UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS CAMPUS DE MARÍLIA A CRISE DO CONHECIMENTO OFICIAL: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO VOCABULÁRIO/ORGANIZAÇÃO SOCIAL MARÍLIA 2022 1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS CAMPUS DE MARÍLIA A CRISE DO CONHECIMENTO OFICIAL: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO VOCABULÁRIO/ORGANIZAÇÃO SOCIAL Pedro Gabriel Antonio Lallo Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) para DEFESA DE TESE de Doutorado na área de concentração em Ciências Sociais. Área de Concentração: Ciências Sociais Linha de pesquisa: Cultura, Identidade e Memória Orientador: Paulo Eduardo Teixeira Coorientadora: Christina de Rezende Rubim MARÍLIA 2022 2 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. 3 Lallo, Pedro Gabriel Antonio L199c A crise do conhecimento oficial : uma análise da relação vo- cabulário/organização social / Pedro Gabriel Antonio Lallo. -- Marília, 2022 233 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Paulo Eduardo Teixeira Coorientadora: Christina de Rezende Rubim 1. sociologia do conhecimento. 2. neopragmatismo. 3. linguagem. I. Título. PEDRO GABRIEL ANTONIO LALLO A CRISE DO CONHECIMENTO OFICIAL: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO VOCABULÁRIO/ORGANIZAÇÃO SOCIAL Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Aprovada em 24 de fevereiro de 2022. Banca Examinadora (Defesa de tese) Profª. Drª. Christina de Rezende Rubim (Unesp/Marilia) (Presidente e Coorientadora) Prof. Dr. Luís Antônio Francisco de Souza (Unesp/Marilia) (1º Examinador) Profª. Drª. Maria Eunice Quilici Gonzalez (Unesp/Marília) (2º Examinadora) Prof. Dr. Pedro Peixoto Ferreira (Unicamp/Campinas) (3º Examinador ) Prof. Dr. Antonio Sérgio da Costa Nunes (UFPA/Pará) (4º Examinador) Suplentes: Prof. Dr. Alfredo Pereira Jr. (Unesp/Marília); Prof. Dr. Milton Lahuerta (Unesp/Araraquara); Prof. Dr. Daniel Braga Lourenço (UNIFG/Bahia). 4 A filosofia da ciência é tão útil para o cientista quanto a ornitologia é para os pássaros. FEYNMAN, físico. 5 […] Um dia dois vigaristas chegaram à cidade; eles faziam as pessoas acreditarem que eram grandes tecelões, e afirmavam poder confeccionar as roupas mais finas que alguém poderia imaginar. As cores e os modelos que eles criavam, diziam, não eram apenas excepcionalmente lindas, mas as roupas feitas com o material que eles produziam, possuíam a maravilhosa capacidade de ser invisível a qualquer pessoa que não tivesse preparada para o cargo que ocupava ou fosse imperdoavelmente tola. Hans Christian Andersen, 1837. As novas roupas do imperador. 6 AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer à professora antropóloga Christina de Rezende Rubim quem me orientou e abraçou minhas ideias, mesmo não concordando integralmente com elas, e teve a coragem de me permitir redigir livremente essa tese que é, como bem caracterizou a professo- ra, física, filósofa e minha antiga orientadora Maria Eunice, tão ousada. Tenho a responsabili- dade de ser o seu último orientando e feito jus a isso. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, por um período de 13 meses. 7 LALLO, Pedro Gabriel Antonio. A crise do conhecimento oficial: uma análise da relação vocabulário/organização social. 233 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília. 2022. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo geral explicar a natureza e o conteúdo daquilo que chamamos de conhecimento oficial. O objetivo específico é investigar a relação mútua entre o modo como as pessoas explicam, compreendem e descrevem (vocabulários) seus mundos e a organização social de agrupamento. Para tanto, propomos um modelo teórico que nos permite visualizar a produção do conhecimento por um sistema de competição de vocabulários que se modificam para serem apreciados pelas pessoas de modo que algumas particularidades lexicais, que chamamos de tendências, são convergidas tornando-se comum a todos os vocabulários. Chamamos de conhecimento oficial todas as tendências convergidas e vinculadas ao poder do Estado ou similar a ele. Sobre a relação pessoas, vocabulários, realidade e ética, argumentamos que os vocabulários devem ser vistos como ferramentas com propósitos e funções (função ética, isto é, organização social de agrupamento) e em certas circunstâncias eles perfazem nossa identidade. Por meio da cartografia do conhecimento, argumentamos que os vocabulários, uma vez que não possuem relação representacional ou transcendente mais que os dentes e a cauda de castor, são mapas que marcam mensagens das práticas sociais e da comunidade de conversação e informação ecológica. Discutimos o contexto histórico em que nosso modelo teórico se encontra na sociologia do conhecimento, comparando-o com o programa forte da sociologia do conhecimento científico de David Bloor. Nós concluímos que nosso modelo teórico apresenta-se na segunda geração da sociologia do conhecimento mas também uma alternativa ao modelo esquema-conteúdo (representacionismo e dualistas) presente no programa forte da sociologia da ciência. Pois, para nós o conhecimento espelha nem a realidade como acreditam os filósofos, nem a sociedade como desejam os sociólogos, nada espelham. O vocabulário de conhecimento está na realidade e não fora dela, ele está produzindo organização social (grupos e grupos de grupos). Palavras-chave: Sociologia do Conhecimento, Epistemologia, Cartografia do Conhecimento, Linguagem, Representacionismo. 8 LALLO, Pedro Gabriel Antonio. Official knowledge and Sociology: An investigation over the vocabulary-ethics relationship. 233 f. Thesis (Doctoral thesis in Social Sciences) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília. 2022. ABSTRACT The general aim of the present work is to explain the nature and content of what is called official knowledge. The specific objective is to investigate the mutual relationship between the way people explain, comprehend, and describe (vocabularies), their worlds, and the social organization of grouping. To this end, we proposed a theoretical model that allows us to visualize the production of knowledge by a system of competing vocabularies that have modified themselves to be appreciated by people in a way that some lexical particularities, which are called tendencies, converge and become common to all vocabularies. It is called official knowledge all of the converged and linked tendencies to the power of State, or similar to it. Regarding the relation of people, vocabularies, reality, and ethics, we argued that vocabularies should be seen as tools with purposes and functions (ethical function, such as social organization of grouping) and in certain circumstances, they make up our identity. Through the cartography of knowledge, it was argued that vocabularies, once there is no representational or transcendental relationship, not more than teeth and beaver tail, they are maps that mark messages of social practices, conversational community and information ecology. It was discussed the historical context of which the theoretical model finds itself within the sociology of knowledge, comparing it to the strong program of David Bloor's sociology of scientific knowledge. We have concluded that our theoretical model presents itself in the second generation of the sociology of knowledge but also is an alternative to the schema-content model (representational and dualistic models) presents in the strong program of the sociology of science. After all, for us, knowledge mirrors neither reality as philosophers believe, nor society as sociologists wish, it mirrors nothing. The vocabulary of knowledge is in reality and not outside of it, it is producing social organization (groups and groups of groups). Key-words: Sociology of knowledge, epistemology, cartography of knowledge, language, representationlism. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................................12 Capítulo 1 – O OCIDENTE COMO “NOTAS DE RODAPÉ A PLATÃO”...........................29 1.1. A alegoria da caverna.....................................................................................................31 1.2. Definição tripartida do conhecimento............................................................................32 Capítulo 2 – O VOCABULÁRIO DE CONHECIMENTO......................................................39 2.1. A noção de o conhecimento oficial................................................................................42 2.2. A noção de competição convergente.............................................................................47 2.3. A noção de tendência.....................................................................................................55 2.3.1. Tendências como símbolos e significados em Geertz.........................................................55 2.3.2. Tendências pré-discursivas como objetivos automáticos da regulação homeostática da vida de Antonio Damásio.....................................................................................................................61 2.3.3. Da impossibilidade de discursar sobre as tendências pré-discursivas em Adam Smith.......69 2.3.4. O mesmo Deus de inúmeras religiões? Agostinho e as tendências cristãs..........................73 2.4. A noção de vocabulário..................................................................................................75 2.4.1. O que são vocabulários?.....................................................................................................75 2.4.2. A construção dos vocabulários a partir das tendências........................................................79 2.4.3. Função, identidade e mapas................................................................................................87 2.4.3.1. O que é função?........................................................................................................87 a) A função dos vocabulários: a função ética como organização de agrupamento............91 b) A função do conhecimento oficial: as informações organizativas................................97 2.4.3.2. Geografia do conhecimento: vocabulários, identidade e mapas..............................102 a) As pessoas são vocabulários corporificados...............................................................103 b) O surgimento da ironista............................................................................................110 c) Por uma cartografia do conhecimento........................................................................118 A ecologia das ideias por Gregory Bateson...............................................................125 A vasta rede de relações por Richard Rorty...............................................................133 Capítulo 3 – O CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO................................................153 3.1 – Os momentos históricos da sociologia do conhecimento..........................................163 3.1.1 – A sociologia do conhecimento dos inimigos: uma sociologia do conhecimento antes da sociologia....................................................................................................................................165 3.1.2 – A sociologia do conhecimento de primeira geração........................................................173 3.1.3 – Sociologia do conhecimento de segunda geração...........................................................176 3.2 – O programa forte da sociologia do conhecimento.....................................................180 a) O princípio causal ou naturalização........................................................................................182 b) O princípio da imparcialidade................................................................................................184 10 c) O princípio da reflexividade...................................................................................................186 d) O princípio da