162 A R T I G O Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 “SE NÃO NOS UNIRMOS, A TELEVISÃO ESTARÁ ESTATIZADA”: EMPRESÁRIOS DAS COMUNICAÇÕES E DITADURA MILITAR NO BRASIL “If we don’t get together, the television will be nationalized”: businessmen in the communication branch and the military dictatorship in Brazil “Si no nos juntamos, la televisión se nacionalizará”: los empresarios del área de la comunicación y la dictadura militar en Brasil Eduardo Amando de Barros FilhoI* http://doi.org/10.1590/S2178-149420230109 IUniversidade do Oeste Paulista – Jaú (SP), Brasil. * Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) (eduardofilho@unoeste.br) https://orcid.org/0000-0002-0832-9850 Artigo recebido em 01 de setembro de 2022 e aprovado para publicação em 01 de dezembro de 2022. https://orcid.org/0000-0002-0832-9850 163 se não nos unirmos, a televisão estará estatizada”: empresários das comunicações e ditadura militar no brasil Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 Resumo A possibilidade de estatização da televisão brasileira ganhou destaque durante a ditadura militar, notadamente no final da década de 1960 e início da seguinte. Este artigo tem como intento trazer à lume a reação dos empresários televisivos diante das pressões para que a televisão se adequasse aos objetivos do regime militar. Valemo-nos de material dos periódicos de grande circulação no período, confrontados com a historiografia sobre o tema. Este estudo visa contribuir para o entendimento das intenções do regime no setor televisivo e as relações dos empresários das comunicações com a ditadura militar. Palavras-Chave: Ditadura militar, Televisão brasileira, Estatização, Empresários televisivos. Abstract The possibility of nationalization of the Brazilian television was highlighted during the period of dictatorship, particularly, between the end of 1960’ies and the beginning of 1970’ies. This article intends to bring to light the behavior of the television’s businessmen when facing the requirements for compliance done by the military dictatorship. Widely read newspapers of the period were confronted with the historiography about the theme. This study aims to contribute to the comprehension of the dictatorship’s intending to the television sector, as well as the relationship between the businessmen of the television branch and the military dictatorship. Keywords: Military dictatorship, Brazilian television, Nationalization, Television businessmen. Resumen La posibilidad de nacionalizar la televisión brasileña ganó protagonismo durante la dictadura brasileña, particularmente entre finales de los años 1960 y principios de los 1970. Este artículo pretende sacar a la luz el comportamiento de los empresarios de la televisión frente a los requerimientos de cumplimiento que imponía la dictadura militar. Se utilizó diarios de circulación masiva de la época confrontados con los estudios históricos sobre el tema. Este estudio pretende identificar la intención de la dictadura en el sector televisivo, así como la relación entre los empresarios del ramo televisivo y la dictadura militar. Palabras Clave: Dictadura militar, Televisión brasileña, Nacionalización, Emprendedores de televisión. 164 Eduardo Amando de Barros Filho Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 ESTÁ NO AR, A ESTATIZAÇÃO Quando a ditadura militar se estabeleceu no país, a televisão brasileira se desenvolvia e deixava sua primeira década de improvisações, racionalizando suas práticas. O desenvolvimento das telecomunicações atendia o interesse de integração nacional da ditadura. A televisão poderia ser utilizada como um meio abrangente e eficaz a serviço da propaganda do regime. A ditadura militar consolidou a expansão da TV no Brasil, investindo estrategicamente em um meio de comunicação que poderia possibilitar, literalmente, uma boa imagem para o regime. Com o aumento da abrangência televisiva em terras brasileiras, sua programação pas- sou a ser mais questionada e a receber críticas de alguns setores da sociedade. Entre as pressões sofridas para adequação de seus conteúdos estava a possibilidade de estatização das emissoras de televisão. A estatização da televisão brasileira ganhou destaque no final da década de 1960 e início da seguinte. Nesse período foram proferidas diversas declarações de membros do governo, deputados e empresários das comunicações sobre essa possibilidade. Os jornais e revistas de grande circulação no período, ainda que com interesses diversos no setor televisivo, não estiveram alheios a esse debate, se posicionaram e deram ampla cobertura ao tema. Ainda que a estatização não tenha se concretizado, seu estudo contribui para o enten- dimento dos interesses do regime militar neste setor e as relações entre os empresários tele- visivos e a ditadura, temas caros para a compreensão da televisão que temos hoje no Brasil. Para este estudo, valemo-nos de declarações, editoriais, matérias e análises publicadas nos periódicos de grande circulação no período, como a revista Veja e os jornais O Estado de S. Paulo, Diário de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. A escolha desses periódicos se justifica não apenas pela tiragem e representação para o momento abordado, mas pelas relações e intenções com o meio televisivo, sejam elas diretas ou indiretas1. As informações coletadas nessas fontes foram confrontadas com os estudos históricos ocupados com a televisão e a ditadura militar no Brasil. A perspectiva teórico-metodológica utilizada se fundamenta, principalmente, nas orien- tações oferecidas pelo historiador Jean-Noël Jeanneney para a realização de uma história política da televisão, com relação à autonomia da televisão do ponto de vista da influência do poder político. Segundo Jeanneney (1996: 229), devemos levar em consideração o peso do governo na sociedade e a capacidade de ação do Estado sobre a informação televisiva. Os governos podem apresentar, em um episódio ou outro e até mesmo em uma série deles, 165 se não nos unirmos, a televisão estará estatizada”: empresários das comunicações e ditadura militar no brasil Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 a concessão ou a cessão de benefícios de acordo com suas pretensões. Com isso, podem limi- tar a independência da televisão e utilizar de suas prerrogativas para o jogo de força relacio- nado à outorga de canais e à renovação de concessões televisivas (Jeanneney, 1996: 228-31). “É PRECISO DETER A ONDA ESTATIZANTE QUE AVANÇA SOBRE O PAÍS” Desde o início da ditadura militar no Brasil, as medidas tomadas visando o desenvolvi- mento estratégico do setor televisivo estiveram sobre o olhar vigilante dos empresários das comunicações, que, em sua maioria, foram apoiadores do golpe e se posicionavam como liberais e contrários a qualquer onda estatizante que pudesse avançar pelo país. Em 1965, dentro da política de