LUGARES DE IDENTIDADE Giséle ManGanelli Fernandes norMa WiMMer roxana Guadalupe Herrera Álvarez (orGs.) MANIFESTAÇÕES DO LITERÁRIO Lugares de identidade CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Giséle Manganelli Fernandes Lúcia Granja Norma Wimmer Orlando Nunes de Amorim Susanna Busato Lugares de identidade Manifestações do literário Giséle ManGanelli, norMa WiMMer e roxana G. Herrera Álvarez (orGs.) Editora afiliada: © 2011 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ L976 Lugares de identidade: manifestações do literário / Giséle M. Fernandes, Norma Wimmer, Roxana G. Herrera Álvarez (Orgs.). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-197-3 1. Análise do discurso literário. 2. Expressionismo na literatura. 3. Gêneros literários. 4. Identidade social. 5. Cultura na literatura. 6. Literatura brasileira. 7. Literatura hispano-americana. I. Fernandes, Giséle Manganelli. II. Wimmer, Norma. III. Álvarez, Roxana G. Herrera. 11-7804 CDD: 809 CDU: 82.09 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Sumário Apresentação 7 1 a identidade da mulher indígena em contos de zitkala-Ša 11 Alba Krishna Topan Feldman 2 o sentimento de estar à margem 33 Antonio Manoel dos Santos Silva 3 Marginalidade e rebeldia: o romance Filho nativo no contexto da literatura norte-americana 49 Cláudia Maria Ceneviva Nigro 4 identidades em foco: latinos nos estados Unidos 63 Gisele Manganelli Fernandes 5 Desmundo: ausência e distância 75 Marcela de Araújo Pinto 6 retratos da argélia: (re)considerações históricas e identitárias em L’Amour, la fantasia de assia Djebar 95 Maria Angélica Deangeli e Norma Wimmer 7 Questões de identidade contidas nos ditos e escritos de Gloria anzaldúa e Gomez-Peña 109 Maria José Terezinha Malvezzi 8 o dândi Wilde(ano) em A importância de ser prudente 123 Peter James Harris e Stephania Ribeiro do Amaral 9 Malinche: um mito mexicano revisto 147 Roxana Guadalupe Herrera Alvarez ApreSentAção Pretende-se, nesta coletânea, discutir questões de identidade veiculadas por um abrangente corpus literário. Consideramos rele- vante distinguir o modo como o discurso literário trabalha algumas práticas politicamente legítimas em determinados contextos, a saber, como a linguagem traduz a dicção de um local de cultura e de seus membros; como questões ideológicas, de natureza política e religiosa encontram signos na expressão do literário. no jogo entre o político, o filosófico e o estético, naquilo que se diz e também no rastro do que foi silenciado, na necessidade de afirmação identitária bem como nos limites de sua própria legitimação, vislumbramos a possibilidade de abordar autores e obras de grande interesse para os estudos literários. em “a identidade da mulher indígena em contos de zitkala-Ša”, alba Krishna Topan Feldman analisa como a escritora zitkala-Ša, nos contos “The Trial Path” e “The Warrior’s Daughter”, apresenta a relação entre o homem e a mulher indígena no povo Dakota, o papel reservado à mulher e afirmação de sua identidade naquele grupo. em “o sentimento de estar à margem”, antônio Manoel dos santos silva propõe uma reflexão sobre os modos como esse senti- mento é representado por meio da poesia e do cinema, elaborando uma análise dos aspectos do discurso poético como textura da marca 8 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) de um indivíduo que tem um sentimento de estar à margem, sem lugar próprio, à deriva. Claudia Maria Ceneviva nigro, em “Marginalidade e rebeldia: o romance Filho nativo no contexto da literatura norte-americana”, aborda a obra do escritor afro-americano richard Wright no contexto em que foi produzida. Mostra aspectos intertextuais com outras obras da literatura, além de discutir a questão da negritude. no texto “identidades em foco: latinos nos estados Unidos”, Gi- sele Manganelli Fernandes examina como textos de rosario Morales e aurora levins Morales, Gloria anzaldúa, Jimmy santiago Baca e esmeralda santiago debatem a angústia das identidades divididas dos latinos nos estados Unidos e mostram a luta desse grupo para conquistar espaço e respeito naquela sociedade. em “Desmundo: ausência e distância”, Marcela araújo Pinto tece, a partir da ficcionalidade da narrativa de ana Miranda, considerações sobre o resgate do passado histórico e memorialístico, bem como o que isso promove em termos dos efeitos sociais e culturais, na atualidade, da representação da formação das identidades pessoais caracterizadas pela marginalidade. Maria angélica Deangeli e norma Wimmer, em “retratos da argélia: (re)considerações históricas e identitárias em L’amour, la fantasia, de assia Djebar”, abordam o romance publicado em 1985 que resulta de um projeto “autobiográfico” da escritora argelina assia Djebar. escrito em língua francesa, o romance não deixará de evocar as relações problemáticas entre o narrador e essa língua-outra, que se torna, em vários momentos, a própria matéria romanesca. em “Questões de identidade contidas nos ditos e escritos de Gloria anzaldúa e Gómez-Peña”, Maria José Terezinha Malvezzi estuda o choque entre as culturas anglo e espanhola, a incerteza da posição assumida como sujeito literário, o abandono do cânone estabelecido pelo centro europeu e o emaranhado dos vários diálogos em sua nar- rativização por meio de testemunhos expressos por Gloria anzaldúa em Borderlands / La Frontera. The New Mestiza (1999) e Guillermo Gómez-Peña em The New World Border (1996) quando falam de sua Raza, dos mestizos, do hybrid people. LUGARES DE IDENTIDADE 9 Peter James Harris e stephania ribeiro do amaral, em seu “o dân- di Wilde(ano) em A importância de ser prudente”, têm como objetivo, por meio da análise da peça de oscar Wilde, compreender o aspecto da identidade do autor, cuja teoria estética, bem como seu ponto de vista a respeito da sociedade vitoriana da qual participava são descritos por meio de seus personagens. em “Malinche: um mito mexicano revisto”, roxana Guadalupe Herrera alvarez aborda como a história oficial foi construindo a figu- ra da Malinche como o epítome da traição. atualmente, o romance Malinche, da escritora mexicana laura esquivel tenta, por meio da humanização da personagem histórica, resgatar uma feição mais com- plexa da Malinche para além do mito da indígena traiçoeira. Alba Krishna Topan Feldman1 Introdução o papel da mulher dentro da sociedade vem sendo discutido há muito tempo, e muito se tem discutido sobre a mulher e sua repre- sentação dentro das sociedades ocidentais, tendo como parâmetro os padrões europeus. Porém, estudos que abordem as mulheres em outros contextos culturais e sociais são relativamente poucos. este texto busca recuperar a função e a identidade da mulher indígena dentro de um recorte da obra de uma autora não branca, de origens culturais que mostram uma sociedade tribal com parâmetros diferen- tes dos europeus, e como essa mulher é representada em dois contos ficcionais da obra American Indian Stories, mais precisamente “The trial path” e “The warrior’s daughter”. este estudo busca discutir como se dá a relação entre mulheres e homens indígenas america- nos, e os papéis destinados à mulher, em um contexto não tocado pela civilização, uma vez que os contos estudados ocorrem em um tempo que não é mítico, mas que ocorre antes da colonização. após uma breve biografia da autora, alguns aspectos da escrita indígena 1 Professora de língua e literaturas de língua inglesa da Universidade estadual de Maringá (UeM), Paraná. 1 A identidAde dA mulher indígenA em contoS de ZitkAlA-ŠA 12 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) norte-americana foram discutidos, seguidos pela aplicação das teorias nos contos. zitkala-Ša, nascida Gertrude simmons (1876-1938), em uma reserva indígena Yankton Dakota, viveu os primeiros anos de vida junto à sua mãe, ellen simmons (cujo nome indígena é Tatè iyohinwin – aquela que Busca pelo vento). não há muitas referências sobre o pai de Gertrude, apenas que poderia ter sido um homem branco chamado Felker. Gertrude foi criada em relativa paz na reserva Yankton até oito anos de idade, recebendo a educação das mulheres mais velhas da tribo, como sua mãe e sua tia, dentro da tradição Yankton-Dakota. aos oito anos decidiu seguir sua melhor amiga e foi levada por missionários para uma escola indígena (boarding school).2 os anos no internato Quaker em indiana deixaram marcas profundas na pequena Gertrude, pela “rotina de ferro”, a frieza, as surras e coações. após três anos de internato e quatro anos de incerteza e sofrimento ao lado da mãe, Gertrude decide voltar ao oeste e continuar seus estudos como musicista no earlham College. Foi professora e ativista pelo direito dos povos indígenas. seus textos autobiográficos foram publicados em periódicos famosos como o Atlantic Monthly e a Harper’s Magazine em 1900 e 1901, e foram reunidos e publicados na forma de livros, reeditados em 1921. zitkala-Ša utilizou sua experiência como musicista adquirida no earlham College para compor a única ópera escrita por um autor indígena sobre um tema indígena, a Sun Dance Opera, juntamente com um jovem professor de música, William F. Hanson. sua obra foi esquecida durante décadas, voltando a ser recuperada a partir do início da década de 1980, quando estudiosos da cultura indígena passaram a observar as escritas dos indígenas norte-americanos contemporâneos e antigos sob outras ópticas, assim como as abordagens pós-modernas, pós-coloniais e os próprios estudos de relações de poder e gênero proporcionados pela crítica literária feminista. 2 escolas criadas para a educação mínima dos indígenas por grupos religiosos ou militares e mantidas pelo governo. as boarding schools faziam parte de um projeto assimilacionista maior que não será discutido neste estudo. LUGARES DE IDENTIDADE 13 Alguns aspectos da cultura dakota a oralidade e os contos de inverno são as bases culturais dos in- dígenas e mantiveram vivas a história do povo e suas crenças. entre essas manifestações, Heflin (1997) destaca as seguintes: contos de grandes valentias, autorreflexão, narrativas míticas e histórias de busca e aquisição de poder. Heflin (1997) afirma que essa classificação não é necessariamente fixa e que um mesmo conto pode englobar várias dessas características. Krupat (1994) também caracteriza os contos autobiográficos como “histórias de valentia”, ou “contos de sonhos e experiências místicas”. De certa forma, Krupat parece sintetizar a classificação mostrada por Heflin antes, uma vez que todas as histórias, sem exceção, são utiliza- das como narrativas educativas, de autodefesa e reflexão. De qualquer forma, as histórias indígenas servem para revelar o ser sinedóquico e sua inserção na sociedade. o papel do indígena nas histórias é a coletividade, o sentir-se fazendo parte de um organismo social maior (vizenor, 1998). Para iniciar, há a diferença da oralidade versus a língua escrita. os indígenas têm uma rica história transmitida oralmente, e muito pouca escrita. o mais próximo da escrita europeia entre os dakotas são os Winter Tales, pedaços de couro de búfalo que gravam histórias e fatos importantes ou aventuras místicas, utilizadas como ilustração das histórias contadas em torno das fogueiras durante o inverno. assim, a história contada tem papel preponderante na vida da tribo: longe de ser apenas divertimento, elas têm a função prática de ensinar e transmitir as tradições da tribo, possuindo grande importância social, uma vez que o pensamento indígena coloca a sociedade (a tribo) e suas necessidades à frente de todas. Gunn allen (1983, p.4) reflete sobre as funções e estrutura da literatura tradicional indígena e as diferenças da literatura oral em comparação à literatura ocidental: Por exemplo, as