................................................... 81 3. 2. 5 Os critérios da nossa entomologia para classificar borboletas..... 94 4 Metodologia..................................................................................................... 105 5 Resultados e Discussão................................................................................... 110 6 Considerações finais........................................................................................ 135 Referências................................................................................................................. 140 Bibliografia................................................................................................................ 147 Apêndices................................................................................................................... 150 Apêndice A............................................................................................................. 151 14 1. INTRODUÇÃO Este texto é um dos resultados das investigações e considerações desenvolvidas durante dois anos no projeto ―Estudo etnográfico e terminológico das borboletas juruna para contribuições terminográficas‖ (realizado de fevereiro de 2017 a maio de 2019), cujos objetivos principais abarcaram não só a compreensão, como também a posterior descrição dos saberes e práticas juruna relativos aos animais conhecidos por nós não-índios como ‗borboletas‘. Ou seja, aqui se apresentam algumas conclusões a que pudemos chegar. A escolha do objeto de estudo deveu-se primeiramente ao anseio de tentar sanar as lacunas no estudo realmente científico de elementos relativos à cultura indígena de modo geral (e à juruna, de modo mais específico) e de fatores de ordem sócio-histórica que colocam em risco a divulgação de saberes e práticas de populações que olham para o mundo de maneira distinta da nossa sociedade ocidental não-indígena. Entre esses fatores está a redução dos habitantes de comunidades tradicionais seja por genocídio, seja por aglutinação dos autóctones à comunidade circundante aos quilombos, aldeias, assentamentos e construções ribeirinhas, e consequente diminuição dos que ainda falam fluentemente a língua originária de seu povo, tendo em vista que muitos acabam abandonando-a em prol da língua majoritária, o que se reflete em nosso território infelizmente no uso exclusivo do português. Pretendeu-se também contribuir com a montagem de um banco de dados mais amplo que poderá ser útil ao Dicionário bilíngue Juruna-Português que vem sendo elaborado por nossa orientadora. Em outras palavras, por um lado, os objetivos gerais desta dissertação compõem-se no levantamento e análise etnográfica dos insetos lepidópteros com antenas de variados formatos, entre eles as claviformes (popularmente conhecidos como ―borboletas‖) presentes na aldeia juruna Tuba-Tuba (localizada no Parque Indígena Xingu no estado do Mato Grosso). Nosso intuito é apresentar mais uma contribuição aos trabalhos da área – com os quais pretendemos dialogar - por meio da compreensão da importância cultural desses insetos para os indígenas em questão e do desenvolvimento de investigações no campo da Terminologia que preencham as lacunas de pesquisas do léxico das línguas indígenas brasileiras que não apresentam embasamento teórico adequado e que não dialogam com os conhecimentos de nossa sociedade conhecidos como ―Etnoentomologia‖. Por outro lado, de modo mais específico, pretende-se apresentar para este conhecimento tradicional juruna caminhos de aplicação terminográfica; observando também 15 sua classificação própria a fim de compreender pontos de contato com a classificação não- indígena; e, por fim, dialogar com a pesquisa de nossa orientadora ―Uma proposta de obra lexicográfica para os juruna/yudjá do Xingu‖ (dentro da qual nosso projeto se insere), discutindo terminograficamente a maneira pela qual as denominações para as ―borboletas‖ juruna poderiam ser lematizadas. Para terminar estas considerações introdutórias, passemos a discorrer sobre a estrutura desta dissertação. Abaixo são listadas as motivações e justificativas da pesquisa, cujo embasamento teórico é apresentado na seção 2. Na seção 1, justificamos a escolha do escopo do trabalho, explicitando a importância de se estudar o léxico das línguas humanas naturais inclusive terminologicamente (sobretudo para aquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade ou em risco de extinção). Também apresentamos justificativas para o estudo e documentação dos espécimes conhecidos pela nossa ciência biológica atual como ―insetos‖. Nesta mesma seção, discorremos sobre avanços e contribuições que o Grupo LINBRA (Grupo de Estudo das línguas Indígenas brasileiras) do qual fazemos parte vêm dando na área – na contramão de listas e anotações diversificadas, inconsistentes e errôneas do léxico de idiomas indígenas autóctones. Por fim, falamos ainda do povo juruna no que concerne à sua localização atual, a costumes que os singularizam frente a outros povos indígenas e a seu idioma. Na segunda seção, trazemos os aportes principais deste estudo que são pesquisas na área da Entomologia (e na ―Etnoentomologia‖), na Teoria Conceptual da Metáfora de Lakoff e Johnson (2002) e a Terminologia Etnográfica. Também abordamos a problemática por trás da nomeação (tangenciando a relação entre língua e cultura), bem como a relação entre o estabelecimento de signos linguísticos e os referentes na realidade extralinguística de tais signos, afirmando que a relação entre os significantes linguísticos e seus elementos ―empíricos‖ nomeados é complexa, pois ao mesmo tempo em que fomos entrando em contato com os entes da ―realidade‖ onde habitamos e os nomeando, tal nomeação – como já alertava Saussure (2012) – não é apenas um rótulo. É de nossa opinião que os entes em si existem antes de serem nomeados numa dada língua, mas seus nomes só fazem sentido em oposição aos dados nessa mesma língua a outros entes. Nesse sentido, concordamos com as ideias saussurianas apenas em partes. Para chegarmos até a Terminologia Etnográfica, fazemos um traçado histórico das mudanças pelas quais passou a Terminologia e apresentamos conceitos básicos que serão norteadores das análises e também da proposição dos verbetes (como homonímia e sua 16 diferença em relação à polissemia, entrada, equivalentes, partes e estruturas constituintes de uma obra lexicográfica). Ainda na seção de Aporte teórico, discorremos sobre as asserções de Campos (2001) sobre certas nomeações inadequadas aos saberes de povos minoritários e conhecimentos tradicionais e folk. Um último assunto tratado são as interfaces de nosso estudo com teorias atuais da área das Ciências Sociais, como o perspectivismo de Viveiros de Castro (1996) e Lima (1996). Já a Metodologia de Trabalho é descrita na seção 3 (onde constam obviamente as etapas da pesquisa), antes da discussão dos resultados (parte na qual também justificamos a epígrafe que pode parecer estranha a alguns leitores) e das considerações finais. Cabe salientar, por fim, que os dados coletados demonstram que as características utilizadas pelos juruna para a classificação dos animais estudados não são as mesmas que as nossas e o que nós denominamos como ―borboleta‖, representa, para eles, três animais aparentados, porém com importância cultural e periculosidade distintas – como demonstramos, mais detalhadamente na seção 4. 18 2 A RELEVÂNCIA DO ESTUDO DE SABERES INDÍGENAS BRASILEIROS QUANTO ÀS LÍNGUAS AUTÓCTONES E A CONHECIMENTOS TRADICIONAIS DIVIDIDOS EM CAMPOS ESPECÍFICOS Nesta seção, apresentamos como questões iniciais problemas que a nosso ver precisariam ser superados e que justificam a escolha do tema de nossa pesquisa, explicitando sua relevância. Em outros termos, o movimento inicial desta seção gira em torno da tentativa de justificar a escolha do escopo do trabalho, trazendo razões e justificativas para o estudo e documentação do léxico das línguas humanas (de línguas de populações minoritárias como as indígenas), da Terminologia e ressaltando também a importância de averiguações de como os insetos são percebidos e utilizados pelas diferentes sociedades. 2.1 Problemas em estudos sobre índios brasileiros Iniciamos retomando as palavras de Seki (1999; 2000), para quem, até pouco tempo, muitas averiguações sobre o léxico e demais elementos culturais de indígenas brasileiros não passavam de simples listas de palavras ou averiguações com notação diversificada, inconsistente e até mesmo errônea e, infelizmente, consideravam o povo em estudo como mero fornecedor de informações. Tudo isso contribuía, de acordo com a autora, para um apagamento da figura do índio na história e cultura brasileira; apagamento este que se sustentava, inclusive, por discursos falaciosos de que o Brasil seria não majoritariamente lusófono, mas sim monolíngüe. Nesse mesmo sentido, Voigt (2015), Minardi (2012) e Neves e Silva (2013) apontam uma falta de matérias e reportagens que abordem a cultura e a história das populações indígenas, seus problemas de saúde e os conflitos por terras contra empreiteiras e grandes fazendeiros. Ou seja, os autores muito acertadamente denunciam que na mídia em geral costuma haver apenas discursos que silenciam o índio enquanto sujeito empírico, já que ele ou não tem voz nem para apresentar suas necessidades (que são apresentadas por porta-vozes como a FUNAI, a Igreja ou o Governo) ou acaba sendo reduzido à única imagem de um personagem genérico (caracterizado injustificadamente como ―violento‖, ―retrógrado‖, ―antropófago‖), enquanto todas as múltiplas sociedades indígenas brasileiras acabam sendo omitidas. Além disso, há um apagamento também nos materiais didáticos, pois – retomando Fargetti e Miranda (2016) - a maioria dos livros do país ou tratam apenas superficialmente das 19 variedades do português – ignorando as centenas de línguas indígenas faladas no Brasil - ou classificam errônea e reducionalmente as línguas indígenas simplesmente como ―tupis‖, como se elas não compusessem nenhum outro tronco linguístico (além do Tupi). Ainda nesse mesmo sentido, Moscardini (2011) lembra que: Os indígenas no Brasil foram oprimidos durante séculos de contato e muitas tribos desapareceram, ou melhor, foram dizimadas. Essa opressão perpassa a educação escolar, com um massacre desde a época da colonização até quando eram obrigados a estudar na cidade, se deslocando para muito longe da aldeia e ainda passando por preconceitos e conflitos culturais, uma vez que o meio social etnocentrista desaprendeu a considerar a relevância dos índios em sua própria constituição. (MOSCARDINI, 2011, p. 7). Já Fargetti e Vaneti (2016) alertam também para a postura lamentável das mídias que, se por um lado, divulgam amplamente preconceitos linguísticos pautadas em opiniões pessoais de gramáticos normativos sem nenhuma formação em estudos linguísticos científicos; por outro, deixam de transmitir notícias sobre projetos de lei e políticas linguísticas sobre os idiomas indígenas locais. Poucas vezes, foram divulgadas em telejornais, por exemplo, as várias tentativas de integrar de maneira forçosa o índio à sociedade não- indígena, por meio de medidas como o Diretório dos Índios, instituído pelo Marquês de Pombal em 1755, que proibia o ensino bilíngue entre as línguas indígenas e o português e obrigava o uso exclusivamente do português, atribuindo à Língua Geral um caráter negativamente ―diabólico‖. Além disso, Guimarães Rocha (1984) atesta que julgamentos evolucionistas com relação ao indígena não são de hoje, pois do ―selvagem‖, ―primitivo‖, ―pré-histórico‖, ―antropófago‖ e ―inferior‖ do período do ―Descobrimento do Brasil‖ (quando os portugueses se consideraram ―num estágio mais adiantado‖), o índio brasileiro teria, de acordo com o referido autor, mais tarde sido nomeado como a ―criança‖, ―o inocente‖, ―infantil‖, uma ―alma virgem‖, que precisaria ser protegida pelo catolicismo e, já na Independência, o ―corajoso‖, ―altivo‖, ―cheio de amor à liberdade‖. Em relação a esse período jesuítico, Gambini (1988) confirma que: Os jesuítas acreditavam que no Brasil encontrariam seres sub-humanos e foi exatamente para transformá-los em algo melhor que vieram para cá. [...] a imagem do homem primitivo é tão velha quanto a humanidade, profundamente gravada na psique através de eras seja como essência do que somos ou como terrível memória do ponto de partida. Do ponto de vista estreito e distorcido de uma civilização em gradual evolução, a condição primordial do hominida, num movimento contrário à marcha da História, foi sendo progressivamente empurrada para trás até fixar-se como horrenda imagem de pecado original, o abominável ponto zero ao qual não se deve retornar jamais. Civilização seria então uma linha reta em evolução perene a 20 partir desse ponto, sempre adiante e para cima. A humanidade civilizada não cultua sua origem ancestral, e sim tenta, o melhor que pode, esquecer a vergonha de um passado tão baixo. O próprio desenvolvimento da consciência e desse formidável ego que tanto orgulho nos causa é uma vitória sobre a inconsciência do homem primitivo – e os que demoram a crescer ou perdem o trem da História poderiam muito bem desaparecer do mapa ou, havendo boa-vontade, ser ajudados a se atualizarem (GAMBINI, 1988, p.121-122). Tal dificuldade humana em aceitar o diferente e ter que considerá-lo ―menor‖ ou até patologizá-lo para creditar a própria condição, vista como ―normal‖ (mas que- como dito anteriormente – não passa de uma construção sócio-histórico-ideológica), já foi alvo de crítica de vários outros autores. Entre eles, poderíamos citar Skliar (1999), veiculador do pensamento segundo o qual os sistemas dominantes, até para manter seu poder, já estipulariam nomenclaturas para designar quem neles não se encaixa, pressupondo (e também criando) de antemão excluídos que passam a ser taxados não apenas como ―outros‖, mas também como uma ―alteridade deficiente‖ (SKLIAR, 1999) em relação a esse sistema que seria ―saudável‖, ―normal‖ e, por isso, deveria ser mantido – o que configura, num nível abstrato, um eu problemático que não se sustenta por si mesmo e que precisa se definir diferencialmente através de um outro que lhe seria ―inferior‖. Nessa esteira de criticar posicionamentos como este, Larrosa e Pérez de Lara (1998) já comentavam que: A identidade do outro permanece como que reabsorvida em nossa identidade e a reforça ainda mais; torna-a, se possível, ainda mais arrogante, mais segura e mais satisfeita de si mesma. A partir desse ponto de vista, o louco confirma e reforça nossa razão; a criança, nossa maturidade; o selvagem, nossa civilização; o marginal, nossa integração; o estrangeiro, nosso país; e o deficiente, a nossa normalidade (LARROSA e PÉREZ, 1998, p. 8). Ora, nessas taxações excludentes e preconceituosas vemos concretizados, e infelizmente utilizados de modo não muito positivo, a questão de valor linguístico e também o caráter criacional das linguagens humanas, pois – nestes casos - ―[...] a alteridade resulta de uma produção histórica e lingüística, da invenção desses Outros que não somos, em aparência, nós mesmos. Porém, que utilizamos para poder ser nós mesmos.‖ (SKLIAR, 1998, p. 18). 21 2. 2 Caminhos teórico-metodológicos novos quanto ao estudo do léxico de línguas indígenas brasileiras De qualquer modo, apesar dos vários desrespeitos impingidos a grupos minoritários como os índios e problemas com algumas pesquisas mais antigas que foram descritos na subseção anterior, Seki (2000) afirma que nos estudos linguísticos atuais o tema teria saído desse quadro inicial de escassez e falta de qualidade, na medida em que teria ocorrido na década de 80 um fenômeno de aumento no número de linguistas que passaram a estudar os idiomas dessas populações, culminando num aumento dos trabalhos científicos e com respaldo teórico-metodológico adequado e nas várias instituições no país com pesquisadores (brasileiros e estrangeiros) dedicados a essa área, desenvolvendo pesquisas e congressos, palestras e simpósios sobre populações indígenas. Um desses pesquisadores é Fargetti, que, desde 1989, tem se debruçado sobre a descrição científica da língua juruna, do tronco tupi, falada pelo povo juruna do Mato Grosso no Xingu. Ela responde por diversos projetos como, por exemplo, ―Uma proposta de obra lexicográfica para os juruna/yudjá do Xingu‖, por meio do qual se propôs realizar estudo de campos temáticos, restritos, por questões metodológicas e de infraestrutura a: aves, plantas, alimentação, parentesco e cultura material. Esta pesquisa sobre as borboletas se insere em tal projeto, tendo dele recebido apoio financeiro para viagem a campo. Obviamente, além de possuir relevância para estudos histórico-comparativos, lexicográficos e para a Linguística Geral, inserida no Grupo LINBRA (Grupo de Pesquisas de Línguas Indígenas Brasileiras-CNPq), a pesquisa de Fargetti já teve resultados anteriores que contribuem para a discussão sobre os estudos do léxico de línguas indígenas, ora fazendo metalexicografia, ora analisando aspecto do léxico de uma língua específica, ora propondo aplicação lexicográfica/terminográfica, e também apontando caminhos metodológicos novos. Entre tais resultados, podemos citar Berto (2010, 2013), Mondini (2014), Silva (2013), Moscardini e Fargetti (2018), Fernandes (2016), Vaneti (2017), Mateus (2017) e Fernandes; Vaneti; Mateus e Fargetti (2018). A primeira destes autores realizou, de maneira monográfica, não apenas uma documentação, como também análise e discussão de itens lexicais referentes ao campo semântico das ―aves‖. Primeiramente, ela recoletou nomes de aves em juruna para checar os resultados que haviam sido anteriormente obtidos por Fargetti (em 2007). A fim de evitar a consulta a poucos informantes e a utilização de materiais com ilustrações muito pequenas, Berto (2013) afirma ter realizado uma nova coleta (em 2008 e 2009) junto a vários homens 22 juruna, com o auxílio do conteúdo do projeto ―Brasil 500 aves‖, disponível em CD-ROM, que foi acessado por meio de um notebook, levado a campo e alimentado por um gerador a diesel. Segundo ela, ―por meio do programa, foram apresentadas aos informantes as ilustrações de cada ave, a descrição de seu hábitat, hábitos, etc. (selecionando-se, principalmente, as informações solicitadas pelo falante) e sua vocalização.