UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS LEONARDO SARTORETTO RAZÃO AUTOCRÁTICA: IDEOLOGIA E DIREÇÃO POLÍTICA NA PROGRESSIVIDADE DA AUTOCRACIA BURGUESA BRASILEIRA (1930- 1945) MARÍLIA – SP 2022 LEONARDO SARTORETTO RAZÃO AUTOCRÁTICA: IDEOLOGIA E DIREÇÃO POLÍTICA NA PROGRESSIVIDADE DA AUTOCRACIA BURGUESA BRASILEIRA (1930- 1945) Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Campus de Marília - como requisito para obtenção do título de doutor em ciências sociais. Orientador: Prof. Dr. Anderson Deo Linha de Pesquisa: Determinações do Mundo do Trabalho: Sociabilidade, Política e Cultura. Marília-SP 2022 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. S251r Sartoretto, Leonardo Razão autocrática : ideologia e direção política na progressividade da autocracia burguesa brasileira (1930-1945) / Leonardo Sartoretto. -- Marília, 2022 363 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Anderson Deo 1. Ideologia. 2. Ciência política. 3. História política. 4. Sociologia política. 5. Política industrial. I. Título. LEONARDO SARTORETTO RAZÃO AUTOCRÁTICA: IDEOLOGIA E DIREÇÃO POLÍTICA NA PROGRESSIVIDADE DA AUTOCRACIA BURGUESA BRASILEIRA (1930- 1945) Banca Examinadora - Tese de Doutorado Profº. Dr. Anderson Deo (Orientador) Depto. de Ciências Políticas e Econômicas - Universidade Estadual Paulista, FFC/ Marília Profº. Titular Marcos Tadeu Del Roio Depto. de Ciências Políticas e Econômicas - Universidade Estadual Paulista, FFC/ Marília Profº. Dr. Marcelo Augusto Totti Depto. de Sociologia e Antropologia - Universidade Estadual Paulista, FFC/ Marília Profº. Dr. Antonio Carlos Mazzeo Programa de Pós-Graduação em História Econômica - Universidade de São Paulo Profª. Dr. Marly de Almeida Gomes Vianna Universidade Federal de São Carlos Profº. Dr. Leandro de Oliveira Galastri (Suplente) Depto. de Ciências Políticas e Econômicas - Universidade Estadual Paulista, FFC/ Marília Profº. Dr. Lincoln Ferreira Secco (Suplente) Programa de Pós-Graduação em História Econômica - Universidade de São Paulo Profº. Dr. Carlos Henrique Lopes Rodrigues (Suplente) Pós-Graduação em Tecnologia, Ambiente e Sociedade - Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Marília, 4 de março de 2022 AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Este trabalho é, antes de mais nada, fruto do esforço semissecular da Unesp de Marília, cujas aulas, seminários, orientações, congressos, debates em salas, assembleias, movimento estudantil, CAUM (Cursinho Alternativo da Unesp de Marília), trocas de ideias nos corredores, bancos de café ou na acolhedora moradia estudantil, biblioteca, servidores técnico-administrativos, trabalhadores e trabalhadores de manutenção e limpeza, dos carismáticos “guardinhas”, do restaurante universitário, proporcionaram uma década continuada de estudos e produção do conhecimento. Esta tese é fruto de todas e todos que lutam por uma Universidade pública, gratuita e de qualidade. Também quero lembrar/homenagear todos e todas que fizeram ou ainda fazem pesquisa, de qualquer natureza, em tempos de pandemia e de regressão da democracia e dos direitos sociais. Este processo tem um custo muito grande. Porém, sentimos cada vez mais que é uma necessidade pagá-lo. Imensos – antes de muitos – são os seres que me apoiaram nessa jornada. Especial carinho merecem Kathleen Karen Reichert, Jair Félix de Mendonça, Chintia Alves de Araújo Bissa, Alessandro Mariano Rodrigues (e toda sua família!), Natália dos Santos Carvalho, Renata Rodrigues, Letícia Navarro de Lima, Caroline Oliveira, Heric Endo, Suelyn Tosawa, Raian Alesson, Amanda Vinciguerra Schmidt, Eric Barros, Angelica Siqueira, Aline Gonzalez, Martins e Andreza por serem minha retaguarda em momentos difíceis, oferecendo auxílio nas mais diversas situações de vida. Aos meus irmãos de coração, Jabis Ronaldo, Bruno Christian de Souza, Vinicius Lima de Oliveira, com os quais formo o quarteto fantástico de irmandade da existência! Aos camaradas que me ofereceram constante debate intelectual durante este percurso, Adair Humberto Simonato Júnior, Cecílio Henrique Costa e Leonardo Augusto Franco, bem como aos companheiros e companheiras de pós-graduação! Aos amigos de futebol e de basquete, que me salvam sempre do exaustivo esforço intelectual, Caio Ícaro, Filipe Bellinaso, Wagner Antunes, Caio Gervazoni, Sabonis, Maikon, Zé, Sid, Netão e Alexandre Tubman. Ao Lucas e Maximino Sartoretto, irmão e pai, que me incentivaram sempre. Aos professores e professora que compuseram a banca, Marcelo Augusto Totti, Marcos Tadeu Del Roio, Antonio Carlos Mazzeo e Marly Vianna, pela leitura atenciosa e comentários generosos que enriqueceram muitíssimo este trabalho. Todos são inspiração e referência em minha vida de pesquisador. À professora Angélica Lovatto, que esteve presente em todo meu percurso formativo, fornecendo dicas e orientações sem as quais esta tese também não existiria. Ao professor Francisco Luiz Corsi que ministrou disciplinas, com seu gigante didatismo, que foram cruciais no aprendizado de temas e leituras aqui utilizados. Em meio a tudo isso, a menção a Anderson Deo ganha um status especial. Hoje, passados 10 anos de orientação, surpreende-me olhar para trás e perceber o quanto sua parceria soube colocar-se ao meu nível de aprendizado em todos os diferentes momentos de pesquisa: graduação, mestrado e doutorado. Jamais impondo, sempre procurando impulsionar as potencialidades que em mim já existiam. Indicando leituras e confiando que eu extrairia delas o máximo que meu acúmulo até então me permitia. Soube ensinar com maestria a frase marxiana de que “todo começo é difícil em qualquer ciência”. E também conseguiu, com bastante dificuldade, devido à teimosia deste pesquisador, demonstrar a frase machadiana de que “a verdadeira ciência não é a que se incrusta para ornato, mas a que se assimila para nutrição”. Foi realmente estupendo ter sua amizade ao meu lado como orientador. Gratíssimo pela caminhada conjunta, Deo! À Solange Inês Fiedler Sartoretto devo o maior de todos os agradecimentos, por ter me letrado e educado antes mesmo da escola, professora que me transmitiu o gosto pelo conhecimento e que me ensinou a viver eticamente. Ao teu carinho e amor devo tudo, tudo mãe. El amor, madre, a la patria, No es el amor ridículo a la tierra, Ni a la yerba que pisan nuestras plantas; Es el ódio invencible a quien la oprime, Es el rencor eterno a quien la ataca; Y tal amor despierta em nuestro pecho El mundo de recuerdos que nos llama A la vida outa vez José Martí As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes (...) são as ideias de sua dominação – Karl Marx Saiba o indivíduo ou não, em todas as suas decisões existe agora a interferência da luta entre o socialismo e o capitalismo monopolista - Lukács O homem vive em muitos mundos, mas cada mundo tem uma chave diferente, e o homem não pode passar de um mundo para o outro sem a chave respectiva, isto é, sem mudar a intencionalidade e o correspondente modo de apropriação da realidade – Karel Kosik O desmascaramento do que é falso converte-se ininterruptamente na indicação do que é justo do ponto de vista político-social, e disso decorre também um esclarecimento lógico e metodológico das categorias - Lukács E que apenas por esta consciência da infinita riqueza de determinações da natureza o materialismo é vivo – o materialismo, que afirma que a realidade desborda o pensamento, que o ser precede o conhecer e que o pensamento humano, apoiado na práxis, deve tornar-se mais e mais flexível, penetrante, poliscópico - Lênin Nosce te ipsum – Alberto Torres Estudar o Brasil, eis o que deveria ser o lema do patriotismo e do zelo pela sorte de nossa terra (...) É em sua geografia e no quadro da sociedade contemporânea que está a base do conhecimento de sua sorte – Alberto Torres Os antigos, aliás, tinham um sentido muito sutil desses efeitos das influências locais. De cidade em cidade, dentro de um mesmo povo, eles sentiam que havia qualquer coisa impalpável, mas real, que as fazia diferentes – e atribuíam esse fato a ação de uma poliada ou demônio invisível, que eles chamavam o “gênio do lugar”, genius loci – Oliveira Vianna Uma nação destituída de qualquer forma de atividade industrial constitui um verdadeiro contrassenso sociológico – Azevedo Amaral O espaço não é simples matéria, espaço é também energia psíquica. Amplia a visão, dilata a alma, dá ao homem que o habita e que ele circunda coragem e confiança para avançar. Onde há espaço, há não só tempo, como também futuro – Stefan Zweig RESUMO A presente tese investiga a existência de um corpo teórico-ideológico processualmente formulado na obra de Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral, com a finalidade de fornecer elementos de uma práxis autocrática para a direção do capitalismo brasileiro. Pressupondo a existência de uma razão evolutiva não alcançada na formação brasileira, esses autores utilizaram uma razão corroída, mediante núcleo duro localizável no positivismo, para elaborar abordagens metodológicas, investigações históricas e proposições políticas que ofereceriam o caminho para a retomada de tal percurso. Encontrando em Getúlio Vargas a mediação histórico-concreta, especialmente após a tomada do poder pela Aliança Liberal, em 1930, embora já imbricados antes mesmo desse movimento político-militar, o conjunto sistemático de representações elaborado pelos referidos intelectuais se fez matriz ideopolítica, norteando as transformações promovidas naquele período. Tornando-se um sujeito social esclarecido e racionalizando instrumentalmente as contradições concretas gestadas pelo movimento do grande capital cafeeiro, Vargas, indivíduo que condensou todas essas demandas autocráticas de classe em sua liderança política, levou a cabo uma forma autocrático- progressiva de desenvolvimento para o capitalismo brasileiro, isto é, incrementou as forças produtivas internas sem romper com sua face sócio-política excludente, alcançando, assim, seu estágio específico: a industrialização hiper-tardia. Nesta tese, procura-se, portanto, resolver dois problemas distintos, mas intimamente relacionados, que são tanto a desmistificação da natureza reducionista dessa ideologia, indo à raiz de sua constituição falseadora, bem como expor os principais momentos da forma de desenvolvimento autocrático-progressiva, acompanhando a influência daquelas construções previamente ideadas, elaboradas como respostas às demandas arbitrariamente manipuladoras dessa autocracia. Palavras-chave: Autocracia burguesa brasileira. Decadência ideológica. Razão empobrecida. Forma de desenvolvimento capitalista. Fisicalismo Positivista. ABSTRACT This thesis investigates the existence of a theoretical-ideological body procedurally formulated in the work of Alberto Torres, Oliveira Vianna and Azevedo Amaral, in order to provide elements of an autocratic praxis for the direction of Brazilian capitalism. Assuming the existence of an evolutionary reason not reached in the Brazilian formation, these authors used a corroded reason, through a hard core located in positivism, to elaborate methodological approaches, historical investigations and political propositions that would offer the way for the resumption of such a path. Finding historical-concrete mediation in Getúlio Vargas, especially after the seizure of power by the Liberal Alliance in 1930, although already intertwined even before this political-military movement, the systematic set of representations elaborated by these intellectuals became an ideopolitical matrix, guiding the changes that took place during that period. Becoming an enlightened social subject and instrumentally rationalizing the concrete contradictions generated by the movement of big coffee capital, Vargas, an individual who condensed all these autocratic class demands in his political leadership, carried out an autocratic-progressive form of development for capitalism that is, it increased the internal productive forces without breaking with its excluding socio-political face, thus reaching its specific stage: the hyper-late industrialization. In this thesis, therefore, we seek to solve two distinct but closely related problems, which are both the demystification of the reductionist nature of this ideology, going to the root of its falsifying constitution, as well as exposing the main moments of the autocratic-progressive form of development. , following the influence of those previously conceived constructions, elaborated as responses to the arbitrarily manipulative demands of this autocracy. Palavras-chave: Brazilian bourgeois autocracy. Ideological decay. Impoverished reason. Form of capitalist development. positivist Physicalism. Sumário INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 12 PARTE I – A RAZÃO AUTOCRÁTICA COMO CORPO TEÓRICO ........................................ 