1 O petróleo e o envolvimento militar dos Estados Unidos no Golfo Pérsico (1945-2003) IGOR FUSER Dissertação apresentada e aprovada como exigência para obtenção do grau de mestrado em Relações Internacionais do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “Santiago Dantas”, da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob a orientação do Prof. Dr. Luis Fernando Ayerbe. São Paulo - 2005 2 Para meu pai, Fausto Fuser, minha mãe, Marlene Perlingeiro Crespo, minha filha, Marina Costin Fuser 3 AGRADECIMENTOS Janina Onuki, por ter me apresentado o Programa Santiago Dantas; Giovanna Vieira, pelo apoio administrativo; Fabiana Komesu , pela assessoria acadêmica; Danieli Campos, pelos gráficos; Anna Verônica Mautner, pelo apoio. “O petróleo e o envolvimento militar dos Estados Unidos no Golfo Pérsico (1945-2003)” Dissertação de mestrado em Relações Internacionais, apresentada e aprovada em 30/11/2005 no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “Santiago Dantas”, da Unesp, Unicamp e PUC-SP Autor: Igor Fuser Orientador: Luís Fernando Ayerbe (Unesp) Banca: Sebastião Velasco e Cruz (Unicamp) e Rafael Duarte Villa (USP) Palavras chaves: Política externa dos Estados Unidos; petróleo; Golfo Pérsico. Resumo: O trabalho investiga os vínculos entre, de um lado, a crescente presença militar dos EUA e seu envolvimento em conflitos no Golfo Pérsico e, do outro, o aumento da importância econômica e estratégica das reservas de petróleo dessa região. O trabalho busca as raízes históricas dos conflitos da atualidade. Para isso, focaliza a atuação internacional das grandes empresas petrolíferas e a evolução da estratégia norte-americana no Golfo Pérsico desde a II Guerra Mundial. Esse estudo utiliza como referência as sucessivas doutrinas de política externa aplicadas pelos EUA no Golfo Pérsico, com destaque para a Doutrina Carter, que declara o acesso norte-americano ao petróleo da região como um interesse “vital”, a ser defendido pela força, se necessário. O trabalho constata que as intervenções militares norte-americanas no Oriente Médio se tornaram mais intensas e freqüentes depois do fim da Guerra Fria. Esse fenômeno é explicado pela dependência crescente dos EUA e da economia mundial em relação às reservas petrolíferas da região, cuja importância estratégica aumenta na medida em que o petróleo se torna mais escasso no resto do mundo. A partir da análise de documentos oficiais, o presente trabalho constata que os EUA adotaram, no governo de George W. Bush, uma política de energia cujo ponto central é convencer os países produtores a extrair petróleo de acordo com a máxima capacidade possível, a fim de enfrentar a escassez e de manter os preços em patamares compatíveis com os interesses norte-americanos. Essa política, que encara o acesso à energia como uma questão de segurança e tem como instrumento fundamental a força militar, tende a acirrar a resistência nacionalista nos países produtores mais importantes, agravando os conflitos já existentes no Golfo Pérsico. 4 ÍNDICE Introdução 1. Em busca de referências teóricas 1.1. A disputa internacional por recursos escassos................................ 13 1.2. A utilidade e as limitações do pensamento “realista” .................. 18 1.3. O neoliberalismo e o marxismo ........................................................ 21 1.4. A corrente ambientalista e a “guerra por recursos” ....................... 23 2. A importância estratégica do petróleo 2.1. As fontes de energia primária na atualidade .................................. 32 2.2. O petróleo e os conflitos internacionais............................................ 37 2.3. O papel do Golfo Pérsico no mercado petroleiro mundial ........... 39 2.4. A teoria de Hubbert sobre o “pico do petróleo” ............................ 42 2.5. A divisão da oferta entre países da Opep e não-Opep ................. 44 2.6. A defasagem entre a demanda e a capacidade de produção ....... 45 2.7. A explosão do consumo nos países “em desenvolvimento” ........ 48 2.8. A polêmica sobre o esgotamento das reservas ................................ 52 2.9. A “Era do Crepúsculo”? ..................................................................... 55 3. Segurança energética, interesse nacional e o fator cultural nos EUA 5 3.1. A economia e o poder nacional ......................................................... 