‖ (BERTO, 2010, p. 8). Posteriormente, os dados obtidos em suas duas idas a campo foram sistematizados e comparados, de maneira a analisar os processos morfológicos envolvidos nos nomes para aves na língua indígena em questão. Por meio de tais procedimentos, a referida autora concluiu que, para a área do léxico pesquisada, há uma inter-relação de conhecimentos cosmológicos juruna com outros referentes a questões ecológicas e morfológicas das aves encontradas na região (como tamanho, coloração, habitat natural e alimentação), e que dentre os recursos para a formação dos nomes para aves em juruna estão a reduplicação de partículas, o uso de um ―simbolismo sonoro‖ em onomatopéias e de itens lexicais formados por um ou mais radicais. (BERTO, 2013) Já Mondini (2014), utilizando-se de entrevistas semiestruturadas e de observação participante, realizou um estudo que possibilitou a organização de um vocabulário do léxico juruna, focalizando o campo semântico da culinária de tal povo; vocabulário este que contou com 72 verbetes que não se limitaram a uma mera lista de palavras reduzida a entradas e equivalentes, mas que contemplavam remissões, transcrições fonéticas, informações morfológicas, culturais e enciclopédicas e até mesmo ilustrações das entradas. Fernandes; Vaneti; Mateus e Fargetti (2018), por sua vez, tratam de um dos mais recentes caminhos abertos pelo Grupo de pesquisadores acima citado, a saber: o desenvolvimento de um banco de dados lexical que abrangerá os resultados da coleta feita por vários pesquisadores num número considerável de obras do léxico de idiomas indígenas, buscando contemplar temas como frutas comestíveis, cultura material, termos de parentesco, musicais e cosmológicos. Os autores também expõem a metodologia empregada em suas iniciações científicas departamentais realizadas junto ao Grupo Linbra na FclAr. Trata-se de pesquisas que resultaram, entre outras coisas, em monografias. Dentro destes resultados podemos alocar o estudo metalexicográfico desenvolvido por Fernandes (2015), que analisa como dois dicionários bilíngues de línguas indígenas brasileiras (Uma proposta de dicionário para a língua ka‟apór de CALDAS (2009) e A língua dos yuhupdeh: introdução etnolinguística, dicionário yuhup-português e glossário semântico- gramatical de SILVA & SILVA (2012)) registram itens lexicais referentes ao campo semântico da cosmologia, averiguando se são especificados pelos dicionaristas os critérios 23 lexicográficos, decisões metodológicas quanto à macro e microestrutura utilizadas nas obras, se é possível verificar a presença de transcrições fonéticas, informações morfológicas, sintáticas e culturais; ou seja, se as definições das entradas são adequadas à realidade linguístico-cultural dos povos indígenas abordados, se elas são suficientemente claras ou demandariam a presença de ilustrações e se estas ilustrações – nas raras vezes em que estas aparecem – realmente contribuem para que o consulente compreenda o verbete. Outro resultado das investigações do Grupo Linbra pode ser verificado na monografia de Mateus (2017) que se constitui de uma análise metalexicográfica de dicionários de idiomas indígenas brasileiros dividida em seis partes e três apêndices que ilustram a metodologia utilizada e o tratamento dos dados. No entanto, diferindo de Fernandes (2015), Mateus (2017) pretendia: [...] averiguar não só se (e de que maneira) neles estão presentes as realizações possíveis da música dos povos indígenas tematizados, mas também se os lexicógrafos conseguiram chegar a abstrações, alcançando os significados de determinada realização no sistema musical do povo em estudo.‖ (MATEUS, 2017, p. 5). Para tanto, o autor valeu-se de um corpus com 32 propostas lexicográficas que foram lidas em sua totalidade a fim de encontrar não termos cosmológicos, mas sim elementos musicais nos verbetes (nas entradas, frases-exemplo, nas imagens e/ou nas remissivas). Quando tais elementos eram encontrados, recortavam-se integralmente e na forma de imagens os verbetes nos quais eles estavam inseridos, com o auxílio do editor de imagens Macromedia Fireworks 8. Posteriormente, as informações das imagens (arquivadas em pastas com os nomes de suas línguas de origem) foram digitadas numa planilha do Excel dividida em várias colunas e apenas um link para elas foi adicionado nas tabelas. Por meio de tal procedimento, ele chegou a coletar em torno de 2000 verbetes potencialmente concernentes à música e chegou à conclusão de que a maioria das obras não pode ser denominada dicionário, sendo, na verdade, uma ―lista de palavras‖ que apresenta tão somente a entrada em língua indígena e o equivalente em português – estrutura esta que dificultava muito a apreensão do sentido dos itens lexicais e que justifica o caráter de potencialidade comentado linhas acima. Além disso, o pesquisador pôde observar que, de modo geral, em poucas dessas obras há bibliografia, anexos, apêndices e explicação das abreviaturas utilizadas. Em outras palavras, infelizmente, há predominantemente uma escassez de informações (em relação a notas sobre a cultura e descrições linguísticas), bem como uma ausência de ilustrações das entradas. Desta sorte, Mateus (2017) afirma que grande parte do corpus analisado não aborda em profundidade as realizações possíveis da música do povo indígena tematizado nas obras lexicográficas e 24 exatamente por isso não consegue chegar a abstrações, como qual seria o significado de uma dada realização específica no sistema musical desse mesmo povo e como esta se oporia a outras realizações possíveis. 2.3 Desafios que ainda persistem no estudo da área do léxico e sua relevância sócio- científica para as comunidades estudadas Apesar dos avanços das atuais pesquisas científicas (como as citadas anteriormente), ainda há questões a serem debatidas e até sanadas, pois, de acordo com Corbera Mori (2013, p. 98-99), muitas línguas indígenas do Brasil estão em situações vulneráveis o que reafirma a necessidade de estudo. Para várias comunidades, é alarmante o número reduzido de indígenas que ainda falam fluentemente sua própria língua. Para se ter uma idéia, ―os Yawalapiti (Arawak) conformam uma sociedade de 222 pessoas, das quais somente 5 continuam falando a língua materna [...]‖ (CORBERA MORI, 2013, p. 98-99). Por esses motivos, tanto Corbera Mori (2013) quanto Seki (1999; 2000) reiteram a importância e relevância de se estudar línguas indígenas brasileiras principalmente no que concerne a dois aspectos: o ―científico‖ da melhor compreensão da natureza da linguagem humana e de adaptações em certos modelos linguísticos que se mostrarem limitados ao serem confrontados com idiomas indígenas, e também o ―social‖, em respostas às comunidades indígenas envolvidas nas pesquisas, por meio de medidas práticas (como ―elaboração de materiais didáticos para as escolas indígenas, a codificação das línguas em termos de elaboração de gramáticas, dicionários, coletâneas de textos diversos incluindo as etnohistórias‖ (CORBERA MORI, 2013, p. 105-107)) que contribuam não apenas para a preservação, como também, em alguns casos, para a revitalização de elementos linguístico- culturais dessas populações. Ademais, como atestam Seki (1999; 2000), Corbera Mori (2013) e Berto (2010), o estudo, bem como a documentação científica de línguas indígenas brasileiras adquire relevância na medida em que pode contribuir com o conhecimento linguístico, com o debate de teorias e com uma melhor compreensão da linguagem humana. E esse é justamente um dos objetivos que nortearam nossa pesquisa, como expomos em seguida. Na esteira dos pensamentos trazidos nos últimos parágrafos, o projeto ―Estudo etnográfico e terminológico das borboletas juruna para contribuições terminográficas‖ além de dialogar com pesquisas realizadas sobre línguas brasileiras, pode permitir que a língua juruna continue a ser documentada (em dicionários, livros didáticos, gravações) e descrita, o que é valorizado 25 inclusive por seus próprios falantes, haja vista que a população juruna- embora tenha tido aumento nos últimos anos (FARGETTI (2015))- é reduzida, e corre risco de perda linguística pela possibilidade de substituição paulatina pelo português, que, no Xingu, é a língua franca, de contato. Como salienta Peixotto (2013): Criado em 14 de Abril de 1961 pelo Decreto nº 50.455 e regulamentado pelo de nº 51.084 de 31 de Julho de 1961, sancionados pelo presidente Jânio Quadros, o então Parque Nacional do Xingu (doravante, PIX), situado no nordeste do estado do Mato Grosso, possuía uma área de 22.000 km² e contava com dois Postos de assistência e atração de grupos indígenas: o Posto Leonardo Villas Boas (em homenagem ao mais novo dos irmãos Villas Boas, falecido em 1961 devido a problemas cardíacos) e o Posto Diauarum. Hoje, o Parque Indígena do Xingu, conta com uma área de mais de 27.000 km² e abriga etnias que compreendem grande variedade de línguas representantes de três troncos linguísticos e outras famílias isoladas: Aweti, Kamaiurá (tupi-guaraní), Mehinako, Waura, Yawalapiti (aruak), Kalapalo, Kuikuro, Matipu, Nahukwá (carib) e Trumai (língua isolada). Além desses povos, Ikpeng (carib), Kaiabi, Juruna (tupi), Panará, Suyá, Tapayuna e Txukahamãe (macro-jê) também habitam ou já habitaram (Panará, Tapayuna e Txukahamãe) o parque. A área mais ao norte do parque sempre esteve sob influência dos Suyá, mas desde o último quarto do século XIX recebeu os juruna, povo canoeiro que vem migrando do baixo curso do rio até que, em 1948, se estabeleceu definitivamente no parque. (PEIXOTTO, 2013, p. 9-10). Foto 1: Vista da beira do Rio Xingu Fonte: fotografia feita em campo por Mateus (2017) Aliás, referindo-se ao povo juruna, é necessário trazer asserções para que o leitor conheça tal povo. 2.4. Sobre os juruna Para iniciar, cabe dizer que, embora fossem em torno de 48 pessoas na década de 60; hoje, segundo Fargetti (2015; 2017), além dos habitantes do território original do povo no Pará (que infelizmente em sua maioria perderam sua língua indígena, mas que vem ultimamente tentando recuperá-la com os descendentes mato-grossenses), os juruna são cerca 26 de 500 pessoas que vivem no Parque indígena do Xingu (Mato Grosso) entre o Posto Indígena Diauarum e a BR-80 nas aldeias Maitxiri, Tubatuba, Paqsamba, Pequizal, Pakayá, Parureda, Mupadá e nos PIs Diauarum e Piaraçu. Eles falam (sobretudo os habitantes do Mato Grosso) a língua tonal juruna do tronco tupi, família juruna (composta pelos idiomas juruna, xipaia e manitswa, sendo que este último, infelizmente, não tem mais falantes) e o local onde habitam é um misto de cerrado e floresta amazônica: Foto 2: Vista da Aldeia Tuba-tuba Fonte: Fotografia feita em campo por Mateus (2017) Aliás, no que toca a este assunto, cabe ressaltar que: A localização do povo juruna nem sempre foi o Xingu. No século XVII [...] encontrava-se em uma ilha entre o Pacajá (Portel) e o Parnaíba (Xingu) [...] no extremo norte do atual estado do Pará. A partir de então, os juruna foram contatados por missionários e por expedições de resgate, que tentaram catequizá-los ou escravizá-los; em consequência, passaram a migrar em direção ao sul. Durante essa migração, feita em etapas, subindo o rio