simetria...........................................................................................................186 3.3. Nossa tese em face dos momentos históricos da sociologia do conhecimento e ao pro- grama forte..........................................................................................................................190 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................215 POSFÁCIO À DEFESA DE TESE........................................................................................225 BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................226 11 INTRODUÇÃO As ciências poderiam explicar o conteúdo e a natureza do conhecimento? Como o conhecimento e a verdade são produzidos e como eles funcionam na sociedade ocidental? Por que as pessoas explicam o que explicam, descrevem o que descrevem, compreendem o que compreendem? Se existe uma relação entre vocabulários e a organização social por agrupa- mentos, qual vocabulário tão geral pode ser observado ou haveria de existir relacionado a esse grupo de pessoas tão amplo quanto a cultura ocidental? A retórica dessa última pergunta con- siste, pois não parece haver nenhum vocabulário que abrange e unifica toda a diversidade de vocabulários existentes na cultura ocidental. A reação dos intelectuais sobre essas perguntas não é amigável, elas causam descon- forto aos intelectuais convictos de que o surgimento dessas perguntas já evidência uma tenta- tiva de alguns “vilões” de levarem a civilização ocidental ou o iluminismo em profunda deca- dência. Afinal, tais perguntas possuem uma sugestão de que o conhecimento, incluso o seu in- grediente – a verdade, é produzido e funciona como a política, as relações pessoais, a literatu- ra, as instituições, os mitos… Mas também o conhecimento pode funcionar como o focinho de um tamanduá. Esse último exemplo comparativo instiga uma estranheza e curiosidade, mas uma possível nova visão de mundo parece estar tomando um contorno. Nossa investigação parte da afirmação de Whitehead (1978, p. 39) para quem a filo- sofia ocidental não passa de “notas de rodapé” aos diálogos e dicotomias de Platão. Pensamos que essa afirmação enseja dois problemas: a) O primeiro é que tal afirmação atribui o poder de transformação social a um único indivíduo em razão de suas habilidades intelectuais; b) O segundo problema é que tal afirmação passa uma ideia de convergência dado a diversidade de vocabulários observáveis na cultura ocidental. Em outras palavras: seria possível conceber que a cultura ocidental em seus aspectos mais fundamentais se desdobrasse da filosofia de Platão? Como os diversos vocabulários ob- serváveis na cultura ocidental poderiam convergir para um discurso, por assim dizer, unívo- co? Como atribuir esse feito a um único indivíduo? 12 Em busca de uma facilidade metodológica para explicar tais afirmações, chamamos tais “notas de rodapé” aos textos e dicotomias de Platão de conhecimento oficial. O objetivo geral da presente tese é investigar a natureza e conteúdo do conhecimento oficial a partir de um modelo teórico que propomos. O objetivo específico é investigar a rela- ção mútua entre o modo como as pessoas explicam, compreendem e descrevem seus mundos, isto é, os vocabulário de conhecimento, e a organização social de grupos e grupos de grupos. A importância dessa investigação justifica-se pelo debate acerca dos limites e dos alcances da sociologia do conhecimento e, em especial, o seu programa forte proposto por David Bloor (2009). É amplamente reconhecido que a sociologia do conhecimento está, de modo geral, estagnada na medida em que não é capaz de levar adiante as explicações do conteúdo e da natureza do conhecimento (pelo menos, o científico). E isso ocorre por uma série de razões, seja porque os sociólogos do conhecimento caminharam para um programa fraco (excluindo as ciências, principalmente as exatas e naturais como objeto de investigação) e o programa forte não parece ser convincente para ser levado adiante como uma investigação promissora; seja porque a sociologia do conhecimento constantemente é subvertida a sua intenção originária como uma ferramenta para desprezar o conhecimento de um determinado oponente; seja porque essa sociologia possui problemas teóricos como acerca da conceituação do seu objeto de investigação, o conhecimento; seja porque a própria sociologia possui problemas metodológicos: as teorias sociológicos contemporâneas difundidas seguiram tradições que passam longe de uma teoria geral dos sistemas correta como bem lembra Ludwig von Bertalanffy (2013, p. 248-9). Nossa tese, como veremos, tem implicações na própria noção do que é ciência e, por consequência, da sociologia e demais ciências humanas, pois cientistas constantemente tornam-se contadores de histórias. E, portanto, tais histórias não se diferenciam em nada de literatura. Apesar de que se uma história quiser ser apreciada pelas pessoas contemporâneas, deverá enriquecer seu conteúdo com regras práticas de consequências materiais. Deverá nos mostrar o “como” (isto é, como é possível a produção e reprodução de modo que nos interessa) acerca da engenharia das coisas e das organizações do mundo em geral. Uma pergunta muito útil para um início de definição das fronteiras do que é ou não ciência é nos perguntando: o que ela pode nos dar materialmente ou organizacionalmente, além de história que somente um Deus poderia saber? Se a resposta for afirmativa, é provável que estamos 13 diante de uma ciência ainda que acompanhada, parasitando-a, de literaturas, ficções e ideologia. Nesse sentido, existem algumas literaturas que são úteis devido às suas regras práticas e de aplicação que, às vezes, existem nelas, e algumas que são inúteis ou que apenas têm a missão de substituir o que antes faziam os textos religiosos: contemplação. Nós revisitamos a noção tradicional de conhecimento que se baseiam no modelo esquema-conteúdo, do qual se deriva muitas teses, como é o caso do o representacionismo e do dualismo mente versus corpo, cultura versus natureza, sujeito – objeto, e que atribui à mente e à linguagem um estatuto sobrenatural. Uma vez abandonado a ideia de conhecimento “vindo de lugar nenhum”, nós lançamos mão sobre a noção naturalista neopragmática ou cartográfica do conhecimento que, antes de uma prescrição, trata-se de uma descrição do que sempre fizemos. Afinal, os filósofos e cientistas possuem noções muito lúdicas acerca do que fazem, acerca do conhecimento, que passa longe do naturalismo necessário para uma sociologia do conhecimento. No imaginário filosófico amplamente aceito principalmente entre os propagandistas das ciências, o conhecimento espelharia a realidade por meio do critério de conhecimento como crença verdadeira justificada por correspondência, ao passo que, no imaginário sociológico, o conhecimento espelharia, não a realidade, mas sim a sociedade. No imaginário sociológico, a justificação é descartada como um critério ou parâmetro que põe o conhecimento para longe do natural. Oferecemos uma alternativa aos modelos atuais da filosofia e da sociologia do conhecimento. Contribuímos ao tema oferecendo uma sociologia do conhecimento sem espelhos e com justificação numa comunidade de conversação e na prática social cujo vocabulário do conhecimento está na realidade, participando e transformando a sociedade em vez de, fora dela, espelhando-a para uma contemplação. Para tanto, criamos um modelo teórico da produção social do conhecimento e verdade. Esse modelo teórico diz respeito ao sistema de competição de discursos (que chamamos de vocabulários de conhecimento) convergente de partículas lexicais (que chamamos de tendências) nesses discursos. Nesse sentido, tais vocabulários podem alternar-se como conhecimento oficial perante algum poder institucional como o Estado sem descaracterizar a cultura ocidental como “notas de rodapé”. O conhecimento oficial é, portanto, as tendências convergidas e vinculadas ao poder institucional do Estado ou da Igreja 14 ou do Mercado... e que se expressam em vocabulários que podem se alternar entre todos aqueles que possuem em seu conjunto lexical tendências convergidas. O conhecimento oficial é um conceito pejorativo e figurado (afinal, documento oficial é aquele que possui um carimbo de um oficial do Estado tornando-o legítimo na sua jurisdição) que extraímos, como fonte de inspiração, da noção de “doutrina oficial” de Gilbert Ryle referindo-se a superioridade do conhecimento teórico sobre o conhecimento prático na cultura ocidental, e de “ciência oficial” de Pierre Bourdieu referindo-se a um tipo de conhecimento doxa, um monopólio científico, que se impõe sobre um determinado povo e que os antagonistas, a ortodoxia e heterodoxia, admitem como autoevidentes. Em relação a nossa metodologia, nós lançamos mão sobre a modelação teórica para visualizarmos a produção do conhecimento e verdade na cultura ocidental. Mas também adotamos o behaviorismo epistemológico e os princípios do programa forte da sociologia do conhecimento. Isso implica que não estamos a criar um modelo teórico espelho da Natureza ou que expõe verdadeiramente um acontecimento para contemplarmos – ainda que estamos criando uma história. Nosso propósito não é a contemplação, mas uma redescrição acerca do conhecimento para melhorar as suas práticas. A metodologia do behaviorismo epistemológico nada tem a ver com John Watson, Burrhus F. Skinne ou Gilbert Ryle. É apenas um termo para um conjunto de ideias pragmatistas que se iniciaram nos trabalhos tardios de William James e John Dewey e veio a se concretizar com o chamado (neo)pragmatismo de Richard Rorty e que pode ser compreendido por: (a) conversação dentro de uma comunidade de falantes e entre comunidades de falantes que entram em acordos e (b) práticas sociais. E essa nossa própria tese deve ser vista como nosso modelo observa todo o conhecimento. Afinal, como bem apreenderemos no princípio da reflexividade do programa forte, se o conhecimento e verdade são produções sociais, nosso próprio modelo teórico não haveria de ser justificado em significados alienígenas à sociedade e cultura dos usuários dos vocabulários de conhecimento. Podemos compreender nossa tese, portanto, como uma redescrição sugerida para as comunidades de conversação. Note-se que nosso método é o neopragmatismo, e não o pragmatismo. O pragmatismo surge nos EUA, ao final do século XIX, com Charles Sandel Peirce e os primeiros textos de William James. Os pragmáticos dizem que o conhecimento ou o conceito 15 verdadeiro são aqueles cujas consequências são as mais práticas, e por “prática” significa a ação que mais flui ao seu contorno ou fim num dado contexto. A partir dessa ideia surgem outros conceitos importantes tais como as três categorias de experiência peirceana (primeiridade, secundidade e terceiridade) sem as quais será difícil compreender adequadamente o que é pragmatismo, o Ágape, as crenças como hábitos ou disposições para ação, experimentação, falibilismo etc. O pragmatismo é uma concepção que causa muito desentendimento e há muita ignorância na sua noção mesmo entre os professores universitários. É comum ouvir, por exemplo, que “não devemos ser pragmático” pois “os meios não devem justificar os fins” ou, um pouco pior: “devemos ser pragmáticos” pois “devemos suspender a verdade, para melhorar a prática e tornar efetivo nossa argumentação”. Rorty rejeita Peirce como um cientificista e avança com as teses ditas “pós- modernas” que já apareciam, segundo o autor, em trabalhos tardios de William James e principalmente os de John Dewey. Surge, então, com Richard Rorty, o chamado neopragmatismo. No entanto, essa redescrição do pragmatismo por Rorty é considerada deturbação pelos pragmáticos e simpatizantes do pragmatismo talvez porque Rorty nunca usa o prefixo “neo”, apenas pragmatismo. Richard Rorty junto de Paul Feyeraband e Gregory Bateson são os heróis dessa tese e, a nosso ver, todos criaram um neopragmatismo a sua própria moda. Paul Feyerabend, apesar de pouco citado por nós, não é o Feyerabend segundo as fantasias apocalípticas de intelectualistas sobre os “vilões relativistas e céticos” que abriram espaço para o “pós- modernismo” destruir o iluminismo ocidental e ciências, e nem o Feyerabend que cometeu alguns erros que ele mesmo os assumiu como, ora defender o objetivismo, ora relativismo quando ambos os conceitos são maus guias (1996, p. 160). O Feyerabend herói dessa tese é aquele que entendia que os contadores de histórias e fabricadores de princípios universais constantemente faziam as ciências piorar e atrasar o seu progresso. É o autor que conhecia profundamente a teoria da auto-organização e sistema complexos a ponto de tornar-se revisor desse tipo de conteúdo como o livro de Erich Jantsch (1980). É o autor que estava interessado em ciências como uma atividade auto-organizada (2011) e via o conhecimento e sua própria abordagem como pragmático (Feyerabend, 2007, p. 293-4, p. 305-06). 