UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA CAMPUS DE MARÍLIA MATHEUS FELIPE DE OLIVEIRA NUNES O PROBLEMA DOS UNIVERSAIS EM BOÉCIO MARÍLIA 2024 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA CAMPUS DE MARÍLIA MATHEUS FELIPE DE OLIVEIRA NUNES O PROBLEMA DOS UNIVERSAIS EM BOÉCIO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Linha de Pesquisa: Conhecimento, Ética e Política. Orientador: Dr. Andrey Ivanov MARÍLIA 2024 4 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). N972p Nunes, Matheus Felipe de Oliveira O problema dos Universais em Boécio / Matheus Felipe de Oliveira Nunes. -- Marília, 2024 74 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Andrey Ivanov 1. Filosofia. 2. Metafísica. 3. Universais (Filosofia). 4. Lógica. I. Título. 4 MATHEUS FELIPE DE OLIVEIRA NUNES O PROBLEMA DOS UNIVERSAIS EM BOÉCIO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. BANCA EXAMINADORA Orientador: Dr. Andrey Ivanov Universidade Estadual Paulista (Unesp) 1º Examinador: Dr. Anderson D’Arc Ferreira Universidade Federal da Paraíba (UFPB) 2º Examinador: Dr. Guilherme Louis Wyllie Medici Universidade Federal Fluminense (UFF) Suplentes: Prof. Dr. Ricardo Pereira Tassinari Universidade Estadual Paulista (Unesp) Prof. Dr. Jorge Augusto da Silva Santos Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Marília, 09 de agosto de 2024 5 “O sofrimento acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo. Os homens verdadeiramente grandes devem, parece-me, experimentar uma grande tristeza.” DOSTOIÉVSKI (2009, p.143) 6 AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu orientador Andrey Ivanov, pelos conhecimentos compartilhados e pelo apoio nesta jornada. Aos membros da banca, Anderson D´Arc e Guilherme Wyllie, pelos comentários na qualificação e pela cautela e cuidado na leitura. A todos meus familiares, especialmente meus pais, meu irmão, André, meu pai de criação e meus tios Osmar, Anderson Befi e Irani e meu primo Gustavo por me fazerem acreditar no meu potencial. Á Laís Silva Porto, por ter sido tão importante e especial durante a minha trajetória e por todo incentivo. A todos meus amigos, que me incentivaram a não desistir. 7 RESUMO Esta dissertação tem como objetivo estudar a solução de Boécio ao problema dos universais. Investigamos a origem do problema a partir da análise da herança antiga, sobretudo em Platão e Aristóteles, e partir daí analisamos como Boécio recebe esse problema por meio da Isagoge de Porfírio, e como em seu pensamento, especificamente no segundo comentário à Isagoge, caracteriza-se a sua posição sobre o problema. Primeiramente, tratamos de explicar o significado do problema dos universais. Assim, colocamos em evidência do que trata o problema, e quais suas implicações metafísicas e epistemológicas, além de um resumo da sua repercussão. Em seguida, fazemos um exame do problema tal como se deu na Antiguidade. Primeiro, abordamos o pensamento platônico e sua posição nesse contexto, isto é, os universais como substâncias separadas do sensível. Depois, encaramos a posição aristotélica e a sua crítica ao platonismo, especificamente no tratado das Categorias, no qual Aristóteles caracteriza o universal como uma abstração do particular, invertendo ontologicamente a primazia do universal sobre o particular tal como em Platão. Por fim, faz-se necessário um estudo da recepção de Boécio dos antigos na questão, assim como da sua resposta à problemática de Porfírio estabelecida na Isagoge. A partir disso, examinamos detalhadamente a resposta boeciana a cada uma das três perguntas dessa problemática, bem como a repercussão das respostas e sua importância. Palavras-chave: Universais. Isagoge de Porfírio. Lógica. Metafísica. Boécio. 8 ABSTRACT This dissertation aims to study Boethius’ solution to the problem of universals. We investigate the origin of the problem from an analysis of the ancient heritage, mainly in Plato and Aristotle, and then we analyse how Boethius recieves this problem through Porphyry's Isagoge, and how in his thought, specifically in the second commentary on the Isagoge, his position on the problem is characterized. Firstly, we try to explain the meaning of the problem of universals. In this way, we show what the problem is about and its metaphysical and epistemological implications, as well summarising its repercussions. Next, we examine the problem as it arose in antiquity. First, we address the Platonic thought and its position in this context, that is, universals as substances separate from the sensible. Second, we consider the Aristotlelian position and its critique of Platonism, specifically in the treatise of the Categories, in which Aristotle characterises the universal as an abstraction from the particular, ontologically inverting the primacy of the universal over the particular as in Plato. Finally, it is necessary to study Boethius’ reception of the ancients on the problem, as well as his response to Porphyry’s problematic set out in the Isagoge. From there, we examine in detail the Boethian response to each of the three questions of this problematic, as well as the repercussions of the answers and their importance. Keywords: Universals. Porphyry’s Isagoge. Logic. Metaphysics. Boethius. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 CAPÍTULO PRIMEIRO O problema dos universais: o que é, sua origem, a recepção medieval e sua repercussão 12 1. Posição do problema 12 2. Tradição e recepção do problema 13 3. Repercussões do problema no medievo 19 4. O ultrarrealismo 20 5. O realismo aristotélico 21 6. O nominalismo 21 7. Conclusão 23 CAPÍTULO SEGUNDO Um panorama da discussão dos universais na antiguidade 24 1. Os universais como substâncias separadas 24 2. A influência de Heráclito: o devir contínuo do sensível 25 3. A influência socrática: a busca pelo universal e pelas definições 27 4. A noção de idea ou forma 31 5. Os universais como abstração do intelecto 34 6. O tratado das Categorias 36 7. Pontos de ruptura entre as duas teses 39 8. Conclusão 42 CAPÍTULO TERCEIRO A posição de Boécio em relação ao problema 43 1.A Isagoge de Porfírio 43 2. O gênero 44 3. A espécie 44 4. A diferença 44 5. Os próprio 45 6. O acidente 45 7. O primeiro problema: a autossubsistência dos gêneros e das espécies 45 8. O segundo problema: a incorporeidade dos universais 54 9 9. O terceiro problema: os universais são separados ou constam nos sensíveis? 57 10. A mudança de posição no Sobre a consolação da filosofia 61 11. Conclusão 63 CONSIDERAÇÕES FINAIS 68 REFERÊNCIAS 71 10 INTRODUÇÃO Esta dissertação propõe-se a investigar a resposta de Boécio ao problema de Porfírio, cuja formulação é tributária do platonismo e de Aristóteles. O foco será então analisar como Boécio encaminha essa questão, especialmente no Segundo Comentário à Isagoge. Assim, exploraremos inicialmente o significado do problema dos universais, suas implicações metafísicas e epistemológicas, além de um resumo de sua repercussão histórica. Na sequência, examinaremos a abordagem filosófica na Antiguidade, começando com o pensamento platônico, que concebe os universais como entes separados das coisas sensíveis. Em contrapartida, a posição aristotélica, exposta no tratado das Categorias, critica o platonismo, caracterizando os universais como abstrações do particular. Aprofundaremos a análise dessas perspectivas para contextualizar o ambiente filosófico em que Boécio se insere. A análise detalhada das respostas boecianas às três perguntas fundamentais propostas por Porfírio, bem como a repercussão dessas respostas e sua importância para os autores posteriores, serão temas centrais. Ao longo da filosofia antiga e medieval, a discussão sobre o estatuto ontológico dos universais foi uma das questões filosóficas mais impactantes, ganhando destaque após as traduções e comentários de Boécio aos tratados do Organon de Aristóteles e à Isagoge de Porfírio. No primeiro capítulo, portanto, apresentaremos não apenas o problema, mas também os autores e as obras implicadas na análise. O problema dos universais, comumente definido como “o que é comum a muitos” ou “o que pode ser predicado de vários”, desencadeia uma série de questionamentos metafísicos e lógicos. A definição inicial de universal como algo compartilhado por várias coisas levanta questões sobre sua natureza: são conceitos, coisas, ou nomes? Esta investigação visa compreender o eídos, isto é, aquilo pelo qual coisas diferentes recebem o mesmo nome, entregando-se à busca da unidade na multiplicidade e da semelhança na diversidade. Depois, no segundo capítulo, a tradição filosófica relacionada aos universais é destacada ao analisarmos três correntes influentes: uma platonizante, que considera os universais como entes separados; outra, na perspectiva de Aristóteles, que os vê como abstrações; e a abordagem de Porfírio na Isagoge, que introduz a problemática das 11 categorias e predicáveis. Boécio, ao traduzir e comentar obras de Aristóteles e Porfírio, emerge como figura crucial na transmissão desse legado para a Idade Média. Finalmente, no terceiro capítulo, Boécio, um dos últimos pensadores romanos e tido como o primeiro escolástico, desempenha um papel fundamental na discussão dos universais. Sua contribuição vai além da mera transmissão de conhecimento, incluindo traduções, comentários e reflexões originais em diversas áreas filosóficas. A análise detalhada de suas respostas às perguntas de Porfírio e seu impacto na filosofia medieval serão os temas centrais. Após as traduções e as respostas boecianas, o problema dos universais molda significativamente o pensamento medieval. A influência de Boécio se vê não apenas em seus comentários à Isagoge, mas também em seu comentário sobre as Categorias de Aristóteles, estabelecendo o contexto para a discussão sobre a natureza das categorias e sua relação com as palavras e as coisas. As repercussões medievais da questão dos universais manifestam-se em três principais vertentes: o ultrarrealismo, que atribui realidade substancial aos universais; o realismo aristotélico, que os concebe como entes de razão; e o nominalismo em sua vertente mais extrema que os considera meros nomes desprovidos de significação. Cada vertente terá representantes notáveis, como Guilherme de Champeaux, Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham, respectivamente. 12 CAPÍTULO PRIMEIRO O PROBLEMA DOS UNIVERSAIS: O QUE É, SUA ORIGEM, A RECEPÇÃO MEDIEVAL E SUA REPERCUSSÃO Durante o período antigo e medieval, a discussão sobre o estatuto ontológico dos universais foi uma das questões filosóficas que teve mais repercussões e desdobramentos, especialmente após a tradução e os comentários de Boécio aos tratados do Organon de Aristóteles e à Isagoge de Porfírio. Neste capítulo, vamos expor o que é, de fato, o problema e faremos também uma exposição geral a respeito dos autores e das obras de que trataremos. 1. Posição do problema A definição mais difundida de universal é: o que é comum a muitos1, ou o que pode ser predicado de vários2. Sem entrarmos aqui nos pormenores dessa definição, podemos usar o seguinte exemplo: homem pode se dizer de Sócrates, Pedro e Maria, isto é, posso dizer que Sócrates é homem, assim como Pedro é homem e Maria é homem. Além disso, homem pode predicar-se de uma infinidade de outros sujeitos, pois é comum a todos eles; portanto, podemos dizer que homem é universal. Posto isso, podemos nos perguntar qual a verdadeira natureza não só de “homem”, mas de outros que podem ser chamados de universais, como cavalo, mesa, branco3 etc. São eles conceitos? São coisas? São nomes4? Ou nenhum dos anteriores? Aqui reside o primeiro problema. Qualquer resposta dada à pergunta anterior confronta-se com mais questões. Se dissermos que os universais são conceitos significa o mesmo que dizer que são abstrações? Se são abstrações, são abstrações do que? Se são coisas, isto é, algo real, são reais em que? Nos sensíveis ou fora deles? São materiais ou imateriais? Se são apenas 1 Essa é a definição clássica de universal em Aristóteles. 