desenvolvimento das telecomunicações no Brasil, foi criada a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel), que tinha – entre outras – a finalidade de controlar e distribuir as transmissões televisivas. Com ela, o governo fede- ral deu início, também, às transmissões via satélite, efetivando, dessa maneira, as condições necessárias para a criação de verdadeiras redes de tevê no país, uma vez que a programação das emissoras poderia ser exibida diretamente em várias partes do território nacional. Com a Embratel, implantou-se o Plano Nacional de Telecomunicações, que, em pouco mais de qua- tro anos, instalou 18 mil quilômetros de enlaces de micro-ondas (Bolanõ, 2007: 13-4; Mattos, 2008: 88-93; Simões, 2004: 27). No ano de criação da Embratel, o almirante Claudio Beltrão pediu demissão da pre- sidência do Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel)2. O motivo do pedido teria sido sua discordância com a orientação imposta às telecomunicações pelo governo militar. O Almirante considerou a criação da Embratel como um passo para a estatização dos serviços de telecomunicações brasileiros (Palavras, 1965: 3). O jornal O Estado de S.  Paulo, em editorial, classificou Claudio Beltrão como um “patriota autêntico” e seu pedido de demissão como uma “corajosa atitude”. Segundo o peri- ódico, o Almirante teria dado “uma lição” em seu discurso de transmissão do cargo, fazendo uma “profissão de fé democrática”, manifestando-se incondicionalmente a favor da livre ini- ciativa, contra a intervenção do Estado e sabendo dizer não “a uma atitude paradoxal do Sr. Presidente da República” (Palavras, 1965: 3). Meses após a publicação desse editorial, o jornal O Estado de S. Paulo voltou ao tema e estampou em sua primeira página: “Estatização de Comunicações”. Segundo o periódico paulista, fontes ligadas à Presidência da República teriam revelado a tendência do governo federal, por meio do Contel e Embratel, de estatizar todos os meios de comunicação do Brasil, 166 Eduardo Amando de Barros Filho Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 incluindo os setores de rádio e televisão. O presidente Castello Branco estaria sendo influen- ciado pelo general Ernesto Geisel, chefe do Gabinete Militar da Presidência da República, que, de longa data, seria partidário do estatismo em diversas áreas, como transportes, petróleo, correios e telégrafos, eletricidade, rádio e televisão (Estatização, 1965: 1). No mesmo período, João Calmon3, presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), deputado federal e pertencente ao condomínio comunicacional dos Diários e Emissoras Associados, concedeu uma entrevista ao jornal O Globo, cujo objetivo principal era fazer um apelo ao presidente Castello Branco: “é preciso deter a onda estatizante que avança sobre o país”. Segundo Calmon, “nada poderia ser mais deplorado pelos entusias- tas da Revolução que a crescente maré estatizante”, que foi combatida na “era goularteana” e que se revigorava na “revolução antigoularteana”. O presidente da ABERT lembrou que, em 1963, empreendeu, “no começo quase sozinho, uma luta de vida e de morte contra o governo do Sr. João Goulart e as pregações subversivas e comunizantes de seu cunhado”, Leonel Brizola. Fez questão de deixar claro que não estava iniciando “um combate ao governo do presidente Castello Branco”. O que o animava era o desejo de se opor “às tendências esta- tizantes”. De acordo com Calmon, naquele momento a situação era muito diferente de 1963. Portanto, suas palavras deveriam ser entendidas como um apelo “a um grupo de homens integrados aos autênticos ideais da Revolução redentora de 31 de março”, para que se mobi- lizassem e alertassem “o chefe do governo em relação aos rumos errados que nos poderão levar, dentro de pouco tempo, a uma situação insustentável” (João, 1965: 16). O almirante Euclides Quandt de Oliveira, sucessor de Claudio Beltrão na presidência do Contel, em entrevista dada à emissoras de rádio e televisão, buscou esfriar o debate em torno da hipótese de estatização, afirmando que “os órgãos federais tinham o propósito de assegurar plena liberdade aos meios de comunicação”. Entretanto, deu um recado para os empresários televisivos ao afirmar que “essa liberdade deveria ser exercida com o maior senso de responsabilidade por parte das emissoras comerciais”. Segundo Oliveira, o governo federal não cogitava em absoluto estatizar as telecomunicações, mas sim assegurar o seu perfeito funcionamento (Contel, 1966: 10). Em 1968, o presidente da ABERT, João Calmon, alertava que sem a união dos con- cessionários de televisão na defesa do “sistema da livre iniciativa e da democracia, den- tro de pouco tempo o rádio e a televisão estarão estatizados e o regime democrático terá desaparecido em nosso país”. Essa declaração foi feita em seu discurso no encerramento do V Congresso Brasileiro de Radiodifusão, realizado em Recife, onde salientou, principalmente, 167 se não nos unirmos, a televisão estará estatizada”: empresários das comunicações e ditadura militar no brasil Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 a necessidade de união da “família da radiodifusão” para combater o “avanço do capital estrangeiro e as investidas da voracidade estatizante” (TV unida, 1968: 3). Com relação ao investimento estrangeiro nas comunicações, o presidente da ABERT se referia ao acordo firmado entre “um grupo privado brasileiro e um grupo privado norte- -americano”. Um dia após a instalação do V Congresso Brasileiro de Radiodifusão, o governo ditatorial havia decidido aprovar os acordos assinados entre o grupo Time-Life e o grupo Globo. A ABERT promoveu intensa campanha contra esse acordo, que feria a legislação e afetava a con- corrência, pressionando pela instauração da CPI Globo/Time-Life. Apesar das evidências apon- tadas por essa CPI, não houve consequências legais para a TV Globo. As emissoras associadas à ABERT se comprometeram ainda em “divulgar, com ênfase, toda a matéria referente à campanha contra a infiltração de capital estrangeiro na radiodifusão brasileira” (TV unida, 1968: 3). Outra preocupação apontada por Calmon naquele Congresso foi sobre a televisão educativa. Naquele momento, o regime militar estimulava a criação de emissoras educativas e impunha a reserva de espaço nas grades de programação das emissoras comerciais de tele- visão para transmissão de programas educativos. Essas medidas visavam dirimir as críticas de alguns setores sociais ao que era mostrado pela TV comercial e utilizar este meio como mais uma ferramenta para sanar os déficits educacionais do país, notadamente da população fora da idade escolar4. João Calmon afirmou que os associados da ABERT eram “entusiastas da televisão educativa” e que cederiam uma hora diária de suas programações, mas eram contra a concorrência “ruinosa e desleal” das emissoras educativas. Por fim, reconhecia a neces- sidade das