16 Já Gregory Bateson foi o filho de William Bateson1 considerado o pai da genética e que é detestado por muitos neodarwinistas. O fato dele ter superado algumas dicotomias que perfazem a oficialidade do conhecimento na cultura ocidental, fez ele ser convidado a se retirar da antropologia e também não conseguiu uma posição de destaque na biologia enfeitiçada pela ideia anti-darwinista de tornar Lamarck um pária, ignorando que as mentes participam do processo evolutivo. Isto é, há uma unidade entre mente e natureza no processo de evolução, e não que organismos são passivos de forças externas ou comportamentos vindo de lugar nenhum mas refletem ao pensamento economicistas e utilitarista. Em outras palavras, que a evolução dos seres vivos é auto-organizada, e não hetero-organizada como fossem carros numa fábrica ou obras de uma mente racional superior. Quando nossas falas e críticas dizem respeito aos vocabulários finais “no sentido de que, se se lançar dúvida sobre o valor dessas palavras, o seu utilizador não tem qualquer recurso argumentativo não circular.” (RORTY, 1994, p. 103), nós usamos do ironismo e a redescrição modificando um vocabulário para torná-lo mais apreciado ao nossos leitores. A ironista tentará duvidar e criticar as características dos vocabulários finais (termos como verdade, razoável, Cristo ou Revolução) por meio da crítica literária ou cultural sem fornecer a interpretação correta ou verdadeira, e não por inferência lógica, no sentido de criar um vocabulário privilegiado que espelhe a Natureza ou princípios universais flutuantes presentes 1 Considerado o Pai da Genética que desenvolveu uma série de ferramentas conceituais até hoje usadas na ge- nética, e o tradutor das ideias de Mendel para o inglês. Considerado por historiadores da ciência como anti- darwinista e anti-selecionista e saltacionista. William Bateson (1861 - 1926) não era exatamente anti-darwinista e nem anti-selecionista e nem ignorava a continuidade das variações das espécies em benefício unicamente do saltacionismo (que século depois foi provada por Gould no modelo evolução por equilíbrio pontuado) como te- cem historiadores e neodarwinistas que militam a favor de divulgar e defender a Nova Síntese. Segundo William Bateson, “A Seleção é um fenômeno verdadeiro; mas sua função é selecionar e não criar [...]” (apud MARTINS, 2006, p. 277) como alguns biólogos estavam convencidos quanto a um poder criativo na própria Seleção que su- plantaria o poder criativo de Deus. Para ele, havia uma descontinuidade nas diversidades das espécies e uma con- tinuidade delas com a diversidade de ambiente, mas era difícil saber “até que ponto as diferenças ambientais se- riam de algum modo a causa que dirige as diferenças específicas, de acordo com a seleção natural.” (MARTINS, 1999, p. 80). Nesse sentido, por exemplo, não haveria um processo histórico de adaptação a partir das diferenças do ambiente selecionando determinados genes que por acaso existiam nos indivíduos, mas devido aos spandrels como é o caso de casco das baratas, casca dos caracóis, e cérebro e muitos tipos de comportamentos. Assim sen - do, Bateson conclui, segundo Martins (1999), que “As evidências encontradas no decorrer de 25 capítulos leva- ram-no a concluir que a descontinuidade das espécies não se originavam no ambiente, ou qualquer fenômenos de adaptação, mas na natureza intrínseca dos organismos” (p. 80). A crítica de que Bateson ou inúmeros outros na- turalistas, mesmo concordando com Darwin, não eram darwinistas ou até mesmo “biófobos” ou anti-evolucionis- tas reflete um pensamento militante da Nova Síntese de 1950. Nesse sentido, podemos concordar com Martins (1999), “Trata-se de uma guerra entre darwinistas. Poder-se-ia considerar Bateson como sendo anti-darwinista só se admitíssemos o darwinismo como sendo um paradigma. Entretanto, ao adotar esse enfoque seria muito difícil apontar um darwinista sequer” (p. 85). De fato, há mais pluralidade no teoria biológica da evolução e biologia do que os neodarwinistas gostariam de assumir. 17 no mundo à espera de serem descobertos. Exceto, é claro, como um meio para mostrar que a pessoa está equivocada no seu próprio vocabulário e suas próprias regras lógicas. A resdescrição é um ponto frágil e de muita rejeição, mas é consequência da ideia de um conhecimento e verdade sem fundamentos alienígenas. Ela implica numa rejeição do que historiadores, antropólogos, filósofos e outros intelectualistas civilizatórios fazem desde sempre (cada um a sua moda) e que podemos sintetizar na seguinte pergunta: É possível compreender o mesmo vocabulário ou teoria tal como uma determinada pessoa pensou ou imaginou, numa época diferente, numa língua diferente, numa cultura diferente? Para eles, isso seria possível fazendo uma análise lógica e semântica do texto, outros acreditam que isso é insuficiente, eles, então, fazem uma análise do contexto social do autor e da obra, revelando os motivos reais do texto e entendendo-o pelo o que não está nele. Outros como Umberto Eco acreditam que, apesar de não ser possível descobrir a interpretação verdadeira, mas podemos indicar a interpretação incorreta. Para nós neopragmatistas que rejeitamos o dualismo interpretação-uso e o modelo esquema-conteúdo, os vocabulários são incomensuráveis (não é possível medi-los ou compará-los de modo a eleger o vocabulário verdadeiro ou original) e intraduzíveis (de teoria para outra, de língua para outra, de cultura para outra, de mente para outra). Para nós neopragmatistas, é improvável que o que pensamos ser as ideias de Platão seja parecido com o que Platão tinha em sua mente quando escreveu seus textos, pois nossas interpretações estão sempre relacionadas ou contextualizadas aos usos e não a algo intrínseco, fixo e universal. A linguagem não parece ser esse mecanismo passivo que apenas expressa o que se passa em nossas almas. Nesse sentido, nem mesmo as ideias que, por exemplo, Platão tinha antes de escrevê-las eram as mesmas, pois quando nós as escrevemos, nós as revemos, as restringimos (de valores e emoções) e as esquematizamos segundo nossas regras lógicas de linguagem. Ainda sobre a metodologia, uma vez que a sociologia do conhecimento mantém-se como uma ciência, usamos os quatro princípios que a história da sociologia do conhecimento nos trouxe quando enfrentou seus principais problemas para tornar-se uma ciência e que David Bloor sintetizou em seu programa forte no seguinte: a imparcialidade (a verdade e o falso devem ter ambos explicações), a causalidade (tais explicações devem ser causais, não teleológica), a simetria (tais explicações devem ser ambas sociais), a reflexividade (as 18 explicações da sociologia do conhecimento devem ser aplicadas na própria sociologia do conhecimento). Para chegarmos ao sucesso de nossa tese. No primeiro capítulo, investigamos “A alegoria da caverna” e “Os diálogos de Teteeto” de Platão a fim de interpretar a afirmação de Whitehead e suas implicações. Compreendemos a dicotomia aparência versus realidade no que nos mostra como o conhecimento está atrelado à visualização ou percepção visual, e não a “agência” (ou seja, um organismo que age sobre o objeto que se deseja conhecer), apesar de ambos (percepção e ação) serem rejeitados por Platão já que estão atrelados à ilusão ou ignorância. Na seção seguinte, compreendemos a noção de conhecimento no Teeteto: conhecimento como crença verdadeira justificada. Esses dois textos são necessários para compreendermos pelo menos as principais ideias e dicotomias platonistas, sem prejuízo de tantas outras em tantos outros textos do gênio que foi Platão. Uma vez compreendidas essas ideias gerais e dicotomias que, de algum modo, estariam relacionadas ao conhecimento oficial, buscamos visualizar como ele se produz socialmente. No segundo capítulo, propomos uma tese que nos possa ajudar a compreender aquela afirmação de Whitehead considerando suas implicações. Em analogia com o que acontece no mercado empresarial e de bens de consumo, argumentamos que, com todos os vocabulários de conhecimento assediando as mesmas pessoas, algumas de suas particularidades tornam-se comum na medida em que uma determinada particularidade, isto é, as tendências desse vocabulário, é menos ou mais disponíveis à negociação ou apreciada que outra. Cada movimento dos vocabulários, portanto, caso já não tenham determinada tendência em seu conjunto textual, incorpora tal tendência. Ocorre, então, o processo de convergência de tendências na competição de vocabulários. Nós justificamos histórica e empiricamente a competição como uma tendência pré- discursiva presente em outros seres vivos que disputam energia ou informação. Contudo, a sociedade ocidental discursou acerca dessa tendência de modo que se tornou outra coisa discursiva, conforme alguns críticos, apesar de manter o mesmo nome. A tendência discursiva da competição existe desde pelo menos os pré-socráticos e, apesar de já existir uma certa convergência, o conhecimento oficial veio a existir de modo tão proeminente e profundo na vida das pessoas a partir do vínculo Igreja-Estado e, depois, Ciência-Estado, os quais 19 pressionaram a sociedade a adotar um vocabulário oficial que fundamentaria todos os atos públicos. O conjunto de tendências persistentes e compartilhadas (por convergência), e relacionadas a algum poder institucional vigente, é o que chamamos de o conhecimento oficial, o qual se apresenta, não de modo singular e fragmentado como são as tendências, mas sim sistematizado nos vocabulários repletos de fios condutores, enredos e tendências secundárias, isto é, não-convergidas. Estas tendências secundárias não somam valor, demanda relevante para os seus consumidores (e, por isso, a sua permanência ou extinção é irrelevante). Os vocabulários são dispensáveis para caracterizar o conhecimento oficial apesar de ele se expressar sempre em algum vocabulário. Nesse sentido, dizer que a cultura ocidental não passa de notas de rodapé aos textos de Platão não seria menos verdadeiro caso fosse notas de rodapé aos de Aristóteles, ou mesmo um vocabulário contemporâneo apesar do anacronismo. As tendências são categorizadas em discursivas e pré-discursivas. As discursivas são classificadas em binárias, regras gerais de raciocínio ou prática, relações conceituais etc. E as pré-discursivas são qualquer ato, acontecimento ou interações, emoções, sentimentos e sensa- ções que são inefáveis, as quais não são disponíveis ao conhecimento proposicional. Contrari- ando isso, elas se tornam discursivas. Nós argumentamos que esses dois tipos de tendências podem ser concebidas a partir das noções de símbolos e significados na antropologia da religião em Clifford Geertz, segun- do quem os símbolos servem de vínculo aos significados, isto é, formam orientações e inspi- rações para a ação social humana e a construção de cosmologias. Nós argumentamos também que as tendências pré-discursivas podem ser concebidas pela hipótese de Antonio Damásio acerca do objetivo automático da regulação homeostática da vida. Nesse sentido, investigamos a tendência de considerar os animais não-humanos per- tencentes à comunidade moral (os quais devemos ou não matar, por exemplo). E como as pro- fessoras