43 CAPÍTULO I: MÁXIMOS REPRESENTANTES E DIVISÃO INTELECTUAL DO TRABALHO .................................................................................................................................... 44 1.1 – Gênese e indicativos metodológicos em Alberto Torres .................................................. 44 1.2 – A fina aplicabilidade de Oliveira Vianna ......................................................................... 57 1.3 – Azevedo Amaral e o prognóstico sugestivo ...................................................................... 75 CAPÍTULO II – CRÍTICA AO NECESSÁRIO FALSEAMENTO DA REALIDADE ........... 93 2.1 – Uma filosofia para a organização progressiva capitalista ............................................... 93 2.2 – Explicação redutiva e hispostação da aparência ........................................................... 107 2.3 – A prisão no mundo da dominação de classe: a política como arte ............................... 118 2.4 – Tarefas de classe para uma práxis autocrática .............................................................. 130 PARTE II – A FORMA DE DESENVOLVIMENTO AUTOCRÁTICO-PROGRESSIVA COMO CRIAÇÃO DA TOTALIDADE ......................................................................................... 145 CAPÍTULO III: DO LIVRE MOVIMENTO DO CONCRETO .............................................. 146 3.1 – A dinâmica contraditória do grande capital cafeeiro .................................................... 146 3.2 – Getúlio Dornelles Vargas: a expressão política condensadora ..................................... 156 3.3 – A vitória da Aliança Liberal: a resolução do conflito pela luta .................................... 176 CAPÍTULO IV: CONDICIONANTES DA LUTA DE CLASSES GENERALIZADA .......... 190 4.1 – O significado político e os desdobramentos da insurreição paulista de 1932 .............. 190 4.2 – A enformação de um aliado fundamental: as forças armadas ..................................... 208 4.3 – A verdadeira ameaça: o projeto nacional-popular da Aliança Nacional Libertadora ..................................................................................................................................................... 226 CAPÍTULO V: MEDIAÇÕES NECESSÁRIAS DA INDUSTRIALIZAÇÃO HIPER-TARDIA ......................................................................................................................................................... 247 5.1 – O caráter ditatorial como forma reflexa de Estado ....................................................... 247 5.2 – As determinações da forma sindical-corporativista de organização das classes sociais ..................................................................................................................................................... 257 5.3 – O novo sociometabolismo capitalista .............................................................................. 285 CAPÍTULO VI: AS PARTICULARIDADES DO PROJETO POLÍTICO ............................. 302 6.1 – A burguesia industrial sobe ao palco .............................................................................. 302 6.2 – O sentido do Nacionalismo .............................................................................................. 316 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 329 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 347 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .................................................................................................. 361 12 INTRODUÇÃO I - Objeto e discussão da problemática No decorrer do primeiro terço do século XX, três pensadores produziram, minoritariamente e de forma que lhes parecia impotente, elementos para caracterizar uma crítica ao estado de coisas da realidade brasileira. Trata-se das reflexões de Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral – notadamente as obras mais tardias do primeiro e as primeiras dos dois últimos. Mesmo que o juízo central expresso por aquela crítica só conseguisse tardiamente opor-se à ideia de que o país é marcado pela “vocação agrícola”, e sem a radicalidade necessária para negá-la integralmente, no percorrer de todo seu caminho e em sua base fundante afirmava- se que o Brasil de então não era brasileiro. Ao lado disso, também se levantavam gritos de denúncia de que o país era legislado de maneira a que seus mais genuínos interesses não estivessem representados em sua forma jurídica; a constituição brasileira de 1889 seria cópia alienígena, importada. A síntese então era apontada: o país, estruturado sobre esses errôneos fundamentos, estaria distanciado de sua realidade. Após a insurreição vitoriosa da Aliança Liberal, em fins de 1930, o sentido principal dessa percepção foi progressivamente revertido, a ponto de transformar-se em seu exato contrário. Principalmente após 1937, passou-se a crer que o Brasil encontrara, finalmente, a si próprio, que teria conhecido sua alma, sua substância íntima e reencontrado suas verdades essenciais. Traduzindo este processo na linguagem que costumava empregar Alberto Torres – pensador que, mais que nenhum outro, personificara inicialmente aquela crítica –, de totalmente desorganizado, o país afirmava sua personalidade nacional e iniciava a construção do edifício próprio aos seus destinos de grandeza. Se antes de 1930 essas ideias encontravam-se restritas ao conjunto de teorias veiculadas por aqueles três teóricos, após 1930 passou a ganhar ressonância surpreendente, alcançando sucesso em largo âmbito de classes e estratos sociais. Assim é que, um ano antes de seu suicídio, um dos maiores escritores daquele tempo produziria um livro profundamente enaltecedor da ditadura do Estado Novo (1937-1945): Brasil, um país do futuro. Em 1941, Stefan Zweig, ao escolher o Brasil como refúgio frente a barbárie irracionalista do nazismo alemão, que também assolava sua pátria, a Áustria, e que muito lhe determinava o olhar sobre os problemas da humanidade, captava a euforia com que o crescimento brasileiro se fazia perceber por seus habitantes. Brasil, um país do futuro 13 simboliza o alcance daquelas ideias, que penetram de forma profunda em um autor influenciado pelas melhores tendências do realismo – escola crítica –, profundo leitor e estudioso de Balzac e Tolstoi, sendo ainda amigo pessoal de Thomas Mann. Em seu livro, Zweig afirma que o Brasil teria encontrado a solução do problema central de toda sua geração: “como conseguir em nosso mundo uma convivência pacífica entre as pessoas apesar da diversidade de raças, classes, cores, religiões e convicções”? Para o famoso escritor, nenhum outro país - “e é como grato testemunho disso que escrevo este livro – conseguiu resolvê-lo de maneira tão feliz e exemplar como o Brasil. Uma maneira que, na minha opinião, não requer apenas a atenção, mas também a admiração do mundo” (ZWEIG, 2013, p. 18). Com tal obra, o escritor austríaco, bem no espírito do regime, “pretendia oferecer um livro político, sem falar em política (que detestava) (DINES, 2013, p. 8). Essa percepção sobre o país é também encontrada na própria burguesia brasileira. Diversas das suas entidades classistas representativas, comerciais, bancárias, industriais e até mesmo agrícolas, reunidas em contundente manifesto de louvor, a propósito do aniversário natalício de Getúlio Vargas, expressavam idêntica e ainda mais limpidamente a apreciação daquele momento. No manifesto, é clara a afirmação de que foi com a Constituição de 1937 que resgatamos, enfim, nossa forma de sentir e agir “brasileiramente”, pois “cada nação tem uma ideia nacional própria e forçosamente inadaptável à situação de qualquer outro povo. A nossa, a brasileira, é a que aí está em vigor desde 1937. Foi graças a ela que o Brasil encontrou a si mesmo” (CARONE, 1976b, p. 353). Também em parte considerável dos setores operários, classe que sofria então as mais duras e violentas repressões policiais, pode-se localizar essa visão de mundo. As pesquisas historiográficas que procuraram trazer para o primeiro plano a “autoimagem” e as “representações sociais” que os trabalhadores construíam sobre sua forma de ler aquela realidade, constata que “nos anos 1930, toda uma história é contada e repetida sistematicamente pelos trabalhadores, onde o presente é exaltado, o passado repudiado e o futuro idealizado” (FERREIRA, 1990, p. 188-189). Desenvolvendo estudos para investigar esse fato, o amplo conjunto de abordagens que perfazem a teoria do trabalhismo, procura explicá-lo negando que aí houvesse qualquer caráter passivo dos trabalhadores, rejeitando a tese da cultura operária como fruto de manipulação da ideologia dominante. Os trabalhadores, para essa teoria, teriam efetivamente percebido o complexo de dominação política no qual estavam inseridos, e apenas reproduziam os valores 14 do Estado com o fim de “instrumentalizá-lo” para realizar seus interesses e conseguir emprego, promoções, etc., tendo em vista não haver alternativa de ação. Ao propor, em suas análises, como metodologia central “utilizar, no dizer dos antropólogos, os termos nativos” (FERREIRA, 2012, p. 318) expressos pelos sujeitos históricos da época, é sintomático que este setor específico da literatura especializada do período que adota a tese do trabalhismo tenha chegado a uma conclusão engenhosa para explicar o apoio de partes de classe dos trabalhadores ao governo ditatorial de Vargas. Substituindo, em grande medida, nas últimas décadas, a teoria do populismo como interpretação dominante do período, essa abordagem defende que aquilo que ficou conhecido como trabalhismo é o produto ideológico veiculado pelos intelectuais e meios de propaganda do Estado Novo e, nesse sentido, é um projeto organizado pela classe dominante. No entanto, o cerne da tese é a defesa de que o conteúdo desse corpo ideológico (corporativismo, paternalismo, direitos sociais, etc.,) teria sido “roubado”, sem que isto fosse declarado, evidentemente, da história cultural e de luta dos trabalhadores e transformado em discurso sedutor – e “alternativo” – com a finalidade de atraí- los para o poder. Os operários, por sua vez, vendo seus interesses representados naquele discurso, que ecoaria sua história cultural, teriam passado a aceitá-lo de bom grado, estabelecendo um contratualismo de novo tipo. A construção da referida tese, importante interlocutora de nosso estudo, precisa, mesmo no espaço desta introdução, ser melhor compreendida, até para não a apresentarmos de maneira desonesta. Como para esse diapasão investigativo, todo discurso dos sujeitos sociais é idêntico a seus interesses, são estas declarações – a “palavra operária” - que expressam os interesses dos trabalhadores. Quando o discurso oficial, depois de ter se apropriado daquela “palavra”, redimensiona-a, reproduzindo-a em outro contexto, os operários não teriam condições de percebê-lo: já não encontravam seu discurso histórico mencionado expressamente naquele novo corpo de ideias. O projeto varguista, assim, “apaga a memória da ‘palavra’ dos trabalhadores” (GOMES, 2005, p. 27). Portanto, estes obedeceriam ao regime apenas porque