59 3.2. O conceito de interesse nacional ........................................................ 63 3.3 Interesses nacionais e atores domésticos na política energética dos EUA ............................................................................... 66 3.4. A externalização dos problemas de energia dos EUA ................... 69 3.5 A “conservação” do petróleo e os investimentos no exterior ........ 71 3.6. A evolução da dependência petroleira ............................................ 74 3.7. O fator cultural no uso intensivo do automóvel pelos norte-americanos ........................................................................ 77 4. Os EUA e o petróleo do Golfo Pérsico até 1973 4.1. A hegemonia britânica no Oriente Médio ....................................... 81 4.2. O ingresso das empresas petroleiras ................................................ 84 4.3. A “diplomacia do petróleo” ............................................................. 86 4.4. O Acordo da Linha Vermelha e o cartel das “Sete Irmãs” ........... 90 4.5. O desafio dos EUA à hegemonia britânica .................................... 92 4.6. A entrada dos norte-americanos na Arábia Saudita ..................... 94 4.7. O Golfo Pérsico na II Guerra Mundial ........................................... 95 4.8. O petróleo na estratégia norte-americana do pós-guerra ............ 97 4.9. A política da Porta Aberta ................................................................. 98 4.10. Um negócio “além dos sonhos da avareza” ................................ 101 4.11. Origens do nacionalismo petroleiro .............................................. 102 4.12. O conflito com o Irã e a derrubada de Mossadegh ..................... 103 6 4.13. O petróleo e a consolidação da hegemonia dos EUA ................. 107 4.14. A parceria entre o governo e as empresas norte-americanas .... 108 4.15. O petróleo e a maré anti-colonialista ............................................ 108 4.16. O surgimento da Opep ................................................................... 111 4.17. A politização do petróleo ............................................................... 114 4.18. A ofensiva da Opep ........................................................................ 118 5. A defesa dos interesses estratégicos dos EUA no Golfo Pérsico (1945-1973) 5.1. A Doutrina Truman e a Guerra Fria no Oriente Médio ............... 121 5.2. O desafio vitorioso à hegemonia britânica .................................... 122 5.3. A ambigüidade de Washington perante a questão colonial ....... 124 5.4. Os pactos de “segurança regional” ................................................ 125 5.5. O apoio dos EUA aos regimes conservadores .............................. 128 5.6. A crise do Canal de Suez .................................................................. 129 5.7. A Doutrina Eisenhower e o “vácuo de poder” .............................. 133 5.8. O primeiro desembarque dos marines no Oriente Médio ............. 134 5.9. O complicador israelense .................................................................. 136 5.10. A Doutrina Nixon e a política dos “Dois Pilares” ....................... 140 5.11. A escalada armamentista ................................................................ 142 7 6. O choque de 1973, a ameaça de intervenção e a idéia do “direito” ao petróleo 6.1. A escalada dos preços e o embargo do petróleo ............................ 146 6.2. A vulnerabilidade econômica do Ocidente .................................... 150 6.3.A crise de energia e suas conseqüências .......................................... 153 6.4. A recuperação da economia internacional ..................................... 156 6.5. Kissinger e a ameaça da força (o “oil grab”) ................................... 158 6.6. Custos e benefícios do “petróleo pela força” ................................. 163 7. Doutrina Carter: o petróleo do Golfo como um interesse “vital” 7.1. A securitização do petróleo ............................................................. 168 7.2. A Revolução Islâmica no Irã ............................................................ 170 7.3. A geopolítica de Brzezinski ............................................................ 173 7.4. Do idealismo à política da força ...................................................... 