2 Sobre la interpretación, 7, 17b. Cavalo, mesa e branco tomados universalmente, não “este cavalo”, “esta mesa”, “este branco”. 3 Cavalo, mesa e branco tomados universalmente, não “este cavalo”, “esta mesa”, “este branco”. 4 O universal como conceito, coisa ou nome é o que dará origem a três diferentes posições. nomes, isso significa dizer que são apenas vozes, sopros de voz (flatus vocis) desprovidos de significação? Ou têm algum significado? O nosso problema, consiste, portanto, em saber qual é o eídos5, aquilo pelo qual coisas diferentes recebem o mesmo nome. A pergunta pelo eídos toma a forma da pergunta pelo “o que é” (ti ésti). Quando pergunto, por exemplo, “o que é gato?”, a pergunta é pela essência do gato, ou então, por aquilo pelo qual o gato é gato. Dito de outro modo, aquilo que faz com que o gato seja o que é. Portanto, não consiste na pergunta sobre este ou aquele gato, mas sobre aquilo que faz com que os gatos individuais, mesmo com suas diferenças, peculiaridades e individualidades, tenham uma semelhança e identidade de natureza, e por isso podem todos eles receber o mesmo nome de “gato”. Ou seja, essa é a tentativa de responder se há e o que é este uno no múltiplo, esta unidade na multiplicidade ou esta semelhança na diversidade. Em outras palavras, é a resposta para a pergunta: além da unidade numérica, há nas coisas uma unidade essencial? Além disso, como veremos adiante, a própria definição de universal como “aquilo que é comum a muitos” traz consigo certas perguntas essenciais. Ora, como algo pode estar presente em várias coisas diferentes entre si? Como essas coisas, que são diferentes entre si, podem receber o mesmo nome? Portanto trata-se de um problema metafísico e lógico com implicações gnosiológicas, pois a resposta dada consequentemente leva a uma teoria do conhecimento. De acordo com a definição de universal, surge a pergunta: como esse universal é conhecido? É um conhecimento universal e necessário? Se sim, só pode ser conhecido pelo intelecto ou há uma participação anterior dos sentidos nesse processo? Como se dá o processo de conhecimento intelectivo desse universal? E nesse processo, isso que é conhecido pelo intelecto tem algum tipo de base na realidade ou é apenas um construto arbitrário? 2. Tradição e recepção do tema Quando se fala de recepção, pensa-se numa tradição. Certamente, para haver recepção de algo, deve haver alguma transmissão ou transferência (traditio) daquilo que se recebe. A tradição, no sentido mais amplo de legado passado, herança filosófica, 5 O termo eídos se traduz como “natureza constitutiva”, “forma”, “ideia”, “espécie”, cf. Peters (1967, p. 46-51). 13 concerne aqui ao platonismo, aristotelismo e neoplatonismo em relação ao tema dos universais. O primeiro e principal responsável por sua recepção em contexto medieval é Severino Boécio (c.475-526). Comecemos, portanto, em ordem cronológica, por seus antecessores no tema. Podemos destacar três correntes que influenciaram decisivamente Boécio no tema em foco: (1) A corrente oriunda do pensamento de Platão, que deve ser inserido neste contexto por ser considerado o primeiro a dar uma resposta ao problema em diversos diálogos. Ora, como veremos no segundo capítulo, não é incorreto dizer que o problema dos universais começa com Platão, ainda que de certo modo. Apesar disso, os pré- socráticos tem importância fundamental nos primeiros passos da discussão. Isso se deve a um conceito muito importante nos primeiros estudiosos da natureza, a noção de arché6. A pergunta pela arché é a pergunta pelo que é em si e por si (autó katautó), ou o que Aristóteles chamará de ousía (substância)7. Tales de Mileto, por exemplo, concebeu o úmido ou a água como aquilo que é em si e por si. O animal quando vive, é úmido, e quando morre, resseca. Tudo é água, a água é o princípio (arché), e a diferença seria a condensação ou a rarefação da água. É possível que Tales tenha pensado nas narrações míticas de sua região onde o deus oceano era aquele pelo qual jorravam as outras divindades. Em Parmênides, a substância é um ser ingênito, imperecível e imutável, chamado de on (ser); em Empédocles, os quatro elementos; em Pitágoras, os números; em Anaxímenes, o ar etc. Tendo em vista as teses dos pré-socráticos, Platão discorda, considerando que aquilo que é em si e por si, também chamado por ele de eídos8, é o que há de universal. E, como veremos adiante, as ideias platônicas são entes separados das coisas sensíveis: 6 Traduz-se para o português como “princípio”. Aristóteles nota que arché é um termo análogo, isto é, possui significações diferentes. Num primeiro sentido, arché designa um princípio temporal. Mas um princípio pode ser também um princípio lógico. É nesse segundo sentido que os pré-socráticos utilizam o termo. 7 Cf. Peters (1967, p. 149); Pellegrin (2007, p. 176-179). 8 Cf. Peters (1967, p. 46-51). 14 “A primeira vertente, de índole platônica, toma os universais como entes existentes em si mesmos e separados das coisas sensíveis.”9 Esta teoria dos eide de Platão será submetida a uma crítica por Aristóteles, que considerará o eídos como presente nos próprios sensíveis, além de vê-lo como ontologicamente dependente dos indivíduos. (2) Aristóteles terá influência na resposta boeciana ao problema. Ele não só discorda da tese platônica, mas propõe outra solução que terá muita influência entre os medievais, sobretudo pela discussão presente no tratado das Categorias, que é a base para toda a questão que se estenderá pelo medievo. No tratado, Aristóteles faz uma quadrupla divisão do ente, dando primazia ontológica aos entes individuais, e aos universais, um estatuto de dependência, sendo vistos apenas como abstrações, não como por si: “Platão argumentou que as coisas individuais dependiam das Ideias. Aristóteles afirma que universais são simplesmente o que é dito de um sujeito ou o que é dito de um sujeito em um sujeito.”10 Aristóteles, na Metafísica, discordará das teses pré-socráticas que identificam a substância a algo material, e atacará mais duramente as teses platônicas a respeito do estatuto ontológico dos universais e sua teoria das ideias. (3) Por último, mas não menos importante, Porfírio que, ao escrever uma introdução (no grego isagoge) às Categorias de Aristóteles, reconhecendo a dificuldade ali contida, elabora uma problematização a respeito dos universais fazendo referência ao tratado aristotélico, abstendo-se, no entanto, de responder, como vemos na seguinte passagem: Antes de mais, no que tange aos gêneros e às espécies, acerca da questão de saber [1] se são realidades subsistentes em si mesmas ou se consistem apenas em simples conceitos mentais, [2] ou, admitindo que sejam realidades subsistentes, se são corpóreas ou incorpóreas, e, [3] neste último caso, se são separadas ou se existem nas coisas sensíveis e dependem delas, eu evitarei em falar, porque tais questões representam uma pesquisa mais profunda e exigem uma outra investigação e mais ampla […].11. 9 Leite (2001, p. 18). 10 “Plato had argued that individual things were dependent on the Ideas. Aristotle states that universals are simply what is said of a subject or what is said of a subject and in a subject.” (MARENBON, 1983, p. 21). 11 PORFÍRIO apud SANTOS, 2001, p. 17-18 15 16 Além disso, na Isagoge, elencam-se os chamados cinco predicáveis: o gênero, a espécie, a diferença, o próprio e o acidente: […] a Isagoge discute e compara cinco “predicáveis” – tipos mais gerais de predicados: o gênero (tal como “o homem é animal”); a espécie (tal como “Sócrates é homem’); a diferença (tal como “o homem é racional’); o próprio (tal como “o homem é capaz de rir”); e o acidente (tal como “Sócrates é branco”).12 Porfírio apresenta os parâmetros para o que veio a ser chamado de Árvore de Porfírio: um diagrama que parte do gênero superior, descendo por diferenças às suas espécies (gêneros inferiores), até a última espécie, sob a qual se colocam os indivíduos. De acordo com Marenbon (2003), Boécio é a principal fonte de transmissão filosófica do mundo antigo ao mundo medieval, mas não deve ser tratado apenas como um autor que foi o canal de transmissão de um período a outro. É evidente que muitos aspectos de seu pensamento são influenciados pela filosofia antiga. Como comentador e continuador das obras lógicas aristotélicas e porfiriana, além de tradutor, Boécio é também um pensador original. Escreveu textos sobre os mais variados temas, como aritmética, teologia e música; deu contribuições originais à lógica e à metafísica; além das contribuições originais a respeito da presciência divina e à contingência, e de sua definição de pessoa como “substância individual de uma natureza dotada de razão” (naturae rationalis individua substantia13), que persistirá por todo o medievo. Boécio tinha o objetivo de traduzir todas as obras de Platão e de Aristóteles, do grego para o latim, além de comentá-las e mostrar os grandes pontos de convergência entre os dois filósofos. “Com efeito, dedicou grande parte de sua energia intelectual, durante a maior parte de sua vida profissional, a um grande projeto de tradução e comentário filosófico. […] O mais tardar em 516, Boécio anunciou (In De interpretatione, 79, 9 - 80, 9) seu plano de traduzir para o latim todas as obras de 12 “[…] the Isagoge discusses and compares five ‘predicables’ – more general types of predicate: genus (as in ‘Man is an animal’); species (as in ‘Socrates is a man’); differentia (as in ‘Man is rational’); proprium (as in ‘Man is capable of laughter’; plural – propria); and accident (as in ‘Socrates is white’).” (MARENBON, 1983, p. 4). 13 Opuscula sacra, V, 3, 171-172; cf. Marenbon (2003, p. 70-76). Essa definição influenciou toda a escolástica e teve importância indiscutível para a metafísica e a cristologia. 17 Aristóteles que pudesse encontrar, e todos os diálogos de Platão, para comentá-los, e então escrever uma obra para mostrar que Platão e Aristóteles concordam nos pontos filosóficos mais importantes”.14 Como nota Boehner e Gilson: “Ele se considerava romano, falava latim como língua nativa, era fluente em grego e tinha acesso (ao contrário de qualquer pensador latino depois dele) a uma tradição viva da filosofia grega baseada no estudo de Platão, Aristóteles e seus comentadores.”15 As informações que temos da sua vida não são tão numerosas, mas sabemos que nasceu em uma família aristocrata, que foi educado com o aprendizado da língua grega e dos clássicos gregos, e que foi influenciado por quatro correntes: o neoplatonismo, a filosofia romana, e a Patrística grega e latina;16 e que tinha como objetivo a tradução e o comentário de todas as obras de Platão e de Aristóteles, algo que não chegou nem perto de ser cumprido, até mesmo por conta de acontecimentos que acabaram por impedi-lo, como sua morte prematura devido a razões políticas (principalmente devido à sua prisão, e posteriormente, sua execução, pelo Rei Teodorico, que era defensor do arianismo).17 Enquanto estava preso, escreveu sua mais famosa obra, Sobre a consolação da filosofia. Sua polêmica e posterior morte pelos arianos, fez de Boécio um mártir cristão. O culto que era prestado a Boécio acabou sendo confirmado em 1883 em Pavia. 18 É tentador, portanto, ver Boécio como o líder de um grupo pró-imperial e pró-bizantino, vitimado por um rei cada vez mais inseguro e pelos seus conselheiros góticos e pró-góticos; ou, em termos religiosos, como um católico condenado à morte pelos arianos – as vidas medievais, de fato, fizeram dele um mártir cristão. 