nele viam seus interesses estandardizados; de quebra, criavam para si próprios a necessidade de retribuição, por terem sido atendidas as demandas de classe. Por fim, a aplicação das demandas operárias pelo Estado, mesmo que de forma ditatorial e autoritária, perfaria uma “democracia autoritária”, que deveria ser valorizada sobretudo naquele seu primeiro polo, o democrático. Procedendo assim, a teoria do trabalhismo reproduz, praticamente nos mesmos moldes, ou melhor, em termos ainda mais “democráticos”, as reflexões de Oliveira Vianna e Azevedo Amaral sobre a natureza das relações de poder que envolviam o corporativismo brasileiro: o 15 Brasil teria encontrado um novo tipo de democracia, pois que não mais política. A democracia brasileira finalmente teria sido encontrada como democracia social (GOMES, 2012). Por fim, e como condição própria e necessária, essa forma de apreensão da realidade também era encontrada no líder da classe dominante, em Getúlio Vargas. O dirigente máximo do capitalismo brasileiro daqueles dias, menos de um ano após a instauração do golpe político do Estado Novo, em discurso no Palácio Guanabara, aos 7 de setembro de 1938, por ocasião da comemoração da Semana da Pátria e da Raça, assim irradiava seu discurso, através da rede nacional de emissoras: Conforta-me verificar que a transformação operada na vida nacional, além de inadiável e proveitosa, foi obtida sem abalos e dissenções fratricidas. Saímos de uma situação falsa e caótica, com o país divido em feudos e o interesse público na dependência de conchavos das clientelas eleitorais; conjuramos a ameaça que pesava sobre a nossa soberania, impedindo a formação de quistos raciais com pretensões autonômicas; fortalecemos a unidade nacional, extinguindo particularismos e hegemonias regionalistas; atacamos de frente os problemas fundamentais da nossa economia e do aparelhamento defensivo do país; passamos, enfim, de um regime de ficção e desperdício para outro de realidade e trabalho, em que a Nação se apresenta estruturada como um todo orgânico, dentro dos objetivos supremos do seu engrandecimento. (...) O momento é próprio para ressaltar a preponderância do fator humano no progresso. (...) É inadiável dar pronta solução ao problema do fortalecimento da raça, assegurando o preparo cultural e eugênico das novas gerações. (...) Nas circunstâncias atuais, torna-se urgente mobilizar essas nobres qualidades do caráter brasileiro, utilizando-as em benefício da cultura e do vigor físico da raça. (VARGAS, 1940, p. 54-55) Como teremos oportunidade de notar, não é mero acaso o fato de Vargas ser o único indivíduo capaz de expressar o conjunto integral desta visão de mundo de maneira profundamente orgânica. Depreende-se do exposto que todos estes sujeitos sociais, individualmente ou como classe, contemporaneamente ou em análise científica posterior, reproduzem, em maior ou menor medida, ideias formuladas, fundamentalmente, por Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral. Noções como a de que durante o regime republicano o país vivia uma situação largamente colonial e, portanto, com sua soberania penhorada pela não proteção dos seus recursos naturais mais preciosos; conceitos como o de “espírito insolidarista”, formulado para criticar a postura política burguesia brasileira; apontamentos como o abandono de um regime de “ficção”, que teria vigência anteriormente a 1930, por um próprio e adequado às “realidades nacionais” após a vitória da Aliança Liberal; e de “valorização do homem brasileiro” mediante 16 aperfeiçoamento racial e eugênico para torná-lo mais apto ao progresso atual da civilização constituem a base daquele corpo de reflexões, e que se desdobra em outras tantas análises. Constata-se, assim, que esse conjunto ideológico, genericamente chamado pela literatura de “autoritário”,1 venceu a batalha das ideias de seu tempo. Na reflexão daqueles pensadores, não apenas a definição do método de investigação verdadeiramente científico se fazia presente, apto a captar a realidade, mas o esclarecimento sobre qual parte da realidade poderia ser efetivamente conhecida, em quais aspectos poderia ser transformada, e em que sentido se deveria buscar transformá-la. Concluindo por incursões teóricas profundas acerca de nossa formação sócio-histórica, Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral acabaram por definir o conceito de verdade das relações sociais brasileiras, o qual, pela ampla disseminação ideológica, que alcançou toda a sociedade daquele tempo, acabou por tornar-se predominante. A que se deve esse fato, isto é, o predomínio epocal dessa concepção das relações sociais? Que o soberano poder das ideias tenha conseguido doutrinar professoralmente as mentes, enganando-as pelo viés ideológico, a ponto de as consciências, assim iludidas e impossibilitadas de apreender a realidade, estarem igualmente impedidas de resistir, devido a toda uma série de mecanismos e de apelos políticos de doação? Essa situação teria se tornado possível porque esses intelectuais, especificamente Oliveira Vianna e Azevedo Amaral, pois Alberto Torres falecera em 1917, terem sido chamados a colaborar, de forma íntima e orgânica, com o governo de Vargas, tanto o provisório quanto o ditatorial? Como se sabe, em situações de governos ditatoriais, as ideias que recebem permissão para circular são sempre muito bem selecionadas. Seria essa a resposta? Vimos brevemente que a teoria do trabalhismo, em sendo quem mais procura negar este fato, acaba, pelo seu viés de análise do discurso e de primazia da história cultural, aceitado tais teses de forma ainda mais refinada. 1 Não é nosso intuito debater esses intelectuais pela chave de leitura do “autoritarismo”. Pesquisadores que assim o fazem (FAUSTO, 2001; GOMES, 2012), mesmo constatando importantes pontos de seu pensamento como o cientificismo, o darwinismo social, etc., acabam por cair nas malhas do próprio discurso destes ideólogos, que definem seu espectro político (de defesa de um Estado, e de uma democracia, autoritário) negando as características do que seria o totalitarismo. Em ambos os casos, são os conceitos genéricos de povo, nação, compressão ou autonomia do indivíduo, de equilíbrio entre ordem e liberdade, que corporificam a análise. Ou seja, jamais se supera a dicotomia liberal entre Estado e Sociedade civil. Estes pesquisadores não buscam estabelecer vínculos mais definidos daquelas teorias com as classes e frações de classe da estrutura social de produção da vida. A relação que se estabelece entre ciência e compreensão do fenômeno nesta visão de mundo é claramente indicada por Fausto quando afirma que “passando do conceito à prática, convém ressaltar que não é fácil distinguir entre regimes totalitários e autoritários. Isto porque, como diz François Furet, em ambos os casos, lidamos com tipos ideais, cujos traços não estão integralmente presentes nas várias situações concretas” (2001, p. 8). Ver também mais a diante nota de rodapé 13. 17 As perguntas, cuja formulação é necessária, não devem, porém, pressupor qualquer incapacidade ou mesmo a impossibilidade de leitura do ambiente de sua existência pelos atores sociais, principalmente as classes dominadas, como se por si mesmas fossem inaptas. Pelo contrário, exatamente pela faculdade ontológica (que diz respeito aos próprios elementos constitutivos, genéticos) de captar o solo no qual vivem, segundo a clássica frase de Lukács (2009, p. 229) de que o homem é “um ser que dá respostas” ao ambiente no qual vive, “escolhidas” dentre de um leque determinado pelas condições materiais, é que eram capazes de expressar consciência, de demonstrar que estavam vivendo a realidade. Não procuramos negar, portanto, que essa consciência comum seja efetiva. Certamente que o é, ou os homens sequer poderiam movimentar-se prática e eficazmente na realidade. Com isto em mente, as questões que devem ser postas e que possibilitam responder essas dúvidas são outras. É delas que parte nossa tese. Em primeiro lugar, devemos indagar acerca dos sujeitos sociais que formularam aquelas concepções de mundo quando suas reflexões essenciais ainda faziam parte, como quaisquer outras, do rol das ideias não dominantes o seguinte: por que esses indivíduos (intelectuais) tomaram consciência de seu tempo mediante essas exatas noções? Aos homens e mulheres (grupos e classes que reproduziram aquela ideologia) que assim as captaram quando já ideologicamente predominantes, devemos igualmente questionar a razão de terem se expressado naqueles termos. Para dizer o mesmo, com palavras mais concretas: por que aos primeiros, construindo tal discurso até o limiar da década de 1930, ocorreu afirmarem que, legislado de forma especificamente liberal, o país se alienava de si mesmo; que, monocultor e agrário-exportador, seria portador de evolução inferior e mesmo regressiva; e, por fim, que, dominado de forma absoluta por uma fração particular da burguesia não poderia ser designado como formador de uma nação? Cabe também perguntar por que aos segundos calhou de veicularem ideias conformes à convicção de que o país finalmente encontrara o rumo de sua grandeza, de que o homem brasileiro era valorizado pela legislação social e operária, que tal valorização teria sido outorgada pela benevolência de Vargas. Em suma, por que, mediante a imagem dos operários como seus filhos brasileiros, Getúlio deveria ser considerado um ser mitológico, o único capaz de expressar essa sensibilidade – de que ocorria, em meio a uma ditadura brutal, uma democracia social, que poderia ser melhor expressa como “democracia autoritária”? Numa palavra: por que foram essas categorias as que se impuseram de forma predominante à consciência dos homens, naquele tempo? 18 A esse complexo questionamento, segue-se outro, intimamente relacionado: por que, no conjunto de reflexões daqueles intelectuais, destaca-se a centralidade de instrumentos criados pelo que hoje se convenciona designar como a filosofia do período de nascimento da Sociologia? Por que a urgência em definir de forma absoluta os conceitos relacionados ao conhecimento da realidade dos homens e uma necessidade de demonstrar domínio científico em geral? E. em meio a esse predomínio de categorias cientificistas, por que essa preocupação se encontra expressa nos conceitos de “organização”, “evolução”, “progresso”, “progressivo”, “razão”, “potência”, etc., e não em outras? Não são perguntas simples, de fato. Porém, em toda investigação científica, a estrutura e a natureza da pergunta elaborada já contêm direcionamentos que podem encaminhar ou dificultar a aproximação da resposta verdadeira. Assim postos os questionamentos centrais, nossas proposições envolvem amplo e articulado movimento de resposta. Queremos defender, como hipótese, que Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral construíram, processual e ampliadamente, uma ideologia que foi capaz de cumprir sua função específica na luta de classes, a saber, expressar interesses da burguesia brasileira de modo que determinados setores avançados fossem por ela esclarecidos nos conflitos sociais. Ao influenciar, dessa maneira, suas tomadas de decisão, persuadiu-os a escolher um rumo preciso na direção social do capitalismo brasileiro. Assim, dentre as várias alternativas existentes para o líder da Aliança Liberal em 1930, Getúlio Vargas, que personificava tais setores avançados, esse corpo ideológico forneceu o momento ideal, condição ineliminável de toda atividade prática humana, a necessária prévia-ideação adequada para a seleção de uma práxis autocrática, adequada para que o capitalismo brasileiro fosse conduzido a um estágio superior daquele tipo de domínio socialmente excludente. Uma vez que se trata de produzir uma ideologia capaz de cumprir sua função social, de conscientização dos interesses de uma classe já dominante, de modernizar conservando, de reformar sem revolucionar, esses pensadores produziram tal conjunto doutrinário de representações mediante uma razão