176 7.5. A “armadilha afegã” e o fiasco no deserto .................................... 184 7.7. A Doutrina Carter perante as “ameaças regionais” ..................... 188 8. A escalada intervencionista de Reagan 8.1. A guinada à direita na política norte-americana .......................... 193 8.2. O Comando Central, instrumento de “projeção de força” .......... 195 8.3. Comércio de armas e instabilidade regional ................................. 197 8 8.4. A intervenção no Líbano e o massacre dos marines ..................... 201 8.5. O apoio ao Iraque na guerra de 1980-1988 .................................... 205 8.6. O escândalo “Irã-contras” ................................................................. 211 8.7. Os EUA em guerra, como “guardiães do Golfo” .......................... 213 9. A Guerra do Golfo de 1990/1991 9.1. A manutenção da Doutrina Carter após a Guerra Fria ............... 219 9.2. O petróleo como fator de conflito em 1990/1991 .......................... 222 9.3. Os motivos da agressão iraquiana ao Kuwait ............................... 226 9.4. Uma guerra em busca de legitimidade .......................................... 229 9.5. As críticas à conduta norte-americana ........................................... 234 9.6. Os problemas inesperados do pós-guerra ..................................... 237 9.7. A “dupla contenção” do Iraque e do Irã ........................................ 241 10. A securitização do petróleo e a estratégia da “máxima extração” em escala global 10.1. A Doutrina Bush e os neoconservadores ..................................... 247 10.2. O petróleo do Golfo Pérsico nos documentos de estratégia dos EUA ............................................................................................. 254 11.3. A dimensão internacional da segurança energética ................... 261 10.4. Uma nova política de energia ........................................................ 265 9 11. Os desafios atuais dos EUA no Golfo Pérsico 11. 1. O novo militarismo norte-americano .......................................... 273 11. 2. A rede de bases militares dos EUA no Golfo Pérsico ............... 276 11.3. Os antecedentes da invasão do Iraque .......................................... 281 11.4. A ofensiva “neowilsoniana” e o Oriente Médio ......................... 286 11.5. O petróleo e os possíveis ganhos dos EUA com a guerra ........ 289 11.6. A disputa global por recursos energéticos ................................... 293 11.7. Obstáculos à “máxima extração” ................................................... 295 11.8. O conflito entre a Opep e os consumidores segundo o FMI ..... 301 11.9. A memória do passado colonial e a força do nacionalismo ....... 305 Conclusões...............................................................................................311 Bibliografia...........................................................................................315 10 INTRODUÇÃO Cenário dos dois maiores conflitos internacionais do pós-Guerra Fria, em 1990-91 e em 2003, o Golfo Pérsico tem se destacado com a área mais explosiva do planeta – centro de gravidade para onde convergem diferentes interesses estratégicos. Essa região, submetida à dominação colonial e neocolonial até meados do século XX, abriga cerca de 2/3 das reservas mundiais de petróleo – um recurso econômico essencial, não renovável e com o risco crescente de escassez, num contexto em que a demanda mundial cresce num ritmo mais rápido que a capacidade de expansão da oferta. No presente trabalho, tentarei investigar os vínculos entre essas duas questões. De um lado, a crescente presença militar dos Estados Unidos no Golfo Pérsico e o seu envolvimento em conflitos na região. Do outro, o aumento da importância econômica das reservas de petróleo e as implicações estratégicas do controle sobre esses recursos. 