tradições dos índios americanos e a tradição ocidental diferem muito nos propósitos aos quais presumivelmente servem. o 14 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) propósito da literatura indígena americana não é nunca simplesmente a autoexpressão. a “alma particular exposta ao público” é um conceito desconhecido ao pensamento indígena norte-americano. as tribos não celebram a habilidade de sentir emoções, pois eles presumem que todos os seres são capazes disso. a emoção de cada um é particular; sugerir que os outros devem imitá-los é impor-se sobre a integridade pessoal de outros. as tribos buscam – através de música, cerimônia e histórias – incorporar, articular e compartilhar a realidade, o ser íntimo em harmonia e equilíbrio com esta realidade, verbalizar o senso de majestade e mistério reverente de todas as coisas, e atualizar a linguagem, aquelas verdades que dão à humanidade sua maior significação e dignidade. em um sentido amplo, a literatura cerimonial serve para redirecionar a emoção privada e integrar a energia gerada pela emoção dentro de uma estrutura cósmica.3 assim como a etnografia mais conservadora comete o engano de não admitir que a autobiografia indígena seja poderoso exemplo de educação, a crítica literária do ocidente supervaloriza o indivíduo na relação da narrativa com o herói, ao colocá-lo como protagonista singular e único. De acordo com o comentário de Gunn allen (1983), o protagonista indígena não está ali apenas para ser o herói de sua história, mas também para elevar sua comunidade e seus antepassa- dos, assim como para ensinar as gerações futuras. Dessa maneira, a camada de compreensão oferecida pelos textos de origem indígena é mais profunda que apenas a compreensão da personagem ou do autor 3 “For example, American Indian and Western literary traditions differ greatly in the assumed purposes they serve. The purpose of traditional American Indian literature is never simply pure self-expression. The ‘private soul at any public wall’ is a concept alien to American Indian thought. The tribes do not celebrate the individual’s ability to feel emotion, for they assume that all people are able to do so. One’s emotions are one’s own; to suggest that others should imitate them is to impose on the personal integrity to of others. The tribes seek – through song, ceremony, and tales – to em- body, articulate, and share reality, private self into harmony and balance with this reality, to verbalize the sense of the majesty and reverent mystery of all things, and to actualize in language, those truths that give to humanity its greatest significance and dignity. To a large extent, ceremonial Literature serves to redirect private emo- tion and integrate the energy generated by emotion within a cosmic framework” (as citações são traduzidas livremente pela autora do texto). LUGARES DE IDENTIDADE 15 e da obra, mas a última funciona como elemento dinâmico, que partiu da necessidade da comunidade em perpetuar seus conhecimentos e valores: a história é recontada no presente como homenagem ao passado, informação para o presente (o conteúdo narrativo em si, a reflexão, a aventura, o divertimento e a educação), e a formação para o futuro (na preparação das novas gerações para a continuidade da tradição). Também para vizenor (1998, p.18) a comunidade é a base da construção da identidade individual do nativo: as fontes mais notáveis do ser nativo como identidade pessoal, e o senso de presença são visionários; as representações são famílias, co- munidades e as políticas das nações. estas, as associações mais óbvias, são as referências públicas a um senso pessoal de presença no mundo. as mais notáveis conexões, no entanto, podem nem sempre revelar as fontes mais significativas do self nas histórias do destino e sobrevivência dos nativos.4 Kelsey (2008, p.10) argumenta que é importante utilizar uma abordagem teórica e o conhecimento cultural apropriados para em- basar a literatura produzida pelos indígenas norte-americanos, e que se precisa focalizar o conhecimento tribal, ao levar em consideração “uma estrutura maior que os autores indígenas estão invocando, descrevendo, abordando e reconstruindo em suas escritas e, como tal, como sua (re) instrumentação cultural e linguística sustenta-se em si mesma como uma teoria nativa”.5 os esclarecimentos citados são importantes, uma vez que o papel de contar histórias e proporcionar a educação às crianças e às adoles- 4 “The foremost sources of the native self as a personal identity, and sense of presence, are visionary; the presentations are families, communities, contrariety, and the politics of nations. These, the most obvious associations, are the public references to a personal sense of presence in the world. The foremost connections, however, may not always reveal the most significant sources of self and identity in the native stories of chance and survivance.” 5 “The larger Native cultural framework that indigenous authors are invoking, describ- ing, engaging and remaking in their writings, and, as such, how this cultural and linguistic (re) tooling stands on its own as Indigenous theory.” 16 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) centes é da mulher indígena. existem contadores de histórias homens, e esse papel cabe em especial aos anciãos, mas a formação das crianças, especialmente das meninas, é das mulheres da tribo, especialmente dentro das próprias famílias. Kelsey (2008) baseia seus estudos no conhecimento tribal, ou seja, nos sistemas de linguagem e pensamentos singulares de cada tribo ou grupos de tribos com bases culturais similares (as nações indígenas). seus estudos concentram-se no conjunto de conhecimentos e con- ceitos dos dakotas, nação à qual zitkala-Ša pertenceu, e partem do pressuposto de que alguns instrumentos acadêmicos utilizados no estudo de textos não canônicos pertencentes a outra cultura são, de certa forma, inadequados ao seu estudo, pois realizam sua leitura fora de seus contextos tribais e de seus termos culturais definidos. Dessa forma, os textos são vistos apenas do ponto de vista do antropólogo ou do crítico literário com instrumentos de análise voltados à cultura eurodescendente, dando ensejo às generalizações e estereótipos apon- tados por críticos literários voltados aos estudos de escrita indígena norte-americana, como Krupat (1989) e vizenor (1998). alguns dos conceitos abordados por Kelsey (2008, p.27) em seu estudo, como a formação de vínculos entre os membros da tribo (Tiošpaye), vão aparecer na obra de zitkala-Ša: ao mesmo tempo em que conceitos de nação e soberania são in- troduções relativamente recentes nos discursos, os Dakota já possuíam claramente uma identidade de pré-contato, que era formada através de relacionamentos e relacionalidade: o tiošpaye, ou família extensa. esta unidade social forma a base da afiliação a um bando e é mais ampla, interligando-se com outros bandos de Dakota, lakota, e nakota. Devido ao fato de que estes três ramos da “nação sioux” se considerarem como parte do mesmo povo, cuja existência implicava o estabelecimento de um relacionamento com os outros, há um discurso nascente sobre nação, ou, nesse caso, identidade do bando ou do tiošpaye.6 6 “While concepts of nation and sovereignty are relatively recent introductions to discourses, the Dakota clearly had a form of precontact identity that was formed through relationships and relationality: the tiospaye, or extended family. This social LUGARES DE IDENTIDADE 17 esse senso de comunidade será um ponto essencial a ser abordado na literatura indígena, especialmente na obra de zitkala-Ša, que descre- ve e reconstrói, em diversos de seus contos e narrativas autobiográficas, a vida tribal e as relações entre os diversos membros da comunidade, como pais e filhos, jovens e anciãos, conforme será estudado mais adiante na análise das obras. Análise dos contos o conto “The trial path” ocorre em um passado indeterminado, embora o tema e o tempo não sejam míticos e, sim, retratem um período anterior à dominação europeia, ou, pelo menos, sem a interferência de euroamericanos na trama. o tempo presente na narrativa é uma noite de outono, na qual o brilho de uma estrela entra pelo buraco da tenda por onde sai a fumaça da fogueira. nesse wigwam, em torno de uma fogueira, uma avó conta à neta sobre as estrelas: elas seriam guerreiros; as maiores seriam os mais velhos e mais sábios, enquanto as menores seriam os mais jovens e belos. Para provocar a avó, a neta afirma que aquela estrela no buraco da tenda é o avô. a avó, então, diz que a neta tem dois avôs e passa a contar uma história: dois amigos como irmãos, dividiam tudo, até o mais jovem matar o mais velho por causa do amor de uma mulher. a tribo, então, se reúne e delibera o julgamento e o futuro do assassino: Diz o nosso chefe: – aquele que mata um de nossa tribo comete ofensa de um inimigo. Como tal deve ser julgado. Deixe o pai do homem morto escolher o modo de sua tortura ou de sua morte. ele sofreu a dor vívida, e apenas ele pode julgar quão grande deve ser a punição que julgará esse crime. – e foi feito. – venham todos para testemunharem o julgamento unit forms the core of band affiliation and its larger interweaving with other bands of Dakota, Lakota, and Nakota. Because the three branches of the ‘Sioux Nation’ viewed themselves as being part of the same people whose existence was predicated upon establishing their relationship to each other, there is a nascent discourse of na- tion, or in this case band or tiošpaye identity.” 18 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) de um pai sobre aquele que foi uma vez o melhor amigo de seu filho. Um cavalo selvagem é agora laçado. o assassino agora deve montar e cavalgar o animal violento. Fiquem todos em linhas paralelas da tenda central da família enlutada até a tenda oposta no grande centro. entre as linhas de pessoas se fará uma trilha. Do círculo externo, o cavaleiro deverá montar e levar seu cavalo até a tenda central. se após passar por todo esse cami- nho, o assassino chegar à tenda central ainda sentado sobre o cavalo, sua vida será poupada e o perdão dado. Mas se cair, então, ele terá escolhido a morte. (zitkala-Ša, 2003, p.129)7 então, o leitor e a neta sabem o desejo da avó jovem para que seu amado passasse ileso pelo sofrimento. sendo uma peça essencial à vida dura nas altas planícies onde os dakotas vivem, o cobertor é utilizado para simbolizar segurança, calor e amparo ao indígena em um mo- mento de sofrimento: “– eu me sufocava em dor ao reconhecer meu belo amado desoladamente só, caminhando com a face endurecida em direção ao cavalo preso. – não caia! escolha a vida e a mim! eu grito em meu coração, mas sobre meus lábios eu seguro meu cobertor grosso” (ibidem, p.130-1)8 Como contadora de histórias, a avó utiliza o presente verbal para sombrear o ápice da narrativa. assim, a penalidade imposta pelo pai do moço assassinado começa. o cavalo é forte e violento, mas o culpado 7 “Says our chieftain: ‘He who kills one of our tribe commits the offence of an enemy. As such he must be tried. Let the father of the dead man choose the mode of torture or taking of life. He has suffered livid pain, and he alone can judge how great the punishment must be to avenge his wrong.’ It is done. ‘‘Come, every one, to witness the judgment of a father upon him who was once his son’s best friend. A wild pony is now lassoed. The man-killer must mount and ride the ranting beast. Stand you all in two parallel lines from the centre tepee of the bereaved family to the wigwam opposite in the great outer ring. Between you, in the wide space, is the given trialway. From the outer circle the rider must mount and guide his pony toward the centre tepee. If, having gone the entire distance, the man-killer gains the centre tepee, still sitting on the pony’s back, his life is spared and pardon given. But should he fall, then he himself has chosen death.” 