corroída, isto é, passaram a investigar a realidade brasileira pelo recurso da aplicação empobrecida do uso da razão. Com predomínio metodológico em Alberto Torres, de aplicabilidade em Oliveira Vianna e diagnóstico-propositiva em Azevedo Amaral (sem que se veja aí qualquer hierarquia, já que esses aspectos se encontram, em medidas distintas, nos três intelectuais), esse complexo de representações forneceu a compreensão explicitamente reproduzida da legalidade do mundo fenomênico, isto é das aparências. A função, portanto, dessa ideologia foi fornecer elementos esclarecidos de uma práxis autocrática 19 manipulatória e superficial, que evitava alterar as estruturas fundamentais da forma de domínio autocrático da burguesia brasileira, traço que lhe é uma feição genética e característica fundante de seu próprio ser social. Portanto, a forma de percepção pela qual se expressam Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral revela, sob clara perspectiva de classe, a necessidade de avançar no desenvolvimento da formação social capitalista brasileira. Contudo, refletindo uma formação social que já ao tempo de seu período colonial, conforme cremos, se formou com elementos suficientes para perfazer um nexo interno burguês como sua natureza,2 e que logrou mantê-la pela manutenção incessante de seu sentido colonizador, encontrando-se numa excludente fase de hegemonia da fração do grande capital cafeeiro (a chamada “República Velha”), essas 2 Precisamos aqui explicitar alguns fundamentos que norteiam nosso entendimento sobre a natureza da formação social brasileira. Os elementos delineados por Marx no Capítulo VI inédito de O Capital (1985) são, aqui, cruciais. Vale reproduzir passagens de nossa monografia, onde tivemos oportunidade de adentrar nessa discussão: “Nesse sentido, [Caio Prado Júnior] coloca a questão: o que é capitalismo? Qual sua natureza? Como processo que é, ‘a caracterização do capitalismo [...] que se destaca nitidamente em confronto com os sistemas anteriores do mundo pré-moderno e como termo da evolução daqueles, encontra-se no fato da mercantilização generalizada que no capitalismo penetra no âmago do processo produtivo onde a própria força de trabalho é englobada no regime de trocas’ (1966b, p. 47). Assim capitalismo, relação social determinada, é em sua essência a produção de mercadorias como fundamento da acumulação privada sob produção social, onde os meios de produção estão separados dos trabalhadores. Assim também ‘as funções exercidas pelo capitalista não são mais do que as do próprio capital – do valor que se valoriza, sugando trabalho vivo – exercida com consciência e vontade’ (MARX, 1987, p. 20), sendo por este motivo possível a colônia brasileira acumular capitais em caráter de escravidão, condição anômala. O conceito de subsunção formal ao capital nos é muito caro para o estudo acerca da natureza do capitalismo. Entendemos que, se o capital realiza sua lógica sob formas de trabalho ainda não capitalistas, ou seja, produz sua acumulação sob formas ainda não proletárias e livres para efetuar contratos, também aquelas formações sociais como a brasileira que realizam sua produção sob forma escravista, mas orientada para o mercado participam do regime de acumulação de capitais“ (SARTORETTO, 2015, p. 12). Também importante, no mesmo sentido de fundamentação teórica do pressuposto da caracterização da época colonial como burguês atrelada à AOC é que “relativo à lógica do mecanismo de subsunção formal, segundo Marx (1978, p. 53) o fundamental para se distinguir o momento em que um processo antigo tem sua lógica subsumida pelo capital preservando sua aparência antiga, ‘é a escala em que se efetua; ou seja, por um lado, a amplitude dos meios de produção adiantados; e, por outro, a quantidade de operários dirigidos pelo mesmo patrão (employer)’. Ao atentarmos para a realidade colonial, vemos que os dois aspectos são, de forma convincente, realizados pelas plantations. A escala não podia ser maior, grandes unidades produtoras de monocultura, e a quantidade de escravos - que valorizavam o capital -, como aponta Caio Prado no início do séc. XIX, dos cerca de três milhões de habitantes existentes na colônia um milhão era de escravos, portanto, chegava a ser de 30%” (SARTORETTO, 2015, p. 53). Maxiliano Martin Vicente também aponta ser esta a ideia norteadora do autor para o período colonial: “fomentar a acumulação de capital na Metrópole e subordinar a Colônia a esses interesses. Esse é o sentido da época colonial. Qualquer interpretação formulada sobre ele não pode esquecer tai considerações (1989, p. 95). Se, como se sabe, durante a formação colonial esparsos eram os núcleos de produção mercantil, ladeados por grupos sociais que viviam relativamente à margem, ou mesmo inteiramente distante dela - caso dos grupos indígenas -, como então localizar aquilo que em Marx (2013) é o objeto da reprodução espiritual da ciência, isto é, o nexo interno daquela forma de desenvolvimento? Cremos que a obra de Caio Prado deva ser tomada, processualmente, como resposta a essa questão, donde, durante o percurso de investigação desse real concreto, ele elabora o conceito de “sentido da colonização” (2004) para responder ao questionamento da natureza da formação social brasileira, e que segundo nosso entendimento figura com a gênese do capitalismo brasileiro. 20 demandas precisavam ser atendidas, claro está, de modo conservador. Por esse motivo, então, quando os setores burgueses mais avançados tomam consciência de seus interesses mediante a ajuda desta ideologia e vencem politicamente a batalha decisiva (golpe político-militar vitorioso da Aliança Liberal), ela passa a compor igualmente esse novo estágio de dominação, como matriz ideopolítica. A análise do cientificismo que estrutura este complexo de ideias é central em nossa tese e ajuda a compreender sua natureza íntima, bem como a oferecer uma mais precisa definição. A causa fundamental de sua formulação não reside numa maquinação genial ou recorte preciso e previamente consciente de instrumentos teóricos daquilo que hoje é conhecido como a área das ciências sociais (Ciência Política, Sociologia e Antropologia). Sua existência é a necessária correspondência ideológica, no plano dos interesses de classe da burguesia, das contradições, já latentes, que se desenvolviam no interior da própria vida material (pensamos aqui, especialmente, nas contradições econômicas que a década de 1920 afloraria para a realidade brasileira). Assim, ao eleger as categorias “razão”, “progresso” e “evolução” como centrais para a composição do seu corpo teórico, aqueles intelectuais ajudam a expressar a conquista e a legitimidade de uma nova forma de ser da autocracia brasileira. Dessa maneira, como pretendemos demonstrar, para que se pudesse dar vazão aos elementos de modernidade que essas contradições apontavam para o capitalismo brasileiro – mas que em termos da totalidade maior (mundial) já figuravam como elementos “velhos” – e para que esse desenvolvimento se fizesse restringido a avanço quantitativo, pois o objetivo proposto não poderia ultrapassar o domínio burguês e o padrão de continuidade da autocracia brasileira, Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral tiveram de buscar as referências para suas investigações numa filosofia de mundo bastante particular: o positivismo. Ora, o positivismo é ainda uma das primeiras formas de manifestação do agnosticismo, que procura impedir que o conhecimento humano venha a compreender a dinâmica das esferas fundamentais de análise do real, em especial a das relações de trabalho. Ele surge para combater a reação feudal odiosa à Revolução Francesa, enquanto simultaneamente já se preocupa com o avanço do movimento operário, com suas greves e reivindicações. O positivismo carrega consigo a defesa do progresso da sociedade, ameaçada contra as tentativas de restauração da antiga ordem – mas esse progresso precisa ser restrito unicamente à burguesia, agora classe dominante. O progresso não deve ser irrestrito, como defendido no auge do iluminismo, quando a burguesia era ainda parte do Terceiro Estado. O positivismo deseja, portanto, reorganizar a sociedade burguesa nascente, mas já imersa em intermináveis crises, reservando para si, em perfeita 21 consonância com a crescente divisão do trabalho fomentada pelo capitalismo, a tarefa de cuidar do domínio espiritual. É assim que sua filosofia de mundo entende ter como função fornecer aos representantes políticos o esclarecimento dos meios adequados não apenas de manutenção, mas do progresso da ordem burguesa. Enquanto aos cientistas (“publicistas”) caberia criar a ciência da política, finalmente, em sua positividade, aos governantes restaria apenas executar o que por estes lhes fosse prescrito. Por isso, teoria e direção política são, em Comte (1798-1857), elementos necessariamente orgânicos para a marcha evolutiva da sociedade. Trabalhos espirituais que elaboram princípios para coordenar as relações sociais, instituições e modos de distribuição do poder deveriam, necessariamente, pôr em prática aquele sistema, ou, como faz questão de anunciar claramente: “pode medir-se verdadeiramente, sob o aspecto filosófico, o grau de civilização de um povo pelo da divisão da teoria e da prática, combinado com o grau de harmonia entre elas existente” (COMTE, 1972, p. 72). A semelhança dessa situação estrutural da qual nasce o positivismo para com o caso brasileiro auxilia a melhor compreensão de nosso objeto de pesquisa. A necessidade de afirmar a total desorganização da sociedade brasileira até 1930 não significa outra coisa senão contestar um tipo de domínio burguês exercido em moldes exclusivamente agrário-exportadores. Certamente que a sociedade aqui existia, que havia cuidadosa organização social e que ela era mesmo um completo sucesso, especialmente para a fração burguesa do grande capital cafeeiro, detentor daquele domínio hegemônico. Contudo, do ponto de vista burguês, havia ainda um espaço a ser conquistado pelo capitalismo brasileiro: seu desenvolvimento especificamente capitalista, sua industrialização, negada pela direção política e, vale lembrar, mesmo pela burguesia industrial. Por outro lado, essa progressividade, para ser vitoriosa, precisava levar em conta a situação concreta: o contexto mundial composto já de imperialismos agressivos, no interior do qual se estabelecera uma transformação proletária vitoriosa, a Revolução Russa de Outubro de 1917. É sob essa dupla pressão, interna e externa, e refletindo os interesses de modernização da burguesia brasileira, que esses intelectuais se puseram a elaborar suas contribuições. Formulam um corpo teórico – que aqui recebe o nome de razão autocrática – que consiste nisto: um complexo ideológico processualmente construído, que examina, mediante uma razão corroída – consoante ao período da decadência ideológica –, a formação social brasileira. Encontrando-a em seu grau mais avançado de composição agrário-exportadora, e sob constituição federalista, extraem desse exame a ideia de que existiria uma “razão” própria, ideal, da realidade brasileira, não atendida ou alcançada em sua potencialidade. Seu desconhecimento 22 ocasionaria todos os problemas nacionais, a desorganização, o atraso e o fato de ainda não se ter feito nação. No intuito de encontrar a razão essencial aventada, passam a fornecer orientações prático-políticas. Ocorre que os direcionamentos que ofertam para que essa essência imanente seja encontrada, sua evolução retomada, não são nada mais que a expressão mistificada de uma forma autocrático-progressiva para o desenvolvimento especificamente capitalista brasileiro. Encontrando na direção política de Vargas a mesma forma positivista de apreensão do mundo, portanto, em um dirigente crente de que a capacidade científica porta o poder legitimamente demonstrado, esse complexo cumpre sua função: conscientizar os setores mais avançados da burguesia quanto a suas necessidades de desenvolvimento para