Xingu, eles tiveram conflitos com grupos indígenas que habitavam a região, como os kayapó, suyá, trumai entre outros. Steinen menciona que, em 1884, grupos juruna se encontravam no médio Xingu, e Coudreau indica essa mesma localização em 1896. No começo do século XX, devido ao avanço de seringueiros na região, eles recuaram mais a montante do rio Xingu, estabelecendo-se nas proximidades da cachoeira Von Martius. Quando entraram em contato com os irmãos Villas Bôas, em 1949, encontravam-se junto à foz do rio Manitsawá, e desde então permaneceram nas proximidades dessa mesma região, em área vizinha aos atuais postos indígenas (PIs) Diauarum e Piaraçu. Em 1966, quando visitados pela antropóloga Adélia Engrácia de Oliveria, os juruna tinham sua população distribuídas em duas aldeias: a de Bibina e a de Dáa. Um ano depois, estavam concentrados somente na primeira. Segundo relato de um juruna, a fundação da aldeia Tubatuba data de 1982, quando se mudaram do Manitsawá para a atual localização no rio Xingu. Havia nessa época a aldeia Saúva, mas em 1988 os juruna concordaram sobre a conveniência política da reunião do grupo em uma só aldeia, fixando-se todos em Tubatuba [...] A aldeia Tubatuba ainda existe, mas como entreposto, local da escola e de poucas moradias, pois desde 2008 os juruna passaram a habitar, em um terreno atrás da antiga aldeia, a sua nova aldeia, Maitxiri. [...] (FARGETTI, 2017, p. 27-29). Pode-se ressaltar também que, de acordo com Fargetti (2007; 2012), a língua juruna tem acento deduzível a partir do tom (sendo que este último – tal qual a duração vocálica- é 27 fonologicamente contrastivo), já que – como ela salienta - será tônica a primeira sílaba de tom alto da esquerda para a direita ou a última, caso todos os tons sejam iguais. Essa mesma língua indígena apresenta - ainda de acordo com a mesma linguista- fonemicamente dezoito consoantes (doze obstruintes - divididas entre duas glotais (// e //) e dez supraglotais (//, //, //, //, //, //, //, //, // e //) – e seis sonorantes (//, //, //, //, //, e //)) e quinze vogais (cinco breves (//, //, //, // e //), cinco longas (//, //, //, // e //) e cinco nasais (/ /, //, //, // e //)). Como afirma Berto (2013): De acordo com a análise apresentada por Fargetti (2001), a língua juruna é uma língua tonal, possuindo dois tons fonológicos (um alto e um baixo), padrão silábico C(V) e processo de espraiamento da nasalidade, que ocorre da direita para a esquerda, em que o ―domínio da nasalidade é um constituinte morfológico, um radical ou um afixo e não a palavra‖ (FARGETTI, 2001, p.105). Em Juruna, os constituintes da sentença seguem preferencialmente a ordem sujeito, objeto, verbo (SOV), e tanto verbos quanto nomes apresentam processos interessantes de reduplicação. (BERTO, 2013, p. 10). Não é nosso objetivo nesse texto fazer descrições esmiuçadas sobre a morfossintaxe da língua juruna, até porque – para detalhes sobre o assunto – o leitor pode consultar o excelente texto de Fargetti (2001). Diante disso, quanto à estrutura da língua (no que tange à formação de palavras, às classes de palavras e a colocação dos itens lexicais em frases), vamos nos limitar à citação de Berto (2003) trazida anteriormente, até porque ela traz questões que serão úteis ao nosso texto, como demosntramos mais abaixo. Além disso, consoante Fargetti (2015; 2017), tal povo possui cantigas de ninar, mitos e outros costumes próprios. Entre essas características que os singularizam, poderíamos citar o fato de que, em ocasiões festivas, os homens colam pequenas penas em seu corpo com resina de árvore. Nestas ocasiões, eles enfeitam-se com um chumaço de algodão pintado de vermelho no meio de cabeça (como alusão a uma fruta da época em que eles viviam no Pará que representava o Sol), dividindo o cabelo ao meio e colando penas de marreco com a mesma resina na linha divisória dos fios capilares. Outros elementos característicos seriam – segundo a mesma autora- o caxirí (bebida fermentada feita à base de mandioca ou de batata-doce mascada pelas mulheres) e as pinturas corporais em formatos que lembram labirintos, notas musicais ou volutas (diferente de outros povos que têm pinturas corporais em formatos retos). Ainda a esse respeito, pode-se dizer, por fim, amparando-se em Fargetti (2015), que as mulheres juruna são exímias ceramistas, produzindo belas panelas e tigelas com apliques zoomórficos (lembrando as patas, a cabeça e os rabos de animais) e que os homens entalham 28 banquinhos tradicionais também zoomórficos (de onça, tamanduá e tracajá) que são pintados pelos membros femininos das aldeias. No que se refere aos estilos de construção das moradias desse povo, há - como ilustram as imagens a seguir - em Maitxiri casas: [...] com cobertura de sapé e paredes de troncos de árvores, mas também há casas de farinha com cobertura de telha de amianto. Isso também é observado em Tubatuba, que, além dessas, também tem casas de palafita, feitas pelo governo do estado quando da construção da escola de alvenaria. Essas não são usadas como moradia permanente, apenas como hospedagem. (FARGETTI, 2017, p. 29). Foto 3: Telhado tradicional de casa juruna Fonte: Fotografia feita em campo por Mateus (2017) Foto 4: casa em construção Fonte: Mateus (2017) 29 Foto 5: Aldeia Tuba-Tuba Fonte: Fotografia feita em campo por Mateus (2017) Uma outra questão relevante gira em torno da denominação do povo em estudo. Como comenta Peixotto (2013): O etnônimo mais conhecido dos vários povos indígenas não é, em geral, a maneira como seus membros se referem a si mesmos, mas sim o nome dado a eles pelos brancos ou por outros povos, muitas vezes inimigos, que os chamavam de forma depreciativa, como é o caso dos caiapós. Kayapó significa homens semelhantes aos macacos, em grande medida devido a certos rituais que este grupo realiza nos quais são utilizadas máscaras de macaco pelos homens. A autodenominação dos chamados caiapó é mebêngôkre que significa literalmente "homens do poço d'água‖. (PEIXOTTO, 2013, p. 22). Também lembra Fargetti (2017a) que ―muitas sociedades indígenas têm lutado para que sejam conhecidas pela sua autodenominação, como é o caso dos panará e dos ikpeng [...] que consideram os nomes dados por outros grupos indígenas, e adotados pelos não-índios, muito pejorativos‖ (FARGETTI, 2017a, p. 25). Contudo, essa não é a situação dos indígenas por nós estudados, uma vez que – como confirma Fargetti (2015; 2017a) - entre eles circula não apenas o etnônimo ‗juruna‘ (que provém do nheengatu e é empregado por outros povos autóctones do Xingu e pela comunidade não-indígena de modo geral, significando ―boca preta‖), como também a autodenominação ‗yudjá‘ (que, de acordo com Tarinu Juruna, significa segundo consta em FARGETTI (2007; 2017) ‗donos do rio‘), sendo que ao item lexical juruna não estaria embutido nenhum preconceito, haja vista que ele faz referência a uma marca que os distinguia, uma tatuagem: [...] que esse povo usava até aproximadamente 1840. Ela consistia de uma linha vertical, de dois a quatro centímetros de largura, que descia do centro do rosto a partir da raiz dos cabelos, passando pelo nariz, contornando a boca e terminando no queixo. (FARGETTI, 2017, p. 25). É por isso que - seguindo uma decisão explicitada por de Fargetti (2017a) - continuamos neste texto utilizando juruna e não yudjá, para nos referirmos tanto ao povo quanto à língua que fala, dada a inexistência de caráter pejorativo e uma tradição antiga de assim nomeá-los, tanto entre antropólogos quanto entre linguistas 30 Mas a par dessas questões já divulgadas e conhecidas da população não-índia e também dos livros bilíngues que a comunidade em questão já possui, ainda não existe um dicionário da língua juruna. Como já foi mencionado anteriormente, ele está sendo elaborado por nossa orientadora, mas este é um trabalho lento porque - tal qual se exporá a seguir – para capturar os vários ramos de especialidades de conhecimento juruna, é preciso de muitos pesquisadores envolvidos com diferentes especialistas de modo a chegar inicialmente em estudos terminológicos que culminem em contribuições terminográficas (verbetes e a obra completa em si). Nossa contribuição em si fica por conta de um primeiro contato do universo juruna sobre os ―insetos‖, como comentado abaixo. 2.5 Justificativas para o estudo e a documentação de insetos No que se refere à importância de se estudar e documentar insetos, como atestam Borror e DeLong (1988), Motta (1996) e Rafael (2012), eles compõem o maior grupo de animais da Terra, sendo que, inclusive, só no Brasil haveria provavelmente muitos espécimes ainda não catalogados, o que equivale a dizer que os estudar pode contribuir para a ampliação do conhecimento da biodiversidade do planeta. Além disso, esses mesmos autores ainda reforçam que esses animais têm não apenas uma importância econômica como também ecológica, pois acabam influenciando positiva e também negativamente. No que se refere às suas influências negativas, pode-se citar os fatos de muitos serem vetores e transmissores de doenças como dengue, elefantíase, febre amarela, chagas inclusive na pecuária (haja vista que muitas moscas botam ovos nas camadas cutâneas superficiais de mamíferos e de aves, ocasionando feridas e às vezes a morte) e de muitas formas imaturas acabarem convertendo-se em pragas sobretudo por se alimentarem de plantas, ocasionando sua devastação. Já quanto a questões positivas, seria possível citar, para fazer eco às investigações de algumas pesquisas etnoentomológicas (como COSTA NETO, 2000; 2004), os fatos de servirem de alimento, matérias-primas para adornos, fabricação de medicamentos e rituais a algumas populações, além de fornecerem mel, desempenharem grande papel na polinização e alguns deles, enquanto larvas, auxiliarem na decomposição de matéria orgânica e renovação dos solos. Acresce que, de modo mais específico, no que concerne a lepidópteros, vale ressaltar não apenas uma importância numérica, haja vista que ―[...] essa é a segunda maior ordem de 31 insetos (inferior apenas à ordem Coleoptera dos besouros), pois abrange cerca de 150.000 espécies conhecidas e descritas de borboletas e mariposas‖ (MOTTA, 1996, p. 10), como também a mesma relevância ecológica e econômica do grupo no qual estão inseridos como um todo, na medida em que podem causar – como atesta Motta (1996)- certos prejuízos ao homem, como a desfolhagem de plantas, o ataque à cera de colméias e a roupas pelas lagartas, a irritação nos olhos, na pele e até uma conjuntivite em razão a uma reação alérgica às escamas dos indivíduos adultos; uma vermelhidão local passageira ou lesões mais graves com formações de vesículas, náuseas, febre e até hemorragias quando do contato com as cerdas que estão ligadas a glândulas hipodérmicas produtoras de substâncias urticantes. Por outro lado, não se pode negar também as influências positivas dos lepidópteros, pois sua nectarivoria (processo de sucção de néctar de flores que resulta no carregamento de grãos de pólen de uma flor para outra) é responsável pela polinização de plantas; e, além disso, podem ser parasitados, servir como alimento ou suporte alimentar de outros insetos e de outros animais (até mesmo para o homem), produzir seda e serem utilizados inteiros ou somente as escamas em artesanatos (como quadros, bandejas e cinzeiros). 