8 “I choke with pain as I recognize my handsome lover desolately alone, striding with set face toward the lassoed pony. ‘Do not fall! Choose life and me!’ I cry in my breast, but over my lips I hold my thick blanket.” LUGARES DE IDENTIDADE 19 consegue vencer a adversidade e cumprir com a justiça da tribo, levan- do o cavalo até a tenda da família enlutada. o pai do moço assassinado, então, aceita a justiça do Grande Mistério e recebe o assassino como filho, declarando o fim do julgamento. a partir daquele momento, o jovem seria adotado e cumpriria o papel de filho único e provedor da família, que destruíra ao matar seu amigo e irmão. a ação volta à tenda onde a avó conta a história, e ela completa que o cavalo havia se tornado membro da família e, quando o dono morrera, o cavalo fora colocado em seu túmulo para que entrassem juntos nos felizes campos de caça. a avó, então, explicou como havia sido a cerimônia de enterro de seu marido. o vento e a jovem já haviam adormecido, quando ela terminou. vários pontos nesse conto mostram o papel da mulher: as gerações mais velhas educando as mais novas por meio de histórias e, especialmente, a honra aos antepassados, de forma que seus feitos não sejam esquecidos. a avó, como muitas outras mulheres na literatura indígena, prepara as futuras gerações, como a vovó Dia nublado, de Wigwan Evenings, livro de lendas recuperadas por Charles eastman, da mesma nação indígena de zitkala-Ša. o papel da criança, especialmente das meninas na sociedade, é repassar essas histórias oralmente para as próximas gerações, e esse é um trabalho considerado sério por elas, que contam e recontam essas histórias durante as brincadeiras. antes da colonização, a oralidade e os Winter Tales foram extremamente eficientes em manter as histórias de bravura, as lendas e preceitos religiosos e míticos vivos. Há diversos pontos interessantes sobre o papel da mulher nesse conto, e também em âmbito geral: o conto mostra qual era o senso de justiça na cultura dos indígenas, que difere entre indígenas e brancos, como o fato de um jovem cometer um crime cruel, que em muitos locais dos estados Unidos seria punido com a morte, matando seu melhor amigo por ciúme, ser perdoado pela tribo e recebido nova- mente na comunidade, depois de pagar seu débito e receber o perdão do Grande Mistério. a avó, quando jovem, cumpre seu papel na sociedade, não inter- ferindo nas decisões a serem tomadas pelos anciãos da tribo, mesmo sendo parcial e tendo seus próprios sentimentos e desejos quanto a elas. 20 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) seguindo o papel dos anciãos, especialmente das mulheres, de educar novas gerações: ela explica as cerimônias (como o enterro do esposo) à neta, e mantém viva a tradição ao fazê-la honrar os antepassados queridos em geral, e seus “dois avôs” em particular. o simples fato de haver o respeito por dois avôs e não apenas pelo avô biológico já enfatiza o senso comunal e tribal, na qual as tarefas pelo bem comum, como prover alimentos e garantir a continuidade do grupo ao cuidarem- se das crianças com respeito é responsabilidade de todos. assim, o papel de continuidade da educação dakota é realizado. Pelo fato de o julgamento ao culpado envolver um assunto administrativo relacio- nado a famílias diferentes e também ao bem-estar da tribo, a mulher, catalizadora da ação narrativa em “Trial Path”, não pode envolver-se diretamente, e precisa aceitar o julgamento do pai da família ultrajada. Porém, observa-se sua subjetificação não apenas quando o fato ocor- reu, desejando que o amado sobreviva, mas também auxiliando em sua sobrevivência, ao não deixar o acontecimento morrer e passá-lo às novas gerações em honra aos antepassados. em “The warrior’s daughter”, também narrado em terceira pes- soa, vemos a primeira personagem nomeada na obra: Tusee, a filha do melhor guerreiro do Chefe. a honra desse guerreiro não é apenas nas artes da guerra, mas também cuidar da comunidade, especialmente dos velhos e das crianças. Por esse motivo, ele usa tinta vermelha. Quando uma pessoa é dedicada a cuidar dos necessitados da tribo, ela recebe a honra de usar tinta vermelha no rosto, na roupa, ou, como no caso do pai de Tusee, no alto da tenda circular utilizada pelo povo dakota, o Wigwan. Tusee é sua filha e seu orgulho. a paixão e preocupação de Tusee com o pai é muito bem marcada nesse conto, e nele observa-se muito mais detalhadamente a relação entre homens e mulheres na tribo dakota e a relação de ambos, homens e mulheres, com a tribo: “ele também era um dos mais generosos doadores ao povo sem dentes,9 por isso, 9 expressão que zitkala-Ša utiliza para se referir aos mais velhos da tribo que não conseguem suprir suas necessidades sozinhos e que também não têm família que os possa ajudar diretamente. (n.T.) LUGARES DE IDENTIDADE 21 ele tinha o direito de usar tinta vermelha nas laterais da abertura de fumaça de sua moradia em forma de cone. ele tinha orgulho de suas honras” (zitkala-Ša, 2003, p.134)10 Figura 1 – Foto de camisa de um guerreiro indígena, feita provavelmente de couro de gamo e com belo trabalho em contas, datando do final do século xix. observem a tinta vermelha, e especialmente as mãos vermelhas como decoração. a cor e o desenho mostram que a camisa pertencia a uma pessoa que era útil à comunidade, que ajudava os velhos, as crianças e os doentes (Speed Art Museum, louisville, Kentucky. Foto de nossa autoria). Um dos pontos mais importantes desse conto com relação ao papel e à identidade feminina dentro dessa cultura são os ritos de passagem: a menina vai tornar-se uma mulher ao menstruar pela primeira vez, mas, quando isso acontecer, ela vai passar por um período de ensinamento pelas anciãs da tribo, e será introduzida à sociedade tribal como mulher. após isso, os guerreiros da tribo poderão pedir ao pai a permissão de cortejá-la e casarem-se com ela. a cena descrita para essa preparação também demonstra a ligação entre homens e mulheres da tribo, entre adultos e crianças e entre pai e filha: “Com seus pés juntos, perfeita- 10 “He was also one of the most generous gift givers to the toothless people. For this he was entitled to the red-painted smoke lapels on his cone-shaped dwelling. He was proud of his honors. […].” 22 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) mente acomodados aos mocassins e sua pequenina mão sobre o longo colar de contas suspenso em seu pescoço nu, ela flexiona suavemente seus joelhos ao ritmo da voz de seu pai” (ibidem, p.134)11 a importância da dança ritual aqui é demarcada, assim como a participação de homens e mulheres no evento, com o pai cantando para a filha em sua preparação para a puberdade no desenvolver da narrativa, eles recebem a visita de um ancião, antigo prisioneiro de guerra e agora amigo e irmão da família. Como escravo liberto, ele escolheu ficar com seus ex-captores e agora sua família, os dakotas. o dia marca a iniciação da menina na dança, na qual ela se tornará uma moça perante a tribo, com a tradicional ceri- mônia de giveaway (doação – quando há algum momento importante na vida de uma família indígena, como nascimentos, casamentos ou ritos de passagem, é costume a família que comemora dar presentes aos outros da tribo – diferente da cultura ocidental, quando a família recebe presentes ao comemorar um evento importante, por exemplo, aniversário ou casamento). a pequena escolhe o presente que irá receber, enquanto a mãe prepara presentes feitos de contas para dar às outras pessoas da tribo. a mãe acalma o excitamento da moça e afirma que os homens da família – o pai e o tio por adoção – devem cumprir com o anseio da filha, dando a ela o presente desejado. Para isso, a mãe emprega uma palavra indígena, mostrando mais uma vez o apreço daquelas famílias por suas crianças: “– ‘Hähob!’ – exclamou a mãe, com uma inflexão crescente na voz, implicando pela exclamação que o espírito borbulhante de sua filha não deve receber o peso de uma negativa” (ibidem, , p.134).12 Mais palavras na língua dakota são utilizadas no texto, sem haver prejuízo para o entendimento, como a cena em que o pai aprova a forma que a filha está vestida para sua apresentação à sociedade: 11 “With her snugly mocassined feet close together, and a wee hand at her belt to stay the long string of beads which hang from her bare neck, she bents her knees gently to the rhythm of her father’s voice.” 12 “‘Hähob!’ exclaimed the mother, with a rising inflection, implying by the expletive that her child’s buoyant spirit be not weighted with a denial.” LUGARES DE IDENTIDADE 23 “o orgulhoso pai guerreiro, sorrindo e apertando os olhos, murmurou em aprovação, ‘Howo! Hechetu!’” (ibidem, p.134).13 esse conto descreve, entre outros costumes, como é feita a pintura de rosto e a vestimenta para as ocasiões cerimoniais, mas também a atitude de respeito dos mais velhos para com os mais novos, e vice- versa. Tusee é descrita como uma filha obediente e fiel, preparando belos ornamentos para seu pai usar, enquanto ele sonha em espantar os candidatos a desposar sua filha para escolher apenas o melhor para ela. o trabalho de contas (beadwork) é trabalho um artístico muito antigo entre os índios do norte dos estados Unidos e do sul do Ca- nadá, iniciado com sementes e com outros materiais naturais, como conchas, pedras e espinhos de porco-espinho. após o contato com os europeus, o trabalho de contas acabou por assumir a forma que tem ainda hoje em dia, feito com contas minúsculas, geralmente de plástico ou de porcelana colorida altamente organizado e cheio de padrões diferentes. esse artesanato é de vital importância para a transmissão da cultura e também visto como sagrado, uma vez que as mulheres dakotas que sonhassem com Double Face Woman (a mulher de duas caras – ser mítico que tecia os destinos) deveria dedicar sua vida aos trabalhos manuais, muitas vezes até mesmo abrindo mão de suas famílias. era, geralmente, uma das formas mais tradicionais de trabalho feminino indígena, passado com orgulho para as novas gerações de mulheres. 13 “The proud warrior father, smiling and narrowing his eyes, muttered approval, ‘Howo! Hechetu!’” 