p.6943 DILEMAS ENTRE A CULTURA E A CIÊNCIA Elise Mazon Albejante (Departamento de Educação, Instituto de Biociências, UNESP - Rio Claro, SP); Célia Regina Rossi (Departamento de Educação, Instituto de Biociências, UNESP - Rio Claro, SP). Eixo Temático 7: Dimensão Cultural na Formação de Professores A aldeia onde a pesquisa foi realizada se localiza dentro da Amazônia Legal, no estado de Rondônia. Nela moram indígenas de sete etnias diferentes, sendo que a pesquisa terá como foco a etnia mais representativa desta Terra Indígena. Entretanto, o nome da mesma não será revelado neste trabalho, por um acordo feito entre a pesquisadora e os indígenas do local. Esta etnia tem como região de origem as proximidades da margem direita do rio Pacaás Novos, sendo que os mesmos foram avistados no início do século XX, pelos não indígenas da região, os quais, em sua maioria, extraiam látex das seringueiras que eram abundantes neste local. Entretanto, foi no segundo “boom” da borracha que houve uma maior exploração da região onde eles habitavam. Naquele momento, os conflitos entre indígenas e seringueiros/seringalistas eram constantes. Foi por volta de 1956 e 1960 que o SPI1 (antiga FUNAI2) juntamente com a MNTB3 e a Igreja católica da cidade mais próxima se mobilizaram para algumas expedições com o intuito de um contato pacífico. Estes episódios se iniciaram principalmente por causa da pressão que os morados da cidade (parentes dos seringueiros e seringalistas) fizeram em cima dos órgãos competentes, pois as mortes eram constantes e, caso este contato pacífico não acontecesse, seringueiros e seringalistas partiriam para ataques mais violentos, com intuito de dizimar a população indígena. Muitos desses massacres aconteceram, mas a situação amenizou após todo o processo dito “pacificação”, por volta de 1960. Desde o contato pacífico, a necessidade do conhecimento advindo da sociedade não-indígena se tornou cada vez maior, porque agora eles não mais estão isolados em seus habitats. Ao contrário, suas áreas estão cada vez mais restritas e com maior influência da cultura exterior, isto é, a cultura dos não indígenas. Com isso, a presença de uma escola passou a ser algo imprescindível para esta parte da população. Entretanto, com a inserção destas escolas nas aldeias, surgiram algumas problemáticas, dentre elas o presente estudo dará maior ênfase ao papel do professor, seu conhecimento da cultura local e as contradições existentes entre a ciência e os p.6944 saberes tradicionais. Como metodologia do trabalho, a pesquisa se pautou em entrevistas semi- estruturadas com um casal de adultos e seis jovens. Essas pessoas foram escolhidas, juntamente com as lideranças locais, de tal forma que as respostas tivessem uma maior área de abrangência no que tange a diversidade de comportamentos e culturas de clãs familiares. Além dessas entrevistas, a pesquisadora também se utilizou da observação participante por três meses. Tal abordagem metodológica permitiu a vivência da cultura por parte da pesquisadora, de forma há possibilitar um conhecimento mais desmistificado, desconstruindo assim a visão influenciada da pesquisadora trazida de sua própria cultura. Aprender a pensar, aprender o olhar-pensante não é somar conhecimentos já internalizados, apropriados. Mas é estabelecer relações entre semelhanças e diferenças. E para isso, uma “forma” do pensar ou do olhar não tem serventia. A minha forma se exercita, se instrumentaliza na quebra das amarras de um olhar comum, na procura consciente da própria forma de olhar, no exercício de buscar ângulos novos, na construção de relações. É um olhar de pensamento divergente. (MARTINS, 2003). Após a permanência da pesquisadora na aldeia, percebeu-se que existem inúmeras crenças culturais que divergem do pensamento cientista. Isto exige um conhecimento prévio dos educadores com relação à cultura com a qual irá trabalhar. Saberes Tradicionais versus Ciência Dentre os saberes encontrados que não se assemelham aos saberes da ciência, pode-se observar na Tabela 1. Tabela 1: Saberes Populares Tradicionais Assunto Saber Popular Explicação Restrição Alimentar Restrição tanto para os pais quanto para os filhos Quando há a troca de fluidos corporais, o homem, a mulher e o filho passam a ter o “mesmo corpo” Amamentação Enquanto amamenta não pode ter relação sexual Este ato causa diarréia no bebê que é amamentado Espiritualidade Importância do fogo Purifica o mal Espiritualidade Anta se transforma em parente já falecido Para enganar a vítima, atraindo-a e matando-a p.6945 Espiritualidade Onça se transforma em parente já falecido Para enganar a vítima, atraindo-a e matando-a Espiritualidade