2. 6 Relevância de estudos sobre léxico Falando agora sobre os estudos terminológicos e a produção de obras de referência terminográficas, cabe retomar as asserções de Murakawa e Nadin (2013), para quem a globalização teria culminado em consideráveis e crescentes avanços nas áreas científico- tecnológicas como a Informática, bem como em possibilidades de abertura a mercados internacionais, colocando-nos a todo o momento – mesmo que indiretamente através das telas de aparelhos eletrônicos - em contato com discursos das mais variadas áreas de especialidade (tais como o Turismo, a Medicina, o Direito), de modo que: [...] Não podemos mais dizer que não é de nosso interesse os termos usados na Economia, por exemplo, pois diariamente recebemos inúmeras informações nas quais pululam palavras como inflação, déficit, PIB, cotação, Bolsas que fecham em alta ou baixa... (MURAKAWA e NADIN, 2013, p. 8). Nesse panorama, a Terminologia viria, ainda segundo os mesmos autores, adquirindo uma relevância e consolidação cada vez mais crescente e evidente, na medida em que as referidas transformações sociais implicariam na criação de novos conceitos, novas unidades léxicas para os designar e também no alargamento semântico de itens já existentes que passariam a adquirir novos valores especializados. 32 Para finalizar, resta comentar sobre o que justificaria se estudar cientificamente o léxico. Como já havíamos afirmado em Mateus (2017), na esteira das considerações de Seki (1999; 2000) e de Fargetti (2015), de certo modo, a área do léxico ainda carece de trabalhos embasados em um número considerável de dicionários e maiores que uma simples lista descontextualizada de palavras (do tipo entrada e equivalente ou entrada e sinônimo) que na verdade não passa de recortes ínfimos da realidade lexical da língua em questão sem descrições realmente científicas. Acrescenta-se a isso a reinante confusão terminológica que leva as editoras a nomear qualquer tipo de obra que verse sobre o léxico (e aqui inseridas muitas dessas listas) como ―Dicionário‖, sem levar em conta as especificidades dos objetos de estudos e unidades mínimas das Ciências do Léxico (que são melhor detalhadas na seção de Aporte Teórico deste texto). Uma outra questão relevante versa sobre o fato de que: [...] as pesquisas que partem do estudo do léxico biológico permitem o conhecimento dos processos de criação de palavras a partir de aspectos fonológicos, gramaticais e lexicais já existentes na língua. Assim, é possível analisar alguns recursos fonológicos – como a utilização de onomatopeias (simbolismo sonoro imitativo) no processo de formação do léxico; morfológicos, utilização de afixos, reduplicação, entre outros; e morfossintáticos – por meio da discussão sobre os compostos. Por se tratar de pesquisa que se realiza na interface existente entre língua e cultura, o aspecto semântico também é relevante, uma vez que permite estudar as relações de sentido presentes nos nomes que compõem o léxico biológico. (BERTO, 2013, p. 1). Além disso, o léxico pode ser uma grande ferramenta ou via de acesso para se chegar à cultura de um povo, não apenas no que se refere ao aprendizado de uma língua estrangeira. Vários autores (ABBADE (2006); BARBOSA (2008); GALISSON (1987); ISQUERDO, 2001; SILVA, R. (2012)) coadunam com essa opinião de que a documentação científica do universo lexical tem o potencial de registrar para a posteridade não apenas questões puramente linguísticas, mas também o olhar para o mundo, os valores, conhecimentos, práticas sociais, padrões éticos de conduta e crenças de uma sociedade, bem como os resultados dos processos de contato com outros grupos e também com inovações na cultura material, ritual e mesmo linguística. Tais questões, aliás, seriam transmitidas de geração para geração de modo um tanto quanto natural aquisional, normalmente sem a necessidade de um ensino formal (como ocorre, por exemplo, com questões aprendidas por um estudo nas variadas disciplinas de colégios). Nas palavras de Abbade (2006): Assim como Rousseau diz que ―não se sabe de onde é o homem, antes de ele ter falado‖ (ROUSSEAU, 2003), pode-se concluir que o homem só existe histórico e 33 socialmente quando houver linguagem para expressar essa história social. A linguagem faz parte da sua história. Essa linguagem é expressa por palavras e essas palavras irão constituir o sistema lexical de uma língua e, conseqüentemente, de um povo. Assim, estudar o léxico de uma língua, é estudar também a história do povo que a fala. Estudar o léxico de uma língua é enveredar pela história, costumes, hábitos e estrutura de um povo, partindo-se de suas lexias. É mergulhar na vida de um povo em um determinado período da história, através do seu léxico. Apesar de pouco estudado até então, o estudo lexical das línguas é deveras importante e necessário para desvendar os inúmeros segredos da nossa história social e lingüística, segredos estes que podem ser desvendados pelo estudo e análise do léxico existente nessas línguas em momentos específicos da história de cada povo. Língua, história e cultura caminham sempre de mãos dadas e para conhecermos cada um desses aspectos, faz-se necessário mergulhar nos outros, pois nenhum deles caminha sozinho e independente. Portanto, o estudo da língua de um povo, é conseqüentemente, um mergulho na história e cultura deste povo. No estudo do léxico de uma língua vários conhecimentos se relacionam: fonético-fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos, discursivos. (ABBADE, 2006, p. 716). Aliás, é por acreditar que, por vezes, itens lexicais não apenas refletem, mas ―denunciam‖ questões culturais da comunidade linguística responsável por utilizar tal léxico que Galisson (1987) vai postular a existência de uma lexicultura que, infelizmente, nem sempre aparece em obras lexicográficas. Para ele, o foco dos pesquisadores e mesmo dos lexicógrafos deveria ser: [...] um averiguar dos aspectos culturais contidos no, sob e disseminados pelo léxico [...] A partir dessa composição, o conceito de lexicultura privilegia a consubstancialidade do léxico e da cultura e designa o valor que as palavras adquirem pelo uso que se faz delas. [...] ao invés de isolar a cultura do seu meio natural, o autor propõe sua preservação no interior da sua própria dinâmica. O ponto de partida será o discurso do cotidiano e, por conseguinte, a proposta é de uma abordagem discursiva que integra, associa então separa os componentes da comunicação, no interior de um processo de abertura e de complementaridade. [...] O léxico passa a ser, assim, abordado como um locus privilegiado não apenas para o conhecimento, mas para o reconhecimento de significados culturais presentes em unidades lexicais culturalmente compartilhadas entre locutores nativos, mas que nem sempre se mostram transparentes para falantes de outras línguas, pertencentes a outras culturas. [...] No nosso entendimento, esse instrumento ajuda-nos a perceber que a língua não pode ser vista como uma estrutura que independe dos seus usuários. Ela confunde-se com a cultura daqueles que a utilizam. Sob esse ponto de vista, as palavras funcionam como receptores de conteúdos culturais que nelas se aderem e a elas agregam outra dimensão para além daquelas apresentadas nos dicionários. (BARBOSA, 2008, p. 33-39). Em outras palavras, segundo o mesmo autor, os signos e expressões linguísticos (alguns em construções metafóricas, usos mais conotativos, locuções mais ou menos cristalizadas e de idiomatismos) seriam em menor ou maior grau carregados de superstições, crenças, ideologias e até de preconceitos. Quando alguém diz, por exemplo, algo como ―Ele é mais burro que uma porta, uma verdadeira anta.