que, esclarecidos, levem a resolução dos conflitos políticos até o fim. Legitimada essa visão de mundo pela vitória da Aliança Liberal em fins de 1930, Vargas toma para si tal conjunto de sistematizações doutrinárias e o faz sua matriz ideopolítica. O estancieiro gaúcho, então dirigente do capitalismo brasileiro, põe em prática seus elementos propositivos e leva a cabo uma práxis que cria, de fato, a nova forma de ser da burguesia brasileira, ímpar, uma vez que alcança desenvolvimento autocrático-progressivo, alçando o estágio da industrialização hiper-tardia. A razão autocrática declara finalmente que o país encontrou a si próprio, que a “razão” do povo brasileiro, sua forma brasileiramente genuína de existir e de sentir, fora encontrada e sua evolução finalmente retomada. Enquanto racionalidade de uma burguesia hiper-retardatária, isto é, como expedientes do conhecimento humano largamente empobrecidos pela decadência ideológica – que se generaliza em 1848, mas que vigora seletivamente também nas décadas anteriores -, a atribuição de uma essência supra-histórica à natureza da formação social brasileira duplica a mistificação desse complexo ideológico. Daí que a transformação arbitrariamente manipulável da realidade deva ser realizada restringindo-se, estruturalmente, ao desenvolvimento de suas forças produtivas, ao passo que, politicamente, os pilares mais fundamentais da forma autocrática de domínio devam ser repostos em consonância com esse novo nível. Confundindo- se com o reino das aparências imediatas, podemos compreender por que esse conjunto ideológico será veiculado, quando vitorioso, pelo amplo contingente de agentes e classes sociais. Essa conceituação nos parece tanto mais correta quando analisamos trabalhos que constatam, parcialmente, esses elementos no pensamento político de Vargas, sem se darem conta, contudo, de que lhe são fornecidos pelo complexo ideológico indicado. Basta arrolar o artigo de Livia Cotrim (2019), Industrialização e Bonapartismo – o ideário de Getúlio Vargas 23 (1935-1945): partindo das mesmas fontes teóricas que nossa pesquisa (do conceito de autocracia e de contribuições chasineanas, logo também lukascianas, melhor expostas a seguir), a autora, segundo cremos, não constata a existência desse complexo ideológico por não realizar de forma conjunta a investigação do ideário de Vargas e dos intelectuais aqui referidos. Significativamente, Cotrim parte de 1935, ano em que, segundo nossa tese, já estariam teorizados todos os elementos fundamentais do complexo ideológico. Centrando sua atenção em Vargas, constata que, para o político gaúcho, como solução para a ruína liberal daqueles anos o Brasil poderia escapar dessa crise dando origem a uma “nova civilização”, cuja construção é entendida como destino, ancorado na condição de nação jovem (...). O centro desse “destino” a ser atingido seria a unidade nacional, e para ele indicariam tanto a conformação geográfica de território quanto nossas tradições históricas, cujos fios não poderiam ser partidos. Apresentada não apenas como proposta ou necessidade social, mas como um destino predeterminado, a unidade nacional não é defendida como o novo a ser introduzido, mas como algo a ser retomado, haja vista que interpor obstáculo àquela sina levaria ao fracasso da empreitada ou à decadência do país. (COTRIM, 2019, p, 226-227) [grifos nossos]3 Do ponto de vista terminológico, portanto, “razão autocrática” faz menção tanto a Alberto Torres – intelectual que primeiro conecta a essência da realidade brasileira a um além histórico, chamando-a “razão” de nossa realidade, consoante aos imperativos evolucionistas – quanto deriva dos expedientes de que lançam mão os demais intelectuais que aceitam a tese da essência nacional e se põem, então, a encaminhar sua retomada. Tudo isso, conforme veremos, provém de importarem concepções de uma racionalidade corroída. Em suma, o conceito de razão autocrática diz respeito à suposição da ação dessa essência trans-histórica e consequente preocupação com os meios para efetivá-la. A cunhagem do conceito de razão autocrática é, portanto, nesta tese, o prelúdio fundamental, que pretende tornar mais precisa a apreensão do conteúdo da transformação politicamente dirigida no capitalismo brasileiro entre 1930 e 1945. Uma vez que, nos vários períodos em que ocorreram transições de poder no Brasil, em praticamente todos usamos a expressão “modernização conservadora” como classificação, não seria de todo absurdo utilizá- la também neste caso. No entanto, para explicar o específico processo que propomos debater, 3 Afora encontrarmos todos os traços fundamentais desse complexo ideológico elaborado processualmente por Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral no ideário que Cotrim nos apresenta, indica-se a leitura de seu texto para compreender quão profundamente conservadoras são as concepções do político são-borjense sobre a história brasileira. 24 sua aplicação pouco adicionaria senão saber que nela algo foi conservado e algo modernizado. Isto decorre de que o conceito é oriundo de uma teoria onde é forte a influência sociológica, portanto comparativa e que, por isso, quando aplicada a vários casos distintos, não leva em conta determinações mais precisas. Ainda que o estudo de Barrington Moore Jr, As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno (1975), do qual deriva originariamente aquele conceito, embora oferte contribuições sobre as especificidades que analisa em cada fase histórica sistêmica capitalista, sua transposição pura e simples, enquanto conceito que deseja captar outras vias, não permite abarcar o conteúdo concreto das transformações daquele momento crucial para o capitalismo brasileiro.4 Em suma, nossa tese pretende demonstrar que a chamada “Revolução de 1930”, a qual, segundo Ricardo Antunes, “foi mais do que um golpe e menos que uma revolução” (2018, p. 323), só terá seu sentido (imediatamente opaco e enigmático) captado e seu movimento real reproduzido idealmente, se acompanhada da análise de sua matriz ideológica. Esse corpo ideológico, vitorioso na batalha das ideias por expressar as novas relações de dominação então forjadas, foi produzido, no entanto, por seus maiores representantes intelectuais antes mesmo do assalto ao poder – tarefa fundamental de qualquer classe ou fração de classe que almeje este objetivo. II - Notas sobre a apreensão dialético-concreta da realidade Estabelecidos o objeto de pesquisa e hipóteses, passemos agora a algumas notas, destituídas de qualquer caráter sistemático-doutrinário, sobre a abordagem teórico- metodológica utilizada neste trabalho. Quando Marx apresenta a concepção a que chegara sobre a estrutura da realidade concreta, após décadas de estudo crítico sobre as três fontes fundantes (processo no qual cria uma nova forma social de compreender o mundo, e não apenas uma síntese) de sua visão de 4 Barrington Moore Jr promove um estudo comparativo entre três grandes rotas para o desenvolvimento do mundo moderno: Estados Unidos, França e Inglaterra teriam sido capazes de conciliar o capitalismo com a democracia parlamentar; uma revolução vinda de cima seria o meio por que Japão, Alemanha e Itália teriam conservadoramente atingido o caminho industrial, excluindo qualquer participação popular; por fim, Rússia e China teriam logrado fazê-la pela via de inspiração da teoria comunista. O caso da transformação levada a cabo por Vargas entre 1930 e 1945, pelo próprio caráter de sua singularidade entre as transformações políticas da burguesia brasileira, exigiu que se cunhasse um conceito capaz de expressar essa incomum ação política. Vale lembrar que já em nossa dissertação de mestrado utilizamos o termo para debater a “Revolução de 1930” como uma Crise e transição: um capítulo da modernização conservadora da autocracia burguesa no Brasil (2017). 25 mundo – a filosofia alemã, a economia política clássica e o socialismo francês (LENIN, 2006) –, ele a conforma tão densa e sinteticamente5 que é muitas vezes difícil compreendê-la em sua profunda extensão sem mais explicações. Como intelectual, Marx se caracteriza pela capacidade de enxergara mais longe a dinâmica da realidade, de captar o andamento do concreto em leis tendenciais. É o que se verifica quando da composição, por exemplo, de sua obra magna O Capital, notadamente para expressar idealmente o movimento dinâmico do metabolismo capitalista de produção e reprodução de mercadorias. Essa faculdade teórica explica por que já ali o autor do Manifesto do Partido Comunista foi muito pouco compreendido.6 Posteriormente, a interpretação revisionista e economicista da obra de Marx conduziria a um grau mais elevado de incompreensão de seus reais fundamentos: trata-se da abordagem mecânico-positivista da II Internacional, que enrijeceria e, em última análise, até mesmo eliminaria o papel crucial do sujeito e da subjetividade. Foi em contraposição a essa hegemonia empobrecedora da teoria marxiana que os mais importantes pensadores do século XX se impuseram a tarefa de retomar a verdadeira base da teoria social revolucionária de Marx.7 Lenin, principalmente, pela capacidade de aliar conhecimento teórico e direção política, fundando a mais genuína práxis revolucionária de seu século, Gramsci e Lukács, pela amplitude do saber teórico, são os intelectuais mais capazes entre os que, para utilizar uma expressão levantada por Karel Kosik, 5 Como se sabe, Marx não deixou uma obra de sistematização sobre seu método, postura que deve ser vista não como falta ou demérito, mas como sintoma da sua concepção dialética de pesquisa dos objetos concretos, os quais, para o revolucionário alemão, sempre regem a investigação de acordo com seus movimentos reais próprios. Por isso, remetemos, aqui, a algumas referências primárias sobre os momentos onde abordou esses aspectos: Prefácio da Contribuição à crítica da economia política (2008); Posfácio da segunda edição d’O Capital (2013); primeira parte de A ideologia Alemã (2007). Como precisamente ressalta Ivo Tonet: “totalmente ao contrário dos pensadores modernos, seu pensamento não se instaura como uma gnosiologia, mas como uma ontologia. Isto porque ele compreende que as questões relativas ao conhecimento só podem ser resolvidas após a elaboração de uma teoria geral do ser social, cujos lineamentos fundamentais podem ser encontrados nas obras de juventude – especialmente nos Manuscritos econômicos-filosóficos, em Para a questão judaica, em A sagrada família e em A ideologia alemã -, está suposta em toda a obra posterior de Marx que terá um cunho mais acentuadamente científico. Por isso mesmo, para ele, não há um método que possa ser apreendido previamente ao ato do conhecimento” (2013, p. 70-71). 6 Vale a pena reproduzir aqui o que um dos mais importantes biógrafos de Marx, Franz Mehring, comenta sobre a pouca compreensão que teve a recepção do mais profundo dos seus estudos, O Capital, quase uma década depois de vir à tona: “tinham já passado oito anos após a publicação da sua obra, quando um desses cavalheiros, ocultando discretamente o seu nome, aventou o oráculo edificante de que Marx era um ‘autodidata’ que ignorava toda uma geração de trabalhos científicos. Depois de experiências dessas, era natural que Marx falasse com dureza dessa gente. Por vezes atribuía talvez demasiadas culpas à má fé dos críticos, quando estes o atacavam por ignorância. O método dialético era para eles incompreensível. Foi por essa razão que homens de boa vontade e com conhecimentos econômicos não souberam orientar-se no livro, enquanto que outros que nada sabiam de economia e não simpatizavam com o comunismo falavam da obra com grande entusiasmo, pela simples razão de que estavam iniciados na dialética hegeliana” (1974b, p. 139-140). 7 Para um balanço desse problema, principalmente em relação aos filósofos que procuraram retomar o caráter dialético em Marx, Tertuliam (2004), na defesa da existência de uma teoria da subjetividade em Marx, ainda que in nuce, oferece valioso panorama. 