19 14 “Boethius devoted much of his intellectual energy for most of his working life to a grand project of philosophical translation and commentary. […] No later than 516, Boethius announced [In De interpretatione, 79, 9 - 80, 9] his plan to translate into Latin all the works of Aristotle he could find, and all Plato’s dialogues, to comment them, and then write a work to show that Plato and Aristotle agree on the most important philosophical points.” (MARENBON, 2003, p. 17-18). 15 “He thought of himself as a Roman, spoke Latin as a native language, was fluent in Greek and had access (unlikely any Latin thinker after him) to a living tradition of Greek philosophy based on the study of Plato, Aristotle, and their commentators.” (BOEHNER; GILSON, 1991, p. 209-210). 16 Marenbon (2003, p. 11). 17 Marenbon (2003, p. 8). O arianismo é o nome dado à doutrina de Ário, que sustentava haver uma relação de subordinação na Trindade, no sentido de que o Filho é subordinado ao Pai. Os arianos afirmavam que Jesus Cristo não é Deus. Essa doutrina foi considerada herética pelo Concílio de Nicéia. Boécio teve polêmicas com os arianos, o que acabou resultando na sua condenação à prisão e morte. Sobre esse assunto, conferir a obra “Declínio e queda do Império Romano” de Edward Gibbon 18 Gilson (2001, p. 159). 19 Marenbon (2003, p. 41-42). 18 Apesar disso, traduziu algumas das obras de Aristóteles, especialmente tratados lógicos (como o Sobre a interpretação), além de dedicar comentários, e elaborar escritos sobre o silogismo hipotético e sobre o silogismo categórico. Mas o que nos interessa aqui é a tradução e comentário à Isagoge de Porfírio. Em suas traduções, Boecio “latinizou” certas noções metafísicas da filosofia aristotélica, como substantia (ousía) e essentia (ti ésti). Novamente, observa Marenbon: Ele foi um dos últimos escritores latinos para quem a tradição do comentário grego estava, pelo menos em parte, disponível e compreensível e, ao transferir parte dela para o latim, forneceu aos primeiros pensadores medievais riquezas intelectuais que, de outra forma, teriam permanecido escondidas deles. 20 Por isso, o filósofo é reconhecido por muitos como aquele cuja obra “serviu de intermediária entre a filosofia grega e a escolástica” 21 e como “o último pensador romano e o primeiro escolástico”. 22 Diante desse contexto, Boécio, ao traduzir as Categorias e a Isagoge, depara-se com o problema de Porfírio e apresenta uma tentativa de respondê-lo: “A diferença mais dramática – e historicamente de longe a mais importante – de Boécio em relação à tradição mais bem representada pelo comentário de Amônio surge quando ele discute as três perguntas não respondidas de Porfírio sobre os universais” 23, isto é, as três perguntas a respeito do estatuto ontológico dos universais: (1) se são substâncias ou conceitos; (2) no caso de serem substâncias, se são corpóreas ou incorpóreas; e (3) se são separados ou inerentes aos sensíveis. 24 Porfírio dissera que não iria considerar se os gêneros e as espécies “existem em si mesmos” [substistunt na tradução de Boécio] ou se são apenas pensamentos [in solis nudispurisque intellectibus posita sunt]; e se existem em si mesmos, se são corpóreos ou incorpóreos, e existem 20 “He was one of the last Latin writers to whom the Greek commentary tradition was, at least in part, available and comprehensible and, by transferring some of it into Latin, he provided early medieval thinkers with intellectual riches which, otherwise, would have remained hidden from them!” (MARENBON, 2003, p. 41-42). 21 Boehner; Gilson (1991, p. 209-210). 22 Boehner; Gilson (1991, p. 209-210). 23 “Boethius’s most dramatic – and historically by far his most important – difference from the tradition best represented by Ammonius’s commentary comes when he discusses Porphyry’s three unanswered questions about universals.” (MARENBON, 1983, p. 25). 24 Veremos a resposta de Boécio no terceiro capítulo. 19 separados das coisas perceptíveis sensivelmente ou nelas e em relação a elas. 25 É graças ao comentário de Boécio à Isagoge que a querela dos universais chega ao mundo medieval e gera o debate durante séculos. 3. Repercussões do problema no medievo Após a tradução dos textos de Aristóteles e de Porfírio, e a resposta boeciana, o problema em foco marcou toda a Idade Média posterior, já que o próprio Boécio influenciou muito o pensamento medieval. Isso se dá em várias questões filosóficas, sendo uma delas a discussão sobre os universais, visto que o problema tem como base dois comentários de Boécio: (1) O comentário à Isagoge, especialmente na passagem em que Boécio tenta responder ao problema de Porfírio; (2) O comentário às Categorias de Aristóteles, no qual há a seguinte questão: as categorias tratam de palavras ou coisas? Boécio responde que as categorias se referem como palavras significantes das coisas. O problema medieval dos universais centra-se na passagem do Isagoge onde Porfírio levanta, mas não responde, três questões sobre os gêneros e as espécies, e na passagem do segundo comentário de Boécio, onde propõe uma resposta a essas questões. No entanto, o contexto para a discussão desse problema foi estabelecido por outro comentário de Boécio – aquele às Categorias. O comentário às Categorias levanta a questão sobre o que tratam as categorias, palavras ou coisas, e dá a resposta matizada de que se trata de palavras que significam as coisas.26 A influência de Boécio é tão clara que, durante certo período, seu comentário à Isagoge e suas obras lógicas (tanto os comentários a Aristóteles como seus escritos sobre 25 “Porphyry had said that he would not pause to consider whether genera and species “exist in themselves” [subsistunt in Boethius’ translation] or whether they are merely thoughts [in solis nudispurisque intellectibus posita sunt]; and whether, if they do exist in themselves, they are corporeal or incorporeal, and exist in separation from sensibly-perceptible things or in and about them.” (MARENBON, 1983, p. 30). 26 “The medieval problem of universals centres on the passage in the Isagoge where Porphyry raises, but does not answer, three questions about genera and species, and the passage in Boethius’s second commentary, where heproposes an answer to these questions. Yet the context for discussion of this problem was set by another of Boethius’s commentaries—that on the Categories. The Categories commentary raises the question of what the categories is about, words or things, and gives the nuanced reply that it is about words as signifiers of things.” (MARENBON, 2003, p. 166). 20 o silogismo), juntamente com o Organon, formavam o currículo de lógica estudado pelos medievais, a lógica antiga (logica vetus). A partir de o problema tal como posto na Isagoge e do comentário boeciano, “antes de os medievais se questionarem se os ‘universais’ eram coisas, conceitos ou palavras” 27, sabemos que as respostas dos escolásticos marcaram três posições principais. As vertentes que correspondem a essas posições são, respectivamente, as que se seguem. 4. O ultrarrealismo O realismo28 platonizante, também chamado de realismo extremo ou ultrarrealismo, afirmou a realidade do universal não como abstração do intelecto, mas enquanto coisa, isto é, como ente real, do qual os indivíduos participam. O precursor medieval dessa tese foi Guilherme de Champeaux. Segundo Copleston: “Tal formulação, se entendida no sentido de que a pluralidade dos homens individuais tem uma substância comum que é numericamente una, tem como consequência natural a conclusão de que os homens individuais diferem apenas acidentalmente uns dos outros.” 29 Apesar das variações do ultrarrealismo, a tese clássica afirma que há uma pluralidade de indivíduos que são e vem a ser, mas que são dependentes ontologicamente de uma substância imutável e universal que seria a causa das coisas sensíveis, que são particulares e contingentes. Até mesmo os entes matemáticos teriam certa realidade, pois coisas circulares, quadradas, retangulares etc., só teriam existência enquanto dependentes do círculo por si, do quadrado por si, do retângulo por si etc. Portanto, essa posição dá aos universais uma ordem superior. As essências seriam, portanto, por si, não apenas na mente. Essa concepção matemática voltou a repercutir na filosofia contemporânea, como por exemplo, a concepção dos números como objetos ideais e separados30. Saranyana assinala que a doutrina realista serviu para que alguns autores tentassem explicar alguns 27 “Avant que les médiévaux se demandent si les ‘universaux’ étaient des choses, des concepts ou des mots.” (DE LIBERA, 1996, p. 13). 28 O termo “realismo” faz referência aqui à substância ou realidade dos universais, nada tendo a ver com a vertente filosófica moderna oposta ao idealismo. 29 “Una formulación así, si se entiende en el sentido de que la pluralidad de hombres individuales tiene una substancia común que es numéricamente una, tiene como consecuencia natural la conclusión de que los hombres individuales sólo difieren accidentalmente unos de otros.” (COPLESTON, 2009, p. 118). 30 Um dos precursores dessa doutrina na matemática contemporânea foi David Hilbert. dos mistérios do cristianismo, como a transmissão do pecado original e da criação das almas humanas dia após dia. 31 5. O realismo aristotélico A vertente intermediária, chamada de “realismo moderado”, sustenta que os universais têm existência apenas no intelecto, isto é, são entes de razão (entia rationis), ou, para usar uma expressão aristotélica, substâncias secundárias ou segundas. “A segunda alternativa, de cunho aristotélico, que influenciou profundamente no debate, consiste em tomar os universais como concepções do intelecto com fundamento nas coisas (universale in re).”32 Isso significa que, no processo de abstração, o intelecto separa o que é material, dando origem ao conceito (universal). O representante dessa posição na antiguidade foi Aristóteles, e no medievo, Tomás de Aquino, além do próprio Boécio no tratado que analisaremos mais adiante. O fato de os universais terem um ser inteligível não significa que não se refiram a nada, sua referência é para com os indivíduos; mas os indivíduos, ao contrário da tese platônica, possuem mais ser, já que, aqueles que tem o ser, em sentido próprio, são os indivíduos. Segundo essa tese, todos os conceitos do nosso intelecto “tendem em” (intencionam) algo cognoscível, ou para usar a terminologia medieval, são intentiones. Em outras palavras, os conceitos têm a propriedade da intenção (intentio) pois se referem a um objeto. E esse objeto ao qual o conceito se refere pode ser concreto ou não. Posso pensar num cavalo, num homem, numa mesa, que são objetos reais, mas também posso conceber a sereia, uma quimera, as trevas, a cegueira, que são entes de razão33. 6. O nominalismo Em oposição, surgiu o nominalismo, cuja vertente mais radical teve como principal expoente foi Roscelino de Compiègne (c.1050-1120). De Roscelino, restou-nos apenas uma carta escrita a Pedro Abelardo, além das referências de Anselmo, João de Salisbury e do próprio Abelardo. 31 Saranyana (2006, p. 179). 32 Leite (2001, p. 19). 