24 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) Figuras 2 e 3 – vestido cerimonial de contas e couro de alce feito entre 1870 e 1900 por mulheres das tribos das planícies. alguns desses vestidos são feitos de mais de duas mil pequenas contas. ao lado, diversos enfeites de contas pequenas e grandes. observem os padrões tradicionais, geométricos e assimétricos. Mesmo o pai querendo impedir que os pretendentes se aproximem de sua bela filha, um deles, amado de Tusee, é corajoso o bastante para pedir a mão da moça e ouvir o julgamento do pai. ouve, então, que para merecer a filha, o candidato deve trazer o cabelo de um inimigo vencido em batalha. essa atitude do pai merece uma reflexão: a palavra escalpo não é citada no texto, mas está implícita. Trata-se de costume comum entre grupos europeus como os visigodos, anglo-saxões e outros. arqueólogos também localizaram corpos com sinais de escal- pelamento na américa pré-colombiana, e afirmam que o costume de retirar o cabelo do alto da cabeça dos inimigos mortos nas américas data, pelo menos, do século xiv (Gregg & Gregg, 1987) os informan- tes lakotas de Walker (1991) descrevem o escalpelamento como um ritual cheio de detalhes que contribui para a formação dos guerreiros e sua aceitação na tribo, caso a guerra se faça realmente necessária. Porém, na guerra franco-inglesa pela posse de certos territórios dos estados Unidos, incluindo o território dos lakotas e dos dakotas, as autoridades inglesas ofereciam 100 libras por escalpo de franceses ou dos índios que os ajudavam. isso provocou uma corrida sanguinária, especialmente por membros do próprio exército britânico. a palavra foi omitida do conto, certamente, para que não criasse a conotação negativa de selvageria sobre a população indígena, que a autora evita com tanto cuidado. LUGARES DE IDENTIDADE 25 o jovem irá, então, juntar-se a um grupo de guerra e vem perguntar se sua amada o esperará retornar. ela concorda, enquanto guerreiros se preparam chamando o Grande espírito para auxiliá-los a vingar uma injustiça antiga. Depois da dança, pouco antes do nascer do sol, o grupo de guerra parte, enquanto as mulheres seguem seus guerreiros. Tusee cavalga o cavalo de guerra de seu pai. Depois de um dia de jornada e uma noite de descanso, os homens partem para a guerra enquanto as mulheres esperam para cuidar dos feridos e enterrar os mortos. esse fato é outro dos momentos em que aparece a organização dos Dakota com relação ao papel dos sexos na sociedade tribal: as mulheres levam os cobertores e as ervas para cuidarem dos feridos. elas também vão para a batalha, mas não para matar, e sim para curar. Há, até mesmo, danças que representam essa espera das mulheres no alto da montanha pelos seus guerreiros – elas usam uma sacola de ervas medicinais, uma faca e um cobertor como indumentária. Continuando a narrativa, ao final do dia de batalha, três guerreiros faltam: dois mortos e o amado de Tusee, feito prisioneiro. ela foge do grupo de guerra, que voltava para o antigo local de acampamento, e vai até o acampamento do inimigo. Tusee observa o campo inimigo enquanto comemoram. ela ora ao Grande espírito por força e habili- dade para resgatar seu amado e o coração de guerreiro: forte o bastante para matar um inimigo e poderoso suficiente para salvar um amigo. no acampamento inimigo, todos dançam a vitória. ela observa seu amado no centro do círculo. os dançarinos zombam do prisioneiro, especial- mente seu captor. então a narrativa muda para centrar-se no guerreiro inimigo, captor do amado de Tusee: ele começa a aproximar-se de uma mulher que o chama para “partir para a noite”. após uma louca perse- guição à mulher, ela para. ele pergunta quem é ela. nesse momento, o leitor descobre que a mulher é Tusee, pois ela responde, entre dentes, na língua do inimigo enquanto o mata: “eu sou uma mulher Dakota!”. esse momento representa o ápice da narrativa e, ao mesmo tempo, a afirmação da protagonista Tusee como mulher, e da mulher dakota como alguém poderoso e capaz de vencer as maiores dificuldades por sua inteligência (leia-se, além da engenhosidade, também o bilinguismo, pois saber a língua do inimigo dá poder a ela), sua sagacidade e sua força. 26 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) o conto pula para outro evento: enquanto os dançarinos deixam o local de dança, uma velha encurvada com um saco nas costas, como se carregasse um neto, vai andando em torno da tenda onde todos dançam. os dançarinos vão saindo, cansados. sabe-se, então, que a velha também é Tusee, entrando furtivamente na casa de dança e pegando o prisioneiro quando todos estão distraídos ou dormindo: ao ver seu amado impossibilitado de caminhar, ela o carrega noite adentro. Concernente ao papel da mulher, vemos Tusee assumindo o papel da anciã protetora. assim, no desenvolvimento da trama, Tusee passa de criança a mulher, exercendo todos os papéis atribuídos a ela, desde o trabalho de contas até a cura dos guerreiros feridos, e também o da anciã sábia. Análise comparativa: aspectos da identidade da mulher e da sociedade dakota presentes nos contos apresentados enquanto em “Trial Path” a mulher age como catalisadora e iniciadora do processo que desencadeia a ação, agindo mais com seu pensamento e com sua vontade do que ações e, como avó, ela segue seu papel tradicional dakota de transmitir histórias de valentia e honra aos antepassados às novas gerações, e em “The warrior’s daughter” a mulher chega ao máximo de seu poder de ação. ela é a heroína com o controle da linguagem do inimigo, a preocupação com a família (espe- cialmente o pai) e também a coragem para salvar as pessoas com quem se importa, entrando em uma tribo inimiga sozinha apenas com sua inteligência, sua habilidade e uma faca. Mais uma vez, a linguagem é poder: dominar a linguagem do inimigo deu a Tusee a possibilidade de entrar na aldeia e tirar dali seu amado. ao anunciar ao inimigo a identidade de seu algoz como uma mulher dakota, Tusee não apenas afirma sua identidade como mulher, mas também como indígena. “The trial path” e “The warrior’s daughter” são histórias narradas em uma época indeterminada em que os indígenas viviam livres e tinham suas próprias leis, mas também reafirmam a honra, a digni- LUGARES DE IDENTIDADE 27 dade e os costumes dos povos considerados selvagens. outro ponto interessante do poder de ação feminino em “The warrior’s daughter” é o fato de Tusee se utilizar de dois aspectos do trickster, o embusteiro, que é uma personagem importante para a educação indígena: a capa- cidade de domínio da linguagem, tanto para reafirmar sua identidade ao matar o inimigo quanto para atraí-lo a armadilhas, ou adentrar seu campo; também o poder de mudar de forma, da menina e filha feliz à mulher amorosa, da companheira que vai à guerra acompanhando seu guerreiro à guerreira que traça estratégias para resgatar quem ela ama; da mulher lasciva para atrair o inimigo à velha para retirar o amado de seu cativeiro na tribo inimigo. a oralidade indígena era a forma de registrar e transmitir a história e as lendas da tribo, eventos de aventura em migração, viagens, desco- bertas, profecias dos sonhadores e sábios, contos míticos, orientação dos medicine men, regras de convívio social, as batalhas célebres, além dos mistérios que envolviam a união entre os indígenas e natureza. Como foi visto, os contos mostram quão importante era a transmis- são dessas informações para a continuidade da sociedade, e que esse papel de transmissão era feito especialmente pelas mulheres mais velhas. na literatura proposta por zitkala-Ša, esse aspecto é mantido e reforçado. a afirmação dos valores culturais está presente de diversas formas, mas todos convergem para a solidariedade e a coesão tribal. esse aspec- to é tão importante para o povo dakota, que tem o nome de Tyošpaye, traduzido livremente como “família extensa”, que será vista com mais detalhes adiante. esse tropo da escrita indígena dakota apresentado por Kelsey (2008) tem importância essencial na obra de zitkala-Ša e, por esse motivo, será abordado aqui de forma detalhada: trata-se do princípio de parentesco, ou Tyošpaye, fundamental à manutenção da sociedade dakota e indígena de modo amplo. esse princípio afirma que todos os seres do universo são parentes – daí a origem da oração e saudação Mitakuye Oyasin, que significa “somos todos parentes”, ou “por todas as nossas relações”. Kelsey (2008) apresenta dois tipos principais de Tyošpaye: 28 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) Hakata• , que representa a união indissolúvel de certos gru- pos consanguíneos especiais, como irmãos e primos, pais e filhos. Kola• : a primeira palavra em quase todas as canções que das cerimônias dakotas. essa palavra pode ser traduzida livremente por “companheiro”, mas seu sentido é bem mais profundo. é um parentesco sem ligações consanguíneas, obtido por honra e respeito. o indígena não é apenas parente de outras pessoas que considera importantes para si, mas de todos os seres do universo, no céu, na terra, sob a terra, nas águas e no ar. os Tunkašila são avôs de todo o povo indígena, e são nuvens, pedras, árvores, todos os tipos de animais. assim, zitkala-Ša, em mais de uma história, mostra o princípio de Kola, quando os animais se ajudam, pessoas auxiliam animais, e assim por diante. Também está presente no tratamento carinhoso entre pessoas da mesma idade por “primos”, “avós e netos” entre crianças e anciãos, e “tios e sobrinhos” por jovens e adultos da tribo, mesmo sem haver parentesco de sangue. esses exemplos vão aparecer em toda a obra da autora, mesmo entre os animais em Old Indian Legends. nos contos apresentados, o princípio de kola aparece em “The trial path” com a amizade que se forma entre homem e cavalo, e em “The warrior’s daughter” com a amizade entre o guerreiro capturado, transformado em “parente” pelos dakotas. o princípio da hospitalidade na vida comunitária, receber a todos com carinho e respeito, também faz parte da definição de Kola, justifi- cando, assim, a oração já citada, Mitakuye Oyasin. Todos são parentes, e Kola, dentro do princípio de Tyošpaye, abarca a ideia de todos os seres do universo serem interdependentes (De Mallie, 1980). zitkala-Ša dá voz não apenas ao indígena, mas também a toda a família extensa à qual o indígena pertence, incluindo os animais, na extensão de sua obra. nos contos apresentados, observa-se também a insistência na apresentação de cerimônias indígenas de importância, como os ritos de passagem femininos, da infância para a juventude e para a LUGARES DE IDENTIDADE 29 velhice, assim como a relação entre as mulheres e entre mulheres e homens. a cerimônia de adeus aos mortos, juntamente com expli- cações religiosas a respeito do assunto, é apresentada em “The trial path”, enquanto a cerimônia do rito de passagem da mulher para a vida adulta (Ishna Ta Awi Cha Lowan) é vivido por Tusee em “The warrior’s daughter”, assim como a cerimônia de doação. a música e as artes, partes essenciais da cultura indígena, é apresentada também nesse último conto. “Caminho”, “Trilha” ou “estrada” (path) – são certas tarefas de bravura atribuídas aos guerreiros, viagens ou sofrimentos pelos quais eles têm que passar para que possam atingir seu poder, adquirir status ou pagar seus débitos com a sociedade. esse tropo pode ser observado em várias histórias contadas por zitkala-Ša “The trial path”, quando o jovem guerreiro tem que saldar sua dívida com a comunidade e, para conseguir o perdão, tem de superar a penalidade imposta pela família ultrajada perante a tribo; em “The warrior’s daughter”, em que o jovem tem de vencer o inimigo para ser digno do amor de Tusee. os contos, portanto, se juntam para dar um painel do que se esperava e como agiam as mulheres dakotas, não apenas explicando como elas agiam, mas afirmando sua identidade dentro da sociedade pela mostra de sua bravura e de sua capacidade. Conclusão é nesse contexto que buscamos nosso entendimento da mulher indígena na obra de zitkala-Ša. o escrito da mulher, a ginocrítica e os estudos de gênero são ávidos por apresentar embates de poder e valor entre homens e mulheres, batalhas de sexo, jogos de poder e dominação. Porém, o que se observa na obra da autora quando ela trata apenas da sociedade tribal à qual pertence é outra situação: antes de ser um embate entre a mulher indígena e o homem indígena, observa-se a harmonia entre ambos, com a mulher com um papel bem demarcado e buscando cumprir esse papel eficientemente, mesmo 30 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) sendo ele, muitas vezes, considerado subserviente pelos padrões ocidentais: a vovó contadora de histórias para educar, a criança que aprende, aceita e retransmite, a menina que se torna moça e que defende seu amado. é interessante notar que as cerimônias apontadas por zitkala- Ša em sua obra não são abertamente trabalhadas ou explicadas aos euroamericanos de forma didática. Dessa forma, essa faceta de insistência na cultura indígena tem passado despercebida no estudo da obra