26 foram responsáveis por promover a “vivificação e rejuvenescimento (Verjüngen)” (1982, p. 115) daquela forma de pensar dialético-concreta.8 Nosso trabalho, portanto, procurará pautar- se pelo caminho aberto por esses teóricos. Como nosso objeto de pesquisa se localiza em torno de um fenômeno ideológico, procuramos mais especificamente as contribuições de Lukács, que acreditamos ser quem melhor oferece os delineamentos teóricos do problema.9 Sem compreender que o trabalho, como transformação da natureza, é a categoria fundante do homem, de sua passagem de ser orgânico e biológico a ser social, e sem perceber que já nesta protoforma de toda a atividade humana é a consciência que representa o elemento específico do salto ontológico, que torna efetivamente o ser humano um novo tipo de ser existente, não se pode ir muito longe na apreensão dos fenômenos da vida concreta, passada ou moderna. Por isso, deve-se ressaltar, ainda que de forma sumária, que o homem, já na sua operação ontológica (fundante) enquanto ser social, isto é, no trabalho criador de instrumentos e transformador da natureza, produz, sempre e necessariamente, mais do que seus produtos finais, quando satisfaz necessidades de sobrevivência: produz consciência de si e do mundo, cada vez mais ampla. Dentre a imensa complexidade de operações necessárias, a que mais interessa ao nosso trabalho diz respeito à necessidade de o homem ter conhecimento dos nexos do mundo real para realizar com sucesso seu trabalho. Isto significa, para a discussão ontológica do ser social, que já tanto um ineliminável caráter de aproximação entre conhecimento do real pelo homem e estrutura desse próprio real, afinal são dois polos que possuem existência separada, logo jamais existe identidade entre sujeito e objeto. No entanto, essa relação é igualmente ontológica, quer dizer, insuprimível, pois o homem só existe enquanto ser social no intercâmbio com essa mesma natureza, transformando-a conforme suas necessidades de sobrevivência; para 8 Nesse riquíssimo movimento de vivificação do marxismo, especialmente após a segunda década do século XX, outros intelectuais ofertaram sua colaboração. Vale lembrar as concepções democratizantes da relação entre a vanguarda política e as massas, por Rosa Luxemburgo; a categoria do desenvolvimento desigual e combinado, que Trotsky retoma da abordagem marxiana da totalidade; as cruciais contribuições para a análise do fascismo, por Togliatti, que o levaram a enriquecer e ampliar a luta antifascista como imensa frente popular, no seio mesmo do seu acentuado caráter didático como dirigente de massas; as investigações sobre a cotidianidade, por Henri Lefebvre; estudos sobre filosofia e comunismo de conselhos, por Karl Korsch; a profunda compreensão do vir-a- ser, por Ernest Bloch e, por fim, as inovadoras adaptações do método dialético de interpretar a realidade em seus concretos particulares, por Mao Tse-Tung, na China, e José Carlos Mariátegui, no Peru. 9 Não nos foi possível realizar, durante o percurso de elaboração da tese, a leitura do volumoso Para uma ontologia do ser social, de Lukács. Nossa exposição se baseia, fundamentalmente, em seu texto de apresentação à citada obra, Prolegômenos para Uma ontologia do ser social, no texto de Ester Vaisman (1989), A ideologia e sua determinação ontológica, bem como na obra de Sérgio Lessa (2016), Para compreender a ontologia de Lukács. Cabe ressaltar ainda o vigoroso esforço de Mészáros (2004), discípulo direto de Lukács, em O poder da Ideologia. 27 que essa transformação seja minimamente efetiva, exige-se conhecimento efetivo. Por sua vez, tal conhecimento pressupõe que a ação transformadora da natureza passe por um ato da consciência, que pensa e idealiza – o que Lukács (2010) denomina “teleologia”. Chamada de teleologia primária, essa operação de ideação, o ato de previamente imaginar o que se produzirá praticamente, para que a ideia se objetive (faça-se objeto) por meio do trabalho, diz respeito ao intercâmbio entre homem e natureza orgânica. Mas o homem também é um ser social, não nos esqueçamos, e por isso a atividade primária do trabalho, que só se realiza em sociedade, deve cada vez mais ser inserida centralmente no conjunto de sua reprodução, conforme ao desenvolvimento social mesmo. Para o sentido específico que cada sociedade desenvolve, vale dizer, para as distintas finalidades a que distintas formações sociais decidem orientar sua vivência (para os deuses do Olimpo, para o Rei-Sol, para entidades totêmicas ou para o desenvolvimento cada vez mais humano da humanidade) são necessárias teleologias secundárias, isto é, ideações prévias que passem a orientar, com peso coercitivo necessário, a ação dos outros seres humanos, em vista de que a própria sociedade reproduza seu sentido global de vida. Entre essas teleologias secundárias, que procuram influenciar os indivíduos na escolha de uma alternativa em particular e persuadi-los rumo a uma ação direcionada, a ideologia é apenas uma forma, como o direito, a religião, a arte, etc. Nestes termos é que ideologia se define como elaboração ideal da realidade para tornar operativa a práxis social dos homens segundo determinado fim. Ideologia, portanto, na obra tardia do filósofo húngaro, é concebida como função, segundo suas determinações ontopráticas, e não de acordo com uma diferenciação gnosiológica, que pretende qualificá-la segundo seus critérios de verdade ou falsidade. Segundo esta última interpretação, ideologia seria apenas conhecimento falso, uma falsa consciência, ao passo que conhecimento verdadeiro equivaleria a ciência. Distintamente, para Lukács, em sendo aquilo que fundamenta a prévia-ideação da prática dos homens de forma persuasiva, a ideologia pode ou não provir do conhecimento científico, como pode ou não derivar de um falso conhecimento. Por isso, o critério de definição de uma ideologia é sua precisa função social. Acontece que, num nível menos abstrato e mais tardio na história, quando os homens passam a dividir-se em classes sociais, a divisão do trabalho, espontaneamente desdobrada, é uma das complexificações mais importantes para compreender não apenas o surgimento das demais esferas da vida social – a atividade da linguagem, da arte, do direito, da educação, da política e da ciência – mas também para que se diferencie a definição de ideologia, então restrita a uma função ainda mais especifica, vale dizer, a um claro e necessário instrumento da luta 28 social, capaz de conscientizar grupos quanto a seus interesses, para que, esclarecidos, entrem em luta e resolvam-na, levando até o fim suas pautas de classe. Os conflitos efetivamente existentes entre os homens sofrem, então, mudança qualitativa: tornam-se antagônicos. Daí o surgimento do Estado, em geral, e, especificamente, do direito como complexo de regulação, organizando os conflitos em níveis aceitáveis e, assim, reprimindo-os. Como nessas sociedades antagônicas todas aquelas novas esferas de complexos levam a marca, em última instância, da estrutura das relações de trabalho sempre específicas, seria do interesse de uma classe, sofrendo uma situação de dominação, propagar conhecimentos científicos como ideologia, para que ela cumpra a função social de instigar os homens a agir no sentido de que tomem consciência de seus interesses nas batalhas ideopolíticas. Nesses casos, propagação de conhecimentos profundamente científicos como ideológicos se confunde com a propagação de uma subjetividade que procura tornar o homem um ser autônomo, intelectual e efetivamente esclarecido por estes conhecimentos científicos. Necessitamos arrolar aqui apenas um exemplo. Trata-se do caso clássico do movimento secular que contempla o pensamento renascentista e iluminista burguês (distintos, porém conformadores de um processo unitário de ascensão da burguesia) e que leva até a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, na derrocada do antigo regime absolutista. Como exigência da situação de classe da burguesia, fora do poder e lutando contra a classe dominante (nobreza feudal e clero), era de seu profundo interesse que esses conhecimentos fossem propagados, pois serviam (cumpriam a função social) de luta contra a ideologia das classes medievais, ancoradas na religião e no poder da Igreja Católica, que procurava obscurecer e negar a ciência com sua ideologia, isto é, com sua doutrinação de obediência às Sagradas Escrituras. No entanto, uma vez concretizada a Revolução Gloriosa, efetuada a Revolução de Independência dos Estados Unidos da América e realizada a Revolução Francesa – a inacabável revolução, segundo Augusto Comte –, passa a ser do interesse de classe dessa mesma burguesia não mais propagar os conhecimentos científicos como ideologia, pelo menos no que diz respeito aos conhecimentos sobre a realidade social, já que os saberes da ciência da natureza não apenas devem ser propagados por seu inestimável serviço à técnica burguesa de produção, mas devem inclusive, principalmente como método de investigação, ocupar o lugar de verdadeiro conhecimento da realidade humana, com o que receberá seu impulso nascente a Sociologia. O que há de mais marcante nesse movimento, deve-se aqui ressaltar com todas as forças, diz respeito à percepção já alcançada por pensadores do período de ascensão da sociedade burguesa, como Vico e Hegel, pela primeira vez, de que são os homens que fazem a sua própria 29 história. Porém, mesmo essa descoberta, que está entre as maiores conquistas filosóficas da burguesia e que impulsionou, inclusive, as revoluções radicais citadas anteriormente, como meios necessários para combater o velho feudalismo, precisa agora ser negada e abandonada. Tudo se complica ainda mais para a burguesia, como classe, após o fatídico 1848, quando o proletariado irrompe com força na cena política, lutando por seus interesses revolucionários. Nesse sentido, a ideologia burguesa, isto é, suas prévias-ideações a serem propagadas para influenciar os homens, tende a veicular cada vez mais uma subjetividade que procura assegurar a manutenção das estruturas sociais de classes estabelecidas. Pretende coagir a ação dos indivíduos, entre as alternativas disponíveis, para a preservação do status quo do capitalismo. Se antes a referência era a uma subjetividade emancipadora, ao menos politicamente, agora o conteúdo propagado é maciçamente conservador e crescentemente reacionário, pois procura aprisionar o homem cada vez mais nos imperativos da reprodução de uma sociedade mercantil. Somente a razão dialética se mostra capaz de compreender esse processo histórico, que desagua numa cada vez mais ácida corrosão da cientificidade filosófica e ganha ossatura definida no que se denominou de “decadência ideológica”, conhecendo seus contornos mais nefastos no irracionalismo moderno e nas contribuições que legará à filosofia de mundo nazista. Trata-se da única abordagem do real que resgata as determinações do mundo do trabalho, descartadas peremptoriamente pela filosofia burguesa de mundo, que vê ainda impulsos adicionais qualitativos para abandonar sua postura filosófica progressiva após a vitória da primeira experiência de um Estado proletariado na Rússia - a duras custas, e por isto contendo também significativos desvios. Ontologicamente fundada, portanto, somente ela é capaz de fornecer a compreensão das mediações concretas que a consciência burguesa dos dias do proletariado feito classe possui com a vida real. Logo, também aqui a perspectiva do presente trabalho deve declarar-se ligada ao arcabouço teórico-metodológico lukacsiano de retomada de Marx. Trata-se de aplicar tal perspectiva sobre um novo complexo de problemas; até agora, segundo nos parece, tal perspectiva não foi utilizada para pensar o presente objeto, ao menos nessa amplitude.10 Não por acaso, em tempos de deturpação intencional dessa modalidade de 10 O estudo de Ricardo Antunes, Classe operária, sindicatos e partido no brasil (1980), é pioneiro nesse sentido. A busca do sociólogo