33 Termo usado para designar entes que existem apenas na mente, e que, portanto, não são substanciais, como, por exemplo, as privações, os entes fictícios etc. 21 22 Por isso, não sabemos como Roscelino responderia à principal pergunta que surge de sua tese filosófica: como as palavras, que se referem à realidade, significam as coisas e fazem com que o discurso não seja algo vazio? Essa corrente mais radical afirma que os universais são apenas nomes ou vozes, isto é, sons emitidos, mas que não possuem uma significação, portanto, não têm existência real nem mental. De acordo com os nominalistas, o mundo é um mundo de indivíduos34. Quer dizer: não há uma unidade de essência nos entes da mesma espécie. Por isso, podemos dizer que não há nem mesmo espécie. Copleston afirma que: […] é claro que Roscelino se opôs ao ultrarrealismo e que sustentou que apenas existem indivíduos, mas o seu ensinamento positivo não é muito claro. Segundo Santo Anselmo, Roscelino sustentava que o universal é mera palavra (flatus vocis) e, consequentemente, Santo Anselmo o considera um dos heréticos contemporâneos da dialética.35 A vertente extrema do nominalismo sustenta que os uiversais são nomes sem signficação; são vozes, sons que nada indicam ou mostram, não têm referência a nenhum objeto, não têm intentio. Saranyana nota que a visão nominalista de Roscelino fez com que suas ideias teológicas se afastassem da ortodoxia católica, por defender que só há indivíduos na relação trinitária, e que por isso cada uma das pessoas da Trindade é um indivíduo diferente do outro36: Ao aplicar sua doutrina dos universais à Santíssima Trindade, as três Pessoas divinas se converteriam em três indivíduos ou singulares independentes, como três deuses, ao predicar-se o termo ou voz “Deus” de vários singulares. Então não haveria uma essência divina na qual pudessem subsistir as três Pessoas.37 34 Cf. Copleston (2009, p. 118). 35 “[…] en claro que Roscelin se opuso al ultrarrealismo, y que mantuvo que solamente los individuos existen, pero su enseñanza positiva no está muy clara. Según san Anselmo, Roscelin mantenía que el universal es una mera palabra (flatus vocis), y, en consecuencia, san Anselmo le cuenta entre los contemporáneos heréticos en dialéctica.” (COPLESTON, 2009, p. 120). 36 O próprio Anselmo acusa Roscelino de ser um “herético da dialética”, que afirma serem os universais flactus vocis. Sobre esse assunto ver “Anselmo, crítico de Roscelino”. Cf. Copleston (2009, p. 126). 37 Saranyana (2006, p. 181). 23 7. Conclusão A discussão deste primeiro capítulo procurou reconstruir a origem e o desenvolvimento do problema dos universais, elucidando suas raízes na filosofia antiga e seu desdobramento na Idade Média em profícuas controvérsias filosóficas e teológicas. Emergindo dos primórdios da reflexão filosófica com a noção pré-socrática de arché, o problema ganha seu contorno próprio nos diálogos platônicos, onde à multiplicidade do sensível se contrapõem as Formas ou Ideias enquanto entes inteligíveis, universais e necessários, fundamento paradigmático do mundo fenomênico. Aristóteles, em sua crítica à tese platônica, confere aos universais um estatuto ontologicamente derivado, concebendo-os como predicáveis dos indivíduos nos quais inerem. Com Porfírio e sua Isagoge, o problema é legado à posteridade em toda a sua complexidade. Coube a Boécio o papel de transmitir o problema porfiriano ao pensamento medieval. Seus comentários deflagram acirradas controvérsias entre realistas, conceitualistas e nominalistas. Os realistas platonizantes hipostasiam os universais em entes subsistentes em si, em que se espelham suas contrapartes singulares. Aristotélicos moderados advogam serem frutos da abstração do intelecto. Nominalistas não lhes reconhecem senão o caráter evanescente de meras vozes. As repercussões da querela dos universais alcançam a gnosiologia e a linguagem, a metafísica e a teologia. O problema catalisa intenso labor filosófico ao longo de toda a Idade Média, assumindo contornos seminalmente originais em pensadores como Roscelino, Abelardo, Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham. Revisitar, portanto, essas remotas fontes da discussão propicia compreender, em profundidade, o teor da resposta de Boécio e seu impacto no ulterior desenvolvimento do pensamento medieval. 24 CAPÍTULO SEGUNDO UM PANORAMA DA DISCUSSÃO DOS UNIVERSAIS NA ANTIGUIDADE Como dissemos anteriormente, já há, na filosofia grega, ainda que de modo não tão explícito como no medievo, uma discussão a respeito da natureza dos universais. Na verdade, não é incorreto dizer que o problema começa ainda na filosofia grega e que, sem as discussões dos antigos, o problema provavelmente não teria sido abordado pelos escolásticos. Dentre os antigos, duas correntes são dignas de mérito: a platônica e a aristotélica. Por isso, vamos abordar essas duas, que depois deram origem ao realismo extremo e ao realismo moderado respectivamente. No caso de Platão, há vários diálogos nos quais aparece de modo ainda confuso e obscuro uma discussão sobre o estatuto ontológico dos universais. Em Aristóteles, daremos destaque ao tratado das Categorias, no qual há uma crítica à posição platônica acerca dos universais, ou, como Platão chama, “Ideias”. Por fim, apresentaremos a Isagoge de Porfírio. Essa é a obra que levou a discussão para todo o medievo a partir do problema proposto pelo próprio Porfírio, ao qual não se encarregou de responder. Com esse panorama da antiguidade, será possível termos um melhor entendimento e compreensão da postura boeciana. Primeiro, porque Boécio adere à uma posição bem próxima de Aristóteles. E em segundo lugar, porque as três perguntas de Porfírio são importantes, já que é a partir delas que Boécio tenta responder ao tema. 1. Os universais como substâncias separadas A primeira postura se trata daquela que coloca os universais como substâncias separadas; é a tese platônica. Platão não utiliza a palavra “universal” para designar essas substâncias, mas atribui a elas um caráter de universalidade, ainda que a discussão não esteja presente de modo tão claro. O que nos interessa na posição platônica é a noção de eídos, ou seu cognato idea38, denotando essa substância separada. Para a nossa compreensão, temos que ter em mente a partir do que e de quais discussões e influências Platão chegou à essa noção. 2. A influência de Heráclito: o devir contínuo do sensível Platão foi influenciado por dois filósofos no assunto que nos interessa: Heráclito e Sócrates. Essas duas influências foram fundamentais para que Platão formulasse a sua teoria dos eide, buscando resolver um problema de natureza gnosiológica. Comecemos falando da influência heraclitiana. Heráclito de Éfeso foi um filósofo pré-socrático. De acordo com Heráclito, no mundo (kosmos, universo) tudo está em mudança, em tensão, sendo “o princípio subjacente e organizador do mundo” o logos39. Em outras palavras, o logos do mundo é visto como uma tensão (tonos), a lei da mudança, harmonia que é uma tensão de opostos, um estado estável. Segundo Heráclito, “o frio esquenta, o calor esfria, o úmido seca, o seco umedece”,40 “e ainda o caminho para cima e para baixo são um e o mesmo”41. Este princípio do logos é material, identificado com o fogo (pyr). Platão reconhece que há um problema a ser resolvido na teoria heraclitiana: se as coisas estão em devir, como é possível o conhecimento? Como posso conhecer o que vem-a-ser e deixa-de-ser? É possível ter o conhecimento de coisas que estão em constante fluxo? No Crátilo, o próprio Platão inicia a refutação da doutrina de Heráclito ao investigar a exatidão da linguagem e apresentar o problema das ideias imutáveis.42 O diálogo, com efeito, discute a relação entre as palavras e as coisas. Há dois enunciados opostos: (1) a tese naturalista, a qual defende que o nome tem realidade própria e por natureza; e (2) a tese convencionalista, para a qual o nome das coisas se dá pura e simplesmente por convenção. O nome do diálogo é de um discípulo de Heráclito 38 Não devemos confundir o termo idea, usado por Platão, com o sentido moderno da palavra, ou seja, “ideia” como conteúdo mental. 39 Cf. Peters (1967, p. 110-111). O termo logos pode ser traduzido como “razão”, “proporção”. No pensamento de Heráclito, o logos está relacionado com o significado de proporção, a lei da mudança sempre harmônica das coisas. 40 Cf. Kahn (2009, p. 78). 41 Cf. Kahn (2009, p. 98). 42 Esses problemas são novamente apresentados e examinados nos diálogos Teeteto e Parmênides. 25 26 (defensor da tese naturalista), enquanto outro personagem, Hermógenes, leva a tese heraclitiana às últimas consequências, defendendo a tese contrária (convencionalista). Segundo Hermógenes, seria impossível até mesmo nomear as coisas sensíveis pelo fato de estarem em perpétua mudança. Há relatos de que Hermógenes levou ao extremo o que diz Heráclito43, isto é, de não ser possível um homem se banhar uma única vez no mesmo rio de tão intensa e rápida que é a mudança. Essa tese mobilista radical não pode ser aceita, pois acarretaria uma supressão da linguagem: não seria possível nem mesmo apontar para uma coisa e dizer “isto é”, pois no momento em que digo, a coisa já deixou de ser. Em outras palavras, nomear seria uma maneira ilusória de tentar fixar o que não tem fixidez. Platão tenta resolver então o seguinte problema (que, como veremos posteriormente, tem em Aristóteles uma solução diferente): como posso dizer de uma mesma coisa uma pluralidade de nomes? Posso predicar de uma coisa algo mais do que ela mesma? Posso dizer de “homem” que ele é branco, virtuoso ou pequeno, por exemplo? É de notar que Platão não aceita a tese mobilista radical de Hermógenes, mas também não aceita a tese oposta que recusa a existência das realidades sensíveis, defendendo que nenhum tipo de mudança pode ser associada ao ser, pois se assim fosse, a predicação também não seria possível, já que, como só haveria fixidez nas coisas, a única predicação possível seria dizer de uma coisa que ela é ela mesma (ex: homem é homem), ou seja, uma tautologia (seria possível dizer que homem é homem e que bom é bom, mas não que homem é bom, por exemplo); do ponto de vista gnosiológico, essa tese também apresentaria problemas; nos seres deve haver, pois, tanto movimento como imutabilidade. Ora, se não houvesse movimento, as coisas seriam fixas e não ocorreria mudança alguma, e se não houvesse imutabilidade, não seria possível nenhum conhecimento pois tudo seria um fluxo contínuo sem permanência nem mesmo de essência. Quando um homem muda alguns de suas características, por exemplo, a cor, a grandeza, a figura etc., dizemos que foi o mesmo homem que mudou, e não que se tornou outro homem. Mas, se houve uma mudança no mesmo homem, podemos falar de uma identidade na mudança e de uma unidade na multiplicidade que varia. O homem continua sendo o mesmo, embora suas características mudem. Se alguém diz “este homem mudou completamente” essa asserção não implica apenas mudança e diversidade, mas também, 43 Heráclito diz, num fragmento que se tornou célebre, que “um homem não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio”. 27 identidade e permanência: foi o homem mesmo que mudou. Em outras palavras, se tudo fosse um fluxo ininterrupto e o homem nunca fosse o mesmo haveria infinitos homens por conta das mudanças em suas características? Há uma identidade na natureza individual desse homem, e no mundo sensível não há nada que não varie ou que não esteja sujeito ao movimento. Isso não significa que não possamos identificar permanência: se essa tese fosse verdadeira não seria possível nem mesmo o discurso. 