de genética Mayana Zats, Regina Markus e uma editora de um informe da indústria de suinocultura e mesmo Kant tentaram, em partes, com êxito, sabotar a regulação automática da vida, a qual se acredita não ser disponível ou negociável pela sociedade. Compreendemos a impossibilidade de se discursar as tendências pré-discursivas por meio de Adam Smith. Smith compreendeu, segundo nosso ponto de vista, que o 20 conhecimento constitui-se em vocabulários e tendências, e tentou discursar sobre as tendências pré-discursivas (como os sentimentos morais), as quais serviriam como base para o seu vocabulário A riqueza das nações. E, assim, o seu vocabulário poderia operar, independentemente da época e local, na expectativa que ele o criou. Argumentamos que o autor não teve êxito porque tais tendências não são discursáveis. Uma vez discursadas, tornam-se outra coisa. E os meios pelos quais podemos, nos parece, fazer com que as pessoas alcancem as tendências como sentimentos morais são por meio de novelas e histórias – pela educação sentimental de que fala Richard Rorty. Por isso, no que Adam Smith falhou, Ayn Rand acertou, quando ela usou de suas novelas para transformar o sentimento social, relacionado à teoria liberal. Não uma transformação altruísta como desejava Smith, mas sim egoísta. Com esse exame, queremos mostrar como as tendências pré-discursivas não são discursáveis, e como as tendências podem operar um vocabulário de modo diverso do esperado no nicho tendência-vocabulário em que se constituiu. Esse sistema tendência- vocabulário caracteriza, em grande parte e de modo ainda mais aprofundo, a incomensurabilidade e a intraduzibilidade dos vocabulários. Nesse sentido, compreendemos melhor Agostinho que pensou que o Deus de Platão era o mesmo Deus cristão. Agostinho compreendeu que o vocabulário é um aspecto, em certo sentido, irrelevante para fundamentar a diferença, pois, foram as tendências (que ele apreendeu em Platão) que o levaram ao Deus cristão. Já que o vocabulário platonista e o cristão são claramente diversos. Por outro lado, existem dois vocabulários cristãos iguais (do Padre Vieira e dos nativos evangelizados), mas que não há um reconhecimento entre seus usuários, pois as tendências são outras. Ainda nesse segundo capítulo, argumentamos que os vocabulários são enredos e não se distinguem em nada de qualquer literatura, inclusive das ficções científicas. Os vocabulá- rios de uma pessoa são – tal como em Rorty (1994, p. 103): “um conjunto de palavras que [os seres humanos] empregam para justificar as suas ações, as suas crenças e as suas vidas.”. Os vocabulários são invólucros das tendências. Nós buscamos em Viveiros de Castro fundamentos históricos e empíricos para a noção tendência-vocabulários, também encontra- mos nele (na sua abordagem acerca do conhecimento ameríndio) um exemplo de construção de vocabulários a partir das tendências. 21 Nós examinamos a afirmação curiosa de Padre Vieira de que os ameríndios “ainda depois de crer, são incrédulos.” (apud VIVEIRO DE CASTRO, 2002, p. 215). Argumentamos que os ameríndios possuíam tendências completamente diferentes daquelas que os cristãos na- tivos possuíam e, com isso, o vocabulário operou de modo completamente inesperado. E exa- minamos a abordagem multinaturalista e perspectivista que o autor construiu a partir das ten- dências que encontrou em seus estudos e na etnologia. Argumentamos que não é possível ha- ver um conhecimento oficial nos ameríndios em questão porque o conhecimento deles não era linguístico, mas corporal e também porque não havia um poder tal como o Estatal. Em busca da relação vocabulários, pessoas, realidade e organização social, argumen- tamos, por meio de Richard Rorty, que os vocabulários não têm uma relação mais representa- cional que focinho de um tamanduá, pois tudo o que há é uma relação causal com o universo, e não uma representação como se o sujeito pudesse deixar o seu corpo e observar o mundo e representá-lo como um pintor. Os vocabulários devem ser concebidos como uma ferramenta com propósitos pessoais e funções sociais. Assim como numa caixa de ferramentas, cada ferramenta possui um propósito dado pelo uso que as pessoas fazem dela. Nesse sentido, as pessoas são vocabulários corporifica- dos. Elas não têm um vocabulário, elas são vocabulários. Os vocabulários constituem-se o seu “eu”, sua identidade. Os vocabulários, numa outra escala de observação, também possuem uma função que buscamos compreendê-la na antropologia estrutural-funcionalista. A partir dos argumentos de Henry Atlan de que as explicações dizem respeito ao modo ético que lida- mos com o mundo, e procuramos compreender que a condição necessária de existência dos vocabulários é a ética, isto é, organização social de indivíduos em grupos e grupos de grupos pelo modo como eles explicam, compreendem e descrevem o mundo. O conhecimento oficial também tem uma função ética. Argumentamos por meio de Clifford Geertz que as tendências discursivas são interpretações, em termos informacionais e semânticos, especialmente dos seus nativos, e formam os ingredientes da organização, os ru- mos bio-socioantropológicos das sociedades ocidentais como um todo integrado que se altera com as sociedades não-ocidentais. Buscamos na cartografia do conhecimento melhor compreender a relação vocabulá- rio / realidade. Como argumentamos anteriormente, os vocabulários devem ser vistos como ferramentas e, como tais, possuem propósitos. Quando pensamos a linguagem como imanen- 22 te, uma parte do corpo humano, chegamos à conclusão de que as pessoas são “vocabulários corporificados”, como bem entende Rorty. As pessoas não têm vocabulários, elas são vocabu- lários. Nesse sentido, o papel da ironista se torna importante. Segundo Rorty, o que o filóso- fo racional é em relação às teorias, a ironista é em relação aos vocabulários. Ela não se inte- ressa pela refutação lógica de modo a buscar uma verdade alienígena que esteja acima dos in- teresses humanos ou que compare as teorias com um retrato original. A ironista fará a crítica por meio da crítica literária ou cultural, tornando o vocabulário apreciado o suficiente para ser adotado pelas pessoas. Isto é, a ironista tentará persuadir o outro pela redescrição não-humi- lhante que Rorty chama de solidariedade e também pelo contato de pessoas de culturas e hábi- tos diferentes. Se com a concepção de vocabulário corporificado nós superamos a separação pessoa e vocabulário, ou indivíduo e estrutura. Então a partir da geografia do conhecimento, tenta- mos superar a separação entre pessoa e realidade concebendo os vocabulários, não como es- pelhos da natureza como desejam os filósofos nem espelhos da sociedade como deseja soció- logos, mas sim sem espelhos. Mapea-se não a realidade, mas nossos conjuntos de palavras. Na acadêmica e sociedade, a noção de mapas segue a noção tradicional de representação. A cartografia do conhecimento inicia-se, de modo crítico, com pelo menos duas crenças: a de que mapas se distinguem de territórios e que não podemos ter acesso direto ao território. Mapas e território seriam duas coisas tão diferentes quanto cardápio e hambúrguer. É uma crítica bem-vinda exceto para quem, como nós, pensa que os mapas não existem em função da representação do território. Posteriormente, a própria distinção mapa – território, em sentido de modelo – realidade, e a ideia de “acessar a realidade por meio de” tornariam-se ininteligíveis, apesar de nos causar muitos danos socioambientais como bem nos mostra Jorge Luis Borges. Compreendemos melhor a “nova cartografia” a partir de dois autores. Richard Rorty quem foi um dos autores que serviram de base para a “nova cartografia” e Gregory Bateson quem cria uma cartografia baseada em informação ecológica. Nós conciliamos ambos autores para visão mais adequada e completa de vocabulários como mapeamento de mensagens da comunidade de conversação e práticas sociais e também de informações ecológicas. 23 Podemos compreender a antropologia ecológica de Bateson por meio da noção de “informação ecológica”. A informação ecológica (que muito se parece com a noção de affordances da psicologia ecológica de Gibson), que dispõe a ação dos organismos no ambiente, é fruto da relação unívoca da mente e ambiente. Ela é gerada pelas relações e diferenças entre organismos e organismos, organismo e território, e a linguagem é um dos meios de gerar informação. Nesse sentido, o mundo dos organismos vivos não são um mundo de dualismos entre ser vivo e ambiente de modo que os primeiros representam o segundo, o mundo dos organismos vivos é um mundo de mapa de mensagens de relações e diferenças, isto é informações ecológicas. Essas informações são ingredientes da organização, que são percebidas e não representadas, em inúmeras escalas desde a celular ou a morfológica até a biosfera. Segundo Simon Blackburn, explicando a vasta rede de relações de Rorty, por meio do conceito de mapas, tudo pode ser mapeado – árvores, rios, colheitas, topografia, população – de formas diferentes com propósitos diferentes. Podemos escolher qualquer coisa que nos seja útil para marcar num mapa, excluir, reafirmar e até inventar. O território nada dita ou orienta o mapeamento, contudo, o mapa pode ser corrigido, aprovado ou reprovado numa comunidade de conversação e práticas sociais. O mapa, portanto, pode mostrar que há uma Igreja numa rua tal, e ela pode estar ou não a quem for lá à procura da Igreja. E, obviamente, se um número de falantes não encontrar Igreja lá, os falantes podem reprovar o mapa como fora de suas convenções e propósitos. A partir do ponto de vista da geografia do conhecimento, podemos nos esquivar das dicotomias extremamente enraizadas na linguagem e no imaginário social ocidental. Pode- mos, então, superar, ou pelo menos nos afastar, dos problemas clássicos da filosofia e “de ca- beça erguida” como bem anota Blackburn, pois não precisamos aceitar rótulos, tais como o relativista2, segundo o qual a representação reflete, não à realidade, mas tão somente a socie- dade ou o ser humano; e, tais como o cético, segundo o qual a representação nada diz sobre a natureza da realidade; e tantos outros rótulos que epistemólogos, racionalistas e realistas... da filosofia e da ciência inventam contra seus “vilões”. 2 De fato, Rorty (1994c) claramente o rejeita em Encontrar e Fabricar, pois tal termo pressupõe dicotomias e modelos que não fazem sentido para ele. É melhor deixar tais conceitos para os “mocinhos”, racionalistas, realis- tas metafísicos e cientificistas que os inventaram. 24 Pensarmos desse modo, de fato, naturalista, isto é, se incluindo nessa própria visão de mundo, em vez de “se afastar dele” para visualizá-lo e representá-lo, é pensarmos por meio da nova cartografia do conhecimento, superando, assim, as abordagens representacionistas, mas mantendo o justificacionismo dos vocabulários de conhecimento. No ponto de vista da cartografia do conhecimento, discutiremos os seguintes temas: (a) que a linguagem parece exercer um poder repressivo sobre nós propiciado pela sua imagem ocidental, e (b) que não precisamos da imagem tradicional da linguagem para comunicarmos e para o entendimento, e (c) sobre a armação lógica da linguagem ser uma condição imposta ao ser humano. Por fim, no terceiro e último capítulo, contextualizamos nosso modelo teórico na his- tória da sociologia do conhecimento e o problematizamos na comparação com o programa forte da sociologia do conhecimento de David Bloor. Faremos uso da classificação da sociolo- gia do conhecimento, por Peter Burke, e m dois momentos históricos: primeira e segunda ge- ração. Podemos situar a origem da sociologia do conhecimento como uma ciência moderna a partir do fim do século XIX e início do século XX em pelo menos três países: Alemanha, com Karl Marx e Max Weber; França, com Émile Durkheim; e EUA, com Thorstein Veblen, Charles Peirce e John Dewey. Nesse sentido, haveria pelo menos três abordagens: a aborda- gem economista do conhecimento; a abordagem religiosa-funcionalista do conhecimento, a abordagem pragmatista do conhecimento. Essa primeira geração está interessada principal- mente em contextualizar os meios ou os substratos sociais sobre os quais o conhecimento si- tua-se, considerando fatores econômicos e geográficos. A segunda geração (de 1930 a 1960) da sociologia do conhecimento está interessada, além do contexto, na própria fabricação social do conhecimento. O indivíduo e análise semân- tica/discursiva tornam-se mais importantes que concepções analíticas de estruturas ou siste- mas behavorísticas. Os principais autores dessa nova geração são Karl Mannheim, Max Sche- ler e Robert Merton. Eles foram os principais responsáveis para que a sociologia do conheci- mento se revigorasse como uma linha de pesquisa promissora ainda que apenas por um breve momento. Outros autores surgiram nessa inspiração, tais como Peter Berger e Thomas Luckamnn, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend, Claude Lévi-Strauss e Michael Foucault apesar de esses dois últimos não apresentarem seus trabalhos como sociologia do conhecimento. 