da autora aos olhos daqueles que a observam apenas do ponto de vista das teorias críticas de origem europeia normalmente utilizadas. é nos interstícios do texto que essas notas culturais vão aparecer. Gostaríamos ainda de enfatizar o papel de zitkala-Ša como contadora de histórias e seu uso da oratória provinda da oralidade indígena. ela também assume seu papel de contadora de histórias, educadora e, por consequência, transmissora da tradição. Por várias vezes em sua obra, ela compara seu trabalho de escrita aos trabalhos manuais de “bordar” palavras. assim, não apenas suas personagens são mulheres dakotas assumindo sua identidade como crianças aprendizes, mães produtoras e defensoras, e avós continu- adoras da tradição, mas a própria zitkala-Ša também assume esses papéis, tendo como diferença maior o público ao qual se destina essa transmissão de conhecimento: enquanto a oralidade atinge apenas a tribo que compartilha da mesma etnia, a escrita atinge outras etnias, descortinando a outros povos uma cultura rica e que foi silenciada durante muitos anos por diversos fatores e aspectos sociais e políticos que vão muito além do escopo deste texto, mas que são discutidos com detalhes na tese de nossa autoria, cujas referências se encontram na bibliografia que segue. os contos apresentados buscaram a afirmação do lugar de iden- tidade da mulher dakota, não em relação ao mundo europeu e à sua sociedade, mas em uma visão pelo prisma de uma cultura diferente, com valores diferentes, e como se apresenta a convivência de homens e mulheres dentro daquele contexto. LUGARES DE IDENTIDADE 31 Referência bibliográficas BaTaille, G. M.; sanDs, K. M. American Indian Women, telling their lives. lincoln, ne: University of nebraska, 1986. De Mallie, r. J. The Siouan Religion. norman, lincoln: University of nebraska Press, 1980. DoMinGUes, s. r. zitkala-Ša: The evolution of a Writer. Ameri- can Indian Quarterly, lincoln, v.5, n.3. p.229-38, aaug. 1977. . The Gertrude Bonnin Story: from Yankton destiny into american History, 1804-1938. east lansing, 2005. v.1. 390p. Thesis (Doctor of Philosophy) – Michigan state University. FelDMan, a. K. T. As muitas plumagens do pássaro vermelho: re- sistência e assimilação na obra de zitkala-sa. são José do rio Preto, 2011. 220p. Tese (Doutorado em letras) – instituto de Biociências, letras e Ciências exatas, Universidade estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. GreGG, J. B.; GreGG, P. s. Dry Bones. Dakota Territory Reflected. sioux Falls, Dakota: The University of south Dakota Press, 1987. GUnn allen, P. 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Antonio Manoel dos Santos Silva1 a arte, por meio de seus vários suportes expressivos, tem, ao longo do tempo, tratado das situações marginais, situações que podem ser a de um indivíduo, a de uma coletividade (classe, gênero, segmento social) e até a de uma instituição (uma religião, uma organização política e, até mesmo, a própria arte). embora se possa verificar esse interesse desde a antiguidade, foi durante o romantismo que se acentuou de modo a definir uma corrente de pensamento e de ação, o titanismo, oposta, às vezes radicalmente, ao tradicionalismo conservador. apesar dessa duplicidade de correntes, o princípio mediador predominante em ambas foi o sentimento, que se sobrepõe aos outros dois: a verdade e a máxima eficácia linguística. lembremos de passagem, para nos situarmos melhor, que os ar- tistas costumam valer-se do intelecto (razão), da sensibilidade (com as diferentes gamas que caracterizam, dentre as quais o sentimento), da imaginação (que às vezes se identifica com a fantasia) e da vontade do jogo, para controlar essas mediações ou moldar-se por elas. ao se valerem desses instrumentos, os artistas nem sempre lhes dão o mesmo ou equilibrado peso construtivo: quase sempre um deles predomina 1 Professor-colaborador no Programa de Pós-Graduação em letras do ibilce/ Unesp. 2 o Sentimento de eStAr à mArgem 34 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) sobre os demais, ainda que jamais qualquer um deles possa estar ausente. Um filósofo italiano sintetiza a relação complexa (dialética) entre os três princípios mediadores e os instrumentos da elaboração artística, dessa maneira convincente: as definições mais conhecidas da arte, recorrentes na história do pensa- mento, podem reduzir-se a três: ora a arte é concebida como um fazer, ora como um conhecer, ora como um exprimir. estas diversas concepções ora se contrapõem e se excluem umas às outras, ora, pelo contrário, aliam-se e se combinam de várias maneiras. [...] Com o romantismo, prevaleceu a terceira, que fez com que a beleza da arte consistisse não na adequação a um modelo ou a um cânone externo de beleza, mas na beleza da expressão, isto é, na íntima coerência das figuras artísticas com o sentimento que as anima e suscita. (Pareyson, 1989, p.29) neste ensaio, vou me deter em cinco “obras de arte” nas quais consigo sentir a íntima coerência a que se refere Pareyson: o “spiri- tual”. Sometimes I feel like a motherless child, um canto anônimo do século xix que os afrodescendentes norte-americanos entoavam, guiados ou não por uma voz solo; o poema de alberto Caeiro – Fernando Pessoa, presumivelmente de 1914, O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia; o poema Sinto às vezes que sou uma criança sem mãe, presumivelmente de 1982, do poeta gaúcho oliveira Ferreira da silveira, o poema Onde eu nasci não passa um rio, provavelmente de 1986, do poeta baiano Jônatas Conceição da silva, e um curta-metragem brasileiro, de 1989, o filme Ilha das Flores (12 min. de duração), de autoria de Jorge Furtado. Portanto, três poemas de autores de países diferentes (sendo um deles imagi- nário), um cântico coletivo e um filme; ou seja, e segundo os termos propostos por souriau (1966), obras fenomenologicamente fundadas nas qualidades sensíveis (qualia) do som articulado, do som puro e da luz. Começo por um poema cantado que, como os cantos primitivos (Bowra, 1984, p.82), sustenta-se num ritmo fonossemânico peculiar a todas as formas poéticas socializadas (andrade, 1972, p.79-120), especialmente na música, pura ou com letra. Trata-se de uma cantiga do século xix, que, criada pelos negros norte-americanos, preserva a LUGARES DE IDENTIDADE 35 melodia original, mesmo que tenha sofrido e continue sofrendo mui- tas variações em sua letra. Talvez a mais visitada pelos cultivadores, cantores ou compositores de spirituals, seja a seguinte: Sometimes I feel like a motherless child Sometimes I feel like a motherless child Sometimes I fell like a motherless child A long ways from home A long ways from home A long ways from home A long ways from home Sometimes I feel like a motherless child Sometimes I feel like a motherless child Sometimes I fell like a motherless child (Way up to the heavenly land Way up to the heavenly land Way up to the heavenly land Way up to the heavenly land) 36 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) Uma partitura impressa, de 1899, é a que se segue: nesse spiritual, ao qual se pode ter acesso pela internet ou por discos, o sentimento de estar à margem – estar sem a mãe e longe de casa – confunde-se com o desamparo, compensado pela esperança de outro mundo ou pela esperança de salvar-se pela oração. em termos poético-musicais, a repetição constante dá a nota profundamente lírica e comovente do texto. Do ponto de vista temático, o texto nos faz evocar trechos bíblicos, especialmente os salmos de sofrimento e, LUGARES DE IDENTIDADE 37 especificamente, os salmos 22 (21), 61 (60), 69 (70) em seus versículos finais, e 137 (136). Como se sabe, os escravos americanos valeram-se muito das lições do livro sagrado referentes ao exílio dos judeus, para exprimirem sua condição de exilados. entretanto, esse spiritual se caracteriza por ambiguidades e pela ironia. ambiguidade porque a “mãe” pode evocar tanto a terra mãe da qual o negro foi exilado, ou melhor, arrancado, quanto a mãe familiar. essa dupla possibilidade repercute em “sometimes”, que indica ser o sentimento de exílio (da terra África) ou de carência (da proteção materna), algo ocasional, como se o negro americano já sentisse que tem outra mãe, a américa, ainda madrasta, mas em todo caso já mãe, sua nova terra. Trata-se de uma ironia à verdade íntima do sentimento de desamparo, e também de uma ironia metafísica. Pois, se a voz termina com a invocação a Deus, como sentir-se desamparado diante do todo poderoso em que crê? o desamparo passa a indicar uma consciência humana estreita diante da infinitude divina que, com sua onipotência, permite a vida escrava. Um poeta brasileiro, o gaúcho oliveira Ferreira da silveira, morto recentemente, fez uma leitura, em outra dimensão, desse spiritual negro-americano, com o poema “sinto às vezes que sou uma criança sem mãe”, com a epígrafe que revela claramente a fonte inspiradora. Transcrevo-o da antologia organizada por oswaldo de Camargo (1986, p.66): sinto às vezes que sou uma criança sem mãe Sometimes I feel like a motherless child/ a long ways from home… (Um spiritual) é, sinto às vezes que sou uma criança sem mãe que vai pelo mundo à procura de quê? de quem? sinto às vezes que sou uma criança sem mãe. Que negro poderá dizer 38 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) Que nunca se sentiu uma criança sem mãe Que pelo mundo vai? Que pelo mundo vai? Que negro poderá dizer que nunca se sentiu uma criança sem mãe que vai pelo mundo à procura de quê? de quem? Que negro poderá dizer que nunca se sentiu uma criança sem mãe mesmo em África-mãe? é, nenhum poderá dizer Que nunca se sentiu uma criança sem mãe Que vai pelo mundo à procura talvez Da suave mão que chame: vem Da doce voz que diga: fim. sinto às vezes que sou uma criança sem mãe... é. Quem conhece o spiritual por tê-lo ouvido, especialmente quando cantado pela voz poderosa de odetta, lê o poema e, sem estar ouvindo a melodia realmente, a ouve mentalmente, já que o poema se desen- volve segundo o princípio da reiteração da frase musical que está na canção. Mas quem não conhece também aquele spiritual sente essa musicalidade e percebe a dimensão dada pelo poeta ao sentimento de estar desamparado, de estar à margem, sem lugar próprio, e com des- conhecimento até do objeto de sua procura, como se estivesse à deriva. aqui notamos também a ironia que se move em duas direções. a primeira se dirige ao possível conformismo dos negros, conformismo que se tinge de autoironia, naquele “é” asseverativo que começa e ter- mina o poema; poema que ganha, assim, o caráter de uma circularidade LUGARES DE IDENTIDADE 39 trágica, portanto de uma situação insuperável. a segunda se volta para todos os negros, sem exceção, independentemente da escravidão, de afastamento da origem, porque, na origem mesma, a carência se ins- taura. oliveira silveira universaliza, portanto, esse sentimento de exílio que se enlaça com aquele poema mais recitado, imitado, parodiado, parafraseado e estudado da poesia brasileira, “a canção do exílio”, de Gonçalves Dias, outro afrodescendente. esse sentimento lateja em muitos poemas que podem ser lidos, por exemplo, nas antologias organizadas por oswaldo Camargo (1986 e 1987), A razão da chama e O negro escrito, dentre os quais se destacam “Por-do-sol de itapoã” (Camargo, 1986, p.122; 1987, p.139- 40), “itararé” (idem, 1986, p.120; 1987, p.207), “implícito” (idem, 1986, p.120-1), de abílio Ferreira; “negro Urbano” (idem, 1986, p.116; 1987, p.206), de José luanga Barbosa; “itapira revista” (idem, 1986, p.108), de Jônatas Conceição da silva; “resoluções” (idem, 1986, p.102-3), “Canção para um negro abandonado” (idem, 1986, p.105-4; 1987, p.183-4), de ele semog; “Bula” (idem, 