3. A influência socrática: a busca pelo universal e a definição Sócrates também exerceu profunda influência no pensamento de Platão. A influência socrática é importantíssima: de acordo com Sócrates (ou sua figura nos diálogos platônicos, já que essa figura nos diálogos não é histórica), há conhecimento universal e imutável sobre as coisas. Nos diálogos platônicos, Sócrates aparece indagando os interlocutores (através do método dialético, muitas vezes mostrando a ignorância daquele que acha que sabe), buscando o universal e a definição. Essa busca socrática é citada pelo próprio Aristóteles: Platão, com efeito, tendo sido desde jovem amigo de Crátilo e seguidor das doutrinas heraclitianas, segundo as quais todas as coisas sensíveis estão em contínuo fluxo e das quais não se poder fazer ciência, manteve posteriormente essas convicções. Por sua vez, Sócrates ocupava-se de questões éticas e não da natureza em sua totalidade, mas buscava o universal no âmbito daquelas questões, tendo sido o primeiro a fixar a atenção nas definições. Ora, Platão aceitou essa doutrina socrática, mas acreditou, por causa da convicção acolhida dos heraclitianos, que as definições se referissem a outras realidades e não às realidades sensíveis. De fato, ele considerava impossível que a definição universal se referisse a algum dos objetos sensíveis, por estarem sujeitos a contínua mudança. Então, ele chamou essas realidades de Ideias, afirmando que os sensíveis existem ao lado delas e delas recebem seus nomes. Com efeito, a pluralidade das coisas sensíveis que têm o mesmo nome das Formas existe por “participação” nas Formas. No que se refere à participação, a única inovação de Platão foi o nome.44 A busca socrática, portanto, tinha em vista dois aspectos: a pergunta pelo universal, que faz com que vários particulares possam receber o mesmo nome, mesmo sendo distintos entre si, que na tese platônica, como veremos, se dá por “participação” 44 Metafísica I, 987a30 - 987b15. 28 dos particulares nos universais, e pela definição, que explica a essência do definido, através da pergunta “o que é?”. No diálogo Mênon, por exemplo, a pergunta é pela natureza da virtude, ou “o que é a virtude?”; no Eutífron, pela piedade; no Laques, pela coragem; e assim por diante. Tomemos um exemplo através de uma passagem que ilustra de forma clara a tentativa de busca socrática pela definição de algo: MÊNON. – Não é difícil responder, Sócrates. Em primeiro lugar, se queres falar da virtude de um homem, é evidente que a virtude de um homem consiste em ser capaz de administrar as coisas da cidade, e, fazendo isso, assegurar o bem de seus amigos e o mal de seus inimigos, guardando-se ele próprio de todo mal. Se se trata da virtude de uma mulher, não é difícil responder que consiste primeiramente em administrar bem a sua própria casa, para mantê-la em boas condições, e sendo obediente ao seu marido. Além disto, há a virtude que é própria dos filhos, meninas ou meninos, e há uma virtude que é própria dos anciãos, seja a de homens livres, seja a de escravos. Há ainda muitos gêneros dela, de modo não é uma dificuldade dizer, sobre a virtude, o que ela é. Há uma virtude particular conforme cada ação e cada idade, e para cada um de nós e para cada obra. E, ao meu modo de ver, há outro tanto que dizer, Sócrates, a respeito do vício. SÓCRATES. – Uma sorte bem grande parece que tive, Mênon. Procurando uma só virtude, encontrei em ti um enxame delas. Pois bem, seguindo essa imagem [do enxame], suponhamos que se lhe pergunte o que é uma abelha, e que respondas que há muitas delas e de todas as classes, o que me responderias se te perguntasse: “dizes serem elas muitas e de todas as classes e distintas umas das outras enquanto abelhas? Ou queres dizer que o que as distingue não é senão, por exemplo, a beleza, o tamanho, e determinadas características desse tipo?” Dize-me: o que responderias se a pergunta fosse levantada dessa forma? MÊNON. – Responderia, Sócrates, que na minha opinião, enquanto abelhas não se diferenciam umas das outras. SÓCRATES. – Se então eu dissesse depois disso: vejamos, Mênon, aquilo pelo qual se parecem e que é idêntico em todas elas, que características possui? Terias, sem dúvida, uma resposta, ou não? MÊNON. – Sem dúvida. SÓCRATES. – Pois bem, a pergunta é a mesma no que respeita às virtudes. Por mais numerosas e distintas que sejam, possuem em comum uma característica, pela qual são virtudes. Essa característica geral é o que se deve ter em mente para que a resposta à pergunta seja correta e nos faça compreender o que é a virtude. Entendes o que quero dizer? MÊNON. – Creio que entendo. Contudo, ainda não apreendo, como quero pelo menos, o cerne da questão. SÓCRATES. – É só a propósito da virtude, Mênon, o que distingues dessa forma, a virtude do homem, a virtude da mulher etc.? Ou fazes 29 também as mesmas distinções para com a saúde, o tamanho, a força? Segundo o teu modo de ver, a saúde é algo distinto no homem e na mulher? Ou a saúde, onde quer que esteja, não tem a mesma característica geral, seja no homem ou em qualquer outro ser? MÊNON. – Parece-me que a saúde é uma só e mesma no homem e na mulher. SÓCRATES. – Também o tamanho e a força? Se uma mulher é forte, será pela mesma característica geral que a do homem, pela mesma força? Quando digo pela “mesma força” quero dizer que a força não é menos força por se encontrar num homem ou numa mulher. Vês alguma diferença nisso? MÊNON. – Nenhuma. SÓCRATES. – E a virtude, será menos virtude por encontrar-se numa criança ou num ancião, numa mulher ou num homem? MÊNON. – Parece-me, Sócrates, que esse caso não é idêntico ao dos anteriores. SÓCRATES. – Por quê? Não disseste que a virtude do homem é administrar bem a cidade, e que a da mulher, a casa? MÊNON. – Certamente. SÓCRATES. – Ora, administrar bem uma cidade, uma casa, ou qualquer outra coisa, não será administrar com prudência e com justiça? MÊNON. – Sem dúvida. SÓCRATES. – E administrar prudente e justamente não é fazê-lo com prudência e com justiça? MÊNON. – Necessariamente. SÓCRATES. – Por conseguinte, o homem e a mulher, para serem virtuosos, necessitam ambos das mesmas coisas, da justiça e da prudência. MÊNON. – É evidente. SÓCRATES. – Mas a criança e o ancião, se são imprudentes e injustos, serão virtuosos? MÊNON. – De modo algum. SÓCRATES. – E sim sendo prudentes e justos? MÊNON. – Sim. SÓCRATES. – Por conseguinte, todos os homens são virtuosos da mesma maneira, posto que são as mesmas características que os tomam tais. MÊNON. – Parece ser assim. SÓCRATES. – E se não tivessem a mesma virtude, não seriam virtuosos da mesma maneira. MÊNON. – Claro que não. 30 SÓCRATES. – Portanto, posto que no final das contas a virtude é a mesma em todos, tenta recordar e dizer o que é a virtude de acordo com Górgias, e segundo você, de acordo com ele.45 Podemos notar que Mênon começa a citar casos particulares, a virtude do homem ou da mulher, da criança ou do ancião, mas segundo a própria objeção socrática, trazer casos particulares não é definir a virtude enquanto virtude (a virtude em si). Definir é descobrir a unidade na multiplicidade. As abelhas, segundo o exemplo de Sócrates, diferem entre si em tamanho e figura, mas todas recebem o nome de abelha. Dá-se igualmente em relação à virtude: estando na criança ou no ancião, na mulher ou no homem, a virtude enquanto virtude é a mesma e possui uma definição que se aplica aos vários casos particulares que são chamados de “virtuosos”. Comentando o Mênon, De Libera nota que: Assim, definir o que é uma abelha na sua realidade é também definir uma espécie animal, sendo o “elemento de referência que qualquer tentativa de definição deve considerar” neste domínio, “esta forma que Sócrates afirma ser única e idêntica em todas as abelhas, uma vez reconhecida a sua identidade específica. Assim, a ideia de abelha tem vários significados, pois designa ou uma realidade não sensível em relação à qual é nomeada uma classe de seres sensíveis, ou esta realidade “representa toda a realidade da qual os seres sensíveis são desprovidos” ou que não apresenta uma “diferença ontológica de natureza determinada com os seres particulares que extraem” dela “sua natureza e seu nome” […].46 A pergunta “o que é?” nos deixa na trilha do conhecimento, afinal, responder “o que algo é” significa encontrar o mesmo nos casos em que esse algo se encontra: isso significa encontrar o universal no particular ou a unidade na multiplicidade. Definir, por exemplo, a coragem não é definir um caso particular de coragem, mas sim, algo que valha para todos os atos corajosos: a mesma coragem aparece em todos os atos corajosos (esses atos corajosos diferem entre si, mas têm em comum o fato de serem corajosos). Em outras palavras, uma coisa é perguntar “o que é algo corajoso?” (pergunta pelo particular), outra coisa é perguntar “o que é a coragem?” (pergunta pelo universal): as coisas corajosas 45 Mênon, 71e-73c. 46 “Ainsi, définir ce qu’une abeille est dans sa réalité, c’est aussi définir une espèce animale, l’«élément de référence que doit considérer toute tentative de définition» en ce domaine étantl’«cette forme dont Socrate affirme qu’elle est unique et identique chez toutes les abeilles, une fois reconnue leur identité spécifique. Comme celui d’le terme a plusieurs significations, puisqu’il désigne soit une réalité non sensible par rapport à laquelle est dénommée une classe d’êtres sensibles, que cette réalité «représente toute la réalité dont les êtres sensibles sont dépourvus» ou qu’elle ne présente pas de «différence ontologique de nature déterminée avec les êtres particuliers qui tirent» d’elle «leur nature et leur nom» […].” (DE LIBERA, 1996, p. 63-64). 31 devem o seu ser corajoso à coragem. Se os atos corajosos são corajosos é por causa desse eídos comum. Portanto, responder à pergunta “o que é?”, é explicar o eídos. Esse eídos torna os casos particulares o que eles são. 4. A noção de idea ou forma Surge então o seguinte problema: se, de fato, os sensíveis estão em mudança perpétua e o conhecimento é imutável (só há episteme sobre aquilo que permanece idêntico ao que é), como haveria o conhecimento fixo de realidades que estão em constante mudança? Para responder a essa pergunta, Platão introduz a noção de ideia ou forma. As formas são imutáveis e universais, sua realidade se encontra separada dos sensíveis e os sensíveis recebem seu nome das formas. Mais ainda, as formas são causa dos sensíveis, uma vez que os sensíveis são o que são porque participam das formas. Portanto, o que é comum aos vários casos particulares denominados pelo mesmo nome é o que participa da mesma forma. SÓCRATES. – Não duvido, certamente; porém, é claro que tudo isso deverás deixar para outra ocasião mais ociosa. Voltemo-nos agora ao que te perguntei há pouco e tenta responder-me com maior clareza. Pois quando te perguntava, meu amigo, em que consiste a piedade, não me mostrou claramente, limitando-se a dizer que realizas um ato piedoso ao acusar teu pai por homicídio. EUTÍFRON. – Eu dizia e é verdade, Sócrates. SÓCRATES. – Talvez; porém, há também muitas outras coisas, Eutífron, que tu afirmas serem piedosas. EUTÍFRON. – E claro que são. SÓCRATES. – Mas recorda que não te pedi para me dar a conhecer uma ou duas dessas muitas coisas que são piedosas, mas que te pedi para me mostrar a natureza de todas as coisas piedosas. Pois me disseste, se não me equivoco, que existe algo característico que faz com que toda coisa ímpia seja ímpia, e toda coisa piedosa, piedosa. Ou não te recordas? EUTÍFRON. – Claro que me recordo. SÓCRATES. – Pois bem, essa característica distintiva é o que quero que me mostres, para que, considerando-a com atenção e utilizando-me dela como modelo, eu diga tudo o que tu fazes, ou qualquer outra pessoa, de igual modo, é piedoso, e o que difere disso não é.47 47 Eutífron, 6e. 32 As coisas belas, por exemplo, devem sua beleza à Ideia (ou Forma) do belo. As Ideias têm autonomia e autossuficiência ontológica, que não aparece nas coisas individuais: se existe algo belo e que não é o próprio Belo, só é belo porque participa do próprio Belo. O próprio Belo está presente na bela moça, no belo cavalo, na bela música etc. Tudo que vem-a-ser, só vem-a-ser ao participar da essência própria daquilo de que participa: toda predicação, portanto, tem que ser traduzida em termos de participação. Os sensíveis são individuais e mutáveis (esta ou aquela mesa etc.), ao passo que as Ideias são universais e imutáveis (a Forma da