‖ estabelece não apenas uma comparação, mas carrega os itens burro e anta (e de certo modo porta) de um sentido de ―imbecilidade‖, ―falta de tato para ouvir e lidar com o outro‖. Nesse mesmo sentido, chamar alguém de porco 34 não é apenas uma comparação com o animal, como também definição do sujeito assim denominado como ‗sujo‘, ‗sem asseio e mínimas condições de higiene‘ – o que também desvela uma valorização social por práticas de limpeza pessoal; de modo análogo ao que ocorre quando se usa o xingamento galinha. Embora para ambos os sexos isso se refira a indivíduos com hábitos de promiscuidade (vista negativamente em nossa sociedade), para um ente biologicamente masculino, a carga cultural não é tão negativa quanto seria para uma mulher, haja vista que preconceituosamente em alguns grupos de nossa sociedade existe uma valorização e um estímulo para que o homem hétero tenha um número considerável de parceiras afetivas. Mas, já que se aludiu a preconceitos encontrados em itens lexicais, vale aqui comentar que, embora realmente isso represente uma porção dos conhecimentos do léxico que, portanto, deveria adentrar numa obra lexicográfica do português, deve-se também ter o cuidado de adicionar, para o caso de um dicionário bilíngue e mesmo para monolíngues, marcas de uso concisas e transparentes para que um estrangeiro que entrasse em contato com uma acepção como essa visse claramente seu valor discriminatório e/ou chulo, pejorativo; até porque em muitos casos descrever como familiar (que deveria corresponder apenas a usos menos monitorados em situações de menor formalidade como as que ocorrem no núcleo do convívio familiar) uma questão que é, na verdade, discriminatória só dissemina o preconceito. Na verdade, isso vale não só para estrangeiros, como também para falantes nativos (daí nossa afirmação da necessidade de marcas de uso inclusive para dicionários monolíngues) porque, dado o caráter de renovação do léxico, como muito bem lembra Rey- Debove (1984), não se pode conhecer todas as palavras e nem todos os sentidos das palavras de nenhuma língua e ―não conhecemos jamais todas as palavras nem de nossa própria língua‖. (idem, ibidem, p. 57). Na visão da referida autora, do léxico total de uma língua existiria apenas uma parcela que seria o léxico comum utilizado por todos os usuários dessa língua, comum a todas as variedades linguísticas. Em suas palavras: A maioria dos usuários duma língua dominam a gramática, isto é, sabem distinguir uma frase correta duma frase incorreta, e um gramático profissional pode atingir uma competência gramatical ótima. Mas os usuários não dominam jamais o léxico, encontram em todo o decorrer de sua vida palavras desconhecidas, e nenhum lexicólogo ou lexicógrafo pode esperar adquirir uma competência lexical ótima. Deve-se isso, evidentemente, à ordem quantitativa: as regras da gramática são em número restrito, mas não as palavras que elas regem. Além disso, é o léxico que, na língua, muda mais depressa [...] Cada um de nós tem um vocabulário, componente lexical do nosso idioleto; o vocabulário dum indivíduo é único, tanto pela quantidade de palavras conhecidas como pela natureza dessas palavras. É difícil recensear as palavras dum vocabulário. Por um lado, porque nem 35 todas as palavras conhecidas pela pessoa são empregadas efetivamente na fala ou nos textos observados e, por outro lado, porque uma palavra pode ser conhecida ativamente ou passivamente: o vocabulário ativo é o que se tem o costume de empregar; o vocabulário passivo é o que compreendemos quando empregado por outras pessoas, mas que nós mesmos não temos o costume de empregar (assim certas palavras grosseiras muito conhecidas, para tomar um caso típico). (REY- DEBOVE, 1984, p. 57-58). Ademais, como todas as línguas humanas são providas de variedades, como comprovam trabalhos como os de Weirich, Labov e Herzog (2006), a carga cultural por trás de determinado item pode não ser compartilhada por toda a comunidade e nem por todas as variedades linguísticas da língua em cujo léxico aquele item se encontra, mas um tanto quanto opaca, de modo que o conhecimento tradicional imbuído por trás desse item léxico, inclusive, vira às vezes um termo, um conhecimento específico e comuns apenas a alguns especialistas. Algo muito semelhante ocorre com o conteúdo por trás dos jargões e também das gírias que não se universalizam para o todo do sistema linguístico, ficando restritas a alguns grupos (sendo, portanto, opacas para os falantes mais velhos e fora do grupo que as utiliza). Nessa mesma esteira, a carga cultural por trás das borboletas – como comentado mais pormenorizadamente nas seções seguintes - não é compartilhada por toda a comunidade juruna, mas um tanto quanto opaca, sobretudo para os mais jovens, de modo que isso virou um termo, um conhecimento específico. Talvez o leitor se pergunte então em que medida se poderia afirmar que isso realmente é uma questão juruna. A resposta, que se refere ao grau de opacidade de determinada carga cultural para os falantes de uma mesma língua, toca a questão da existência de variação e também da distinção entre os objetos de estudo da lexicologia e da terminologia. Para exemplificar de um outro modo, vale dizer que, a despeito dos conceitos etnoentomológicos serem conhecimentos característicos da nossa ciência biológica atual, eles não são compartilhados por toda a comunidade ocidental, pois qualquer falante de português, ao visualizar um dos animais que são objeto de nosso estudo, provavelmente os denominará de ―borboleta‖, mas poucos de nós dominamos os nomes taxonômicos específicos de cada espécie e família, sendo essas, portanto, questões de uma área específica do conhecimento, ficando restritos aos especialistas em tais saberes. Além disso, numa mesma comunidade pode ter muitos micro-núcleos culturais que têm marcas identificadoras distintas entre si. Nesse sentido, a palatalização do [] diante de [] não é uma produção comum a todo o Brasil, mas específica de algumas variedades como paulistas e sergipanas (sendo que, entre estas duas há distinções do contexto motivador, pois no primeiro caso, a consoante se palataliza quando antecede a referida vogal ([‗]), enquanto, no segundo, quando a sucede [‗]). 36 Ou seja, o fato de tal fenômeno fonético não ser comum ao sistema geral não permite dizer que ele não seja em nenhum nível característico de produções brasileiras, na medida em que ele é produtivo em certas variedades da língua. Um outro exemplo possível é a carga cultural (os saberes, ritos e crendices) por trás de fita-de-nosso-Senhor-do-Bonfim ou fita-de-nossa-senhora. Embora não seja um conhecimento compartilhado em todo o território nacional (sobretudo nas populações não cristãs e que não se inserem no sincretismo de religiões de matriz africana), uma parcela de nossa população amarra tais fitas no corpo, dando três nós sob a esperança de ter um desejo realizado pela entidade divina metaforizada no acessório. Ainda é possível exemplificar tal questão com uma frase das mais banais em juruna. De acordo com Fargetti (em comunicação pessoal), uma pergunta como Wãbi ane? (‗Como você está?‘, ―Tudo bem com você?‖) pode gerar uma resposta positiva que, para um homem, se verbaliza como Huba, wãbi na (‗Sim, estou bem‘), mas como He, wãbi na para um falante do sexo feminino. Em outras palavras, tais fatos seguem os postulados da mesma autora e indicam que há distinções entre o que se chama de ‗fala de homem‘ e ‗fala de mulher‘, em juruna, na medida em que eles não utilizam, por exemplo, o mesmo elemento lexical para responder afirmativamente a uma indagação. Contudo, isso não significa que se possa dizer que, em juruna, huba não possa ser vertido para o equivalente ―sim‖, embora não seja toda a comundidade que o utilize, mas sim apenas os indivíduos biologicamente masculinos. De modo análogo, o conhecimento juruna acerca do que nós chamamos de ‗borboletas‘ abarca a parte de carga mais lexicológica, por assim dizer, compartilhada por toda a comunidade (que denomina esses animais exclusivamente de nasusu) e a especializada, terminológica, detida por um pequeno número de especialistas. De qualquer maneira, pelo exposto, uma das últimas justificativas de se estudar o léxico gira em torno do fato de que por meio dele é possível também escavar questões culturais, discursivo-sociais e extra-linguísticas de modo geral. Nesse sentido, concordamos com Biderman (1998) quando ela afirma que: […] a referência à realidade extralingüística nos discursos humanos faz-se através dos signos lingüísticos, ou unidades lexicais, que designam os elementos desse universo segundo o recorte feito pela língua e pela cultura correlatas. Assim, o léxico é o lugar da estocagem da significação e dos conteúdos significantes da linguagem humana. (BIDERMAN, 1998, p. 73). Mas na referida citação, tocamos na questão de nomeação e isso já é assunto para as seções seguintes. 37 Em suma, a pesquisa que está sendo realizada com escopo específico sobre as ‗borboletas‘ justifica-se não apenas por seu ineditismo, mas também pela contribuição que pode gerar ao projeto maior ―Uma proposta de obra lexicográfica para os juruna/yudjá do Xingu‖, em virtude de pretender posteriormente discutir, baseando-se nos papéis culturais desempenhados pelos animais interpretados por esses indígenas brasileiros como ―borboletas‖, de que maneira esses insetos (para usar uma classificação de nossa biologia) poderiam constar como verbetes num dicionário bilíngue. Vale ressaltar que, embora os verbetes aqui apresentados sejam uma proposta inicial e ainda estarem em elaboração, não sendo algo definitivo, tentamos, ao máximo, não apresentar somente entradas em juruna e equivalentes em português porque isso redundaria em meras listas de palavras que não contemplariam os conhecimentos do povo e infelizmente potencializariam ao máximo a referida ‗perda de câmbio‘ linguístico de que trata Jakobson (1995), retomando Karcevski. Tal perda seria, na ótica de Jakobson (1995), algo análogo à perda que ocorreria caso se convertessem sucessivamente várias moedas, já que-por exemplo- converter uma mesma quantia de euros para reais e, logo em seguida, para dólares, equivaleria a uma perda monetária. Semelhante a isso, ainda segundo o mesmo pensador, traduções sucessivas de um mesmo texto resultariam possivelmente em perdas culturais e semânticas, sobretudo se uma mesma obra fosse traduzida do russo para o grego e houvesse uma tradução que, sem se lançar ao original russo, traduzisse para o francês o texto direto da versão grega. Em vez de tal procedimento limitado (as meras listas), buscamos -salvaguardadas as limitações de um primeiro contato com a comunidade em questão- realizar realmente uma análise dos dados coletados no sentido hjelmsleviano do termo, pois, não só dividimos o tema em partes, mas tentamos encontrar relações de dependência interna entre tais partes (HJELMSLEV, 2003). Obviamente não estamos afirmando ter chegado de modo cabal no sistema de classificação juruna quanto aos animais, mas – de qualquer modo – não nos limitamos a apresentar nomenclaturas para o tema estudado. Em vez disso, tentamos alcançar, mesmo que minimamente, o valor que cada um dos animais por nós nomeados como ‗borboletas‘ possui para os juruna, o que os opõe, fazendo-os se distinguir entre si. Ora, não haveria por que simplesmente apresentar nomes equivalentes sem nenhuma informação adicional, pois – se assim o fizéssemos – estaríamos considerando que a língua juruna é apenas um conjunto diferente de etiquetas para a mesma realidade – o que se opõe diametralmente ao que afirma Saussure (2012), como comentaremos abaixo. 