1986, p.98; 1987, p.179-80), de abelardo rodrigues; “nada” (idem, 1986, p.94), “Desmanzelo” (idem, 1986, p.95), de Mirian alves; “espelho 70” (idem, 1986, p.85), de José Carlos limeira; “Questão de sobrevivên- cia” (idem, 1986, p.82), “Corpo a corpo” (idem, 1986, p.80-1; 1987, p.196), de Paulo Colina; “viu” (idem, 1986, p.74), de Geni Mariano Guimarães; e “a manhã” (idem, 1986, p.56), de oswaldo de Camargo. o sentimento da margem, entretanto, não se limita a uma expec- tação que se identifique apenas com a confissão da marginalidade; frequentemente consiste em não aceitá-la, ou porque é injusta, ou porque força um apagamento do passado, ou porque se impõe como uma coerção monológica, um discurso único, na aparência benévolo, mas, na essência, violentamente autoritário. vejo nessa resistência a fonte das sátiras e das ironias que, desde o século xviii, os afrodescendentes dirigem à sociedade brasileira e aos arcabouços ideológicos que a sustentam. sem referir os mais recentes que merecem estudos à parte, e seguindo antonio Candido (1964) e alfredo Bosi (1970), lembro os seguintes poetas entre neoclássicos e românticos que se valeram do humor, da ironia e da sátira no impor- 40 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) tante período da formação da literatura brasileira, silva alvarenga (O desertor, 1774), Caldas Barbosa (Viola de Lereno, 1798), Januário da Cunha Barbosa (Os garimpeiros, 1837), José da natividade saldanha (Poesias dedicadas aos amigos e amantes do Brasil, 1822), laurindo rabelo (Trovas, 1853), luís Gama (Primeiras trovas burlescas, 1859; Novas trovas burlescas, 1861). se saltarmos para poetas de ascendência negra temporalmente mais próximos, encontraremos esse pendor crítico em textos de abelardo rodrigues (Memória da noite, 1978), de luiz silva “Cuti” (Poemas da carapinha, 1978; Batuque de tocaia, 1982; Flash crioulo sobre o sangue e o sonho, 1987), de Paulo Colina (A noite não pede passagem, 1987), Geni Mariano Guimarães (Da flor, o afeto, da pedra, o protesto, 1981), de José Carlos limeira (Zumbidos, 1972), de Jônatas Conceição (Miragem do engenho, 1984) e ronald Tutuca (Negro três vezes negro, homem ao rubro, 1983). Todos esses poetas reconhecem a margem como situação inaceitável para quem deveria ocupar os espaços centrais. essa resistência se verifica ainda em outro aspecto: constitui a raiz profunda da vontade, quase certo que inconsciente, de se apropriar das fórmulas e formas canônicas oriundas da europa, para subvertê-las, in- vertê-las, dissolvê-las, como se pode comprovar com as “modinhas” de Caldas Barbosa (Viola de Lereno) que contrastam, como formas popu- lares, com as eruditas formas convencionais neoclássicas; como se pode observar na épica revigorada, parodicamente, pela rapsódia de Mário andrade (Macunaíma, 1928), de modo satírico, e pela “epopeia lírico- metafísica” de Jorge de lima (Invenção de Orfeu, 1955). essa apro- priação subversiva se verifica nos poemas em prosa de Gonçalves Dias (Meditação, 1846) e de Cruz e sousa (Missal, 1893, e Evocações, 1898). e se formos à forma convencional mais representativa em nossa literatura, o soneto, vamos nos surpreender com as reinvenções ora puramente técnicas, ora técnico-poéticas de Machado de assis e de Cruz e sousa. leiam-se de Machado de assis (1959) os sonetos homeométricos (ii, iv, vii, viii e ix, de “a derradeira injúria”, Dis- persas (p.334-40), “Mundo interior”, Ocidentais (p.158), “Gonçalves Crespo” (p.169), o estroficamente invertido “no alto” (p.185)) e heterométricos (x, de “a derradeira injúria” (p.334) “a uma senhora LUGARES DE IDENTIDADE 41 que me pediu versos”, Ocidentais (p.180) bem como o antidialético “Círculo vicioso” (Ocidentais, p.155). e de Cruz e souza, (2000) (que foi o mais inventivo criador de intervalos rítmicos anormais), o soneto que inverte o percurso mítico-religioso, “o caminho da glória” (Últimos sonetos p.179)). incluo entre as apropriações criadoramente “indevidas” aquelas que dialogam com textos poéticos consagrados e legitimados pela críti- ca. entre estes últimos, que exprimem, por seu turno, o sentimento de estar a margem, está o seguinte, de Fernando Pessoa [alberto Caeiro] (1965, p.215-16): o Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. o Tejo tem grandes navios e navega nele ainda, para aqueles que vêm em tudo o que lá não está, a memória das naus. o Tejo desce de espanha e o Tejo entra no mar em Portugal. Toda a gente sabe isso. Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia e para onde ele vai e donde ele vem. e por isso, porque pertence a menos gente, é mais livre e maior o rio da minha aldeia. além do Tejo há a américa e a fortuna daqueles que a encontram. ninguém nunca pensou no que há para além Do rio da minha aldeia. o rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele. 42 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) esse poema, assim como outros de Fernando Pessoa, exprime um tema por meio de paradoxos, sendo o primeiro deles o fato de, apresentando-se como um poeta, alberto Caeiro, que elogia a visão inocente, livre, fenomenológica, do mundo, exprimir essa visão por meio de predicações antitéticas. as principais são “o (rio) Tejo é (não é) mais belo” e “o rio da minha aldeia é”. essas predicações se opõem e se cruzam para deixar à vista a ideia de que o homem da aldeia compensa sua exclusão histórica pelo pertencimento local. o sentimento orgu- lhoso de estar à margem de um rio que lhe diz respeito, por qualificar a povoação em que reside, graças à sua beleza, à sua liberdade, à sua experiência participativa, se confronta com o sentimento irônico em relação ao rio que qualifica a nação, a posse alienada, o orgulho nacional, e a memória mistificada, à margem da qual ou do qual se situa. as ideias se repetem e se negam até culminarem na imagem do pertencimento a um território, que define uma identidade. nesse sentido, essa afirmação final evidencia o texto literário maior, evocado pelo lado contrário, Os Lusíadas, onde navega ainda “a memória das naus”, pois, como afirma o pastor poeta alberto Caeiro, em outra parte: Da minha aldeia vejo quanto da terra se ver no Universo... Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura... (ibidem, p.208) Jônatas Conceição da silva, poeta afrodescendente baiano, assim escreve, em diálogo com Fernando Pessoa, ao qual ambiguamente nega e reafirma: Onde eu nasci passa um rego onde eu nasci não passa um rio, passa um rego, refletindo toda miséria margeada. LUGARES DE IDENTIDADE 43 o rio que gostaria que passasse onde nasci não existe. Uma esperança: quando chovia o rego demudava: desciam lata, pano, colher, caco. o que nos restava. (apud Camargo, 1986, p.109) está claro que o pequeno poema repete uma imagem conceitual, a imagem da carência ou da falta (não passar um rio, a miséria, a inexis- tência do rio, o rego em vez do rio, a enxurrada e os dejetos que carrega, a sobra, a vida à margem, enfim). se nos detivermos, porém, na leitura de suas palavras, perceberemos que o tempo da emissão do discurso (o não marcado presente) está dissonante com o tempo referido que indica um lugar, sem nome, do passado. nesse lugar inominado, há um rego, ou seja, há algo que não chega a ser riacho, nem córrego, muito menos um rio; portanto, o lugar carece daquele atributo que permitiria a definição de uma sociedade humana, a polis, uma cidade, uma vila, uma aldeia que fosse. o lugar se caracteriza por uma condição de marginalidade, uma hipótese, cuja existência se nega como plenitude humana: o desejo (ou o sonho) se anula pelo espaço inexistente (“o rio... não existe”). De repente, a voz poética anuncia uma esperança de transformação, a chuva. Mas a chuva não muda o rego em rio, mas, sim, em enxurrada com todos os detritos que carrega. Que carrega, não; que carregava. Desse modo, a esperança que fica é a de que toda essa negatividade existia no passado, estava em curso no passado. Fica a esperança de que o que restava, hoje não resta mais. evidentemente, o texto, em seu presente existencial como texto, deixa a pergunta: o que ficou e permanece no lugar dos detritos? a resposta pode estar na realidade. Pode ser uma resposta otimista, por exemplo, a de que não se tem um rio, mas se tem um rego cana- lizado que recolhe enxurradas e detém os detritos; mas pode ser uma resposta pessimista, que a própria realidade assina quando moramos nas periferias ou as visitamos. o filme, Ilha das Flores (Furtado, 1989) nos esclarece, de modo problemático, sobre essas questões que o poema de Jônatas Conceição 44 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) da silva suscita. Como no poema, termina nos mostrando detritos, de- jetos, os restos que sobram para seres humanos na “miséria margeada”. Ilha das Flores é um curta-metragem que, por vários motivos, merece ser visto como uma obra de arte relevante: por sua composição, pela sua proposta “pedagógica”, por sua crítica. Trata-se, por sua vez, de um filme “estranho”, já que põe a imagem a serviço do discurso verbal, se estabelece na fronteira entre o documentário e a ficção, se anuncia e se desenvolve como expressão da verdade, que mal oculta a expressão de um sentimento, finalizando como simulação de que o texto contraria o que anuncia. o filme abre os créditos tendo como fundo a abertura de O guarani, de Carlos Gomes, com a mesma execução orquestral que costumávamos ouvir no começo do programa radiofônico oficial, A Voz do Brasil. essa mesma abertura da ópera, que funcionava como uma espécie de hino nacional, é profanada no encerramento do curta- metragem, quando se retomam os créditos; a versão orquestral é, por assim dizer, profanada por meio de uma versão em guitarra elétrica, à maneira rascante de um Jimmy Hendrix e de seus seguidores, mais interessados no virtuosismo do que propriamente na arte. não custa acrescentar que essa passagem de uma forma de execução mais coletiva, monumental e nacionalista, para outra individualizada, industrial e internacional, carrega as marcas ideológicas da rejeição – sentimental, por certo, mas não menos veemente – da subordinação acrítica ao mundo do mercado. o filme, entre esse começo e esse fim, desenrola-se em duas li- nhas, que correm paralelas, a da voz over e a da imagem fílmica, ora de modo redundante, ora de modo antitético, dando a ideia de um trilho constituído pela fala e por uma frase-imagem, que podemos sintetizar assim: num sítio, um homem, de ascendência japonesa, que planta e colhe tomates, que os vende com lucro nos supermercados, tomates que são comprados por outros seres humanos, um dos quais (uma mulher) os usa para alimentação de outros seres humanos (sua família), jogando no lixo o tomate que não presta, lixo do qual outro ser humano retira alimentos para alimentar os porcos, porcos que rejeitam tomates estragados junto com outros restos de alimentos, restos que LUGARES DE IDENTIDADE 45 serão colhidos por outros seres humanos, que nada têm mas são livres, mas que, nesse sentido, estão abaixo dos porcos. a liberdade desses seres humanos é algo que todos os seres humanos sabem o que seja, mas não conseguem explicar bem o que seja. esse desenrolar da ação apoia-se nas seguintes ideias que se repe- tem, com variações: ser humano, trabalho, tomate, lucro, bem-estar, porco, ser humano inferior, liberdade, mal-estar. num mundo que faz a apologia do desenvolvimento e do progresso que busca o bem- estar social, esses seres da ilha à margem de um rio estão à margem dos bens que a sociedade possui ou apregoa que busca possuir. essas ideias se ligam segundo a estrutura da parlenda: um agricultor produz tomate, o tomate é vendido para outro ser humano que trabalha, esse outro ser humano que trabalha compra