mesa, que é a causa da existência das mesas individuais). Cada Ideia é uma substância separada dos sensíveis, e só elas podem ser chamadas de substância. Ou seja, este ou aquele cachorro não são por si, e, portanto, não são substâncias, mas a Ideia do cachorro, pela qual cada cachorro é cachorro, é por si e é uma substância. É possível que haja um número infinito de cachorros, mas o cachorro como ousía é só um. O cachorro individual é cachorro, não por si mesmo, mas na e pela Ideia do cachorro. Portanto, o cachorro individual, mesmo sendo um ente, não é substância (não é por si). O participado (a Ideia) é sempre anterior ao participante (a cópia). No platonismo “este homem” é o participante, ou seja, o imitante da Ideia (que é o imitado). E as coisas individuais que participam da mesma Ideia (por exemplo, cachorros individuais) são diferentes entre si porque participam também de outras Ideias, como de tal cor, tal grandeza, tal figura etc. Essa relação entre as coisas individuais e as Formas pelas quais essas coisas dependem e participam é destacada por De Libera: O realismo platônico das Formas separadas é apresentado no Fédon. A tese central é exposta em 102b: “As Formas existem e são coisas determinadas. Outras coisas recebem o seu nome pela sua participação nessas Formas. Além da separação entre as Formas consideradas como coisas determinadas e a participação, devemos observar o tema da causalidade eponímica que desdobra ontologicamente a participação. As Formas não são apenas causas das coisas, mas causas eponímicas. A eponímia indica que coisas sensíveis recebem seu nome de uma Forma.48 48 “Le réalisme platonicien des Formes séparées est présenté dans le Phédon. La thèse centrale est exposée en 102b: «Les Formes existent et sont des choses déterminées. Les autres choses reçoivent leur dénomination de leur participation à ces Formes.» Outre la séparation des Formes considérées comme des choses déterminées et la participation, il faut noter le thème de la causalité éponymique qui déploie ontologiquement la participation. Les Formes sont non seulement causes des choses, mais causes éponymes. L’éponymie signale que les choses sensibles tiennent leur nom d’une Forme.” (DE LIBERA, 1996, p. 67). 33 Portanto, de acordo com a posição platônica, a Ideia está ontologicamente separada do sensíveis, sendo sua causa, estando, portanto, hierarquicamente acima dos indivíduos. O conhecimento das Ideias, obviamente, não pode se dar pelos sentidos, porque o conhecimento sensitivo, como dissemos, é conhecimento de coisas do mundo físico, que estão em constante mudança, ao passo que as Ideias são fixas e imutáveis. Portanto, o conhecimento dessas realidades imutáveis só pode se dar pelo pensamento (dianoia) em si mesmo; por isso, a intelecção é uma espécie de “olho da mente”, porque apreende as coisas, porém, de modo diferente dos sentidos, ou seja, naquilo que nelas há de fixo e universal (o que modernamente foi atribuído ao conhecimento a priori). Platão aponta o corpo como um obstáculo para que se atinja a verdade pelo intelecto, como nesta passagem do Fédon: SÓCRATES. – E com relação ao seguinte, Símias: afirmamos que é algo o justo [díke] em si ou o negamos? SÍMIAS. – Afirmamos, sem dúvida, por Zeus! SÓCRATES. – E que, além disso: o belo [kallos] é algo e o bem [agathón] também? SÍMIAS. – Como não! SÓCRATES. – Pois bem, vistes já com teus olhos, em alguma ocasião, algumas dessas coisas? SÍMIAS. – Nunca, respondeu. SÓCRATES. – Percebeste-as com algum outro sentido do corpo? Refiro-me a tudo; por exemplo, à grandeza, à saúde, à força; numa palavra: à realidade de todas as demais coisas, a saber, ao que cada uma delas é? É por intermédio do corpo [soma] que se conhece o mais verdadeiro nelas, ou se dá, pelo contrário, que aquele de nós que se prepara com o maior rigor para pensar sobre a coisa em si, que é objeto de sua consideração, é aquele que pode chegar mais próximo de conhecer cada coisa? SÍMIAS. – Assim é, com efeito. SÓCRATES. – E não fará isso da maneira mais pura aquele que tendeu para cada coisa tão somente com o pensamento [diánoia], sem se servir da vista no pensar, e sem arrastar nenhum outro sentido na sua meditação, mas que, empregando o mero pensamento em si mesmo, em toda a sua pureza, depois de ter se liberado de todas as maneiras possíveis dos olhos, dos ouvidos e, por assim dizer, de todo o corpo, convencido de que ele perturba a alma [psyche] e não lhe permite possuir a verdade e a sabedoria quando tem relação com ela? Não é ele, Símias, quem alcançará a realidade, se é que alcançou alguma? 34 SÍMIAS. – É uma verdade grandiosa o que dizes, Sócrates, respondeu Símias.49 O corpo, por ficar preso aos sensíveis, que são mutáveis, pode perturbar a alma no conhecimento das Ideias. Essa concepção será retomada por Agostinho e por autores medievais. 5. Os universais como abstração do intelecto A resposta aristotélica vai na direção oposta à platônica: substância, em seu sentido estrito é cada coisa singular. Ou seja, o que é, de fato, substância são os entes individuais. E as substâncias universais são apenas absrações intelectuais dos indivíduos: A substância, em sua acepção mais própria e mais estrita, na acepção fundamental do termo é, aquilo que não é nem dito de um sujeito nem em um sujeito. A título de exemplos podemos tomar este homem em particular ou este cavalo em particular. Entretanto, realmente nos referimos a substâncias secundárias, aquelas dentro das quais – sendo elas espécies – estão incluídas as substâncias primárias ou primeiras e aquelas dentro das quais – sendo estes gêneros – estão contidas as próprias espécies.50 Notemos que aqui o mundo não é um mundo de Ideias, mas uma multiplicidade de substâncias e, portanto, cada sensível é separado, independente e distinto de outro. Cada pedra individual é uma substância. Assim como cada homem individual, cada animal individual, cada árvore individual. “Pedra”, tomada universalmente, como veremos, é uma abstração que prescinde dos princípios individuais. Não existe a “pedra em si”, apenas pedras individuais, sendo o universal pedra uma abstração operada pelo intelecto, não uma Ideia da qual os indivíduos participam. A universalização é apreendida, portanto, pela intelecção. O intelecto considera todos os singulares como se fossem um só, atribui uma unidade, e mesmo assim os singulares continuam sendo numericamente distintos: homem é produto de uma abstração, uma unidade destacada dos singulares, mas também tem um fundamento real – em cada homem singular há algo que se repete, que é ser animal racional. Podemos dizer que Platão e Sócrates, ambos são animais racionais, mas numericamente distintos. O ato de abstração permite que também conheçamos os individuais mediante o universal. 49 Fédon, 65d-66a. 50 Categorias, 2a11-19. 35 Como vimos anteriormente, Platão deduz a existência de Ideias ou Formas, realidades invisíveis, idênticas a si próprias, enquanto os sensíveis são múltiplos e variáveis. Ora, de acordo com Aristóteles, se as Ideias pudessem ser uma boa explicação para os sensíveis, estariam nos próprios sensíveis; se não estão nos sensíveis, são inúteis para a sua explicação, pois a causa de algo deve estar na coisa e não fora dela. O estagirita exclui da sua metafísica o conceito platônico de participação. Sócrates não participa da brancura; Sócrates tem a brancura (a noção de participação é vazia para Aristóteles, uma metáfora poética sem significado). Além disso, a teoria platônica transforma o que é por si em algo que é relativo e transforma o que é relativo em algo que é por si: se digo “Sócrates é homem”, Sócrates é homem porque participa da Forma de homem (o sujeito é participante e o predicado é o participado), o predicado passa a ser algo que é por si, o que seria absurdo. Há, portanto, uma inversão ontológica: o platonismo confere mais ser ao que depende de algo; o que era em sentido pleno se torna relativo no platonismo, e o que era relativo se torna em sentido pleno no aristotelismo (não há ser por si do “grande” ou do “pequeno”, já que grande e pequeno são relativos e não por si). Só posso dizer que algo é “grande” ou “pequeno” em relação a outro: posso dizer que Sócrates é pequeno em relação a Cebes e grande em relação a Símias, por exemplo. De acordo com Aristóteles, uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e na mesma relação (princípio de não contradição); posso dizer que Sócrates é grande e pequeno, mas não na mesma relação: é grande em relação a um e pequeno em relação a outro. Platão não distinguiu, portanto, os múltiplos modos no qual se diz o ser, e cometeu o equívoco de dizer, por exemplo, que ser homem é mais que ser Sócrates. Mais ainda, para Aristóteles, a substância (a coisa, este algo) possui primazia ontológica: ente se diz de múltiplos modos (ente se diz em muitos sentidos), sendo que há um sentido primeiro ou primário de se dizer “ente”: a substância – todos os outros modos que não são substância, dizem-se da substância, já que a substância é o que é por si. Em outras palavras, todas as coisas, ou são substâncias, ou se dizem em relação à substância: o acidente, por exemplo, só é acidente de uma substância; a privação, é privação de uma substância etc. O branco não seria se não fosse branco de algo (de Sócrates, da parede etc.). Assim, quando digo “Sócrates não é romano”, esse não-ser é uma negação de um acidente, ao passo que “Sócrates” (substância) é de uma forma que 36 não precisa ser de, ou a respeito de, para ser Sócrates. Se digo “Sócrates é cego”, a cegueira é uma privação, um ente apreendido pelo intelecto. Por isso, todos os modos de ser dependem do modo de ser substancial, que é o modo de ser que é por si e que não precisa de outro para ser; mas o acidente é sempre acidente de uma substância, é um modo de ser que depende da substância para ser. Todas as categorias que não a substância são acidentes (quantidade, qualidade, relação etc.), ou seja, dizem-se sempre em relação à substância. 6. O tratado das Categorias O grego kategoría significa “atribuição”. Na linguagem jurídica, pode significar “acusação”, a atribuição de um crime ou de um delito a alguém.51 Na linguagem filosófica, uma kategoría é a atribuição de um predicado a um sujeito, aquilo que os medievais traduziram como predicamentum, predicamento; ou seja, a relação entre um sujeito e um predicado, na qual o predicado é aquilo que se diz do sujeito, da substância. Se digo “Sócrates é baixo”, digo que a quantidade pertence a Sócrates. De modo que o tratado das Categorias tem como assunto os predicamentos. Nesse tratado, Aristóteles divide o ser em quatro. Essa divisão é feita a partir de dois princípios: (1) relação universal e particular; (2) relação substância e acidente. Em (1), tem-se a relação entre o sujeito e o predicado, em que o sujeito é aquilo ao qual um predicado é dito, e o predicado é aquilo que é dito de um sujeito. Em (2), tem-se a relação de sujeito e acidente, ou seja, a inerência do acidente no sujeito. No primeiro caso, o predicado deve ser sempre mais ou tão universal que o sujeito (no caso de ser “tão” universal, teríamos uma tautologia, como homem é homem); o predicado nunca pode ser menos universal que o sujeito; posso dizer, por exemplo, Sócrates é homem, mas não Homem é Sócrates, pois há outros homens que não Sócrates. No segundo caso, o acidente individual é aquele que inere numa substância individual, já que o acidente não tem autossuficiência ontológica, mas depende de uma substância na qual inere. Esses dois princípios, aplicados concomitantemente, nos dão uma divisão quadrupla do ente: 51 Na Apologia de Sócrates, é dito que o próprio Sócrates irá se defender de uma kategoría, isto é, de uma acusação. (1) o que não é dito de um sujeito nem está em