emissoras televisivas fazerem uma autocrítica sobre a programação exibida, visando que a televisão não se transformasse em um “fator de deseducação”, evitando, assim, sua estatização (TV unida, 1968: 3). As declarações de Calmon no encerramento do V Congresso Brasileiro de Radiodifusão evidenciavam que os empresários televisivos buscavam dar respostas às demandas do governo ditatorial em relação à programação televisiva enquanto este meio avançava pelo país e seu papel educativo ganhava força. Transparecia também que, apesar do alinhamento com o regime, os empresários televisivos estavam descontentes com os privilégios concedidos à nas- cente TV Globo e buscavam combater a injeção de capital estrangeiro no setor, entendida como concorrência desleal. Foi possível notar que os empresários da comunicação estavam apreen- sivos com a criação de emissoras de televisão educativas, públicas ou estatais, notadamente de possíveis perdas de arrecadação. Por fim, ficou evidente o temor destes empresários refe- rente à possibilidade de estatização da televisão brasileira. Conforme o presidente da ABERT, 168 Eduardo Amando de Barros Filho Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 ou as programações seguiam as recomendações federais ou as emissoras televisivas correriam um alto risco de serem estatizadas. “ABUSOS NA TV SÃO PIORES QUE A SUBVERSÃO COMUNISTA” Odeputado Clovis Stenzel (ARENA/RS), professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília (UnB) e que posteriormente atuou na TV Educativa do Rio Grande do Sul, comentou sobre as preocupações do governo em relação à programação televisiva na Tribuna da Câmara dos Deputados. Solidarizando-se com o ministro das Comunicações, Hygino Caetano Corsetti, declarou que a “subversão comunista” era menos perigosa para a nação do que “os excessos na televisão” (Stenzel, 1972: 9). A partir da década de 1970, a TV brasileira se posicionaria como o principal meio de obtenção de informações nacionais e internacionais e, quando não, a única fonte de entrete- nimento e cultura para a maioria dos grupos sociais e culturalmente desfavorecidos. Posição alcançada em grande medida pelo meio, de um lado, devido aos interesses do regime militar, geralmente pautados pela sinistra Doutrina de Segurança Nacional5, e, de outro, em razão das necessidades de comunicação exigidas pelo desenvolvimento do capitalismo no Brasil e da ampliação do mercado interno, o qual cada vez mais passava a investir a maior parte de suas verbas publicitárias na TV (Busetto, 2007: 204). A consequência imediata da opção por um modelo de televisão comercial, voltado para a conquista de telespectadores visando verbas publicitárias, seria um equilíbrio menor nas programações televisivas entre informação, educação e entretenimento, elementos que Asa Briggs e Peter Burke (2004: 193) denominam como uma tríade quase que sagrada para os meios de comunicação social. Com base no padrão televisivo norte-americano, as emissoras comerciais brasileiras tiveram, predominantemente, uma preocupação expressiva em associar informação ao entre- tenimento e ao lucro e, diferentemente das experiências televisivas europeias, colocaram a questão educativa e cultural em segundo plano. No Brasil, o desenvolvimento da televisão teve como resultado uma programação apoiada nas novelas, programas de auditório, seriados e filmes estadunidenses, tendo em vista prioritariamente os índices de audiência e, por conse- quência, os rendimentos das emissoras com publicidade veiculada nos intervalos comerciais de suas respectivas programações. Como a qualidade da programação televisiva está intrinsecamente ligada ao modelo institucional adotado, no final da década de 1960 começaram a surgir duras críticas, provindas 169 se não nos unirmos, a televisão estará estatizada”: empresários das comunicações e ditadura militar no brasil Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 de alguns setores sociais, ao que era transmitido pelas emissoras comerciais. Segundo Ribeiro e Sacramento (2010: 111-112), a elite intelectualizada do país cada vez mais resistia e criticava os programas de entretenimento. Em 1968, Eli Halfoun, colunista do jornal Última Hora, lide- rou uma “campanha contra o grotesco na TV”, defendendo uma “televisão sadia”, sem atrações que abusassem da “boa fé” dos telespectadores (Ribeiro; Sacramento, 2010: 112). Conforme Kushnir (2004: 143-144), no início da década de 1970 existiam “apelos popu- lares por censura”. Organizações como o Movimento Auxiliar de Recuperação da Juventude Brasileira e o Movimento de Arregimentação Feminina militavam contra, por exemplo, “piadas de mau gosto”, “erotismo” e “violência” nos impressos, cinema e televisão. Durante a ditadura militar não ocorreu propriamente o estabelecimento da censura. Como mostra Fico (2019: 155), o que existiu foi uma adequação, pois livros, jornais, teatro, música e cinema sempre foram atividades visadas pelos governos anteriores, contando com o benefício da legitimação que largas parcelas da sociedade lhes conferiam. A defesa da moral e dos bons costumes sempre foi objetivo dos órgãos de censura das chamadas “diversões públicas”. A Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) era um órgão conhecido e contava com o apoio de setores da sociedade que, por meio de cartas, enviavam pedidos de mais censura. Portanto, esse tipo de censura, durante a ditadura militar, era orgulhosamente assumido pelo regime, que se posicionava como protetor da família frente aos atentados à moral e aos bons costumes (Fico, 2019: 159). Diante desse quadro, a ditadura aumentou o controle sobre os conteúdos televisivos. A televisão não poderia mais ser dominada por programas considerados “grotescos e de baixo nível”, era necessário que a programação televisiva formasse o cidadão segundo a Doutrina de Segurança Nacional, “baseada em valores ligados a um cristianismo conservador, tendo a família, a religião católica, a pátria, o trabalho, a moral e os bons costumes como pilares de conduta”6. Para tanto, as emissoras deveriam “higienizar” toda sua programação, visando representar “o Brasil para os brasileiros” (Ribeiro; Sacramento, 2010: 116). Em geral. apesar da sintonia entre os empresários das comunicações e o regime mili- tar, topicamente eles poderiam diferir. Segundo Ortiz (1988: 129), a ideologia “moralista” da ditadura por vezes se chocava com a ideologia “mercadológica” dos empresários televisivos. Sendo assim, a repressão desagradou, trouxe dificuldades e, ocasionalmente, prejuízos para os donos de emissoras. Os programas “com baixo apuro técnico e com conteúdo e temática vistos como impróprios (seja pela ênfase popular ou pela crítica política)” foram censurados. (Ribeiro; Sacramento, 2010: 116). 