tomates, um desses tomates vai para o lixo, o lixo aproveitável alimenta os porcos, os porcos rejeitam alimentos, alimentos rejeitados são aproveitados por seres humanos marginalizados, os seres humanos marginalizados usufruem da liber- dade, a liberdade se sente como um bem mas não é possível explicá-la. além disso, a cada vez que aparece a imagem ou a frase enunciadora de um ser humano, menos no caso dos marginalizados, se indicam, como se fosse um ostinato harmônico, as características que definem o ser humano como ser inteligente e, por isso superior; “tele-encéfalo altamente desenvolvido e dedo polegar opositor”. se insisto na base estrutural da composição do filme, a parlenda é porque se trata de uma forma popular de expressão poética, e como toda forma popular de expressão, tende a constituir um signo transcul- tural, portanto um registro de validade universal, acima das fronteiras. acima das fronteiras e também atravessando-as está a situação de marginalidade, bem como o sentimento que a reflete. esse sentimento atua como substância que amalgama os cinco diferentes textos aqui comentados. Cada um deles exprime carências específicas; entretanto, a expressão de carências poderia torná-los incomunicáveis entre si. o que os faz participar de um mesmo espaço é a arte, como um fazer produtivo, que se valeu, além da configuração da margem, daquela potencialidade de abertura ao imaginário por meio da qual cada texto em si se enlaça com os demais, pois cada um 46 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) compartilha com o outro a música da repetição executada com os instrumentos da ironia. Talvez esteja aí a coerência íntima a que se referiu o filósofo citado no início deste trabalho. Mas também aí está aquela combinação fascinante entre liberdade e necessidade (superação das amarras e fronteiras por meio da criação artística), apontada pelo mesmo filósofo em outra obra (Pareyson, 1989), como contribuição possível para responder a uma inquietante dúvida. num prefácio escrito em 1987, para o livro O negro escrito, de oswaldo Camargo, Paulo Colina, como se diante de um espelho, pergunta: Qual é a voz literária do negro? essa questão central está crivada por outras, sugeridas por esse poeta: à sociedade brasileira interessa o negro mudo? Que valores o poeta negro tem que negar para que sua voz seja ouvida, como sua voz e não a voz dos outros? a voz do negro pode ser percebida em afrodescendentes consagrados pela crítica? seria necessário resgatar vozes esquecidas? a essas indagações poderia somar-se aquela que as sintetiza: Haveria uma voz poética a soprar nas diferentes vozes dos poetas afrodescendentes? se houver, o que caracterizaria essa voz poética? Tais indagações valem para os marginalizados, os que se situam nas fronteiras. a resposta está na própria essência da arte como expressão do sentimento de estar à margem, que não se reduz à simples confissão expectante e se transforma em resistência ao silêncio conformado e ao esquecimento: sei das fronteiras que a mim traçaram desconheço contudo qualquer porta que a noite não pede licença que a pele é surda e grita (Colina, 1987, p.43) LUGARES DE IDENTIDADE 47 Referências bibliográficas anDraDe, M. Ensaio sobre a música brasileira. são Paulo; Brasília: Martins; inl, 1972. assis, J. M. M. Obra completa, III. rio de Janeiro: José aguilar ltda., 1959. BiBlia De JerUsaleM. nova edição revista e ampliada. 4ª impres- são. são Paulo: Paulus, 2006. Bosi, a. História concisa da literatura brasileira. são Paulo: Cultrix, 1970 BoWra, C. M. Poesía y canto primitivo. Trad. Carlos agustin. Barce- lona: antoni Bosch editor, 1984. CaMarGo, o. 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Já alguns se detêm nos recursos técnicos, o que pode levar a discussões acerca da predominância de interesses estéticos sobre os políticos e vice-versa. Como já afirmamos, muito tem sido proposto, mas é com a afirmação da identidade afroamericana que Wright se torna o mais celebrado dos escritores do proletariado. além de visões pessoais sobre o autor e o contexto social em que se insere, Wright é entendido como parte da tradição americana ao apre- sentar em Filho nativo a trajetória de Bigger Thomas (protagonista), como formadora do indivíduo na sociedade. 1 Livre-docente em Crítica Literária e professora-adjunta-efetiva da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). 3 mArginAlidAde e rebeldiA: o romAnce Filho nativo no contexto dA literAturA norte-AmericAnA 50 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) ºao lutar por uma identidade ambígua – ser negro e ser aceito na sociedade da época –, Bigger impõe máscaras a si mesmo e faz que Filho nativo permaneça como assunto principal da crítica. a falta de uma resposta ao comportamento de Bigger, que mata por não ter saída e também por escolha, mantém a obra aberta a inúmeras inter- pretações. Muitos acusam Wright de levantar questões que ninguém pode responder. Do existencialismo ao comunismo, nacionalismo, políticas afir- mativas, entre outros assuntos, tudo parece ser discutido na obra de Wright. Wright foi o primeiro escritor negro a deixar que imigrantes negros sulistas incultos falassem por si mesmos e o primeiro a usar a linguagem genuína da américa negra. acusado por alguns de não participar da tradição afroamericana por ser leitor de Dostoiévski, Heidegger, nietzsche, entre outros, assim é defendido: a identificação literária de Wright, com uma visão sociológica especifica da vida e com o destino dos negros em particu- lar, não o separa da tradição afroamericana, antes a representa em sua totalidade isenta de extremismos. na década de 1990, a Biblioteca da américa restaura algumas obras de Wright, entre elas Filho nativo, trazendo para o leitor passa- gens censuradas ou alteradas pelos editores nas publicações originais, atestando assim a importância do escritor no escopo da literatura afroamericana. richard Wright não se encontra incluído no cânone literário norte- americano. Pelo menos é isso que vemos no Cânone ocidental de Harold Bloom. Constitui-se frequentemente como parte do cânone apenas no contexto da literatura afroamericana, salvo algumas publicações con- temporâneas sobre o romance nos estados Unidos que já o incluem. a literatura escrita por minorias tem passado por esse mesmo processo: rotuladas em suas especificidades, são aglutinadas dentro de uma característica pessoal e não confrontadas com a cultura em que, de qualquer maneira, são obrigadas a participar. o rótulo de litera- tura afroamericana torna, de certa maneira, a obra lida como tal, mas também lida como literatura de protesto, entendida pejorativamente como mera propaganda política, e deveríamos senti-la como obra de LUGARES DE IDENTIDADE 51 arte literária e seus acréscimos vistos somente como tais. segundo Fuller (1969), a literatura negra, às vezes, disfarça-se em literatura de protesto porque, se lidar honestamente com a vida do negro, se tornará acusatória à sociedade branca, e ninguém que ser acusado, especialmente de crimes contra a alma humana. o romance de Wright espelha a fusão de um racismo pronunciado com uma tradição mais ampla de protesto social. não podemos deixar de lembrar que os tons de protesto sempre foram particularidades da grande literatura, desde o Livro de Jó. Marginalidade e rebeldia Passando pela tradição da marginalidade, onde o “herói” procura constantemente a terceira via do conhecimento, rompendo com os limites e quebrando os códigos vigentes e pela tradição da rebeldia, de alguma maneira ligadas, Filho nativo apresenta esses traços da literatura universal, especialmente por meio de seu protagonista, Bigger Thomas, protótipo da tradição do indivíduo marginal e do herói rebelde. esse personagem, construído com a tensão entre o herói e o homem comum, exprime-se por meio de alienação e divisão interior. segundo Maurice Friedman (1973), essa é uma tradição forte na literatura e passa por Jó, Fausto de Goethe, a tragédia grega e muitos heróis de Dostoiévski, nietzsche, Melville, Kafka, Camus, entre outros. a rebeldia conduz a dois caminhos: um ao encontro de si mesmo, da definição do mundo e da totalidade: esse é o caminho de Jó, de aliocha e Boris Max. o outro, mais comum na estética da rebeldia, condiz de certa forma com a marginalidade. Trata-se da estética do dionisíaco, divorciada da ética, do espiritual e do social, encontrada em Bigger, ivan, raskolnicov e em personagens de Purcha, John Milton, Coleridge etc. apesar das duas vertentes conduzirem a caminhos opostos, elas passam por vias idênticas de questionamentos. o personagem rebelde apresenta-se, na ocasião dos questionamentos, como individuo mar- 52 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) ginal, fora do contexto aceito pela sociedade. a rebeldia, então, não consiste em criar padrões do nada, mas em inverter ou questionar os valores da sociedade. Wright, em Filho nativo, seguiu os passos da rebeldia e da margi- nalidade. o tom de rebeldia parece ser proveniente, especialmente, de suas leituras de Henry l. Mencken, crítico de Baltimore que escreve nos estados Unidos desbancando grandes nomes e apontando outros. Conhecido por sua postura agressiva, Mencken exibe maestria na construção de seu discurso pelo vigor do estilo. seu livro mais lido por Wright foi A Book of Prefaces (1917), incluído em Prejudices (1919-1927). a busca de Wright foi por novas formas na literatura, rejeitando as anteriores. a literatura no período da Grande Depressão2 vestiu- se, algumas vezes, da fórmula de literatura crítica e da literatura de protesto. no entanto, o questionamento desses escritores melhor se ajusta ao questionamento ético da tradição, do dogma, da moral e da justiça social. o sentimento de frustração expresso também foi uma forma característica da escrita da américa nos anos 1920, 1930 e início dos anos 1940. a Grande Depressão exibe a instabilidade das fortunas e a incapa- cidade de segurança, em qualquer nível social. esse fantasma ronda especialmente as minorias. a insegurança gera violência na luta pelo trabalho oferecido, já que esse se torna escasso. Mas essa violência não diz respeito apenas à america do norte. é um sentimento que paira no ar por meio de Mussolini, Hitler, Franco e Tojo. a população mundial está em crise e tenta desesperadamente definir o poder e criar, assim, valores preestabelecidos por esses mesmos poderosos, que tragam segurança e estabilidade, como a maneira mais fácil de livrar-se da responsabilidade das decisões. a figura do líder, bom ou mau, avulta- se como fundamental e desestrutura a sociedade. 2 início da década de 1930, após a queda da bolsa de valores de nova York (1929). LUGARES DE IDENTIDADE 53 Richard Wright e escritores canônicos da literatura norte-americana o meio urbano atingiu os negros após a Grande Migração do sul agrário para o norte industrializado. Wright espelhou-se em obras como: Maggie, A Girl of the Streets de Crane (1891), Sister Carrie de Dreiser (1900) e The Jungle de lewis (1906). no entanto, a lembrança do sul agrário contamina seu romance, como se a grande cidade não passasse de uma grande plantação escravagista, onde os indivíduos di- luem-se na necessidade de sobrevivência por meio do trabalho intenso. Desse modo, richard Wright remete a sinclair lewis e F. scott Fitzgerald, que passaram da sátira à consideração dos problemas como o perigo do totalitarismo ou o efeito corrosivo da confusão de padrões morais. o ferrenho teor crítico de lewis em Babbit, como paródia ou caricatura da classe media, chega a ultrapassar o estilo de Mencken. o que, de certo modo, influencia Wright é o estilo rebelde e crítico, não se importando com qual dos universos lida: se com o agrário ou com o industrial. Tendo esse período entre a guerras refletido inúmeras mudanças, o tom de rebeldia e violência torna-se comum. Jovens rebeldes como anderson, Dos Passos, Hemingway e Faulkner pululam na imaginação do escritor. a quebra do estilo familiar sobre os assuntos tradicionais e os novos estilos e ideias transparecem em Filho nativo. a depressão dos personagens de Dos Passos e steinbeck não está longe da depressão vivida por Bessie, sra. Thomas, sr. e sra. Dalton, além da quase totalidade dos demais personagens do romance. a mar- ginalidade, a animalização, a inocência dos personagens de steinbeck não se distanciam muito de Bigger. Caminhando por essa tendência do romance de violência, depara- mos com Penn Warren e suas obras de ação violenta, crimes, reprova- ções, lutas, direcionados ao personagem. em razão do sofrimento, esse herói atinge uma importância trágica e vemos seu progresso iluminado pelo discernimento e por momentos de conhecimento, tal qual Bigger. essa procura por definição em personagens torturadas, frustradas e confusas faz-se visível também em Thomas Wolfe. 