um sujeito: a substância individual ou primeira (ex.: este homem, este cavalo); (2) o que é dito de um sujeito e que não está em um sujeito: a substância universal ou segunda (ex.: homem, cavalo); (3) o que não é dito de um sujeito, mas está em um sujeito: o acidente individual (ex.: este branco); (4) o que é dito de um sujeito e está em um sujeito: o acidente universal (ex.: branco). O estagirita assinala que a substância individual (a substância primeira ou primária) é a que não está (não inere) em um sujeito e que, portanto, não se diz de um sujeito, ou seja, não é um predicado, e que tanto os acidentes como a substância universal dependem da substância individual: o acidente, na medida em que seu ser depende da substância, pois não é por si, sempre é na substância (depende dela para ser); a substância universal, na medida em que é uma abstração a partir das substâncias individuais (só há o universal homem porque há homens individuais). A substância individual é a que se diz substância em sentido próprio, todos dependem dela, tanto os acidentes como as substâncias universais. Inversamente, no platonismo, os que têm maior ser são a substância universal e o acidente universal, que são vistos como causas das substâncias individuais e dos acidentes individuais respectivamente. A substância, em sua acepção mais própria e mais estrita, na acepção fundamental do termo, é aquilo que não é nem dito de um sujeito nem em um sujeito. A título de exemplos podemos tomar este homem em particular ou este cavalo em particular. Entretanto, realmente nos referimos a substâncias secundárias, aquelas dentro das quais – sendo elas espécies – estão incluídas as substâncias primárias ou primeiras e aquelas dentro das quais – sendo estas gêneros – estão contidas as próprias espécies. (Categorias 2a11-19). A substância universal só pode ser chamada de substância se considerada como uma abstração a partir da substância individual. Os medievais, por exemplo, disseram que o ente pode ser ente real ou ente de razão52. O ente real é aquele cujo ser não depende de uma operação intelectiva: Sócrates, por exemplo, é ente, que não é produzido pelo intelecto, mas pode ser apreendido; também é chamado de coisa (res), não depende do pensamento, pois mesmo que não fosse pensado por alguém, continuaria sendo (continuaria ente). O ente de razão, por outro lado, é aquele que é apreendido pelo intelecto, por exemplo, entes imaginários (como sereias, quimeras), privações (cegueira, 52 Essa distinção é acentuada na escolástica tardia, em autores como Suárez. 37 38 trevas) e abstrações; segundo os escolásticos, não são entes reais, porém, implicam algo real. A sereia, por exemplo, é um ente que deriva de algo real (no caso, as substâncias individuais do peixe e da mulher). As trevas são privação da luz. A substância universal ou segunda é o ente de razão, pois universais como “homem”, “cavalo” são produzidos por uma operação intelectiva a partir de algo real (o homem individual, o cavalo individual) que prescinde de princípios individuais. Por isso, Aristóteles assinala que a substância em sentido pleno é apenas aquela individual ou primeira. Em outras palavras, substância propriamente dita é a substância individual; os outros entes dependem dela, pois a substância universal é uma abstração a partir daquelas individuais, e os acidentes são acidentes de um sujeito (substância); tanto o acidente individual como o universal dependem da substância individual, pois a individualidade do acidente se dá na substância na qual inere, pois o acidente é individuado pela matéria da substância (ex: a quantidade – a grandeza ou tamanho – de uma pedra), ao passo que o acidente universal é uma abstração a partir dos acidentes individuais que inerem nas substâncias individuais. Na filosofia aristotélica, o universal (katholou) é o abstrato, a substância (ousia) é o concreto, este algo, um indivíduo (tóde ti), sendo que os indivíduos diferem numericamente. A substância pode ser referida não só ao universal, mas também e principalmente a um “isto”: se se afirma, como de certo modo fez Platão, que a substância é o universal, perde-se a particularidade. “Homem” não é Sócrates, mas se diz de Sócrates, assim como se diz de Símias, Cebes etc. Os indivíduos possuem entre si uma semelhança que fundamenta a universalização – o universal pertence a muitas coisas (diz-se de muitos), e a relação entre a noção de substância e a noção de universal não é de identidade (como em Platão), mas de semelhança. O universal é ontologicamente enfraquecido em comparação com o particular: a primazia ontológica não é mais dos universais como no platonismo, mas sim, das substâncias sensíveis em Aristóteles: homem é um ente cuja unidade é produzida a partir de um conhecimento intelectivo, e o que é real, concreto, são homens individuais. A pergunta ti ésti (o que é?, a essência, a substância) é uma herança socrático- platônica, cuja resposta tem que se dar de modo universal. O particular é epistemologicamente carente e ontologicamente pleno, enquanto o universal é epistemologicamente pleno (pois conhecer é conhecer universais) e ontologicamente carente (pois o que tem ser propriamente é o particular). O universal (seja gênero ou espécie) é o que permite haver linguagem. 39 Concluímos, portanto, que a substância individual é o sujeito de toda inerência e predicação, pois toda inerência e predicação dependem da substância primeira. Se animal não fosse predicado de homem, também não o seria de homens particulares, porque não há universal sem particular (“homem” depende de homens particulares), e por isso dizemos que a substância universal depende daquela individual. Assim também a “cor” (acidente) está no “corpo” (como gênero) e em certo corpo (como individual), já que não tem como a cor estar no corpo se não estiver nos corpos individuais, e, por isso, dizemos que os acidentes também dependem da substância primeira para existirem, pois sem substância não há inerência de acidentes, uma vez que essa inerência é inerência numa substância, ao mesmo tempo em que a individuação se dá na matéria da substância na qual os próprios acidentes inerem. Se as substâncias primeiras não fossem, nada mais seria. Depois de expor essa ordem ontológica, poderíamos nos perguntar se nas substâncias individuais há algum tipo de primazia. A resposta aristotélica é negativa. Assim, este homem não é mais substância que este cavalo. Se nos voltamos para as espécies, [vemos que] nenhuma, a menos que seja também um gênero, é mais substância do que a outra. Não há maior propriedade em chamar de homem um homem concreto ou individual do que chamar de cavalo um [determinado] cavalo concreto. Assim também no que respeita às substâncias primeiras: nenhuma é mais substância do que as outras, pois este ou aquele homem, por exemplo, não poderia ser mais verdadeiramente substância do que, digamos, este ou aquele boi. (Categorias, 2b23-29). Em outras palavras, a diferenciação das substâncias não se dá sendo uma mais substância que a outra (pois são igualmente substâncias), mas sim em relação às suas naturezas. 7. Pontos de ruptura entre as duas teses Seria inadequado pensarmos que apesar das diferenças entre as duas teses, há apenas rupturas. Até porque Platão e Aristóteles partem do mesmo problema: visto que há um devir das coisas sensíveis, como podemos ter conhecimento fixo e universal dessas coisas, levando em conta que os sentidos apenas nos dão conhecimento do que é mutável e contingente? Podemos notar que tanto em Platão como em Aristóteles conhecemos o 40 múltiplo na medida em que nele existe algo uno, idêntico e universal, e isso é que possibilita o conhecimento (episteme): Há, depois, uma questão afim a esta, que é a mais difícil de todas e cujo exame é o mais necessário. Dela devemos agora falar. Se, com efeito, não existe nada além das coisas individuais, e se as coisas individuais são infinitas, como é possível adquirir ciência dessa multiplicidade infinita? De fato, nós só conhecemos todas as coisas na medida em que existe algo uno, idêntico e universal53. (Metafísica III, 999a24-29). Apesar disso, podemos notar alguns pontos de ruptura, que depois darão origem a duas teses medievais distintas. Primeiro, podemos notar que Aristóteles não concorda com a recusa platônica de conferir ser substancial aos sensíveis. No platonismo, falar de ousía significa o que é inteligível, e consequentemente, a substância é apenas o que é universal, também chamada de Ideia ou Forma. Na ótica aristotélica, aceitando a tese platônica, perde-se a particularidade, porque a substância é um tóde ti (este algo, um indivíduo), e o universal só é possível porque os indivíduos possuem uma semelhança que é universal. Um outro ponto de ruptura, mas não menos importante, é o fato de a noção de Ideia significar que há uma existência separada desses universais, enquanto a tese oposta assere que o universal é uma abstração do intelecto a partir dos sentidos. Essa divergência se estende até mesmo no ser dos entes matemáticos, que, segundo Aristóteles, também são uma abstração do intelecto a partir dos sensíveis, ao passo que Platão os concebia como separados e intermediários entre o sensível e o inteligível. Se perguntássemos: a bola e a esfera são diferentes? Um platônico nos responderia que a bola é sensível e a esfera, inteligível. Mas então por que a geometria de ambos é idêntica? Pela participação do sensível no inteligível, visto que no platonismo os entes matemáticos são intermediários entre as Ideias e o sensível; por isso, a matemática é intermediária ao estudo da filosofia54, pois começa a lidar com objetos não sensíveis. Um aristotélico, ao contrário, responderia de outra maneira, a saber, diria que os entes matemáticos são separados quanto à matéria, mas não quanto ao ser: a esfera é o mesmo objeto que a bola, mas é uma abstração feita pelo intelecto a partir da bola e outros objetos esféricos sensíveis. 53 Metafísica III, 999a24-29 54 Vale lembrar a frase exposta na Academia de Platão “não entre quem não for geômetra Uma outra divergência consiste na polêmica concepção platônica de participação, que Aristóteles considera como vazia de significado, segundo a qual os sensíveis são o que são porque participam do inteligível. Mas, como vimos, para o estagirita, seria absurdo dizer que o ser de algo é causado por algo que está fora dele. Em outras palavras, há uma unidade idêntica que não é um caso particular, que em Platão, são as Ideias: as realidades invisíveis são idênticas a si próprias, enquanto os sensíveis são múltiplos e variáveis. Ora, segundo Aristóteles, se as Ideias pudessem ser uma boa explicação para os sensíveis, estariam nos próprios sensíveis; se não estão nos sensíveis, são inúteis para a sua explicação. A causa de algo deve estar na coisa e não fora dela. Como dissemos anteriormente, a teoria platônica transforma o que é por si em algo relativo e o que é relativo em algo por si: se digo Sócrates é homem, Sócrates é homem porque participa da Ideia de homem (o sujeito é o participante e o predicado é o participado); o predicado passa a ser algo que é por si, o que seria absurdo. Dá-se aqui uma inversão ontológica: o platonismo confere mais ser ao que depende de algo; em Platão, o que era em sentido pleno se torna relativo, e no aristotelismo, o que era relativo a se torna em sentido pleno. A tese platônica confere mais ser ao que é universal do que ao indivíduo. Aristóteles opera uma inversão ontológica, conferindo mais ser ao que é individual (se não existissem homens individuais, não haveria o universal “homem”, por exemplo). Platão tornou o que é por si como relativo e o que é relativo, por si. Mas dizer que algo é grande, pequeno, frio, quente etc. só se diz em relação a algo. Uma mesma coisa pode ser fria comparada a outra quente. Por fim, há um fator gnosiológico que separa as duas teses. Segundo a tese abstracionista, os sentidos são o começo do conhecimento, ainda que incipiente, porque é o tipo de conhecimento menos avançado54, ao passo que o platonismo crê que o conhecimento sensível é um obstáculo para que a alma conheça as Formas imutáveis. 