38 Nesse sentido, nossa busca é por uma descrição metalinguística que utilize o português como meio para discorrer sobre os valores dos elementos lexicais juruna equivalentes ao que para nós são insetos. Mas isso já é assunto para ser aprofundado nas seções que seguem. Justificada assim a relevância de nossa pesquisa, apresentamos a seguir as teorias que justificaram nossas escolhas e posturas metodológicas, bem como as análises dos dados. 39 3 APORTE TEÓRICO Nesta seção, apresentamos questões teóricas que nortearam nossas análises descritas abaixo e também as teorias que sustentam nossa metodologia. Dentre tais aspectos, podemos citar os processos de nomeação, a relação entre língua e nomeação de categorias pela comunidade autóctone, a relação entre língua e o referente no mundo ―concreto‖, o poder criacional das línguas humanas naturais, elementos característicos de uma obra lexical, tipos de definição, distinção entre homonímia e polissemia, a sinonímia sempre imperfeita entre os idiomas, teorias sociais sobre alteridade (como um eu se enxerga e enxerga um outro). Como os objetivos desta pesquisa pressupunham o diálogo e interface entre algumas áreas do saber, a abordagem teórica também foi interdisciplinar e embasou-se em pilares dos mais diversos campos de conhecimento. Embora outras teorias também tenham sido usadas, de modo mais evidente nos pautamos nos aportes da área da Entomologia (e na ―Etnoentomologia‖), na Teoria Conceptual da Metáfora de Lakoff e Johnson (2002) e na Terminologia Etnográfica (doravante TE) de Fargetti (2018). 3.1 A relação entre signo e referente: entre a experiência com um mundo empírico “anterior” à língua e o mundo construído pelo idioma falado por dada comunidade Nesta subseção, para falar sobre variação, serão feitas discussões em muitas áreas, dentre elas a sintaxe portuguesa, mais especificamente o período composto. Antes de qualquer coisa, é necessário retornar ao último assunto tratado na seção anterior: a questão da nomeação e a relação entre o estabelecimento de signos linguísticos e os referentes na realidade extralinguística de tais signos. Aliás, com relação aos estímulos do mundo extralinguístico, Bertrand (2003) distingue figuras de temas. Segundo o autor, as primeiras (como bule, caveira, dragão), tautologicamente, figurariam nos enunciados, representando algo e sendo entidades, grandezas do mundo natural com uma existência tão concreta e sensorial num dado domínio real ou imaginário que possibilita sua visão, seu toque, sua experimentação, sua audição. Já os temas – ainda de acordo com Bertrand (2003) - como alegria, tristeza, satisfação, seriam ideias, valores abstratos do mundo sócio-cultural que dependem de nossa inteligência para existir. E eles só existem porque podem se concretizar, serem representados por meio de figuras. Exemplificando, pode-se dizer que preto e branco seriam figuras que na nossa sociedade remeteriam respectivamente a luto e paz, da mesma forma que, para nós, caveira e 40 ossos enquanto figuras remetem ao tema da morte. Claro que o valor das figuras também varia em cada grupo social. O já mencionado branco na Índia, por exemplo, simboliza o luto de uma viúva e, por isso, é a cor da vestimenta com a qual ela deve passar a se vestir depois que perde o marido. Ainda nessa esteira de pensamento, cabe aqui trazer as concepções de Pierce (apud SANTAELLA, 1983) acerca de sua teoria da percepção e da concepção da experiência. De acordo com ele, haveria três etapas fenomenológicas para a percepção do mundo extralinguístico. Ela se daria, em sua ótica, em primeiridade, segundidade e terceiridade, sendo que cada uma delas produziria signos distintos: ícones, no primeiro caso; índices, no segundo e símbolos, no terceiro. Em outras palavras, na visão do referido autor, a primeiridade versa sobre a primeiríssima impressão que temos sobre um estímulo advindo de um contato imediato quando um determinado elemento invade a minha presença no mundo sem que eu chegue a reagir a isso. Esse movimento produziria ícones (qualissignos), signos que na verdade são qualidades (a cor branca num primeiro contato é parecida com ela mesma) que não apontam para nada a eles externo - o que já equivaleria a uma reação. Assim que essa reação ocorreria, já estaríamos – de acordo com Peirce (apud Santaella, 1983)- numa segundidade que produz índices ou sinsignos que têm uma relação intrínseca com o que representam como ‗fumaça‘ em relação a fogo. Esse segundo tipo de signo, ainda de acordo com as ideias peircianas, não se contentaria em ser ele mesmo, mas – em vez disso – tem razão de apontar para outra coisa num raciocínio quase implicativo: se há fumaça, há fogo; se há questionamento é porque houve ou está havendo o mínimo de aprendizado. A terceiridade, por fim, geraria símbolos próximos aos signos saussurianos que nada teriam de intrínseco e necessário com o que representam. Nesse sentido, o barulho de uma sala é um índice de sala cheia, podendo ser um símbolo de ansiedade e/ ou felicidade dos alunos. Sobre tal assunto, Biderman (1998) argumenta que: Desde os primórdios de nossa história, tivemos a necessidade de nomear o mundo que nos circunda. Nomear significa dar nomes a tudo que está a nossa volta, como plantas, animais, instrumentos de trabalho, entre tantas outras coisas que compõem a realidade. Evidentemente, esse homem histórico não tinha consciência de tal labor. Entretanto, dada a necessidade de sua sobrevivência, criavam-se os instrumentos de trabalho, as formas de alimentação e de vestimenta, bem como tudo que se fazia necessário à sua convivência em grupo. Os grupos, por sua vez, estabeleciam relações sociais com outros grupos, o que proporcionava a necessidade de criar novas palavras para se comunicar e, certamente, palavras também com valor especializado. (BIDERMAN, 1998, p. 73). 41 Ainda quanto a inovações e elementos novos em uma dada cultura, é válido retomar as considerações de Murakawa e Nadin (2013) e salientar que ―ao receber um nome, o fato histórico, o novo produto ou uma descoberta científica cruza as barreiras do imaginário, do possível, do hipotético e torna-se um fato real e social. Denominar algo é, portanto, dar-lhe status de real [...]‖. (MURAKAWA e NADIN, 2013, p. 7). Ou seja, quando necessário, qualquer língua humana natural dispõe de mecanismos para adicionar um novo item ao seu léxico, seja por meio de seus processos próprios de formação de palavra, seja por meio de empréstimos, seja por estrangeirismos. Os primeiros são definidos por Alves (1990), como elementos decorrentes do evento durante o qual uma fala A usa e integra- com adaptação total ou parcial- uma ou mais unidades ou um traço que existia antes numa fala B e que A não possuía). Já os segundos são vistos pelo último autor citado como empréstimos lexicais não totalmente adaptados, não integrados totalmente na língua, revelando-se estrangeiros nos fonemas, na flexão ou até na grafia, como show (ALVES, 1990). Aliás, vale ressaltar que esse olhar do homem para sua realidade empírica resultou não apenas numa nomeação, haja vista que concordamos com os postulados de Saussure de que as línguas não são meras etiquetas, o que equivale a dizer que a nomeação passa a fazer sentido apenas quando se insere num sistema linguístico e se opõe distintivamente a outros elementos. Em outras palavras, no que concerne à maneira pela qual o mundo é recortado e representado pelo homem, nos opomos diametralmente ao que Blikstein (2003) escreve em seu livro Kaspar Hauser e a fabricação da realidade (BLIKSTEIN, 2003), no qual se descreve um rapaz que conseguiria designar a realidade mesmo sem conhecer nenhum sistema linguístico. Ora, isso – em nossa ótica e na esteira das afirmações saussurianas – resultaria em uma mera etiquetagem que não teria nenhum valor e nem seria compartilhada por um núcleo social, na medida em que: [...] as línguas não são nomenclaturas, etiquetas para nomear algo pré-existente, já que não existem elementos anteriores a um sistema lingüístico. Para o mestre genebrino, qualquer entidade lingüística define-se diferencialmente de acordo com sua função no interior do sistema, por isso na língua só há diferenças. O valor de um signo provém da diferença com outros signos. (FIORIN, 2013). Cada um dos elementos lingüísticos tem seu valor na relação de oposição com os demais. O ―a‖, por exemplo, segundo Fiorin (2013, p. 104), é uma preposição quando se opõe, no sistema do português, a ―em‖ e a ―de‖, mas é uma vogal temática quando executa relação opositiva em cantar com o ―e‖ de verbos como beber e com o i de verbos como dormir. (MATEUS, 2017, p. 51). 