Os finados voltam para a terra na forma de queixada Para encontrar com seus parentes Tabus Alimentares na gravidez Alencor (ave) Para o bebê não chorar muito Tabus Alimentares na gravidez Cascudo Para a criança não respirar pela boca Tabus Alimentares na gravidez Cotia Sem explicação Tabus Alimentares na gravidez Gato Marajá Para não correr risco do bebê nascer morto Tabus Alimentares na gravidez Gavião Para não correr risco do bebê nascer morto Tabus Alimentares na gravidez Ovo de gaivota Para o bebê não chorar muito Tabus Alimentares na gravidez Paca Sem explicação Tabus Alimentares na gravidez Quati Causa tontura na criança Tabus Alimentares na gravidez Saracura Para o bebê não chorar muito Cuidados Culturais Deve esperar a comida esfriar antes de comer Para não estragar os dentes Cuidados Culturais Os homens devem se banhar após a caçada, de preferência passar o urucum Para não ficar com o cheiro de sangue e ser atacado pela onça Cuidados Culturais Não ter relação sexual antes de sair para o mato Para não ser picado por cobra Menstruação Acreditava-se que era um sinal de perda da virgindade Sem explicação Menstruação Não pode ter relação sexual neste período Por um respeito à mulher Menstruação Não pode andar no mato Para não atrair a onça Menstruação Não pode sentar na cadeira quente, onde o sol bate Para não ter cólica Menstruação Não pode carregar peso Sem explicação Pajé Olha as caças e retira objetos que prejudicam a saúde das pessoas Para que as pessoas que irão ingeri-la não ficarem doentes Pajé Conversa com os finados Por ter um espírito mais forte Pajé Joga fora os espíritos maus Por ter um espírito mais forte Formação do feto Acúmulo de espermas Para que o bebê não nascesse fraco p.6946 Pintura Corporal Nas crianças são feitas apenas linhas retas/longitudinais e uma pulseira no pulso Para que elas não parem de crescer Quando estes saberes tradicionais, apontados na Tabela 1, são buscados em estudos científicos como comprovados, muito pouco ou nada se encontra. Isto porque há uma dicotomia entre estas duas visões. Em uma visão, a preocupação com a experimentação e sua comprovação nos moldes programados provoca uma sistematização nos processos, os quais, nem sempre, ocorrem verossimilmente na prática. Na outra, o que estrutura estes saberes são as experiências dos mais velhos, os quais nem sempre viveram tais atividades, porém, foram ensinados por meio de história oral e por seus antecedentes constituindo essas crenças hereditariamente. Dentre estas crenças serão aprofundados os seguintes exemplos: a menstruação como sinal da perda de virgindade; a formação do feto após diversas relações sexuais (com o acúmulo do esperma); e alguns tabus alimentares. Hoje sabe-se que a virgindade é tratada como tal pela presença do hímen no canal vaginal da mulher. Quando há a sua ruptura, que geralmente acontece em sua primeira relação sexual com penetração pode haver ou não um sangramento; dependendo do tipo de hímen que esta mulher tem. Na cultura estudada, havia uma confusão entre este sangramento tratado acima e a primeira menstruação. Caso não houvesse um sangramento após o acordo nupcial, o homem poderia devolver a menina aos pais da mesma ou então provocaria uma briga generalizada, muitas vezes com a utilização de bordunas4, mas depois continuaria com sua recente companheira. Outra possibilidade era da menina ficar menstruada antes do casamento. Neste caso havia uma preocupação muito grande por parte dos pais, que se sentiam como irresponsáveis por não terem cuidado bem de sua filha. A crença de que o sangramento da menstruação é correspondente ao sangramento da perda de virgindade ainda é observado hoje na aldeia, porém de forma muito tímida. A maioria sabe diferenciar tais fatos. Além disso, atualmente não há a exigência da mulher se casar virgem, portanto a presença ou ausência do sangramento deixou de ser relevante nos matrimônios modernos. Outro fato curioso diz respeito à formação do feto. Tal crença é mais forte entre as mulheres. Ela consiste em que o bebê só nascerá forte e saudável se houver várias relações sexuais durante a gestação. No passado, quando os homens passavam meses fora no mato caçando e/ou em expedições guerreiras, a mulher tinha relações sexuais p.6947 com outros homens. Entretanto, seu parceiro oficial não tinha ciência disso. Atualmente, algumas mulheres ainda trazem consigo esta crença, porém o mesmo não pode ser notado nas mulheres jovens. Talvez isso ocorra por elas ainda não terem uma vida conjugal, nem filhos ou porque este saber deixou de ter valia para a cultura. Em contrapartida, a crença em tabus alimentares é bastante presente na