25 Diferente de Burke, David Bloor classifica os momentos históricos da sociologia do conhecimento a partir da sua proposta de um programa forte da sociologia da ciência. O programa forte tem a finalidade de “investigar e explicar o conteúdo e a natureza do conhecimento científico” (BLOOR, 2009, p. 15), inclusive a matemática. Tal tentativa é tratada com ceticismo pela grande maioria dos próprios sociólogos, isso leva o autor a classificar como o programa fraco da sociologia do conhecimento científico toda a sociologia que possui uma assimetria na sua estrutura geral da explicação que ele diagnosticou no pensamento desses sociólogos. Para Bloor, existem dois tipos de assimetria: a) A explicação teleológica faz parte do modelo mais extremado de assimetria, pois ela diz que a causalidade está associada ao erro e à limitação. Nesse sentido, a ciência (qualquer uma) apenas poderia explicar os erros e a falsidade. A verdade não teria explicação. b) A explicação assimétrica menos radical é a explicação causal empirista que declara fé no poder de nossas capacidades sensoriais de modo que somente o psicólogo poderia explicar a verdade (por evidências) e as outras ciências, tais como a biologia, sociologia, geografia, poderiam explicar o erro e o falso apenas quando os psicólogos não conseguirem. O conhecimento não seria uma questão social, portanto (ou pelo menos não seria necessário causas sociais para explicá-lo). O programa forte requer um modelo simétrico na estrutura geral da explicação. E esse é um dos quatro princípios para o seu programa forte que anteriormente citamos: a imparcialidade, a causalidade, a simetria, e a reflexividade. A hipótese do programa forte da sociologia do conhecimento é que todo o conhecimento, atrás de sua aparência, espelha a organização de sua comunidade, cultura ou nichos, em que ele se encontra, e não a realidade. Nesse sentido, nós argumentamos que o programa forte não se esquiva dos problemas daquilo que alguns autores chamam de modelo de distinção esquema-conteúdo e do representacionismo e do dualismo sujeito-objeto que dele se derivam. O objeto de investigação de Bloor é delineado, e parece ser unânime na sociologia do conhecimento, como tudo aquilo que as pessoas acreditam ser conhecimento. Nós também usufruímos desse conceito. Contudo, nós pensamos que esse conceito, em especial quando ele implica na ciência, pode levar adiante noções que mais atrapalham uma investigação socioló- 26 gica acerca do conhecimento. Ele pode nos levar a endossar o “monstro ciência” de que fala Feyerabend. Além de ignorar a diversidade de métodos e teorias e conclusões nas ciências, o conceito “monstro ciência” é composto de dois objetos independentes de pesquisa. Um con- ceito que chamamos de vocabulários de conhecimento e que Feyerabend chamou de ideolo- gia, exclusivamente humano, meramente contemplativo. Podemos chamar o outro objeto de pesquisa de atos de conhecimento ou conhecimento prático e genuíno e, no máximo, possuem regras práticas com consequências materiais que podem estar incorporadas nos vocabulários de conhecimento. A diferença pode ser mais bem compreendida pela noção de ciência como aquilo que ela nos pode contar ou visualizar, e a ciência como aquilo que ela pode nos dar ma- terialmente. Cada objeto tem propósitos ou funções muito diferentes, mas se confundem pela noção amplamente aceita de “monstro ciência”. Requerem-se, assim, modelos diferentes para pensar o conhecimento enquanto contemplação, e o conhecimento enquanto prática. Qualquer conto sobre o conhecimento prático será também um mero vocabulário. Como podemos ter, nesse sentido, um conhecimento do conhecimento que seja prático, e não contemplativo? Em Bloor há somente um único modelo pressupondo que a prática deriva-se do vocabulário representativo. O objeto da investigação de Bloor é ciência enquanto ideologia como única voz da prática – “um monstro”. Apesar de não estar claro como o aspecto prático do monstro ciência pode também espelhar a sociedade mais do que os afazeres estruturados das abelhas espelham a sociedade e vez de constituírem a sociedade. E nisso também encontra-se a crítica de Bruno Latour contra a sociologia como incapaz de explicar o conhecimento apontando o dualismo sujeito-objeto, natureza versus cultura e o representacionismo como origem do problema. Apesar de que a filosofia da ciência de Latour não parece ser um meio alternativo ao programa forte. Afinal, contra o “monstro ciência” da sociologia do conhecimento, argumentamos que Latour criou (ou descreveu tal criação social moderna) um “supermonstro ciência”, pois ideologia e prática não são duas coisas distintas e confundidas no conceito de ciências, mas estão fundidas na visão de Latour sobre as ciências. David Bloor não abre mão do representacionismo do conhecimento, mas descarta o justificacionismo. Nosso modelo, no entanto, esquiva-se do representacionismo, mas aceitamos o justificacionismo nos mapas da nova cartografia do conhecimento. 27 28 Capítulo 1 – O OCIDENTE COMO “NOTAS DE RODAPÉ A PLATÃO” “A caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é que ela consiste de uma série de notas de rodapé a Platão.” (WHITEHEAD, 1978, p. 39, tradução nossa)3. Se- gundo Whitehead, toda tradição filosófica ocidental não passa de notas de rodapé aos diálogos e dicotomias de Platão4. Mais adiante, no seu livro “Process and reality” (1978), Whitehead argumenta que não se trata apenas de esquemas para resolver alguns dos problemas e incon- sistências da filosofia platonista mas também de como ela moldou o imaginário social do oci- dente em seus aspectos mais fundamentais. Tal processo foi tão intenso na cultura ocidental que nada é considerado conhecimen- to se ele não obedecer às dicotomias platonistas (RORTY, 1994c, p. 119). Mesmo quando a cultura ocidental adotou perspectivas opostas as de Platão, ela o fez a partir do próprio ponto de vista de Platão, como veremos no Teeteto. Algumas dessas dicotomias, relações ou ideias gerais, são conhecimento versus opinião, e conhecimento como opinião verdadeira justificada, o modelo de distinção esquema-conteúdo e todas as teses que se derivam dele, e também a concepção de filósofo ou conhecedor. O filósofo contemplador de verdade ou o cientista con- tador de história imaginárias que somente um Deus poderia saber representariam linguistica- mente a realidade por conceitos e regras lógica-matemáticas. A natureza teria privilegiados para contar suas revelações e o cientista seria um exemplo deles. A verdade, nesse sentido, se- ria algo alienígena à humanidade, pois bastaria a crença ser racional, objetiva e lógica que a verdade se encontraria magicamente (afinal, esse percurso não pode ser nem causal e nem im- posto ou condicionado às determinações) ao fim. O produtor de conhecimento seria, de algum modo, misterioso talvez relacionado com a noção mágica de linguagem, imparcial e neutro, isto é, detentor do valor e da verdade 3 No original “The safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato”. 4 Parecido com essa sentença disse Heiddeger: “Toda a metafisica, incluindo seu opositor, positivismo, fala a lin- guagem da Platão” (apud RORTY, 1991, p 56). Isso quer dizer que desde PIatão nos perguntamos: “como deve- mos, e o universo, ser, se vamos conseguir o tipo de certeza, clareza e evidencia que Platão nos disse que tínha- mos de ter? Cada fase da história da metafisica - e em particular a virada cartesiana para para a subjectividade, de objectos de interrogação externos para internos - tern sido uma tentativa de redescrever as coisas de maneira a que esta certeza possa tomar-se possível.” (RORTY, 1991, p. 56-7) 29 independentes da subjetividade humana. A sociedade ou história, portanto, se moveriam por meio da verdade e da razão. Essa imagem sempre esteve, e ainda está presente na mentalidade de muitos profissionais e sacerdócios, está presente na Filosofia, nas Ciências, na Teleologia e religiões, na Política e partidos, na História, no Direito e nos tribunais, na Medicina… É a prática de que o Juiz, por exemplo, está acima do bem e do mal, fora da sociedade e da cultura e das estruturas biológicas e, portanto, sua pronúncia é correta, verdadeira e justa e os adver- sário, contrários, estão ao lado oposto dos atos e discursos do Juiz. Ou seja, é a ideologia da defesa social superada na academia mas ainda viva no imaginário social que resguarda os operadores da justiça um fundamento super-humano para legitimar um determinado nicho so- cial sobre outros. Essa concepção transcendental se opõe, portanto, a ideia de que os juízes põem fim ao conflito entre as partes no mesmo sentido que as crianças podem resolver um conflito de interesse com jogo de dados de modo que a parte perdedora aceitará seu destino. Essa comparação não é perfeita, contudo, pois o jogo de dados não absorve os preconceitos e necessidades sociais em seus resultados como os tribunais. O jogo de dados não se importa se o réu é negro ou homossexual e nem decide os grupos que serão ou não condenados, já que al- guns grupos sequer há fiscalização para seus atos tipificados num crime anteriormente previs- to. Nesse sentido, a cultura ocidental assume as dicotomias e conceitos platonistas como uma verdade pré-estabelecida de modo a orientar a visão de mundo e pensamento dos indiví- duos. Isto é, se podemos fazer uso de uma metáfora, o platonismo na cultura ocidental funcio- na como uma língua de um nativo que aprendeu uma única língua. Por cultura ocidental ou Ocidente queremos dizer, diferente de ocidente como fron- teiras geográficas, a filosofia europeia somada a norte americana que formam o que podemos chamar de imaginário social ocidental, uma parte expressiva da cultura ocidental. Antes de usarmos qualquer conceito e anteciparmos nossos argumentos e afirmações pertinentes ao nosso modelo, devemos compreender exatamente o que se entende por Platão (ou platonismo para referir-se ao endosso de pelo menos uma de suas teses, ideias gerais ou dicotomias) para interpretarmos a ideia de cultura ocidental como “notas de rodapé a Platão” para os propósitos desse trabalho. 