42 Em nossa ótica, esse olhar humano para o mundo acarreta primeiramente um processo cognitivo denominado como categorização. Aliás, como expõe Abreu (2010), os resultados do processo de categorização não são universais, pois mudam dependendo da cultura social e do momento histórico. Portanto, retomando uma dicotomia gerativa poderíamos dizer que todos os povos formam categorias (um princípio universal), embora cada um deles categorize o mundo à sua maneira (ou seja, os parâmetros para isso são diferentes), na medida em que a maneira pela qual recortamos o mundo ao nosso redor e o analisamos classificatoriamente depende e muito de nossos óculos ideológicos, históricos e culturais. Como afirma Abreu (2010), a categoria ANIMAIS COMESTÍVEIS, por exemplo, não é a mesma em todos os países. Os franceses se alimentam de cavalos e rãs, os brasileiros não e os indianos, para os quais comer carne de vaca é uma abominação (o que culmina no fato da categoria em questão não ser, para eles, nem mesmo muito operacional limitando-se, quando muito, a frangos), muito menos. (ABREU, 2010). No decorrer dos tempos fomos, por exemplo, percebendo semelhanças entre as várias espécies de plantas, de cães, de insetos e nomeando categorias, classes e sub-classes para agrupá-los, formando os conceitos de PLANTA, CÃO, INSETO. Essas classes foram, em seguida, armazenadas em nossa memória de longo prazo e são acessadas assim que nos deparamos com algum de seus elementos para que possamos atribuir sentido a eles. (ABREU, 2010; MATEUS, 2017). Mas, no que se refere a este complexo processo, é preciso, de saída, deixar claro que tanto os animais são e não são anteriores aos nomes que eles recebem pelas diferentes sociedades, quanto às classes de palavra são e não são criadas pelos gramáticos. Ora, por um lado, as palavras não estão num ―caos total‖ no léxico. Prova disso é que nenhum falante nativo colocaria uma conjunção no lugar em que se espera um adjetivo ou vice-versa, mesmo que não conheça os nomes dessas classes em decorrência de não ter passado por um processo de alfabetização e/ ou escolarização. Ou seja, o que os analistas fazem é analisar semelhanças entre os comportamentos dos itens lexicais e nomear essas categorias de elementos próximos, que são pré-existentes à análise. Portanto, de certo modo, as classes de palavras existem dentro das línguas antes mesmo de serem nomeadas pelos analistas e os animais estão no mundo mesmo antes de sofrerem uma nomeação e classificação, mas, ao mesmo tempo e por outro lado, esses nomes só fazem sentido quando dentro de sistemas linguísticos específicos e as línguas muitas vezes acabam sendo óculos para olhar para a realidade empírica e uma nomeação também acarreta uma (de) limitação, o estabelecimento de até que medida chega aquele ente nomeado. 43 Nesse sentido, as ideias saussurianas relacionadas às do filósofo pré-socrático Heráclito talvez contribuam para aclarar o que estamos afirmando. Para este último, o mundo se deleitaria em ocultar sua real natureza (sua phýsis enquanto origem e enquanto dimensão e características do universo físico, ―real‖), mas poderia ser desvelado por meio do lógos. Valendo-se do discurso escrito, tal filósofo originário da cidade de Éfeso vai versar não apenas sobre princípios originários universais que também estariam presentes na razão enquanto questão inteligível, como desenvolverá também as noções de conhecimento que se mostra como verdade (e, assim, epistêmico), em detrimento de uma simples opinião (dóxa) pautada nos sentidos. Assim, ele teria sido um dos precursores do pensamento epistemológico e metafísico: [...] ao procurar plasmar a noção metafísica de lógos por meio de um elemento material: o fogo. Essa concepção deve ser entendida tanto literal quanto ―analogicamente‖, uma vez que o fogo/lógos heraclitiano fora concebido tanto como um elemento fundamental, gerador de todas as coisas naturais – em um sentido que dava continuidade ao pensamento naturalista inaugurado pelos filósofos jônicos –, quanto como a instanciação da inteligibilidade da própria natureza. A alma humana (ou mais precisamente, sua faculdade racional), tendo sido concebida por Heráclito como afim ou semelhante ao fogo, seria naturalmente dotada do poder de compreender o universo, em virtude de sua potencial homogeneidade mútua.‖ [...] A harmonia do mundo como concebida pelos Pitagóricos era, em certo sentido uma harmonia estática, pois as relações matemáticas que a sustentavam tinham um caráter eterno, excluído ao tempo. Em nítido contraste com isso, e mais similarmente aos primeiros jônicos, Heráclito concebia uma harmonia dinâmica, que privilegiava o papel e a ubiquidade da mudança e da transformação, pelo jogo de tensões opostas. (POLITO e SILVA FILHO, 2013, p. 340). Aliás, para o filósofo de Éfeso, ―conhecer é decifrar e interpretar signos e [...] a verdade é a alétheia ou o que se desoculta por meio de sinais‖ (CHAUI, 2002, p. 80), sinais estes enviados pelo pensamento e pela palavra (lógos) não da figura pessoal de Heráclito, mas sim de uma linguagem racional universal, de um divino que estaria na natureza e no humano e que se oferece para ser decifrado e interpretado. Acresce que o mundo, para ele, seria uma unidade racional cósmica sob a égide de um fogo primordial (a própria razão, ou seja, o lógos ele mesmo) que comporia a natureza e a origem desse mundo. Explicando por outros termos, haveria, na ótica de Heráclito, uma natureza por trás de todas as coisas que se gosta de ocultar, sua unidade fundamental que subjaz à aparente multiplicidade e que se realiza por meio da harmonia de tensões que se opõem (o mel, por exemplo, teria, em sua ótica, doçura e também amargor). 44 Aliás, é digno de menção que, conforme consta no Dicionário Grego- Português, a palavra ―harmonia‖ vem do verbo grego ἁπμόζο, cujos significados ‗colocar junto‘, ‗tensionar‘, ‗ajustar‘, ‗adaptar uma coisa a outra‘ já refletem essas ideias heraclitianas. Ou seja, as oposições que se mostram (aparentes) não apenas sugerem, como também ocultam a unidade profunda que ele denomina lógos. Nessa perspectiva, não existiria uma dicotomia entre um Um e um Múltiplo. Na verdade, ―o Um penetra o Múltiplo e a multiplicidade é apenas uma forma da unidade, ou melhor, a própria unidade.‖ (CAVALCANTE DE SOUZA, 1996, p. 31). O lógos seria, assim, a unidade de um fluxo, de um processo contínuo, sendo a ―realidade‖ um rio de águas sempre novas, o sistema unitário e unificador por trás das constantes mudanças, trocas substanciais, tensões, oposições e transformações, uma ―harmonia oculta que garante a tensão intrínseca às coisas e aquilo mesmo que as sustenta‖. (CHAUI, 2002, p. 82). As línguas humanas naturais, como demonstram os estudos linguísticos atuais, também seguem o mesmo caminho, já que os povos vão relacionando-se entre si, aderindo a novos elementos culturais, deixando de usar palavras para elementos que não têm mais utilidade prática nas atividades do dia-a-dia. De qualquer modo, para o referido filósofo, os contrários são inseparáveis (haja vista que um nasce do outro e virá a se tornar o outro). Assim, um dado elemento X só adquire existência em virtude do seu oposto, e de fato, não haveria a noção de justiça sem a de ofensa, nem fome sem saciedade e muito menos cansaço sem repouso. E nesta questão de oposição entre signos, vemos um ponto de contato ou uma das possíveis raízes da noção de opostos que se harmonizam num sistema uno que subjaz ao conceito de valor que seria postulado por Saussure. Ademais, um dos significados do item lexical grego λόγορ é ‗conta‘, ‗medida‘- o que faz alusão ao fato de que o lógos (a ‗palavra‘), o nome que identifica determinado dado ou ente num sistema linguístico já é em si uma delimitação que só tem valor dentro desse langue, desse sistema regulador dos variados e múltiplos usos (parole) na relação de oposição aos demais itens lexicais aos quais ele se opõe. Desse viés linguístico, um computador, por exemplo, só é ente depois de receber do fogo primordial do sistema linguístico do português o lógos ‗computador‘, porque, assim, passa a não ser a mera ‗sucata‘ inútil que se tornará assim que for usado por muito tempo; ele é um ‗computador‘ porque ainda não é uma outra coisa que pode e virá a ser um dia. Por trás dessas questões, está o fato de que: 45 [...] o fogo primordial se distribui quantitativamente em todas as coisas em quantidades perfeitamente determinadas [...] e delimita todas as coisas para que nelas não haja excesso nem falta. A phýsis é lógos porque mede e modera as coisas, lhes dá um ser determinado e conforme a necessidade de cada uma delas, ele as faz racionais, proporcionais umas às outras, harmoniosas em suas oposições. [...] A cada medida que se apaga, uma outra se acende, eternamente. Quando a água se evapora, uma medida de úmido se evapora, uma medida de úmido se apaga e uma medida de quente se acende; quando a água evaporada se condensa em nuvens, uma medida de quente se apaga e uma medida de úmido se acende. E assim sempre e com todas as coisas. [...] Porque a medida é a moderação dos contrários [...] A natureza, sempre justa e moderadora, nunca leva ao excesso ou à carência; nela, os contrários em luta, se compensam uns aos outros (CHAUI, 2002, p. 84). De qualquer modo, como dissemos anteriormente, as análises, nomeações e delimitações não se realizam somente na área linguística, haja vista que o ser humano parece apresentar certa aversão ao que não consegue controlar e, por isso, tende a ―reduzir‖ a maior quantidade possível de elementos em tipos, grupos mais controláveis, chegando, muitas vezes, ao estabelecimento de caixinhas, moldes que nem sempre dão conta da realidade na qual estão dispostos os seres do mundo sensível. Isso se estende também para a língua porque às vezes os gramáticos (sobre os normativos preocupados em como a língua deveria ser e não como ela realmente é), acabam agrupando itens linguísticos distintos n