11 Uma tarefa central, nessa empreitada, é desvendar as raízes históricas dos conflitos e impasses da atualidade. Convencido de que somente a partir da História as motivações e o comportamento dos atores se tornam compreensíveis, dedicarei a maior parte da dissertação à evolução das relações entre os EUA e os principais países produtores de petróleo do Golfo Pérsico. Como marco inicial, escolhi 1945 – o ano do célebre encontro em que o presidente Franklin Roosevelt, no fim da II Guerra Mundial, firmou com o rei Ibn Saud o compromisso de proteger a Arábia Saudita em troca do acesso ao petróleo daquele país. O texto usará como referência as sucessivas doutrinas de política externa aplicadas pelos EUA no Golfo Pérsico: as doutrinas Truman e Eisenhower, impregnadas da competição estratégica e ideológica da Guerra Fria; a Doutrina Nixon, que consagra o Irã e a Arábia Saudita como “pilares” da defesa dos interesses norte-americanos na região; a Doutrina Carter, que declara o acesso dos EUA ao petróleo do Golfo Pérsico como um interesse “vital”, a ser defendido pela força militar; 12 culminando com a “Doutrina Bush”, instrumento de legitimação das intervenções unilaterais e da “guerra preventiva”. Serão abordados momentos chaves da atuação norte-americana no Golfo Pérsico, como a derrubada do governo nacionalista de Mossadegh no Irã, a crise do Canal de Suez, o “choque” do petróleo de 1973, a queda do xá em 1979 e a guerra para reverter a ocupação do Kuwait pelo Iraque. Mas o foco não estará voltado para as circunstâncias e, sim, para as linhas gerais que perpassam esses conflitos – a substituição do decadente imperialismo britânico pela hegemonia dos EUA, o desafio norte-americano de apoiar ao mesmo tempo Israel e os regimes árabes conservadores, a contenção da influência soviética e a afirmação do nacionalismo como uma força poderosa em todo o Oriente Médio. Também procurarei analisar os principais documentos oficiais norte-americanos recentes que tratam da segurança energética em sua ligação com a política externa, em especial no que se refere ao petróleo. 13 Capítulo 1 1. Em busca de referências teóricas “Se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impossível a ela ser gozada por ambos, eles se tornam inimigos. E, no caminho para o seu fim (...), esforçam-se por destruir ou subjugar o outro”. Na visão de muitos analistas, de diferentes correntes de pensamento, a sombria afirmação de Thomas Hobbes (2003, 107), no capítulo XIII do Leviatã, está sujeita a adquirir uma renovada atualidade num contexto, que apontam como provável, de um mundo dilacerado pela competição por recursos escassos, em especial o petróleo (Klare, 2000, 2001a, 2004a; Peters, 2004; Brzezinski, 1997; Bacevich, 2005). Outros autores acreditam que fatores como a difusão universal da democracia política e do liberalismo econômico (Friedman, 1999; Fukuyama, 1993) e os avanços tecnológicos na busca de alternativa para materiais sob risco de exaustão (Smil, 2003; Odell, 2000) impedirão que as eventuais disputas pelo acesso a esses recursos se traduzam em conflitos violentos. 1. 1. A disputa internacional por recursos escassos O primeiro desafio no presente trabalho diz respeito ao enfoque teórico a ser adotado. Em contraste com outras questões, como a soberania, as relações de poder entre as potências, as instituições internacionais e a formação de blocos regionais 14 de comércio, a disputa por matérias-primas está longe de constituir um tema de atenção permanente ou prioritária entre os autores no campo das Relações Internacionais (RI). Há, em algumas das obras mais importantes das RI, menção ao papel estratégico dos recursos naturais, mas sempre como um assunto lateral. Hans Morgenthau, em seu clássico Politics Among Nations (1993, 128-133), destaca as matérias-primas, juntamente com os fatores geográficos e a autonomia na obtenção de alimentos, entre os componentes estáveis ou relativamente estáveis do poder das nações (os componentes variáveis, segundo ele, seriam a capacidade industrial, a preparação militar e o tamanho da população). Morgenthau se refere, especificamente, aos recursos naturais necessários para a produção industrial e, sobretudo, àqueles que põem em funcionamento o aparato militar. É essa a definição adotada, no presente trabalho, para os recursos ou matérias-primas estratégicas. Na visão de Morgenthau, a importância desses recursos cresce na medida em que a adoção de armas sofisticadas torna menos relevantes o combate corpo-a- corpo e as qualidades individuais dos soldados. O que define o resultado da guerra, cada vez mais, é a eficácia do material bélico – cuja fabricação e funcionamento dependem de determinadas matérias-primas. “Com a crescente mecanização dos combates (...), o poder nacional torna-se cada vez mais dependente