54 Na Metafísica, Aristóteles expõe a seguinte ordem gnosiológica: sentidos, memória, imaginação, arte e ciência. “[…] pour Aristote, la mémoire naît de la sensation, l’expérience de la répétition dans la mémoire, et la «conception del’Universel», «principe de l’art et de la science», «del’expérience raisonnée».” (DE LIBERA, 1996, p. 115) 41 8. Conclusão Este segundo capítulo destrincha o desabrochar e os principais desdobramentos do problema dos universais no pensamento antigo, debruçando-se detidamente sobre as correntes platonizantes e o aristotelismo. Principiando por Platão, a teoria platônica das Formas ou Ideias surge como tentativa de solucionar aporias epistemológicas legadas pelo mobilismo heracliteano e pela proposta socrática de definir noções universais. Platão hipostasia os universais em entes inteligíveis subsistentes em si mesmos, paradigmas imutáveis da multiplicidade sensível em devir, dos quais participam por semelhança. Aristóteles inverte essa relação ontológica, conferindo primazia aos indivíduos concretos que servem de fundamento à abstração dos universais. Sua análise das categorias do ente depõe contra a separação e a sobreposição hierárquica dos universais, vistos agora como predicados abstratos do sensível pela mente. Buscamos analisar as matrizes metafísicas, gnosiológicas e semânticas de cada vertente, sua alternância entre os polos da imutabilidade inteligível e do devir sensível, os modos de conceber a causalidade, participação e predicação. Percebemos elementos de confluência e os pontos de inflexão entre platônicos e aristotélicos, como o estatuto dos universais, o processo do conhecimento, o papel da linguagem. É no embate dessas correntes basilares que o problema é legado aos pósteros, preparando o terreno para o enfrentamento medieval. Por fim, ao desvelar a gênese e os contornos essenciais conferidos pelos antigos à disputa em torno da característica dos universais, conseguimos avançar em nosso intento de analisar a resposta de Boécio ao problema dos universais e seu desdobramento no medievo. 42 CAPÍTULO TERCEIRO A POSIÇÃO DE BOÉCIO EM RELAÇÃO AO PROBLEMA 1. A Isagoge de Porfírio Podemos destacar na Isagoge, duas contribuições fundamentais: o problema (não respondido) acerca da natureza dos universais e a divisão dos cinco predicamentos. Em relação à primeira, como dissemos anteriormente, Porfírio, ao escrever a Isagoge, uma introdução às Categorias, formula três perguntas acerca da natureza dos universais: (1) se são subsistentes por si, isto é, se são substâncias [essa é a posição de Platão, que considera os universais como reais e extramentais], ou se são conceitos mentais, isto é, se são abstrações [como sustenta Aristóteles]; (2) no caso de serem subsistentes por si, se são corpóreos ou incorpóreos (separados); (3) se são separados ou se encontram nos sensíveis, inerentes a eles.55 Mesmo sem responder a esse problema, a Isagoge é importantíssima, “pois em Porfírio encontramos a formulação clássica da questão sobre os universais”56. Não apenas por ter sido a primeira vez em que a questão foi desenvolvida, e que depois veio gerar, através de Boécio, toda a querela medieval. A contribuição da Isagoge não se restringe a esse aspecto porque também na obra é apresentada a chamada doutrina dos predicáveis (dos universais), que são o gênero, a espécie, a diferença, o próprio e o acidente. Nos Tópicos, Aristóteles apresenta quatro predicáveis: a definição, o próprio, o gênero e o acidente. Henry assinala que a divisão dos predicáveis em Porfírio mostra conexão com o que Aristóteles apresenta nos Tópicos, pois o estagirita faz algumas alusões ao gênero e à diferença.57 Como é possível notar, a primeira questão busca saber se os universais são reais e extramentais, ou se são apenas abstrações do intelecto a partir dos sensíveis. Na segunda questão (para aqueles que aderem à posição platônica), resta saber se os universais, reais 55 Isagoge 1, 10-14. 56 Leite (2001, p. 15). 57 Cf. Henry (2008, p. 129). 43 e extramentais, são corpóreos ou incorpóreos? Vem então a terceira questão, ou seja, se os universais são incorpóreos, se são separados ou inerem nos sensíveis? 2. O gênero De acordo com Porfírio: “O género predica-se, com efeito, em primeiro lugar, de uma colecção de indivíduos que se comportam de um determinado modo em relação a um só ser e em relação uns aos outros”. O gênero é predicado de várias coisas: como o animal é de cachorro, cavalo e homem. Entre os gêneros, podemos incluir desde os gêneros supremos (as categorias de Aristóteles, como a substância, a quantidade, a qualidade, a relação etc.) até os gêneros menos gerais. Portanto, substância, corpo, vivente e animal são gêneros, distinguindo-se pelo grau de universalidade: quanto mais próximo da categoria mais genérico e universal. 3. A espécie “[…] as espécies, sendo predicadas de vários indivíduos, só o são de indivíduos que não sejam diferentes entre eles segundo a espécie, mas apenas segundo o número.”59 Quer dizer, diferentemente de um gênero que se predica de outro gênero (como por exemplo quando se diz que corpo é substância), a espécie é predicada dos indivíduos (das substâncias individuais), que diferem entre si numericamente. 4. A diferença A diferença é determinante num gênero e estabelece uma definição, como quando “racional mortal” é adicionado a “animal”, indicando a definição de homem.60 A diferença é o que determina o gênero inferior num gênero superior (aquilo que determina a espécie num gênero). Por exemplo, racional determina a espécie “homem” no gênero “animal”, pois não há outro animal racional além de ente humano; “racional” é, portanto, uma diferença. Assim como “sensitivo” é o que determina o animal nos outros viventes, pois não há outro vivente que seja sensitivo. 58 Isagoge I., 1983, p. 52-53. 59 Isagoge I, p. 56. 60 Cf. Henry (2008, p. 128): “A differentia in combination with the genus produces the definition, as when mortal rational is added to animal to produce the definition of man.” 44 5. O próprio O próprio (acidente próprio ou propriedade) é aquilo que inere em uma espécie, mas não entra na sua definição e essência, apesar de decorrer dela. Por exemplo, rir é próprio do homem, já que ele é o único ente que ri. Mas, mesmo pertencendo unicamente ao homem, rir não entra na definição e essência de homem. Sua essência é a animalidade racional. A propriedade acompanha essa essência: porque o homem é racional, ele ri. “Uma propriedade é um predicado que não indica a essência de uma coisa, mas é predicável de forma convertível, uma vez que pertence somente a essa coisa.”61 6. O acidente O acidente no sentido ontológico é aquilo que está na substância, inere nela. No sentido lógico, acidente é um predicado. Mas aqui, o que se chama “acidente” se toma universalmente, aquilo que Aristóteles denomina nas Categorias de acidente universal, isto é, uma abstração a partir dos acidentes individuais. Portanto, “branco”, “preto”, “gramático” são acidentes universais, já que são uma abstração de coisas brancas, pretas, e dos gramáticos individuais. “Finalmente, um acidente pode ser especificado tanto como qualquer predicado diferente de qualquer um dos predicados acima mencionados, quanto como o que pode ou não pertencer a um determinado indivíduo; por exemplo, o predicado “sentado” em relação ao Sócrates individual.”62 7. O primeiro problema: a autossubsistência dos gêneros e das espécies A hipótese de Leite (2001) é a de que a posição de Boécio pode ser caracterizada como “ontognosiológica”. Aderimos a essa posição, na medida em que acreditamos ser a melhor leitura da resposta boeciana, uma vez que Boécio considera não só as potências cognoscitivas da alma em relação com o universal, mas também reflete sobre o universal independentemente dessa relação. Desse modo, a resposta boeciana parece incidir sobre 61 “A property is a predicate not indicating a thing's essence but predicable convertibly of it since it belongs to that thing alone.” (HENRY, 2008, p. 128). 62 “Finally, an accident may be specified either as any predicate other than any of the predicates mentioned above or as that which may or may not belong to a given individual; e.g., the predicate being seated with respect to the individual Socrates.” (HENRY, 2008, p. 128). 45 46 dois eixos, percorrendo da existência do universal nas coisas ao “modo como conhecemos e formamos os gêneros e as espécies”63. Como dissemos acima, o primeiro problema colocado por Porfírio ao qual Boécio se propõe a responder é se os universais são autossubsistentes ou não. Em outras palavras, isso significa investigar se os universais são Formas no sentido platônico, isto é, substâncias separadas, ou se são abstrações. Ao se questionar se os gêneros e as espécies são separados, Boécio responde que negativamente e, para justificar a sua posição, vale- se de dois argumentos: (1) o argumento da “unidade” dos universais, e (2) o argumento do terceiro homem. 7.1. O argumento do uno no múltiplo Comecemos pelo primeiro argumento que chamaremos de argumento do uno no múltiplo. Tudo o que é em si, é um. Isso significa que cada ente é numericamente um. Tudo o que é ao mesmo tempo comum a muitos não pode ser um em si. Pois é de muitos o que é comum, especialmente quando uma e mesma coisa seja toda ao mesmo tempo em muitas; de fato, tantas quantas sejam as espécies, em todas o gênero é um, e não que as espécies singulares tomem dele algumas partes, mas as [espécies] singulares possuem ao mesmo tempo todo o gênero; isso faz com que todo o gênero, colocado ao mesmo tempo em muitas coisas singulares, não possa ser um; nem, de fato, pode acontecer que, como é um em muitos ao mesmo tempo, seja em si mesmo numericamente um. Pelo que, se é assim, certo gênero não poderá ser um, e isso faz com que seja absolutamente nada. Com efeito, tudo o que é, como nele mesmo é, é um, e o mesmo convém dizer da espécie.64 O argumento de Boécio sobre a primeira questão do problema consiste na oposição entre o ente que, sendo em si, é um, e o universal que, sendo “comum a muitos”, não pode ser um em si, pois a sua condição é ser um em muitos singulares ao mesmo tempo, seja nas espécies singulares, seja nas coisas singulares. O argumento se reveste de 63 Leite (2001, p. 35). 64 “Omne enim quod commune est uno tempore pluribus, id in se unum esse non poterit. Multorum enim est quod commune est, praesertim cum una atque eadem res multis uno tempore tota sit; quantaecumque enim sunt species, ins omnibus genus unum est, non quod de eo singulae species quase partes aliquas carpant, sed singulae uno tempore totum genus habeant: quo fit ut totum genus in pluribus singulis uno tempore positum unum esse non possit; neque enim fieri potest ut cum in pluribus totum uno sit sit tempore, in semetipso sit unum numero. Quo si ita est, unum quiddam genus esse non poterit, quo fit ut omnino nihil sit. Omne enim quod est, id circo est quia unum est, et de specie idem convenit dici.” (BOÉCIO, PL 64, 83B). 47 um aspecto, digamos, mereológico, pois Boécio está chamando a atenção para o seguinte: se um gênero subsistisse em si, como um, não poderia ser todo ao mesmo tempo nas espécies singulares, que tomariam dele algumas partes. Algo que é “comum a muitos” não pode ser um em si, segundo Boécio, porque sua condição é ser um em muitos ao mesmo tempo; não pode ser comum no sentido de ser partilh