170 Eduardo Amando de Barros Filho Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 A preocupação com a programação televisiva foi mais intensa durante o governo Médici (1969-1974). Inúmeras pressões foram exercidas sobre as emissoras de televisão mediante punições como multas e suspensão de alguns programas. O governo passou a expressar veemente desaprovação quanto à falta de “padrão cultural” da televisão brasileira. As recomendações públicas lembravam constantemente que os concessionários televisivos deveriam buscar um novo objetivo para a televisão comercial, “imbuídos do ideal de respon- sabilidade e compromisso para promover o desenvolvimento” (Mattos, 2008: 43). “ESTATIZAÇÃO DA TV SÓ EM CASO EXTREMO” No encerramento do VI Congresso Brasileiro de Radiodifusão, realizado em setembro de 1970, o presidente Médici declarou que cumpriria: “aos empresários livres encontrar um sentido mais alto para a televisão, pois o Governo não pode assistir, omisso e silencioso, à competição pela audiência só através de números, à custa da deseducação do povo”. Segundo o presidente, era necessário “elevar o nível de toda a programação, vedando o acesso da des- façatez glorificada e do mau gosto tornado exemplo e regra, ao tempo que, a pouco e pouco, se faça justiça ao verdadeiro espírito de nosso povo”. Lembrou que aquela não era a primeira vez que falava nesses termos, visando sensibilizar a consciência dos “homens de comunicação”. Declarou ainda confiar que os “homens de imagens e de sons” tivessem ouvidos para entender a intenção de seu apelo e que acreditava na possibilidade da “evolução da televisão” por meio das “mãos operosas da iniciativa privada”. Para Médici, os meios de comunicação deveriam ser utilizados “no serviço maior da educação do povo” (Médici, 1970: 18). A ditadura buscava moldar a programação televisiva de acordo com os seus interesses, pressionando os empresários televisivos e buscando impor um controle ainda maior sobre o setor. Até mesmo a implementação da televisão em cores, imposta pela ditadura militar, em 1972, serviu como uma maneira de controle. Como a produção em cores era mais custosa, acreditava-se que os empresários televisivos não gastariam dinheiro com programas “popula- rescos” ou considerados de “baixo nível”. O advento das cores potencializaria a autocensura e alinharia ainda mais as emissoras sobreviventes ao regime militar (Barros Filho, 2021: 28). Em alguns momentos, foi possível perceber a disposição do regime militar de intervir diretamente no setor de telecomunicações caso sua vontade não se concretizasse. As declara- ções do ministro das Comunicações, Hygino Corsetti, e do ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, dão margens para afirmarmos que a possibilidade de estatização da televisão brasileira ganhou força no início da década de 1970, como ameaça por parte do governo ditatorial às emissoras comerciais e, aparentemente, como a última opção para adequação da programação televisiva 171 se não nos unirmos, a televisão estará estatizada”: empresários das comunicações e ditadura militar no brasil Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 aos anseios do regime. Manchetes do jornal O Estado de S. Paulo elucidavam a pressão do governo ditatorial sobre os concessionários televisivos, como: “Corsetti: estatização da TV só em caso extremo” (Corsetti, 1971a: 9), “Canais podem ser cassados” (Canais, 1971: 52), “Se pre- ciso governo cassa TVs” (Se preciso, 1971: 56), e “Corsetti ameaça estatizar TVs” (Corsetti, 1972a: 1). Segundo o periódico paulista, “tudo se preparava, com habilidade e cautela, para que se chegasse à estatização completa das emissoras a médio ou longo prazo” (O futuro, 1973, 3). O ministro das Comunicações, Hygino Corsetti, declarou que a estatização só teria cabimento “se houvesse fracasso total dos diretores e proprietários das televisões”, gerando a primeira manchete citada acima. Complementou enfatizando que as emissoras televisivas operavam sob o regime de concessões do governo federal, e que essas concessões poderiam ser cassadas se os diretores das emissoras fossem enquadrados nas penalidades da lei que regulava o assunto (Corsetti, 1971a: 9). Cabe aqui lembrar que, um ano antes dessas declarações, a TV Excelsior foi retirada do ar, findando sua história como a primeira rede de televisão brasileira cassada oficialmente. Apesar da aparência do regime estar cumprindo a lei, a TV Excelsior faliu após uma série de arbitrárias e injustas pressões promovidas pela ditadura militar sobre os bens da família Simonsen (Busetto, 2009: 54-56). Portanto, não era a lei que garantia a existência de uma emissora ou serviria de base para sua cassação, mas seu alinhamento com o regime militar. Alguns dias depois, o Estado de S.  Paulo trouxe nova declaração do ministro das Comunicações: Corsetti subiu o tom e afirmou que “no caso em que as televisões malogrem em seus objetivos, o governo poderá cassar a concessão de qualquer emissora ou de todas elas” (Canais, 1971: 52). Poucos meses depois, o ministro da Justiça, alegando defender “os bons costu- mes e a moral nos programas de TV”, declarou estar disposto “a solicitar ao Ministro das Comunicações a cassação de concessões de canais”. Buzaid defendeu que “para lutar contra isso” não aceitaria “medidas paliativas” (Se preciso, 1971: 56). Em ocasião posterior, o ministro das Comunicações foi ainda mais incisivo: Corsetti advertiu que o governo federal não hesitaria em cassar a concessão de qualquer emissora de televisão que estivesse funcionando “mal ou irregularmente”. Declarou que levaria ao presidente Médici uma “exposição de motivos pedindo a cassação da TV Continental e informou que outras emissoras, como a TV Rio, andam mal e, por isso, devem providenciar logo sua melhoria para evitar punição drástica. O Ministro recomendou que, a partir daquele momento, era conveniente que todos pas- sassem a acreditar em cassações, “pois elas existem”. Lembrou que havia um limite de tempo de tolerância em relação “às más condições de funcionamento das emissoras” (Corsetti, 1971b: 5). 