aldeia. Essas restrições se dão principalmente quando a mulher está grávida. Neste caso, tanto ela quanto o pai da criança aderem tal comportamento. Isto porque eles acreditam que com as trocas de fluidos corporais, realizadas nas relações sexuais, os corpos se conectam de tal forma que passa a ser um; no sentido de que há a circulação de esperma e lubrificações no ato sexual. Um fato curioso é que esta unificação de corpos se estende aos filhos do casal; com isso, se o pajé diz que uma criança não pode comer determinado alimento, os pais da mesma também não poderão comê-lo. Apesar desta restrição pontuada acima, existem algumas restrições mais abrangentes para o período de gravidez do casal; os mesmo foram listados na Tabela 1 com seus respectivos efeitos. Cotidiano do professor ou da professora não indígena na aldeia Diante destas divergências teóricas, os professores e professoras que trabalham em escolas indígenas necessitam de uma formação prévia para não cometer equívocos diante destas e outras situações. O conhecimento básico com relação à cultura na qual ele irá trabalhar torna-se fundamental para o profissional da área de educação. Outro fator interessante e que auxiliaria o professor e professora neste sentido seria a construção do conteúdo com os alunos envolvidos. Para Paulo Freire, o conhecimento é construído de forma integradora e interativa. Não é algo pronto a ser apenas "apropriado" ou "socializado", como sustenta a pedagogia dos conteúdos. Por isso, essa pedagogia sustenta, até hoje, a necessidade da memorização. Conhecer é descobrir e construir e não copiar. Na busca do conhecimento, Paulo Freire aproxima o estético, o epistemológico e o social. Para ele é preciso reinventar um conhecimento que tenha "feições de beleza". (Gadotti, 1997). Com isso, o risco de se desconstruir todo o conhecimento tradicional, ignorando-o, passa para um viés de transformação do conteúdo em algo mais concreto para os atores do ensino-aprendizagem. Neste caso, além dos alunos compreenderem a conteúdo em sua lógica cultural, o(a) professor(a) passa a compreender a cultural na p.6948 qual está profissionalmente inserido(a), desconstruindo as certezas trazidas com ele(a). Entretanto, ainda assim o(a) professor(a) não indígena tem um olhar limitado com relação a esta nova cultura. Isto porque, por mais que ele(a) se motive para uma reconstrução de sua visão de mundo, ampliando seu olhar, o sujeito trás consigo intrinsecamente a impregnação de sua cultura de origem. Tal fato evidencia a importância da formação de professores indígenas para um maior suporte a escola local. Com isso, os alunos destas escolas teriam a formação nos Ensinos Fundamental e Médio com professores conhecedores da tradição indígena local e dos conceitos a serem trabalhados, de forma a aliá-los em uma nova construção. Cabe aqui salientar uma medida tomada pelos indígenas da aldeia estudada. Eles inseriram no currículo escolar local uma disciplina sobre mitos de sua cultura. Tal disciplina é dada por um professor indígena da cultura vigente. Ele, de forma perspicaz, faz com os mitos e crenças de sua cultura não se percam por entre os moldes científicos adotados no ensino das escolas indígenas. Novas maneiras de olhar, de organizar, de atuar, enfim de ser professor, unindo a cultura local com a científica, esta vindo de longe, mas olhando com cuidado e atenção para aquela trazida pela história oral, rica de conhecimentos, dos indígenas desta etnia. Caminhos continuam a ser abertos, indígenas entrando na universidade, dialogo entre não indígenas e indígenas, respeito às diferenças, enfim, uma reconstrução de possibilidades no olhar para culturas tão distintas da nossa, mas tão importantes, para a leitura que fazemos do mundo que está por vir. Notas SPI, Serviço de Proteção ao Índio.1. FUNAI, Fundação Nacional do Índio.2. MNTB, Missões Novas Tribos do Brasil.3. Borduna, segundo Cordeiro (2005, p.43), “assemelha-se a um cajado e são 4. destinadas à proteção, tanto física quanto espiritual”. Referências Bibliográficas CATHEU, G. & col. Panewa Especial. Conselho Indigenista Missionário –Regional Rondônia, Porto Velho, 2002. p.6949 CORDEIRO, E.J.D. Cara de Índio: Uma Tradução da cultura Kambiwá. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005. GADOTTI, M. Lições de Freire. Revista da Faculdade de Educação, v. 23, São Paulo, 1997. MARTINS, M. C. O sensível Olhar- pensante. In: FREIRE, M. Observação, Registro, Reflexão: instrumentos metodológicos I. Série Seminários: 3º ed. PND – Produções Gráficas Ltda, SP, 2003. VILAÇA, A. Quem Somos Nós? Os Wari’ encontram os brancos. Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.