54 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) o universo da trágica condição humana também é tratado por Faulkner (Light in August) e Gertrude stein. a admiração de Wright pelo trabalho de stein é evidente. Tentou empregar em Filho nativo o estilo inconfundível da escritora, coordenando: a composição dessa com o fluxo de consciência; o uso do presente contínuo; a apresentação ambígua ou incoerente; e a descrição de eventos exteriores para repre- sentar a vida interior etc. Wright afirmou que a leitura de “Melanctha”, um conto incluído em Three lives, foi um dos acontecimentos mais importantes de sua carreira. Como resultado de leituras e incorporação de algumas técnicas dos escritores citados, não temos bricolagem de autores. encontramos uma obra singular, totalmente construída pela habilidade do escritor em expor fatos comuns, já tratados por tantos outros, de maneira extraordinária. Filho nativo e a literatura afroamericana sucesso instantâneo, best seller e também selecionado pelo Book- of-the-Month-Club (Clube do livro), o texto de Wright foi adaptado para o teatro (orson Welles) e para o cinema (richard Wright). a versão cinematográfica não foi tão bem aceita, dada a falta de recursos necessários. o primeiro esboço da obra consistia em 576 páginas e foi acabado em 24 de outubro de 1938. a revisão durou mais de um ano e foram feitas muitas mudanças, algumas das quais para evitar que o livro sofresse algum corte por parte da censura. os efeitos do romance sobre o país foram profundos. Com a venda intensa, 215 mil exemplares na primeira semana, Filho nativo atingiu o segundo lugar nas pesquisas nacionais, chegando ao topo durante algumas semanas em nova York, Chicago, Filadélfia, são Francisco e saint louis. isso porque algumas livrarias no sul recusaram-se a vender o romance. o romance foi indicado várias vezes ao Prêmio Pulitzer e ao Prêmio nobel. os americanos ainda não estavam preparados para deparar com LUGARES DE IDENTIDADE 55 um escritor negro vencedor. Dado esse que só se tornou possível 53 anos depois, em 1993, com o nobel para Toni Morrison. Filho nativo e Bigger Thomas (protagonista) tornaram-se símbo- los da dimensão do racismo americano, dos guetos de Chicago e das condições de vida do negro nas grandes cidades norte-americanas. os romances escritos por negros eram considerados como literatura à parte. apesar das diferenças das experiências vividas na américa, como resultado da triste herança escravagista, os escritores negros, sendo norte-americanos, integram-se às tradições literárias da américa e não podem ser dela excluídos. Dentre os escritores afroamericanos houve um despertar para a mudança por meio da poesia. Poesia rebelde (Claude McKay e Jeam Toomer), pois testa estereótipos racistas e amplia a consciência da raça. Toomer, em “Blue Meridien”, preconiza a reconstrução do homem. Tais aspectos (rebeldia, orgulho da raça e reconstrução do homem) chamam a atenção de Wright, penetram tão profundamente na alma negra que descobrem aspirações. Wright também se apropria de tradição retórica da agitação an- tirracista iniciada por Frederick Douglass e propagada por Garisson na luta abolicionista. Keneth Kinnamon (1990) diz que, na época da publicação de Filho nativo, Wright já era um conferencista negro. em fevereiro de 1939 ele proferiu a conferencia “negro culture in new York” no centro comunitário do Harlem; no YMCa do Brooklin proferiu, em maio do mesmo ano, “The cultural contributions of the negro in america” e, em setembro, apareceu juntamente com langston Hughes e James W. Ford no Festival de Cultura negra em Chicago. e, assim, suas participações como conferencistas não cessaram. Falou sobre os problemas do escritor negro, sobre como nasceu o personagem Bigger Thomas etc. o misto de consciência de raça provindo de sua luta pessoal a favor dos negros e dos escritores da renascença do Harlem3 expandiu-se em 3 Movimento pós-Primeira Guerra Mundial, no qual escritores africanos pro- curavam, por meio da literatura, manter vivas as raízes africanas em territórios americanos, no bairro do Harlem, em nova York. 56 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) consciência de classe, característica de uma corrente intelectual mais ampla. os escritores negros dos anos 1930, de certa maneira, fizeram um balanço de papel do negro na américa e todos os temas da cultura e tradição do negro americano tornaram-se visíveis. eles discutiram temas como a escravidão, o medo do branco, a cultura do sul rural, a Grande Migração, os guetos negros das grandes cidades do norte etc. o romance negro torna-se ligado a essa tendência maior na arte moderna. a escrita tensa, impregnada de desilusão, reflete os anos de miséria e dor a que os negros foram forcados a submeter-se. Wright não é somente um grande escritor da literatura norte- americana, mas um observador inteligente da vida cultural, política e social da américa e de vários outros lugares por onde passou (espanha, África, França etc.). a publicação de Filho nativo consolidou-o como escritor negro. as bandeiras que levantou durante sua vida em busca do reconhecimento do homem negro, ainda flamulam com o vento que soprou na américa em 1940. em reconhecimento, recebeu uma medalha da national association for the advancement of Colored People. Como escritor Wright estimulou a imaginação de muitos outros escritores do pós-guerra. Quase todo escritor negro apresentava a in- fluência de Wright. nenhum discípulo, entretanto, superou o mestre, pois não foram além do protesto. os descendentes diretos de richard Wright formaram a chamada “Wright’s school”, da qual fizeram parte Chester Himes, Willard savoy, William Gardner smith, alden Bland, Carl offord, ann Petry, Curtis lucas, Philip B. Kaye, lord Brown. William Motley e sua Knock on any door, que trata da comunidade italiana em Chicago. Wright ajudou escritores como James Baldwin, que não reconheceu a herança de Wright e o incluiu na literatura de protesto panfletária em seu artigo “everybody’s protest novel”, situado no livro Notes of a native son. ralph ellison também negou o predomínio de Wright. apesar do tema da invisibilidade já existir fortemente em The man who lived underground de Wright, ellison (1966) afirma em Shadow and act que Invisible man é uma ideia sua, totalmente original, oriunda da novela LUGARES DE IDENTIDADE 57 de Dostoiévski The underground man. Morris Dickenstein (1971) diz que Wright foi atacado como exemplo literário por Baldwin e ellison, justamente aqueles que ele encorajou no início de suas carreiras. Dentro da literatura afroamericana Filho nativo tornou-se um re- trato do tratamento dos negros da época e Bigger Thomas, conhecido em todo o país. é o personagem de ficção que até hoje serve como rótulo para comportamentos rebeldes como os seus. Figura antagônica ao Uncle Tom, que mancha a imagem do negro na américa, o Tom passou a ser Thomas, porém maior (Bigger). a imagem que mais incomoda Wright é a submissão do negro. Wright constrói Bigger como herói rebelde, um negro nacionalista, embora a maneira com que Bigger lida com os negros o desabone. Deve-se ver, entretanto, que se trata de uma rebelião, não contra a raça, mas sim contra as figuras estereotipadas dos Uncle Tom, Blues Man e sambos. Desde a sociedade escravagista até a atual a figura do Uncle Tom vem fortemente marcada em relação aos negros. Para proteger a vida dos filhos, os negros os ensinavam a agir segundo a estrutura do po- derio branco. Temendo a violência, reforçavam a ideia de submissão e resignação. inconscientemente, o instinto de proteção fala mais alto e os negros concordam com a disciplina do homem branco. eles contêm seus instintos naturais, sua fala, sua cultura, seus sonhos etc., a fim de manter uma estrutura familiar e pessoal, mesmo que forjada. Como tipo específico à figura do sambo, o Uncle Tom é um produto do sistema amplamente divulgado na sociedade americana. robert a. Bone (1969) considera a figura do sambo como o ar- quétipo de autoanulação. o negro faz o papel de palhaço, comandado pelos brancos. o sambo, segundo a Enciclopédia da cultura sulista, é um personagem estereotipado, criado pelos brancos com o intuito de difamar os negros. o estereótipo atacou os negros, transformando-os em objetivos de riso. o nome sambo é de origem hispânica, deriva da palavra zambo, do século xvi, que significa uma pessoa de pernas tortas e de aparência simiesca. no século xix, sambo passou a de- signar pessoas de ancestrais mistos e tinha conotações depreciativas. a figura do sambo assemelha-se muito ao bobo da corte, que faz rir 58 GISéLE M. FERNANDES, NORMA WIMMER E ROxANA G. H. ALvAREz (ORGS.) sob pressão. Qualquer piada que não agrade aos seus ouvintes causa dura punição. Por isso, o sambo segue os padrões da comunidade branca em que vive, manchando cada vez mais a imagem do negro e provocando o riso dos brancos. o Blue Man representa o bêbado incrédulo e pessimista, insatis- feito com sua situação, mas que nada faz para modificá-la. Trata-se de um desajustado que não se cansa de reclamar. as reclamações dão-se sempre da mesma maneira e no mesmo tom, o que muito o aproxima do espírito do blues. o medo e a dor, alguns dos traços característicos dos primeiros blues, somados aos elementos tradicionais, como a desilusão amorosa, a falta de felicidade, o trabalho pesado, o apelo de Deus, a luta pelo justiça, o reconhecimento do destino etc. estão impregnados na personagem Bessie, namorada de Bigger Thomas. segundo edward a. Watson (1971), Bessie representa o estereótipo do Blue Man em sua totalidade: seus discursos são verdadeiras canções de blues, o que leva Bigger a abominar as atitudes de Bessie. ele apela contra os estereótipos incutidos nos negros, opondo-se ao reforço deles. Com a construção desse herói negro que, além de questionar os estereótipos, luta por sua exterminação, Wright denuncia a situação do homem negro na sociedade: um individuo inteligente, capaz de realizações, o que se torna sua maior contribuição para a literatura afroamericana. A questão da negritude Constance rourke (1942) mostra haver no início dos anos 1930 um homem branco, Jim Crow rice, que tentou fazer um retrato bem preciso do negro. suas danças e canções seguiam a dos negros das plantações do sul. Quebrando as tradições dos negros, Jim Crow intro- duziu elementos estranhos, e os negros, tentando imitá-los, tornaram- se ridículos. isso sugere a figura do sambo, mas a sátira aí contida vinculava-se tanto ao negro quanto ao branco, o que não melhorava em nada a imagem, mais tarde associada a outros elementos negati