172 Eduardo Amando de Barros Filho Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 Diferentemente da TV  Continental, a TV  Rio conseguiu se manter no ar por mais tempo, tendo sua concessão cassada em 1977. No início de 1972, o presidente Médici assi- nou o decreto de cassação do canal da TV Continental. A cassação foi sugerida pelo Contel, alegando que a emissora estava com pedido de falência aprovado na justiça e sem condi- ções de colocar a sua programação no ar. Ao divulgar a sugestão do Contel, o ministro das Comunicações, Corsetti, advertiu que “o governo não hesitaria na cassação, inclusive para que todos passassem a crer na sua possibilidade” (Governo, 1972: 25). A última manchete do jornal O Estado de S. Paulo citada, “Corsetti ameaça estatizar TVs”, foi estampada em sua primeira página. Como consequência da ausência de representantes das redes Globo, Associadas e Independentes no VII Congresso Brasileiro de Radiodifusão, o ministro das Comunicações admitiu a possibilidade de uma intervenção federal nas emisso- ras de televisão. Esclareceu que, em momento algum, o governo do general Médici “cogitou da medida, pensando ao contrário, em fortalecer a iniciativa privada no setor de televisão e rádio”. Entretanto, “a decisão dos dirigentes daquelas redes de não comparecer ao certame poderia levar à liquidação dessa mesma iniciativa privada”. Corssetti afirmou: “não podemos alimentar esses monstros” e, portanto, “é preferível destruí-los”. O receio do ministro das comunicações era que “estas redes se unam mais tarde para controlar e até manipular certas informações, motivando assim, de imediato, a intervenção federal” (Corsetti, 1972a: 1). O tema estatização estava tão presente no período que, segundo Walter Clark, diretor da TV Globo, em um determinado capítulo de uma telenovela, um personagem de Dias Gomes teria dito: “Televisão tem que estatizar mesmo! Televisão que tem Ibrahim Sued no ar não merece moleza do governo”. Aparentemente, Dias Gomes buscava dar maior publicidade ao tema. Já Clark, após esse episódio, teria instituído a autocensura na emissora, contratando um ex-diretor do Departamento de Censura da Guanabara para trabalhar na TV Globo (Kushnir, 2004: 188-189). Somando-se às questões internas, em outros países da América Latina, o debate em torno da estatização da televisão também estava presente. Em 1973, na Argentina, os canais das emissoras comerciais de televisão foram cassados e estatizados, voltando para iniciativa privada apenas em 1989, no governo Menem (Baccin, 2000: 29-31). “SE O OBJETIVO DO GOVERNO FOI AMEDRONTAR OS DIRETORES DE TV, ELE O CONSEGUIU” As ações do regime militar pretendendo uma mudança nos rumos da programação tele- visiva, sobremaneira a ameaça de estatização das emissoras, exigiam uma resposta por parte dos empresários do setor para manter suas concessões. 173 se não nos unirmos, a televisão estará estatizada”: empresários das comunicações e ditadura militar no brasil Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 A fala do presidente Médici no encerramento do VII Congresso Brasileiro de Radiodifusão provocou diferentes reações entre os empresários. A direção executiva da ABERT teria entendido apenas como um “puxão de orelhas que as TVs levaram em público”. O empresário Paulo de Carvalho, da TV Record, aparentemente mais preocupado, declarou que as emissoras que “sempre estiveram ao lado do governo” deveriam absorver a mensagem presidencial como um alerta e deveriam “dar atenção aos apelos do presidente”. Outros empresários do setor consideraram a mensagem presidencial como uma ameaça. Um representante da TV Tupi teria afirmado: “tenho medo”, “há coisas no ar” (As imagens, 1970: 72-78). Como o governo ditatorial foi cada vez mais incisivo em seus propósitos, os empresá- rios buscaram formular ações conjuntas. Segundo a revista Veja, eles promoveram reuniões sigilosas para debater as recomendações e pressões do regime militar. Uma delas ocorreu na casa de Roberto Marinho, da TV Globo. Participaram desse encontro: João Calmon e Edmundo Monteiro, dos Diários e Emissoras Associados, Paulo Machado de Carvalho, da TV Record, e João Saad, da TV Bandeirantes, presidente da ABERT a partir de 1970. A cassação da con- cessão da TV  Excelsior foi vista pelos empresários televisivos como um sintoma de que o governo não estava apenas disposto a apontar erros, mas intervir de acordo com seus inte- resses. Diante disso, o presidente da ABERT declarou que as emissoras estavam interessadas em colaborar com o governo: “estamos fazendo uma autocrítica” (As imagens, 1970: 72-78). Os empresários de rádio e televisão, por meio da ABERT, buscaram intensificar a luta por seus interesses que se confundiam, segundo a Associação, com os anseios do sistema de livre iniciativa e da democracia, sendo contrários a “medidas arbitrárias e/ou estatizantes”. Em 1970, criaram a Associação Brasileira das Empresas de Televisão (Abrate) para lutar pelo interesse específico dos concessionários de televisão diante das possíveis medidas futuras e já impostas pelo governo federal (Ribeiro; Sacramento, 2010: 117-118). Os diretores e proprietários de emissoras de televisão do Rio de Janeiro e de São Paulo: Paulo de Araújo, Edmundo Monteiro e Enéas Machado de Assis, dos Diários e Emissoras Associados; Paulo Machado de Carvalho, da TV Record; e Roberto Marinho e Walter Clark, da TV Globo, foram até o Ministério das Comunicações para anunciar a fundação da Abrate. Na oportunidade, entregaram ao ministro, Hygino Corsetti, um memorial para ser encami- nhado ao presidente Médici e firmaram o compromisso de melhorar, em níveis gradativos, a programação da televisão brasileira (Diretores, 1970: 1). Corroborando com esse aceno dos empresários ao regime, representantes da TV Globo e Tupi assinaram um protocolo de conduta, pactuando excluir de suas programações 174 Eduardo Amando de Barros Filho Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 “espetáculos de mau gosto”, como atrações que servissem de fatos ou pessoas para explorar a “crendice popular ou incitar superstição” (Ribeiro; Sacramento, 2010: 117-118). João Calmon, em 1971, senador pelo Espírito Santo, presidente dos Diários e Emissoras Associados e presidente de honra da ABERT, apesar de concordar que a programação tele- visiva precisava mudar, buscou diminuir a culpa das emissoras e dar alguns recados para o governo ditatorial. Declarou que “a culpa pela crise desencadeada na televisão brasileira com relação ao nível dos seus programas não poderia ser atribuída a uma única pessoa ou grupo de pessoas que trabalha no setor da TV”. Segundo ele, a culpa deveria “ser dividida mais amplamente, recaindo sobre todo o pessoal das emissoras, sobre a censura prévia e também sobre a sociedade em geral”. Calmon afirmava que “se o grau de educação fosse mais elevado, o mais eficiente desse tipo de censura estaria nas pontas dos dedos de cada telespectador” (Calmon, 1971: 32). Na mesma oportunidade, Calmon buscou enfatizar que os empresários televisivos, diante das pressões, reconheciam a necessidade e se esforçavam para adequar seus progra- mas às diretrizes federais. Disse testemunhar o empreendimento que vinha sendo praticado para o “aprimoramento da programação”. De acordo com o presidente de honra da ABERT, “os concessionários de TV tinham uma coisa que até animais irracionais possuem: o instinto de sobrevivência” e sabiam que “se não fossem modificados ou eliminados certos programas, a televisão comercial correria o risco de estatização”. Declarou ainda que os empresários tele- visivos eram dotados de autocrítica e se penitenciariam dos “graves erros” erros cometidos se esforçando no “saneamento de seus programas” (Calmon, 1971: 32). Finalizando, Calmon novamente ligou a estatização ao comunismo, portanto, contrária aos “ideais da revolução antigoularteana”. Ponderou que “se a estatização fosse a solução mágica para todos os problemas, deveríamos optar pela tirania dos países comunistas, onde tudo pertence ou é manipulado pelo estado”. Com relação às críticas vindas de outros setores da socie- dade, Calmon considerou “válidas como contribuições para o esforço em busca da elevação do nível das programações”. Entretanto, estimava que algum crédito fosse concedido à televisão bra- sileira, inclusive por parte da ditadura militar, pois, segundo ele, a televisão comercial contribuiu “para a criação, em nosso país, de um clima de otimismo, de confiança no futuro, com a transmis- são de numerosas mensagens sobre o nosso desenvolvimento” (Calmon, 1971: 32). A opção conjunta dos empresários das três redes de televisão (Globo, Associadas e Independentes) de não participarem do VII Congresso Brasileiro de Radiodifusão realizado em Brasília acabou gerando a fúria do ministro das comunicações, conforme mostrado no tópico anterior, e ganhou a primeira página do O Estado de S. Paulo. As três redes de televisão não 175 se não nos unirmos, a televisão estará estatizada”: empresários das comunicações e ditadura militar no brasil Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 teriam ido ao encontro em protesto contra a apresentação de chapa única para o Conselho Diretor da ABERT, mas, antes da abertura oficial dos trabalhos, fora aprovada uma moção adiando por 120 dias as eleições (Corsetti, 1972a: 1). Segundo Corsetti, no evento foram “discutidos assuntos de interesse dessas estações”. Além da ausência dos empresários daquelas redes de televisão, o ministro se indignou com o boicote que suas emissoras teriam promovido, praticamente não noticiando o Congresso. Corsetti declarou ter acompanhado os noticiários das rádios, televisões e jornais pertencentes às redes Globo, Associadas e Independentes e ter observado que “não fizeram nenhuma refe- rência ao congresso”. O receio do ministro das comunicações era que “estas redes se unam mais tarde para controlar e até manipular certas informações, motivando assim, de imediato, a intervenção federal” (Corsetti, 1972a: 1). As declarações do ministro indicam que a estratégia do regime militar poderia estar fugindo do controle. Pouco tempo antes, às vésperas do lançamento da televisão em cores no Brasil, o ministro das comunicações foi questionado, em entrevista à revista Veja, se estava otimista, pois ainda havia preocupação sobre a capacidade da maioria das emissoras de incor- porar essa tecnologia. Em resposta, Corsetti afirmou que a tendência era a consolidação de três redes nacionais, formadas por emissoras próprias ou independentes, associadas e com liberdade para trocarem de programação conforme as conveniências. Acreditava que essas redes se firmariam ajustando sua administração e vencendo suas dificuldades técnicas, econô- micas e financeiras. Segundo Corsetti, três redes nacionais seriam “suficientes para diversificar a programação e oferecer opções ao público” (Barros Filho, 2021: 23-24). A fala exaltada e ameaçadora do ministro das comunicações após o boicote das três redes de TV indicam que buscaria manter o controle das ações no setor, por bem ou por mal. Apesar dos acenos dos empresários, na prática, as mudanças não ocorriam na velocidade esperada pelo governo militar, que continuava subindo o tom, notadamente após aquele boicote. Após novas ofensivas, a Abrate transmitiu aos ministros da justiça e das comunicações, Buzaid e Corsetti, a preocupação dos empresários televisivos com a possibilidade de estatização ou intervenção do governo nas emissoras. O presidente da Abrate declarou que “se o objetivo do Governo foi amedrontar os diretores de TV, ele o conseguiu”. No último encontro com aqueles ministros e a associação dos empresários da televisão, praticamente não teriam existido diver- gências. Segundo ele, todos os empresários já estavam convencidos e empenhados da necessi- dade de se estabelecer “um padrão cultural para a programação” (Estatização, 1973: 3). O jornal O Estado de S. Paulo, além de dar publicidade ao tema e mesmo não tendo interesse direto no setor televisivo, não deixou de se posicionar de forma contrária à estatização 176 Eduardo Amando de Barros Filho Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 e favorável aos empresários televisivos. No dia 10 de maio de 1973, o jornal da família Mesquita, em editorial, considerava que nada mais restava aos concessionários televisivos “além de uma total submissão à tutela do Ministério das Comunicações”. Segundo o periódico paulista, seria enfadonho enumerar todos os decretos, portarias e atos que “acabaram por deter- minar essa nítida dependência em que se encontram hoje as estações brasileiras de rádio e televisão” – bastaria mencionar o “caráter transitório e a possibilidade de imediata reto- mada das concessões”. De acordo com o jornal, reiteradamente, o ministro das comunicações afirmava que o governo não cogitava estatizar as emissoras de rádio e televisão, entretanto “somos obrigados a discordar de tão esclarecida declaração de intenções, pois os atos oficiais que a contradizem são numerosos e de conteúdo bastante nítido” (O futuro, 1973: 3). Alguns deputados federais e senadores da ARENA também se manifestaram a favor da iniciativa privada, apoiando os empresários e amenizando as pressões feitas pelo governo ditatorial. O vice-presidente da Comissão de Comunicações da Câmara, deputado Amaral de Souza, afirmava não ter sentido o “Governo estatizar empresas tradicionalmente organizadas, de recursos financeiros indiscutíveis e que com ele colaboravam na integração nacional”. O  deputado Élcio Alvares, vice-líder do partido na Câmara dos Deputados, defendeu que “a  exploração de canais de televisão deve ser feita por empresas particulares” (Novas, 1973: 3). O deputado Célio Borja se manifestou contrário à estatização da televisão, argu- mentando que o regime de concessão de canais de TV à iniciativa privada possuía “a dupla vantagem de permitir espontaneidade e a variedade e a de assegurar a pronta intervenção do poder público concedente quanto aos limites da lei sejam violados”. O deputado Murilo Badaró afirmou que era “indispensável assegurar a este setor da iniciativa privada a mais plena liberdade de criação e divulgação, guardados os limites impostos pela Constituição”. O senador por Alagoas, Arnon de Melo, declarou na tribuna que não “atinava com o notici- ário referente à estatização da TV comercial”. Ele nunca teria ouvido do ministro das comu- nicações “outra palavra que não fosse a de confiança na iniciativa privada para promover o desenvolvimento da televisão no Brasil” (TV, 1973: 10). As ações promovidas pelos empresários televisivos, buscando mostrar que promoveriam mudanças em suas programações, foram acalmando os ânimos do regime militar, mesmo que em alguns momentos representantes do governo tenham novamente subido o tom, seja por ati- tudes dos empresários ou por demora em promover as mudanças esperadas. O debate em torno da estatização foi esfriando. O próprio ministro das comunicações, no final de 1972, começou a elogiar os esforços das emissoras televisivas. Segundo Corsetti, elas estavam se antecipando a algumas medidas e já era possível perceber “alguns progressos” (Corsetti, 1972b: 32). 