30 1.1. A alegoria da caverna No livro VII da obra A República (1965) popularizado como O mito da caverna, Pla- tão introduz a dicotomia sobre a realidade que mais caracteriza sua abordagem: aparência ver- sus verdade. Na voz de Sócrates, Platão nos introduz a uma alegoria, uma espécie de experi- mento mental, sobre alguns homens amarrados no interior de uma caverna: ... desde a infância, com as pernas e o pescoço acorrentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver alhures exceto diante dêles, pois a corrente os im- pede de virar a cabeça; a luz lhes vem de um fogo aceso, sôbre uma eminên- cia, ao longe atrás dêles; entre o fogo e os prisioneiros passa um caminho elevado; imagina que, ao longo dêste caminho, ergue-se um pequeno muro, semelhante aos tabiques que os exibidores de fantoches erigem à frente dêles e por cima dos quais exibem as suas maravilhas (Rep., VII, 514, a). Sócrates nos convida a imaginar que percorrendo esse caminho existiriam homens, alguns falando e outros não, carregando todo o tipo de objetos fabricados, estatuas de homens, animais etc. Segundo Sócrates, tais prisioneiros são semelhantes a nós, pois “em tal situação jamais hajam visto algo de si próprios e de seus vizinhos, afora as sombras projetadas pelo fogo sôbre a parede da caverna que está à sua frente...” (Rep., VII, 515, a). Os exibidores de fantoches seriam democratas, artistas e todo um conjunto de pessoas não-racionalistas5. Segundo Platão, nascemos e nos habituamos com o que percebemos ou com o que nos disseram sem saber, isto é, baseados apenas nas sombras que não são apenas imitações, mas ilusórias. Seria um sofrimento para um prisioneiro, podendo se libertar, levantar-se e vi- rar a cabeça e ver o que estava por de trás das imagens refletidas na parede. Platão recorre a um argumento muito comum em textos religiosos da “negação da carne” como a Bíblia. Platão relaciona a busca pela a verdade à negação do prazer, devendo partir da vontade própria o sofrimento de se libertar. Caso contrário, o prisioneiro que nunca viu o sol, se fosse forçado, poderia ficar cego nos primeiros instantes e voltar ao seu estado de conforto. O prisioneiro precisaria se habituar, por sua própria vontade, até alcançar a verdade captada pelo intelecto. A busca pela a verdade é uma luta contra si mesmo enquanto corpo e contra o mundo sensível. Sócrates argumenta que aquele que voltasse à caverna, e deveria voltar para educar aos outros da verdade, seria fortemente repreendido. Os outros diriam que ele mesmo se per- 5 Essa metáfora para um grego soava radical já que o mundo dos mortos (Hades) era caracterizado pelo subterrâ- neo e o teatro era um poderoso instrumento principalmente do povo contra as elites. 31 deu na escuridão ao subir para fora da caverna, sendo até mesmo morto por isso. Essa tentati- va de iluminar os que permaneceram cativos na escuridão é o que podemos chamar de dialéti- ca em Platão, isto é, um meio de fazer filosofia, de saber baseado num diálogo socrático (de perguntas e respostas) e que tem a finalidade de uma pessoa despertar o conhecimento na me- mória de uma outra. A dicotomia aparência versus verdade ou essência é o que permeia toda a filosofia de Platão e permanece central em todo o imaginário social da cultura ocidental até os dias atuais ou pelo menos uma versão atualizada dela. Nessa versão atualizada, o conhecedor deve lutar contra os corpos até que entreguem ou desocultem sua verdade. 1.2. Definição tripartida do conhecimento No texto do Teeteto, Platão (1973, 2001) vai expor a sua Teoria do Conhecimento. O problema do Teeteto consiste em qual a natureza do conhecimento (no ponto de vista empiris- ta) e como conceituá-lo sem os vícios epistemológicos como o relativismo subjetivista e a má circularidade, isto é, sem que o conhecimento esteja superado pela mudança do conhecível, sem que varia de indivíduo para indivíduo e sem que o conhecimento pressuponha conheci- mento. Apesar das tentativas do protagonista do diálogo, não se concebe no Teeteto uma res- posta satisfatória ao problema proposto, sendo o texto terminado em aporia. Sócrates confere ao conhecimento empirista uma certa relevância para fins de retóri- ca, ensejando mostrar que o empirismo não sobrevive nem a sua versão mais sofisticada e ra- cional. No entanto, firma-se nesse pensamento uma das principais dicotomias que moldaria todo o imaginário social do ocidente: episteme como opinião versus conhecimento que deve ser necessariamente verdadeiro. O texto do Teeteto pode ser separado em três partes que dizem respeito a três tentati- vas de conceituar o conhecimento e seus problemas. 32 Na primeira, trata-se da tentativa de definir o conhecimento pelo matemático6 Teete- to, pois o conhecimento não seria nada mais que sinônimo de percepção e sensações (Teeteto, 151, e). Contudo, Sócrates relaciona essa definição ao Protágoras argumentando que “Segun- do a natureza, teremos de dizer que as coisas devêm, formam-se, destroem-se ou se alteram. Expõe-se a ser facilmente refutado quem quer que, no seu modo de expressar-se, assevere a estabilidade seja do que for." (Teeteto, 157, h). Portanto, sensações não podem ser conheci- mento, pois elas são relativas ao particular, pertencente a cada indivíduo, e também porque movem ora sendo, ora não sendo. Importante notar que o conhecimento como sinônimo de percepção ou sensações não está errado apenas porque está relacionado ao ilusório, como já impõe as teses de Platão, mas porque tal abordagem não sobrevive a um escrutínio. A segunda tentativa de Teeteto é conceituar o conhecimento como crença verdadeira ou, seu sinônimo, opinião verdadeira (Teeteto, 187, b). Na República, para Sócrates, “[...]são miseráveis as opiniões que não se baseiam na ciência [conhecimento]” (Rep., VI, 506, c 4-5), mas a recíproca não é verdadeira. Todo o conhecimento possui opiniões verdadeiras, mas nem toda opinião verdadeira é baseada em conhecimento. Nesse mesmo sentido, Sócrates, no Tee- teto, rechaça o conceito de conhecimento como opinião verdadeira. Advogados, argumenta Sócrates, não demonstram a verdade dos fatos aos que não foram testemunhas ocular, eles apenas persuadem, isto é, levam alguém a admitir uma opinião. E os juízes “julgam por ouvir dizer, após formarem opinião verdadeira; é um juízo sem conhecimento; porém ficaram bem persuadidos, pois sentenciaram com acerto” (Teeteto, 201, c). Na voz de Sócrates, Platão faz um longo ataque desde o início do texto à tese chama- da de Fluxo contínuo por Protágoras, originalmente de Heráclito, quem, segundo Sócrates, é o mais ardoroso defensor de tal tese (Teeteto, 179, d). A tese, acredita Sócrates, está vinculada com a ideia de conhecimento como sensação ou opinião e, por consequência, ao relativismo subjetivista. Segundo Paul Feyerabend em sua obra Adeus à Razão (2010), o relativismo protago- riano advém de duas fontes históricas: uma é o relatório segundo o qual Protágoras elabora leis especiais para Túrio, outra é o diálogo de Platão no Teeteto. E é em Teeteto, segundo 6 O fato de um matemático estar tentando conceituar o conhecimento e em especial com teses relacionadas ao empirismo e ao fluxo contínuo de Heráclito é polêmico. Parece que Platão separava os matemáticos entre os bons e os ruins, os matemáticos ruins eram aqueles que viam a matemática de forma empírica como parece ser o caso de Teeteto que aprendeu a matemática por desenhos. 33 Feyerabend, que temos uma das poucas citações diretas de Protágoras, em especial a qual deu sua principal identificação filosófica: O homem é a medida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência das que não existem (Teeteto, 152, a). Segundo Feyerabend, essa afirmação pode ser interpretada de duas maneiras. Uma que considera as consequências bem definidas e sem ambiguidades, e outra como uma regra prática esboçando uma regra geral sem dar uma descrição precisa, isto é, “sem sua aplicação essa regra não acarreta nenhuma consequência” (2010, p. 57). Segundo ainda o autor, apesar de parecer o oposto em algumas situações, Platão se inclina para a primeira interpretação que é a favorita dos lógicos que compreendem que o sig- nificado deve ser obtido antes da sua aplicação. A partir daí, Platão recorre a uma interpreta- ção do relativismo de Protágoras que se encaixa em suas refutações: “o que aparece para cada pessoa é, realmente, como lhe aparece.” (Teeteto, 170, a), ou seja, qualquer opinião que seja atraente para a pessoa em questão (FEYERABEND, 2010, p. 58). Seguindo essa interpreta- ção, Platão desenvolverá suas três críticas: Na primeira (Teeteto, 179, a-c), Sócrates argumenta que a maioria das pessoas não confia em sua própria opinião e tende a ter como verdadeira as opiniões dos especialistas. As- sim sendo, Protágoras é pego em contradição “... visto aceitar como verdadeira a opinião dos que o contraditam.” (Teeteto, 171, b -c). Na segunda (Teeteto, 178, a), diz respeito a capacidade de predizer. Segundo Sócra- tes: “quando um leigo em Medicina pensa que vai ter febre e que nele se irá revelar essa es- pécie de calor, e o médico, de seu lado, assevera o contrário: de acordo com qual opinião dire- mos que o futuro decorrerá?” (Teeteto, 178, c), no último caso, que é a correta, se refutaria o argumento de Protágoras – os especialistas são capazes de predizer. E então, uma terceira crítica (FEYERABEND, 2010, p. 59), diz respeito a necessida- de de diferenciar por teoria, o bem do mau, piedoso de um ímpio, justo do injusto, indepen- dentemente da opinião de um Estado tem sobre essas questões, e depois estabelecer tais dife- renças por lei. Contrariando-se, assim, segundo Protágoras na interpretação de Sócrates, a concepção de que todas as opiniões, dos indivíduos ou dos Estados, se valem. Segundo Feyerabend (2010, p. 59), quando Platão escreveu seus diálogos, as opini- ões dos especialistas tinham deixado de ser populares e eram atacadas pelos leigos ao perce- 34 ber a sua pouca utilidade na prática e também atacadas pelos próprios especialistas. Feyera- bend traz o exemplo do Ancient Medicine (um compilado de regras práticas medicinais de causa e efeito que consideravam a complexidade da doença por multifatores como religiosos, sociais, psicológicos, geográficos… muito antigo e de forte influência egípcia e que era, peri- odicamente, atualizado) cujo autor “tinha ridicularizado a tendência dos teóricos médicos de substituir o senso comum por teorias incompreensíveis e de definir doença e saúde em seus termos...” (2010, p. 59). Assim, afirma-se no compilado: ... [Um médico] deve supostamente desenvolver o bem-estar das pessoas; portanto ele deve ser capaz de declarar seu objetivo nas mesmas palavras fa- miliares que são usadas pelos seus pacientes (ANCIENTE MEDICINE, cap 15 e 20 apud FEYERABEND, 2010, p. 59). Nesse mesmo sentido, Feyerabend (2010, p. 59-61) argumenta que Platão se equivo- cou pretensiosamente quanto aos ensinos de Protágoras, sendo melhor interpretá-lo da seguin- te maneira: ...que as leis, costumes e fatos que estão sendo colocados diante dos cida- dãos em última instância dependem de pronunciamentos, crenças e percep- ções de seres humanos e que questões importantes deveriam, portanto, ser dirigidas às (percepções e pensamentos das) pessoas envolvidas e não a agências abstratas e especialistas distantes (2010, p. 61). Platão interpretou Protágoras com sua própria visão dogmática de especialistas com seus princípios cujo significado vem antes da sua aplicação prática. Não é o caso, diz Feyera- band, de “descobrir” leis universais da medicina, tendo como medida Deuses ou a Razão, mas sim uma concepção de medicina parecida com uma democracia direta. Se são importantes a saúde e a doença, então as pessoas individuais deveriam “medir” tais conceitos, o que inclui, aprendizagem no ponto de vista de Protágoras de Feyerabend. Alguns consultariam os especi- alistas favoritos ou curandeiros favoritos, outros seguiriam suas próprias intuições, e também aqueles que leem livros, tentariam resolver seus problemas segundo sua própria capacidade, chegando a sua própria conclusão segundo seus próprios interesses, valores e critérios. Nesse sentido, Feyerabend aduz que as três críticas de Sócrates ao Protágoras não se aplicam mais. Porque na primeira crítica, “opinião” também pode incluir a confiança nos es- pecialistas; na segunda crítica porque essa nova interpretação não exclui a comunidade que concorda com predições dos especialistas; e na terceira crítica porque “eventos futuros, da maneira como interpretados por gerações futuras, são “medidos” assim como os eventos pre- 35 sentes, [...] não existindo conhecimento completo e estável das questões sociais e políticas” (2010, p. 62). Feyerabend termina a discussão, e sua conclusão é a que nos interessa, argumentando que a introdução dos especialistas, na abordagem platonista, não está em virtude de suas com- petências, obras, maravilhas que poderiam fazer. Pois, sobre os médicos, para