é por “uma explicação de maior densidade ontológica” da “verdadeira forma de ser” da classe operária, conforme declara expressamente. Para tanto, Ricardo Antunes restringe sua investigação ao período 1930-1935. Como teremos oportunidade de perceber no decorrer do trabalho, a análise do autor é balizada pela relação entre consciência de classe das massas em geral, nos processos grevistas e organizações sindicais, e da proposta política revolucionária da vanguarda partidária. Tem-se aí, pois, proposta bastante distinta do que estamos propondo. Contudo, para que fique marcada a identidade entre nossa abordagem e a 30 mirar o horizonte social, a escolha envolve polêmicas. Nicolas Tertuliam conta que, com sua publicação em 1954, A destruição da razão, de Lukács, deslocando do cerne a polêmica materialismo x idealismo e ali inserindo o antagonismo racionalismo-irracionalismo, “não deixa de lhe atrair os raios de certos espíritos sectários e dogmáticos pertencentes ao establishment socialista” (2011, p. 17). Embora a racionalidade, como conceito dialético, nessa obra, não apareça de todo relativizada, no sentido de ter cuidado para não se identificar totalmente a complexidade infinita do real com a capacidade e possibilidade de conhecimento humano, o autor argumenta que não se pode tomar o estudo do filósofo húngaro, cuja natureza é de combate político, isoladamente, devendo, pois, percebê-lo como coligado a sua contrapartida positiva que é O Jovem Hegel e a seus desdobramentos posteriores, Estética e Ontologia do Ser Social. Nestes, a abordagem ontológica já aparece mais matizada. Contudo, estaria presente em todo o percurso, sempre balizando a discussão marxista, “sua tese fundamental de que o pensamento dialético (aquele de Hegel e Marx) representa o ponto mais avançado da reflexão histórica (a razão, para ele, é sinônima de pensamento dialético” (TERTULIAM, 2011, p. 16).11 Por fim, são as contribuições teóricas efetuadas por José Chásin (1978) que lembram da tarefa essencial para a pesquisa de um objeto como este: que a análise ideológica jamais deve perder de vista as referências ao complexo histórico-social, responsável por impor a determinação fundamental de todo pensamento. Essa operação deve ser efetuada de modo a nunca ver aí um reducionismo. Desta maneira, os sujeitos intelectuais, embora criem, no plano mais imediato, individualmente suas teorias, remetem sempre a classes sociais, pelas quais são do sociólogo, basta observar a passagem com que começa sua tese, demonstrando sua opção pela investigação ontológica marxiana, isto é, pela chave de leitura da razão dialética: “a relação entre o ser e a consciência, objeto e sujeito, realidade e pensamento só encontrou na formulação de Marx sua verdadeira dimensão dialética. Enquanto o pensamento filosófico positivista desarticulava a relação entre ser e consciência, através da afirmação do primado do empírico – entendido como real -, e da exclusão da razão, o pensamento filosófico racionalista, oposição aparentemente radical ao empirismo positivista, esforçava-se para explicar o objeto por meio do pensamento, através do primado da razão; da mesma forma que o empirismo, o racionalismo operava uma rigorosa separação entre matéria e consciência. Na verdade, entre empirismo e racionalismo há uma pseudo-antinomia; ambos operam uma separação mecânica entre consciência e matéria, razão e realidade, e não conseguem apreender o verdadeiro conhecimento do real” (1980, p. 1). 11 Ao indicarmos na retomada por Lukács da abordagem marxiana sobre os aspectos ontológicos do ser social o melhor embasamento teórico – ontológico-genético – para debater um fenômeno ideológico, da consciência, muitos são os pesquisadores e pesquisadoras que continuaram essa tradição, servindo-se do conceito de razão dialética. Desta forma, quando passamos a usá-lo como instrumento categorial central de nossa de análise, colocamo-nos como herdeiros de larga tradição, que se aprofundou nesse rico viés de remontar às influências da dialética de Hegel em Marx para investigar a realidade. Fundamentais para nossa pesquisa foram os livros de Leo Kofler (2010), História e Dialética; Karel Kosik (1976), Dialética do Concreto; Carlos Nelson Coutinho (2010), O estruturalismo e a miséria da razão; Ivo Tonet (2013), Método científico: uma abordagem ontológica, bem como os artigos de Karel Kosik (1982), A dialética da moral e a moral da dialética, Estes Vaisman (2006), Marx e a filosofia: elementos para uma discussão ainda necessária e Jose Paulo Netto (1994), Razão, ontologia e práxis. 31 motivados e do ponto de vista das quais exprimem um processo real. Isso equivale a dizer também que não são, como expressão ideológica, simples mecanismos lineares, pois que podem, inclusive, captar prematuramente determinados traços do movimento social. Esses fatos dependem, por sua vez, de como as contradições às quais correspondem se manifestam na realidade, se estão ainda em seu estágio inicial, subterrâneo, por assim dizer, se já apresentam caráter explosivo ou se já estariam em vias de decomposição. Deve ficar claro que essa relação pode apresentar-se numa variedade infinitamente complexa de casos. Assim, por exemplo, uma ideologia pode conter traços antecipadores por genialidade muito antes de sua correspondência material desenvolver-se plenamente, como no caso da publicação, por Graco Babeuf, do Manifesto dos Iguais, em 1796, durante o começo da fase de refluxo da Revolução Francesa, expressando o embrião de uma ideologia comunista. Ou então pode manifestar-se como debilidade genética e fraqueza congênita, germinado por profundo irracionalismo, “a nível do discurso, a refletir o raquitismo do sujeito histórico expresso”, traduzindo, inclusive, “a inviabilidade concreta da resposta que o motiva” (CHÁSIN, 1978, p. 612), tal qual o ideário de Plínio Salgado e seu movimento integralista, utopia pequeno-burguesa de regressão a um ruralismo de pequena propriedade jamais existente. Esses esclarecimentos sobre o arcabouço metodológico, que não se pretendem dogmáticos, mas aplicáveis somente ao particular concreto sobre o qual se debruçam, são fundamentais, por dizerem respeito a uma forma de consciência burguesa bastante escorregadia, uma vez que se propõe a extrair conclusões cientificistas de poderosas análises históricas da formação social brasileira. Desta forma, cremos que é possível realizar uma desmistificação dessa expressão ideológica, temporalmente larga e dinamicamente viva, aqui conceituada como razão autocrática. Sendo assim, a primeira tarefa a que nos propomos, na tese, abrindo a Parte I, é demonstrar o caráter processual do nosso objeto. Isso é importante para explicitar, também, a natureza móvel de um fenômeno ideológico, contra tendências empobrecedoras, inclusive interiores ao marxismo, que o concebem apenas de forma rígida e imutável. Desta maneira, é natural que Alberto Torres apresente inúmeras contradições em suas reflexões; pode-se encontrar, em sua obra, mesmo alguns aspectos de posições que, inseridas em outro projeto de desenvolvimento do capitalismo, seriam consideradas progressistas. Contudo, é ele quem inicia, para a abordagem do complexo em apreço, metodologicamente, o empobrecimento da possibilidade científica de captar a concreticidade, visando estabelecer o caminho para captar a 32 existência de uma essência supra-histórica da sociabilidade brasileira, por ele atribuída e à qual designa o caráter de razão de nossas realidades. Dizemos natural que Torres, em sua época, apresente contrassensos porque o movimento objetivo ao qual a ideologia em questão corresponde ainda germinava, ele mesmo, em suas contradições. Daí, por exemplo, em que pese o autor ser um dos primeiros a chamar a atenção para um debate sobre as consequências da aparência do fenômeno (a Constituição Brasileira seria importada e não corresponderia às pretensas verdades nacionais), sua indicação política é ruralista (proposta de valorizar o trabalhador e a produção rural), embora os traços regressivos que apresente não possam ser identificados como os que aparecem em Plínio Salgado. Oliveira Vianna, por sua vez, absorvendo e desenvolvendo as suposições de método de Alberto Torres – alguns preferem considerar tal processo um desvirtuamento, o que consideramos equivocado –, passa a expressar, com precisão espantosa, por um viés ideológico, o desenvolvimento cada vez mais caudaloso da economia brasileira já nos inícios da década de 1920. Este autor também será fundamental na justificativa do caráter autocrático da transformação levada em curso, negando a possibilidade de mudanças sociais em um amplo campo das relações de poder, estabelecendo condições “indomáveis” da burguesia brasileira, e no máximo permitindo que ela se passe de bronca a esclarecida, por reformas técnicas. Ao acompanharmos as reflexões de Azevedo Amaral, torna-se evidente a natureza da ideologia como reflexo-proponente, ou seja, como correspondência de um processo no campo dos interesses de classe, ao mesmo tempo em que aponta direcionamentos político-econômicos esclarecidos. Especialmente caras serão as contribuições racialistas e sua sensibilidade para o desenvolvimento industrial, que se torna o dinamismo econômico central do país, na década de 1930. O jornalista chega mesmo a desenvolver elementos que estão presentes em justificativas típicas de um capitalismo imperialista, adaptando-os, porém, às possibilidades de desenvolvimento da particularidade brasileira, dependente e caudatária. Os leitores poderão acompanhar, também, no âmbito psicológico, a ascensão do fenômeno ideológico; em Alberto Torres, ainda se verifica certo pessimismo, atenuado e mesmo resignado em Oliveira Vianna devido à capacidade moderada de transformações, mas já eufórico em Azevedo Amaral, que chega a uma apologia integral – não sendo mero acaso ter sido a ele encomendada uma biografia de Vargas, ainda no regime ditatorial do Estado Novo. 33 Esse é o escopo do primeiro capítulo, formado pela investigação imanente dos máximos representantes político-literários do conjunto de representações racional-autocrática. Estes se mostram, assim, como aqueles que, segundo a abordagem marxiana em O 18 de brumário de Luís Bonaparte (2011) assim se transformam por não terem a capacidade de ultrapassar em suas investigações e abordagens os limites que a classe à qual correspondem está circunscrita, impelida por seus interesses materiais e condição social. O segundo capítulo procura realizar a crítica à concepção metodológica desses autores. O fundamental, para nós, reside em apresentar o aspecto gnosiológico que funda esse corpo ideológico, demonstrando as operações reducionistas que promove. Trata-se de encontrar os pressupostos aplicados de “uma bem-sucedida corrosão da cientificidade filosófica”, para usar um adequado termo de Lukács (2020). Cabe indicar aqui apenas os dois pontos que percorrem estruturalmente o capítulo. Trata-se da função social do método que o positivismo se presta a cumprir, como filosofia organizadora da dominação capitalista, antecipando mesmo fundamentos que somente após 1848 iriam se tornar generalizados para a burguesia como classe.12 O outro aspecto é que a propalada ideia da “substituição do Estado político pelo Estado técnico” e da “política como arte”, veiculadas por esses intelectuais, encontra aí seu significado de crítica superficial ao capitalismo, quando na verdade seu sentido íntimo é o de avançar seu desenvolvimento, que daquele período em diante só pode ser restrito ao progresso econômico dos problemas de classe da burguesia, e não mais da sociedade como um todo. Aí se procura demonstrar detalhadamente o corpo de vanguarda teórico-ideológico de suas demandas de classe, fornecendo elementos esclarecidos para uma consistente práxis autocrática. O segundo capítulo também inicia um percurso que só será finalizado no decorrer de toda a Parte II do trabalho: a destruição da pseudoconcreticidade. Utilizar-se da razão dialética