177 se não nos unirmos, a televisão estará estatizada”: empresários das comunicações e ditadura militar no brasil Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 No final da década de 1970, tomando como base uma conferência de Roberto Marinho no II Encontro Mundial de Comunicação, realizado no México, a impressão é que nada do que foi exposto até aqui teria ocorrido. Tendo como tema “o modelo da televisão brasileira”, o dono da Rede Globo ressaltou que o Brasil ocupava o sexto lugar entre os países com maior número de televisores. Em termos de cobertura nacional, existiam três redes no país. Segundo ele, ainda que o controle estatal fosse estabelecido por lei, prevalecia o regime da livre inicia- tiva, muito semelhante ao modelo estadunidense. Afirmou que não existia motivação ou grupo de pressão no sentido de alterar o modelo brasileiro de radiodifusão que atendia plenamente aos interesses de todo o universo da audiência, era instrumento de integração nacional e cumpria o imperativo de ampliar o mercado interno (Roberto, 1979: 9). “TUDO DEVE MUDAR PARA QUE TUDO FIQUE COMO ESTÁ” Acélebre frase do romance O Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, “tudo deve mudar para que tudo fique como está”, pode sintetizar a pressão por mudança de perfil da programação televisiva sofrida pelas emissoras comerciais, durante a ditadura militar, tendo a estatização como pano de fundo. A ditadura não perderia sua base de apoio conservadora em prol do lucro dos empresários televisivos e não perderia o controle deste setor, no qual investiu estrategicamente e que naquele momento se consolidava nos lares brasileiros, sendo fundamental para a imagem do regime. Diante das declarações e medidas impostas para o setor televisivo, seus estabele- ceram algumas estratégias de reação: deram publicidade ao tema para conseguir apoio de outros setores da sociedade civil contra a possibilidade de estatização; criaram uma associa- ção específica para defender os interesses dos concessionários televisivos diante das pressões do regime militar; buscaram, em alguns momentos, tensionar o debate, mas com as devidas cautelas, enfatizando sempre o apoio incondicional e as contribuições dadas pelos empresá- rios das comunicações para a “revolução”; e, quando a corda esticava demais, acenavam ao regime militar com autocríticas públicas e promessas de mudanças em suas práticas televisivas. A estatização, obviamente péssima para os empresários televisivos, também não seria uma boa alternativa para a ditadura militar, já que ela poderia perder apoiadores, notada- mente do setor empresarial, além das dificuldades que teria para operar uma rede estatal de emissoras televisivas. Se a estatização fosse realmente a intenção da ditadura, os deputados e senadores arenistas não defenderiam a exploração privada da televisão, pedindo apenas para os concessionários corrigirem os rumos de suas programações. 178 Eduardo Amando de Barros Filho Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 A maior beneficiária das medidas promovidas pela ditadura militar foi a Rede Globo. Encontrando-se em melhores condições financeiras e com menos concorrência, sobremaneira da TV Excelsior, ela pode investir na renovação de sua programação. A partir de 1973, a TV Globo empreendeu e institucionalizou o seu “padrão Globo de qualidade”. Os avanços estruturais, promovidos pela ditadura no setor das telecomunicações e as boas relações de Roberto Marinho com os militares, fizeram com que a TV Globo passasse a ter uma qualidade de produção e emis- são comparável com as maiores redes de TV do mundo. Vão ao ar pela emissora programas como Fantástico e Globo Repórter, frutos da desejada “televisão nacional de qualidade”. Com a Rede Globo consolidando sua hegemonia no campo televisivo brasileiro, facilitava o controle do setor pelo regime e possibilitava que a televisão servisse de forma ainda mais eficaz à ditadura militar. Afinal, diante de qualquer necessidade, era só pressionar diretamente o concessionário Marinho. O melhor para os empresários televisivos e o governo militar era continuar caminhando juntos. À medida que as emissoras começaram a mudar os rumos de suas programações, a pressão do governo militar foi suavizando. A televisão brasileira foi aprimorando suas técni- cas, bem como nacionalizando sua programação. O modelo comercial continuou hegemônico, sob um controle ainda maior da ditadura e com uma programação ainda mais alinhada com as diretrizes do regime militar. 179 se não nos unirmos, a televisão estará estatizada”: empresários das comunicações e ditadura militar no brasil Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 Notas 1 Os proprietários dos dois jornais cariocas selecionados, Jornal do Brasil e O Globo, obtiveram concessões televisivas, ainda que a do primeiro não tenha se concretizado com a operação de um canal de televisão. A família Marinho, proprietária de O Globo, passou a operar uma emissora de televisão e avançou para a liderança hegemônica do setor durante a ditadura militar. O O Estado S. Paulo deu ampla cobertura e se posicionou sobre desenvolvi- mento da televisão no Brasil. A família Mesquita, proprietária desse jornal paulista, até onde é sabido, nunca revelou publicamente interesse em operar um canal de televisão ou entrou em disputa por concessão de canal televisivo. O Diário de S.  Paulo pertencia aos Diários e Emissoras Associados, grupo com interesses diretos no setor televisivo, fundado por Assis Chateaubriand, precursor da televisão no Brasil. A revista Veja, pertencente à Editora Abril, participante de concorrência pública para concessão de canal televisivo, se consolidou como o semanário mais importante do Brasil durante a ditadura militar, notadamente por seu noticiário político. 2 Segundo o Decreto n. 52.026 de 1963, o Contel seria responsável pela elaboração de um Plano Nacional de Telecomunicações, que contemplaria uma nova rede de telecomunicações e a implantação de uma indústria de equipamentos para esse fim (Jambeiro, 2001: 60). 3 Conforme Motta (2021: 45), João Calmon foi um dos líderes civis do golpe de 1964. Idealizador da Rede da Democracia, união de veículos de comunicação que teve papel signi- ficativo em ataques que contribuíram para queda do presidente João Goulart. Nos primeiros dias da ditadura, como deputado federal, pediu a cassação dos parlamentares que mantinham ligações com o proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB). Com a instalação do bipartida- rismo em decorrência do Ato Institucional nº 2 (AI-2), filiou-se à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), sendo cogitado para a vice-presidência de Artur da Costa e Silva (Calmon, 2001). 