usar do exem- plo de especialista que o próprio Platão usou, segundo Aristófanes, “O salário deles é baixo e também baixo é o resultado de sua arte” (apud FEYERABEND, 2010, p. 60). A introdução do especialista por Platão acontece “porque ele [Platão] tinha uma ex- plicação para seu sucesso: especialistas sabem a verdade e estão em contato com a realidade. A verdade e a realidade, e não os especialistas, são as medidas últimas de sucesso e fracasso.” (FEYERABEND, 2010, p. 62). As ideias, leis e procedimentos não são coisas sustentadas por poetas, reis e especialistas, são coisas que dão forma à realidade deveniente. Saber é contemplar uma imagem ou texto correspondente à realidade, ainda que na prática seu conhecimento seja de pouca utilidade ou nenhuma funcionalidade. Essa contemplação da verdade corroborou para um dualismo muito caro para a cultu- ra ocidental: teoria versus prática. Um jogo de dados, por exemplo, que se atribui valor de verdade ou falso aos núme- ros respectivamente pares e impares, poderia responder a perguntar “vai chover amanhã?”, e até mesmo confirmar seu resultado no dia seguinte. Porém, esse jogo de dados ou oráculo ja- mais será um mecanismo de conhecimento uma vez que lhe falta poder de motivar racional- mente seus resultados verdadeiros. Um jogo meramente mecânico jamais poderá ser um co- nhecimento, este pertencente ao mundo inteligível, da alma. Pelo mesmo motivo, as formigas cortadeiras ou insetos capazes de modificar seu comportamento sob a previsão de chuva, por exemplo, não possuem conhecimento em suas práticas por mais inteligentes e acertadas que sejam. É nesse sentido que não há diferença “entre cegos que caminham direito por uma es- trada e os que atingem pela opinião uma verdade cuja inteligência não possuem [sem saber os motivos racionais pelos quais a opinião é verdadeira]” (Rep., VI, 506, c 5-7). Tanto no jogo de dados quanto no comportamento das formigas faltam o poder de saber. É nessa questão que se abre um precedente importante nos rumos do imaginário soci- al do ocidente até a contemporaneidade. A tentativa, ainda que fracassada de Teeteto, de con- 36 ceituar o conhecimento como opinião verdadeira, traz a noção de que há uma relação de de- pendência entre conhecimento e linguagem. Conforme Nunes comentando Teeteto e Crátilo: “Analisar o conhecimento é analisar a linguagem; criticá-lo é criticar certa modalidade de linguagem” (2001, p. 25) uma vez que o conhecimento seria uma questão não apenas de percepção, sensação ou experiências, mas de opinião verdadeira. A opinião é o que tecnicamente podemos chamar de atitudes proposicio- nais, tais como se expressam por pensamentos operado pela linguagem natural, e podem tam- bém ser escrito: “Eu creio que vai chover sexta-feira”. Contudo, apenas na terceira tentativa de Teeteto que essa tal dependência se concreti- zaria na definição de conhecimento. Sobre a terceira e última tentativa de Teeteto de conceituar conhecimento como "opi- nião verdadeira acompanhada de explicação racional" (Teeteto, 201, d), Chisholm (1969) ar- gumenta que, assim como podemos extrair do texto do Teeteto, uma pessoa pode ter uma opi- nião verdadeira sem saber, mas se ela sabe ser verdadeira, ela também tem uma opinião ver- dadeira, porém, aceita-se como conhecimento. Então, o que é isso, pergunta Chisholm, que somado à opinião verdadeira e que gera o conhecimento? (1969, p. 17). Em outras palavras, conhecimento é: 1 -) Opinião ou crença somado de 2 -) que a premissa um seja verdadeira somado de 3 -) algo que torne sabido racionalmente a premissa dois, isto é, sua justificação. Justificar para a epistemologia é saber, isto é, explicar ou motivar racionalmente. A noção de justificação foi popularizada pela filosofia analítica no século XX baseada nos últi- mos diálogos no Teeteto, apesar de que conceitos como explicar, motivar racionalmente, sa- ber e justificar se apresentarem como sinônimos. Essa concepção nos remete, contudo, a uma pergunta: Crença verdadeira justificada em quê? Não se obtém, como desejado por Platão, uma resposta satisfatória ao “problema do Teeteto”, pois todas as tentativas de justificar pressupõem o próprio conhecimento ou o relati- vismo. O conhecimento no Teeteto seria uma aporia, conforme Sócrates: Ora, será o cúmulo da simplicidade, estando nós à procura do conhecimento vir alguém dizer-nos que é a opinião certa aliada ao conhecimento, seja da diferença ou do que for. Desse modo, Teeteto, conhecimento não pode ser nem sensação, nem opinião verdadeira, nem a explicação racional acrescen- tada a essa opinião (Teeteto, 210, a). 37 A intenção de Platão, por isso na voz de Sócrates, era mostrar que o conhecimento baseado nas teses do fluxo contínuo de origem heracliteana é impossível mesmo nas suas ver- sões mais inteligentes como no empirismo. Essa concepção tripartida de conhecimento é referência na epistemologia e podemos dizer que a epistemologia nasce em Platão a partir da noção de saber no Teeteto. A rejeição da teoria dos dois mundos e a teoria das formas ou essencialismo no ima- ginário social contemporâneo do ocidente foi possível a partir do momento que essa outra tese de Platão, por ele atribuída aos seus adversários empiristas, foi adotada. Toda a história da epistemologia até os dias atuais pode ser reduzida a encontrar a explicação racional da opinião verdadeira, e com isso mostrar que não há adversidade entre conhecimento e opinião verda- deira desde que justificada. Em suma, o “fracasso” da discussão “se explica, pelo método adotado por Platão para resolver o problema da episteme, a saber, a abordagem maiêutica: o Teeteto não diz o que é o conhecimento e talvez seu principal objetivo é purificar o espírito de certas concep- ções falsas ou insatisfatórias da episteme.” (LUIS ZENI, 2012. p. 84). 38 Capítulo 2 – O VOCABULÁRIO DE CONHECIMENTO Para o desenvolvimento dessa tese, pensamos duas implicações na afirmação de Whi- tehead segundo a qual a filosofia ou cultura ocidental consiste em notas de rodapé a Platão: 1 - ) Whitehead superlativa Platão, ao atribuir-lhe a importância de ser o mentor do imaginário social ocidental, embora a Igreja, instituição que se utilizou (e utiliza-se) de sofis- ticados métodos persuasivos, tenha sido, séculos mais tarde, a principal aliada do platonismo. O pensamento de Whitehead reflete a sua cultura que se caracteriza por conferir a um indivíduo, em particular a um racionalista, o poder extraordinário de produzir a história ou as mudanças sociais. Reflete ao pensamento de que um indivíduo age e opina por uma “razão nobre”, isto é, segundo Damásio: […] perspectiva da ”razão nobre”, que não é outra senão a do senso comum, parte do princípio de que estamos nas melhores condições para decidir e so- mos o orgulho de Platão, Descartes e Kant quando deixamos a lógica formal conduzir-nos à melhor solução para o problema. Um aspecto importante da concepção racionalista é o de que, para alcançar os melhores resultados, as emoções têm de ficar de fora. O processo racional não deve ser prejudicado pela paixão. Basicamente, na perspectiva da razão nobre, os diferentes cená- rios são considerados um a um e, para utilizar o jargão corrente da adminis- tração empresarial, é efetuada uma análise de custos/benefícios de cada um deles (2004a, p. 203). Também o indivíduo especializado com argumentos filosóficos será capaz de refutar e ser refutado por outros indivíduos7 e, assim, desencadeará sua ação e formará sua crença final. Nesse sentido, é possível conferir a um sujeito o título de dono da ação (RYLE, 2009) que deve pregar uma teoria para si mesmo antes de praticar, e de “dono da história”, dono de si e também controlador da natureza (DEBRUN, 1996). E, ainda, como é corrente na filosofia da ciência, o sujeito desenvolve uma história interna à ciência, como se o desenvolvimento desta 7 A versão ingênua dessa tese ocorre com neoliberais que defendem a “livre expressão”, pois para eles apenas devem ter medo de ideologias as pessoas incapazes de “refutar ideologias furadas” como o nazismo ou o conser- vadorismo trumpista. Improvável, nos parece, que essa onda conservadorista que fez eleger presidentes como Trump e Bolsonaro, que invadiu boa parte do mundo ocidental numa mesma época, surgiu porque as pessoas sensatas foram incapazes de refutar ideologias bobas em moda. Enfeitiçados pelo individualismo metodológico e a razão nobre que justificam suas noções de liberdade, de um homem à imagem de Deus, responsável por todos os seus atos e pelo seu destino, ignoram causas externas, sociológicas e biológicas, do comportamento humano. Para eles, o ser humano é um animal isolado cujas relações são contratuais e racionais, e a sociedade como algo que poderia ser explicado com se explica um cardume de peixe ou um nicho ecológico, portanto, não existe como defendia Margareth Thatcher e repetido por demais neoliberais. A sociedade seria apenas um epifenôme- no, um efeito, um nome para a soma de vontades individuais, sem nenhum causa no mundo. 39 fosse o desenrolar das próprias teorias em busca da verdade. E todos os demais contextos (o social, o cultural, o econômico e o biopsicológico) fossem praticamente irrelevantes, ou rele- vantes na medida em que sua pertinência decorreria do fato deles tirarem as teorias dos trilhos da verdade e do progresso, levando o cientista ao erro. É evidente que, se essa hipótese estiver correta, a sociologia do conhecimento – pelo fato dela procurar condições ou causas em uma história externa ao conhecimento – estará in- correta ou somente poderá existir uma sociologia do erro. O imaginário social não pode ser um produto intencional de um indivíduo e seus seguidores, como se somente as abstrações ou os trilhos da verdade fossem as causas do desenvolvimento sociocultural. Podemos afirmar que não coube a Platão moldar o imaginário social do ocidente. Essa conclusão não constitui um atestado empírico, mas uma afirmação lógica embasada no pres- suposto de que é possível uma sociologia do conhecimento capaz de fornecer uma explicação social necessária, ainda que não o suficiente, do conhecimento. 2 - ) A segunda implicação da afirmação de Whitehead diz respeito à ideia de conver- gência. Trata-se de um ponto problemático, tendo em conta a diversidade de vocabulários ob- serváveis na cultura ocidental. Parece existir uma tentativa de explicar tal convergência em face a diversidade pelo racionalismo liberal. O senso-comum parece direcionar-se à ideia de que existe uma diversidade de teorias e abordagens, assim como há, no setor econômico, uma diversidade de produtos consumíveis disponibilizados pelo mercado em razão da liberdade dos seus membros. E isso distinguiria as sociedades: a ditadura da democracia liberal. Na base desse pensamento, vigora a lógica de que a liberdade permitiria ao indivíduo desenvolver-se criando uma pluralidade, a qual sofreria uma seleção por parte da razão. Para essa cultura, a razão constitui a força de convergência entre a teoria verdadeira e a falsa de modo a eliminar a última. Afinal, a liberdade criaria a pluralidade de proposições e vocabulá- rios, mas a excelência ou a verdade seria uma só a qual o indivíduo haveria de escolher racio- nalmente (se o vocabulário tiver uma lógica impecável da argumentação, ou se a proposição for evidenciado empiricamente etc). Por intermédio da razão, os indivíduos saberiam não ape- nas discernir o alimento saudável do não saudável (ou relacionado com a agressão ao traba- lhador e a poluição do ambiente, por exemplo) como evitaria a irracionalidade de se comprar produtos não-saudáveis. Se o falso e o ruim permanecessem existindo, então, é porque algu- mas pessoas persistem sendo irracionais apesar de que teriam o direito de ser irracionais (pelo 40 menos em relação ao mercado, pois em relação à democracia não está tão claro esse direito para alguns). Obviamente, tendo a razão a única força de convergência, seria preciso evitar e superar a todo o custo forças externas que pressionassem o indivíduo, seja no campo físico (por meio das ditaduras, cultura, estruturas