para expressar idealmente o movimento concreto do qual ela surge significa, por um lado, dissolver essa representação reificada do mundo material, demonstrando sua ineliminável perspectiva classista, negando que a criação desse real possa ser obra de arte política, ordenamento demiúrgico do dirigente e supressão da política em sua própria esfera; por outro 12 Ao argumento que possa surgir de que aos dias de Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral não existia uma disciplina de Sociologia formada no Brasil (valendo o mesmo para a Antropologia ou Ciência Política), respondemos de que não é este o escopo da crítica. Ao marxismo interessa investigar a função social que o método desempenha, uma vez que em seu viés ontológico o conhecimento é sempre direta ou indiretamente instrumento de transformação efetiva da realidade. A inexistência desse formalismo em nada altera a substância do nosso argumento. Se assim não fosse, as análises de Engels e Marx sobre Ricardo e Adam Smith (obras inscritas até o limitar da década de 1820), expoentes maiores da economia clássica burguesa, estariam de todo invalidadas, já que a economia como disciplina propriamente institucional data apenas da segunda metade do século XIX. 34 lado, e em contrapartida, oferece-se também a demonstração de como uma nova forma de ser da totalidade do capitalismo brasileiro se origina de contradições consigo mesmo. Procuramos, portanto, revelar e descrever tais contradições, ao invés de escondê-las, como procede misticamente a razão autocrática. Acompanharemos como, conscientizados os setores mais avançados dessa burguesia, o corpo doutrinário em apreço ofereceu elementos para que a práxis autocrática do grupo dirigente, vitorioso com a Aliança Liberal, pudesse se guiar por essa matriz ideopolítica. Permitia-se, assim, que o passado autocrático agrário-exportador fosse pensado à luz dos problemas imediatos. Contraposto a essa prévia-ideação, a esse futuro especulado conforme seus mais genuínos interesses de classe, oferecia-se a melhor alternativa para a tomada de decisão adequada ao rumo de uma forma autocrático-progressiva, para o desenvolvimento especificamente capitalista brasileiro. Ora, e o que mais se apresentou para os representantes burgueses dessa autocracia, entre os anos 1930 e 1945, senão essa infinidade de desencontros, problemas de consentimento, levantes, tentativas de golpe, insurreições revolucionárias, greves gerais, alterações constitucionais, guerra e crise generalizada? Tal contexto deveria ser melhor definido como um Estado de dissentimento - e não de “compromisso”, como quer a teoria politicista do populismo.13 Portanto, a esses novos problemas, constantes desafios e inelimináveis dilemas postos por esse desdobramento da sociabilidade em um patamar superior, a razão autocrática oferecia ao grupo dirigente norteamentos os mais fundamentais, apresentando ideações para uma práxis autocrática. Com isso, engendrava-se nova forma de desenvolvimento, alicerçada em complexo ideológico dotado de respostas constantemente atualizadas. 13 Seguimos de perto, aqui, as indicações de José Chásin, para quem o entendimento da teoria do populismo deve concentrar-se em sua concepção como constructo ideal, isto é, conforme a tipologia weberiana (que remonta às dicotomias kantianas entre ser e realidade), de inspiração liberal, para a qual é o sujeito que organiza a realidade de acordo com suas preferências, e não o objeto de pesquisa que rege a teoria, como na ontologia marxiana. De Chásin, ver, principalmente, A sucessão na crise e a crise na esquerda (1989), onde o autor estende o mesmo critério analítico aos conceitos de dependência, autoritarismo e totalitarismo. Ver, também, seu importante artigo Sobre o conceito de totalitarismo (1977). Domenico Losurdo, em Para uma crítica da categoria de totalitarismo (2012), procede de maneira muito semelhante, ao criticar a teoria igualmente típico-ideal de Hanna Arendt. Por fim, procuramos realizar uma reconstrução sintética do caminho histórico percorrido pela teoria do populismo de Weffort, revelando, ao mesmo tempo, seus profundos limites, devidos exatamente á incapacidade de superar esse aspecto típico-ideal, em Pressupostos Metodológicos do Populismo (SARTORETTO, 2019). 35 Não convém estender demasiado esta introdução com uma descrição, ainda que sumária, dos quatro capítulos onde debatemos extensamente os itens que situam o complemento da pesquisa. Por isso, limitar-nos-emos a um aspecto fundamental. A segunda parte deste trabalho pede que sejam esclarecidos, antecipadamente, os pressupostos que definem a particularidade da nossa forma de democracia. Ora, seu caráter pode ser conhecido, em sua inteireza, unicamente se se acompanha o sentido geral das lutas peculiares a nossa história política em torno da produção e da apropriação material da riqueza. III – A forma de domínio autocrático-burguesa brasileira Nas tentativas que realizou, ainda quando democrata-radical, nos anos iniciais da década de 1840, para criar periódicos de luta política e ideológica, no intuito de fazer avançar as relações burguesas na Alemanha, Marx já percebia que deveria dispensar atenção cuidadosa ao perfil da burguesia alemã. Esta não tendia a compactar com o desenvolvimento democrático senão quando obrigada por todas as circunstâncias, e ainda procurando delas retirar meios para atender a seus exclusivos interesses. Esse grau de reacionarismo fica patente, ao constatarmos que é o esforço de Marx, criando a Gazeta Renana, jornal circulado em Colônia durante 1842 e início de 1843, que constituiria o ponto mais alto daqueles anos, em termos do jornalismo democrático-burguês alemão. Não há aí qualquer paradoxo, pois “sem reduzir a componente democrática aos limites liberais ou identificá-la a eles – antes, radicalizando-a” (NETTO, 2020, p. 62), Marx se movia ainda nos marcos de uma radical postura democrático-burguesa, lutando especialmente contra a censura, e nesta chave democrata, que perpassava o limite do que o liberalismo suportava (em março de 1843, o Rei Frederico Guilherme IV mandou fechar o jornal, como ápice de uma onda repressiva que vinha atormentando o jornal, praticamente desde o início), defendendo não os interesses específicos da burguesia como classe, mas os gerais, do povo. É desse período a famosa percepção sobre o caso do roubo de madeira pelos camponeses pobres, que despertaria Marx para as contradições de classe, radicalizando sua posição política; ele descobriria, então, que tal burguesia (fosse aceitando pacificamente a dominação política da nobreza feudal, fosse agora enquanto nobreza aburguesada) constantemente fazia escolhas que deixavam a miséria alemã na retaguarda do desenvolvimento europeu, com as maiores consequências necessariamente resultando para as questões sociais. Esse prelúdio só é, aqui, necessário para demonstrar a importância da correta compreensão da particularidade de uma forma de domínio. Nesse intuito de localizar a intricada 36 relação entre determinação econômica e escolha política, passa-se também ao aumento das chances de sucesso para as intervenções políticas na luta democrática, realizada com conhecimento de causa. Veremos que a investigação desse ponto, no caso brasileiro, requer a utilização de um específico conceito capaz de lançar alguma luz sobre os brutais e constantes expedientes lançados pela burguesia brasileira para dirigir sua formação social. Há um conjunto de investigações especializadas sobre o assunto, as quais constituem o núcleo a partir do qual nossa tese se desdobra. Em seus estudos sobre a origem da autocracia burguesa no Brasil, Antonio Carlos Mazzeo14 incorpora, com o intuito de aprofundá-la, importante hipótese de José Chásin (1978) que defende a entificação do capitalismo no Brasil mediante uma via colonial, isto é, generalizando, sob este conceito, a perspectiva caiopradiana de o Brasil ter nascido sob e para responder a aos influxos de acumulação originária do capitalismo (AOC) que então se gestava na Europa – daí o sentido da colonização, de que trata Caio Prado (2004). Dessa maneira, gênese do capitalismo brasileiro e autocracia correspondem mutuamente uma à outra, na formação social brasileira, já que a burguesia que aqui se instala precisa, exatamente por esse caráter de dependência ao estatuto exclusivo metropolitano, partilhar o grosso dos seus ganhos com as burguesias mercantis centrais. Esse estatuto autocrático se revela, portanto, desde muito cedo na história social brasileira. Por isso, podemos encontrar, em pesquisas como a de Clóvis Moura, a constatação de que mesmo o quilombo, espaço que foi historicamente locus da mais orgânica resistência do negro, “poder paralelo que se fragmentava e era destruído periodicamente, se recompunha e se reestruturava, organizava-se, sobrevivia, vencia (...) e era um fator dinâmico de desgaste permanente à ordem escravista” (2001, p. 115); mesmo esse mecanismo de defesa contra o domínio brutal da escravidão, resgatado pela acumulação burguesa como forma de trabalho, era integralmente negado e, quando descoberto, completamente aniquilado.15 14 Remetemos aqui as análises de Antonio Carlos Mazzeo presentes em Estado e burguesia no Brasil. origens da autocracia burguesa. São Paulo, Boitempo, 2015; Sinfonia inacabada: a política dos comunistas no Brasil. São Paulo: 1999, especialmente o Capítulo I: Pizzicato – Particularidades sócio-históricas da formação social brasileira, p. 105-129. 15 Oliveira Vianna, intelectual máximo dessa autocracia, não hesita em chamar “cientificamente” os quilombos de antro onde os “bandidos abundam” e seus membros de “temerosos salteadores negros”, constando que “contra esses malfeitores, os potentados coloniais arremetem as suas hordas de valentes, debelando-os. É o caso de Bartolomeu Bueno do Prado, que destrói, por ordem de Gomes Freire, o terrível quilombo do rio das Mortes: ‘Bueno desempenhou tanto o conceito que se formou no seu valor e disciplina de guerra contra os índios e pretos fugidos, que, depois de organizar sua força e atacar o quilombo, voltou em poucos meses, apresentando 3.900 pares de orelhas dos negros que destruiu’” (VIANNA, 2010, p. 248). 37 Já classe dominante interna durante os séculos coloniais, a burguesia brasileira decide, então, avançar em seu desenvolvimento, mas o fez de forma a optar, pois a questão aqui é de escolha política e não de capacidade, por não romper com esse caráter subordinado e dependente, durante o processo de sua independência política. Preferiu tão somente criar o Estado nacional, mantendo os pilares produtivos anteriores: o grande latifúndio, a monocultura e a escravidão. O que antes consubstanciava a economia colonial, imposto de fora, agora passaria a dinamizar também o novo estado de coisas. A burguesia brasileira internalizava e reproduzia, a seu modo, os elementos basilares da situação anterior. Captando as determinações mais precisas da burguesia brasileira, que em seu processo de desenvolvimento político resgata elementos que conservam o grande latifúndio, em termos semelhantes aos quais Lenin (s/d) definira o caso da revolução burguesa alemã (“via prussiana”), para concretizar um Estado nacional sob uma base produtiva colonial, pois respondendo economicamente aos polos centrais do capitalismo, e sem que a escravidão fosse deslocada da figura de principal mecanismo de trabalho, Mazzeo (1999) define essa articulação como uma via prussiano- colonial, distinguindo-a mais ainda das outras vias coloniais da América espanhola. É nesse preciso sentido que se deve entender a via de objetivação do capitalismo brasileiro, assentado em base escravista (modernizada continuamente) e no latifúndio (tal como no caso prussiano de aliança com as classes mais reacionárias, no que tange a transformações políticas). A profunda debilidade dessa forma particular de entificação capitalista torna-a incapaz de desenvolver condições materiais para que possa ser aqui gestada uma revolução burguesa c