4 Segundo Barros Filho (2017: 249), o estímulo à televisão educativa acabou sendo van- tajoso para os empresários televisivos. A TV Globo fez parcerias com organismos públicos e estatais, recebeu verbas para programas educativos por meio da Fundação Roberto Marinho e obteve bons índices de audiência com programas como o Telecurso e Sitio do Pica-Pau Amarelo, contribuindo para sua hegemonia no setor televisivo brasileiro. 5 Os objetivos da Doutrina de Segurança Nacional, vinculados às telecomunicações, eram integração nacional, integridade territorial, preservação dos valores morais e espirituais da nação e paz social (Borges, 2003: 28). 180 Eduardo Amando de Barros Filho Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 6 Fico (2019, 166-172) chama a atenção para a utilização do conceito de doutrina de segurança nacional. A simples existência de doutrinas ou ideologias não garante seu predomínio na sociedade ou em grupos específicos. Não havia um pensamento unívoco entre os que assumiram o poder, mas a integração matizada de certos princípios gerais, muitos dos quais presentes na doutrina de segurança nacional. Esses princípios são denominados pelo autor de utopia autoritária. Referências bibliográficas AS IMAGENS da dúvida: velhos e novos problemas da TV brasileira. Veja, São Paulo, p. 72-78, 1970. BACCIN, C. A televisão aberta na Argentina: uma distribuição desigual e uma programação metropolitana. In: REIMÃO, S. (org.). Televisão na América Latina: 7 estudos. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2000. BARROS FILHO, E. A. D. A Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa: debates, projetos e práticas à produção e difusão de conteúdos tele-educativos na Ditadura Militar, 1964-1981. 2017. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Assis, 2017. BARROS FILHO, E. A. D. O verde oliva na TV: o advento da televisão em cores pelo regime militar no Brasil. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 13, n. 32, p. 1-33, 2021. BOLAÑO, C. R. S. Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil?. São Paulo: Paulus, 2007. BORGES, N. A doutrina de segurança nacional e os governos militares. In: FERREIRA, J.; DELGADO, L. D. A. N. (Orgs.). O Brasil republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 4. BRIGGS, A.; BURKE, P. Uma História social da mídia: de Gutenberg à internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. BUSETTO, A. Relações entre TV e poder político: dados históricos para um programa de leitura dos produtos televisivos no ensino e aprendizagem. In: PINHO, S. Z.; SAGLIETTI, J. R. C. (Orgs.). Núcleos de Ensino da Unesp. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2007. v. 4. BUSETTO, A. Sem aviões da Panair e imagens da TV Excelsior no ar: um episódio sobre a relação regime militar e televisão. In: KUSHNIR, B. (Org.). Maços na Gaveta: reflexões sobre mídia. Niterói: EdUFF, 2009. CALMON, J. D. M. In: DICIONÁRIO Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/joao-de-medeiros-calmon. Acesso em: dd mmm. aaaa. CALMON: problema não está no vídeo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 32, 19 set. 1971. CANAIS podem ser cassados. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 52, 28 set. 1971. CONTEL: é loucura falar em estatização do rádio e TV. O Globo, Rio de Janeiro, p. 10, 15 fev. 1966. CORSETTI: estatização da TV só em caso extremo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 9, 18 set. 1971a. CORSETTI: avisa que Governo vai cassar TV que funcionar mal ou com irregularidade. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 dez. 1971b. CORSETTI: ameaça estatizar as TVs. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 1, 4 jun. 1972a. 181 se não nos unirmos, a televisão estará estatizada”: empresários das comunicações e ditadura militar no brasil Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 36, nº 78, p.162-181, Janeiro-Abril 2023 CORSETTI: anuncia melhores programas nas TVs. Jornal do Brasil, p. 32, 19 nov. 1972b. DIRETORES de TV com Corsetti. Diário de S. Paulo, São Paulo, p. 1, 30 dez. 1970. ESTATIZAÇÃO de comunicações. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 1, 29 dez. 1965. ESTATIZAÇÃO preocupa empresários de TVs. Diário de S. Paulo, São Paulo, p. 3, 8 mai. 1973. FICO, C. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, J.; DELGADO, L. D. A. N. (Orgs.). O Brasil republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019, v. 4. GOVERNO cassa TV Continental. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 25, 23 fev. 1972. JAMBEIRO, O. A TV no Brasil do século XX. Salvador: Edufba, 2001. JEANNENEY, J. N. Uma história da comunicação social. Lisboa: Terramar, 1996. JOÃO Calmon em apelo ao Presidente da República: é preciso deter a onda estatizante. O Globo, Rio de Janeiro, p. 16, 23 dez. 1965. KUSHNIR, B. Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004. MATTOS, S. História da televisão brasileira: uma visão econômica, social e política. Petrópolis: Vozes, 2008. MÉDICI pede a empresários a televisão com melhor sentido. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 18, 26 set. 1970. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Passados presentes: o golpe de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. NOVAS manifestações contra a estatização da TV. O Globo, Rio de Janeiro, p. 3, 9 maio 1973. O FUTURO do rádio e da televisão. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 3, 10 maio 1973. ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988. PALAVRAS de um patriota autêntico. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 3, 17 jul. 1965. ROBERTO Marinho: a TV Brasileira atingiu um dos mais elevados padrões do mundo. O Globo, Rio de Janeiro, p. 9, 27 jul. 1979. RIBEIRO, A. P. G.; SACRAMENTO, I. A renovação estética da TV. In: RIBEIRO, A. P. G.; SACRAMENTO, I.; ROXO, M. (Orgs.). História da Televisão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010. SE PRECISO, governo cassa TVs. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 56, 4 dez. 1971. SIMÕES, I. A nossa TV Brasileira: por um controle social da televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. STENZEL: abusos da TV são piores do que a subversão. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 9, 10 jun. 1972. TV UNIDA contra estatização. Diário de S. Paulo, São Paulo, p. 3, 5 out. 1968. TV só tem a perder se for estatizada, afirma Célio Borja. O Globo, Rio de Janeiro, p. 10, 10 maio 1973. _Hlk121233930 _Hlk112763756 _Hlk112229532 _Hlk110330715 _Hlk112780124 _Hlk112237223 _Hlk112841106 _Hlk121904758 _Hlk112238486 _Hlk120363222 _Hlk112847762