cognitivas ou nichos biológicos ou sociológicos...), seja ne- gar no campo teórico através do desdenho de teorias que incorporam em suas descrições e prescrições a ideia de causas externas ao comportamento e à mente das pessoas como algum tipo de força estrutural ou sistêmica. Afinal, tais teorias, segundo, por exemplo, Pinker (2004) criticando uma suposta imagem de sociedade teorizada como “super-organismo”, justificam ou propiciam as ditaduras8. Pelos motivos também apontados no item anterior, é frágil demais essa tentativa de resolver o problema convergência-diversidade pelo racionalismo liberal. Como endossar a afirmação de Whitehead em face as suas duas implicações? Foram desenvolvidos na cultura ocidental importantes elementos que compõem quase todas as teorias ou abordagens contemporâneas. Nesse sentido, com tais elementos, não se torna problemática a afirmação de Whitehead a qual implica de algum modo uma convergên- cia, quando se observa uma diversidade. Alguns desses elementos podem ser extraídos pelo pensamento dos próprios textos de Platão. Eis alguns deles: a dicotomia aparência versus es- sência, ou abstração versus sensível, episteme (conhecimento versus opinião), a linguagem como produtora de conhecimento, a matemática e a lógica como a linguagem que fala a natu- reza e o conhecimento, conhecimento inato versus conhecimento adquirido, crença verdadeira justificada, verdade por correspondência ou representação, contemplação, dominação intelec- tual sobre o mecânico (corpos naturais) etc. Outros elementos podem ser extraídos dos intér- pretes de Platão, não pelo fato de eles terem conseguido pensar do mesmo modo que Platão e, com isso, desvendar o que somente este nos poderia dizer, mas pelo fato de as leituras advin- das de tais intérpretes terem-se tornado tendências. Nesse sentido (o sentido de redescrição), é irrelevante para a sociologia que propomos ajuizar a interpretação de determinado autor como correta ou distorcida. 8 Apesar de que esse pensamento também pressupõe algum tipo de força externa e coletiva sobre o indivíduo que o próprio autor nega quando seus críticos argumentam que sua abordagem, como os da psicologia evolutiva e so- ciobiologia, que descrevem os seres humanos naturalizando suas mazelas sociais (como machismo, sexismo, ra- cismo...) também podem justificar ou propiciar as tais mazelas na sociedade. 41 A convergência na cultura ocidental que tratamos é desses elementos que chamamos de tendências, e a diversidade é sobre as teorias e abordagens que chamamos de vocabulários. O primeiro passo, segundo nosso modelo, para surgir o conhecimento oficial é o compartilha- mento dessas tendências com a maioria dos vocabulários ocidentais que disputam poder. Em nossa compreensão, o raciocínio de Whitehead é relevante somente caso ele seja compreendido a partir da noção do conhecimento oficial. Sustentamos que a diversidade de pensamento e imaginários na cultura ocidental é uma noção um tanto estreita, pois não desafia os alcances e os limites do conhecimento oficial. A seguir, buscaremos mostrar o que é exata- mente o conhecimento oficial para, então, compreendermos a sua formação. 2.1. A noção de o conhecimento oficial O conhecimento oficial não se limita às informações registradas em uma biblioteca, um conteúdo exclusivo para consulta e ensino por parte de um grupo seleto de pessoas que cursam, por exemplo, filosofia e ciências. O conhecimento oficial tornou-se o parâmetro do Estado, do sistema Judiciário, da Medicina e da Mídia. Esse conhecimento define a vida e a morte, o justo e o injusto, a narrativa de origem e o caráter, o futuro e o destino, a graça e a desgraça, os sonhos e a esperança, o tempo e, até mesmo, a prática, a percepção e a observa- ção de determinados indivíduos. Ele define o “esquema” (aspectos lógicos, formais, teóricos e representacionais) que dá sentido e significado ao “conteúdo” (ao mundo real,isto é, que inde- pende do sujeito), apesar de que ele define também o próprio “conteúdo”. O conhecimento oficial define o próprio modelo de distinção esquema-conteúdo e define o que para sociedade é teoria e o que é a realidade. Estamos usando o termo “conhecimento oficial” pejorativamente e figurado (afinal, um documento oficial é aquele que possui um carimbo de um oficial do Estado tornando-o le- gítimo na sua jurisdição) como também é o termo “a doutrina oficial” de Gilbert Ryle (2009) se referindo à tese do dualismo cartesiano, a superioridade do conhecimento teórico sobre o conhecimento prático na cultura ocidental. Mas também pode ser visto como “ciência oficial” de Pierre Bourdieu (1983) se referindo à noção de imposição na esfera pública, a um tipo de conhecimento doxa, um monopólio científico, que se impõe sobre um determinado povo e que 42 os antagonistas, na ortodoxia e heterodoxia, admitem como autoevidentes. Contudo, o conhe- cimento oficial para nós não é um discurso, um vocabulário, apesar de se expressar sempre em um vocabulário, isto é, estar contido em determinados vocabulários. Em suma, o conhecimento oficial é a “palavra final” em uma dada sociedade. Todavia, existem tensões relacionadas ao conhecimento oficial, uma vez que, se existe o oficial, tam- bém se espera que existam: (a) a sua transgressão ou o conhecimento transgressivo; (b) aquilo que ele exclui ou o conhecimento marginal. a - ) As heresias transgressivas do conhecimento oficial, como são as obras ditas pós- modernistas, fazem-se necessárias para o polo dominante, “[...] porque sua oposição implica o reconhecimento dos interesses que estão em jogo.” (BOURDIEU, 1983, p. 23). Dito de outro modo, as heresias promovem uma manutenção da ordem no campo da luta social. Nesse senti- do, ortodoxia e heterodoxia, dominantes e dominados, incluídos e excluídos são pares coni- ventes e adversários cúmplices, pois, segundo Ortiz, “[...] através do antagonismo, delimitam o campo legítimo da discussão” (apud BOURDIEU, 1983, p. 23). De acordo com Rorty (2005, p. 219), o que move pensadores tais como Nietzsche e Foucault, que chamamos de transgressores, é a vontade de pureza. Pois, eles se inscreviam na dicotomia decente versus degenerado, remetendo-se a este último o cristianismo e, até mes- mo, as ciências ou o iluminismo. Os decentes e os degenerados, em razão de suas visões dua- listas em comum do mundo, reforçam o conhecimento oficial ao tentarem atribuir o sentido de degeneração em reciprocidade. Nesse sentido, tais autores transgressores persistem com as di- cotomias do conhecimento oficial, e não as rejeitam. Os desejos dos usuários das dicotomias depreciativas seja de Platão ou de Nietzsche, portanto, são sempre de pureza. b - ) Conforme Rorty (2005), entre os pensadores neoiluministas, é usual o diálogo restrito a pessoas e povos com bases filosóficas que lhes sejam comuns, isto é, com as filoso- fias que não sejam marginais. Do ponto de vista neoiluminista, diferentemente dos sujeitos transgressores, os quais legitimam o campo de luta intelectual (e, por isso, defendem debates constantes), os sujeitos marginais são demasiadamente irracionais para serem ouvidos como sujeitos legítimos no campo da luta. São marginais os vocabulários sem tendências convergidas no processo inicial de con- vergência, ou porque uma vez convergidas e existindo o conhecimento oficial, o conhecimen- to oficial exclui determinados vocabulários (como os estrangeiros) da competição. Permitir 43 que tais vocabulários competem pode custar muito caro para uma cultura já avançada na con- vergência das tendências (onde há mais monopólio e monólogo que diálogo, há mais coopera- ção que disputa). Pois permitir o diálogo ou disputa, abrirá a possibilidade de mudança do imaginário social do ocidente como sempre mais do mesmo ainda que na diversidade. O projeto iluminista de homem melhor, como alega Rorty (2005), limita-se a uma ten- tativa de manter a pureza moral (apenas prega o iluminismo para os iluministas) e torna-se fa- lho em face dos vocabulários marginais. No pior dos casos, os iluministas sairão numa missão de “evangelização” de povos para a democracia baseada na razão neoliberal, e a manutenção da paz e civilização ou eles não terão outra maneira de lidar com os povos além da guerra e dominação contra essa desordem e irracionalidade. Tal como questionam os intelectuais conservadores: se a razão é tudo o que basta para a sociedade liberal iluminista, qual o motivo de existirem tantas armas? Por mostrar os limites da razão, essa pergunta é decisiva contra um iluminista ou um neoiluminista, como é o caso de J. Habermas (2005) e S. Pinker (2018), por exemplo. É evidente que há mil resposta para essa pergunta, mas a questão é que se as armas devem estar sempre presente, a razão iluminis- ta desaparece nos momentos mais decisivos, quando ela deveria, mais do que nunca, fazer-se presente. O problema da moralidade, aqui tratado, que é a tentativa de comunicar-se com os po- vos de vocabulários marginais e comportamentos diferenciados além de ser um desafio para um liberal iluminista, também suscita o medo de que considerar esses povos marginais respei- tosamente para a conversação ou competição segundo regras iguais no campo de luta, seu mundo seja legitimado. Abre-se, assim, a possibilidade de, em vez de persuadir, ser persuadi- do, em vez de ganhar, perder. Daniel Everett, por exemplo, foi um missionário empenhado na conversão dos índios pirahã, os quais foram descritos por ele como ausentes de crenças religiosas. Contudo, foram os índios que, no fim, tornaram o missionário D. Everett em ateu. A apreciação do vocabulá- rio é um movimento em via dupla. É nesse curso que concordamos com Rorty (2005), para quem o projeto iluminista de homem melhor é falho em relação a outros povos9. E tudo o que resta ao marginal, irracional 9 O projeto iluminista de homem melhor é falho mesmo na própria cultura ocidental. Em determinadas situações, quando uma conclusão surpreende o usuário do vocabulário racional, a razão escapa e no seu lugar permanecem os discursos circulares, o deus ex machina, e a relutância baseada em algum conceito ou postulado superestima- 44 desde que manso ou enfraquecido, inclusos aqueles que se situam na geografia ocidental, é a esperança na confraria dos heróis iluministas do coração. Heróis capazes de solidarizarem-se com os marginais e de os representarem no campo social mediante os termos e as regras ofici- ais. Seguindo essa linha, a solidariedade e o colonialismo caminham lado a lado. Em um mundo globalizado e virtualmente conectado, em que grupos historicamente marginalizados, em razão de suas bases filosóficas, são capazes de se expressar por meio da televisão ou da internet (ganhando atenção e apreciação das pessoas), torna-se cada vez mais necessário lutar contra tais filosofias. Ou torna-se necessário fazer o senso-comum ignorar o vocabulário marginal, sob o risco de legitimá-lo, ou, pelo menos, é imperativo que a versão ocidentalizada dessas filosofias chegue aos ouvidos do senso-comum10, tornando-as heresias transgressoras que reforçam o conhecimento oficial no campo de luta. Apesar do conhecimento oficial ser histórico e local, ele se apresenta a-histórico, atemporal e desinteressado. O conhecimento oficial reafirma-se num tribunal intelectual que torna as crenças objetivas e universalmente verdadeiras, uma força sobre o interesse do outro, ao invés de depender dos interesses humanos. Por isso, o conhecimento oficial precisa apre- sentar-se aos indivíduos acima dos interesses subjetivos, da cultura e da política. Podemos compreender o conhecimento oficial a partir do que podemos chamar de sis- tema tendência-vocabulário. A competição de vocabulários convergente de tendências é sua função mais típica. Tais tendências convergidas, comuns e compartilhadas, as quais nós cha- mamos de conhecimento oficial, não se apresentam de modo singular e fragmentado. O co- nhecimento oficial é sistematizado por um vocabulário repleto de fios condutores, enredos e tendências não convergidas. Os vocabulários são particulares e dispensáveis