do controle das matérias-primas, tanto na paz quanto na guerra”, escreve. “Não é por acaso que os dois países mais poderosos da atualidade, os Estados Unidos e a União Soviética, são os que mais se aproximam da auto- suficiência nas matérias-primas necessárias à produção industrial moderna e os que detêm ao menos o controle daquelas fontes de matérias-primas que eles não produzem por si mesmos” (1993, 129). Muitos outros autores do campo das RI atribuem importância às matérias- primas na definição da hierarquia entre os Estados. Raymond Aron (2002, 107) 15 inclui entre os três elementos fundamentais à definição da potência (ou seja, da “capacidade que tem uma coletividade de impor sua vontade a uma outra”) os recursos materiais disponíveis, assim como “o conhecimento que permite transformá-los em armas” (os outros dois elementos fundamentais, para Aron, são “o espaço ocupado pelas unidades políticas” e a “capacidade de ação coletiva” no plano militar). Kenneth Waltz dedica várias páginas da sua Teoria das Relações Internacionais à importância estratégica dos suprimentos essenciais, entre os quais o petróleo (2002: 202). Robert Gilpin aponta entre os motivos presentes em grande parte das guerras a conquista de recursos importantes, como o trabalho escravo, as terras férteis e o petróleo (1981, 82). Em War & Change in World Politics, ele aponta o efeito da “lei dos retornos decrescentes”, que rege o funcionamento econômico em qualquer sociedade, como um fator que impulsiona a disputa entre os países pela posse de recursos valiosos. De acordo com essa lei econômica, uma sociedade se desenvolve, adquirindo riqueza e poder numa escala crescente, até o ponto em que não consegue mais progredir nos marcos da capacidade tecnológica disponível. Nesse ponto, explica Gilpin, “o crescimento populacional, o esgotamento das terras de boa qualidade e a escassez de recursos levam à necessidade de reduzir o excedente econômico, com a conseqüente diminuição do bem -estar econômico e do poder do Estado. O surgimento de obstáculos ao crescimento econômico no interior de uma sociedade e a existência de oportunidades externas para se contrapor à lei dos retornos decrescentes oferecem, portanto, poderosos incentivos aos Estados para expandir seu controle territorial, político ou econômico sobre o sistema internacional. (...) O padrão histórico predominante tem sido o do uso da força por uma sociedade para se apoderar de recursos escassos e cada vez mais dispendiosos, sejam eles o trabalho escravo, a terra fértil ou o petróleo. Embora essa resposta aos retornos 16 decrescentes tenha diminuído, ela de nenhuma maneira desapareceu da política mundial.” Nenhum dos autores mencionados, porém, situa as matérias-primas estratégicas no centro de suas abordagens. Como assinala a alemã Susanne Peters (2004, 188 e 189), a perspectiva do surgimento de conflitos relacionados com a escassez de recursos só despertou a atenção dos pesquisadores a partir do primeiro “choque do petróleo”, em outubro de 1973, quando ocorreu o embargo aplicado pelos exportadores árabes em represália ao apoio dos EUA e de outros países ocidentais a Israel na Guerra do Yom Kippur, seguido por uma escalada de preços que provocou uma recessão econômica mundial. Em 1979, o segundo “choque do petróleo”, causado pela interrupção dos fornecimentos do Irã após a tomada do poder por fundamentalistas muçulmanos, reforçou ainda mais o interesse pelo tema. Diversos trabalhos publicados naquela época trataram a crise do petróleo como manifestação de um confronto Norte-Sul e ressaltaram a dependência dos países mais industrializados em relação às matérias-primas estratégicas do chamado Terceiro Mundo.1 Mas as pesquisas sobre conflitos em torno de recursos diminuíram a partir de meados da década de 80. Peters (2004) assinala três motivos para o desinteresse. O primeiro é o sucesso inicial dos países ocidentais em reduzir a dependência em relação aos produtores do Oriente Médio por meio da diversificação das fontes de petróleo; o segundo, a globalização da economia, que retirou do horizonte a 1 O presente trabalho admite a dificuldade conceitual de classificar a imensa parte do mundo que as Nações Unidas chamam de “países em desenvolvimento”, conhecidos durante muito tempo como “Terceiro Mundo” ou países do “Sul” – termos atualmente em relativo desuso. Essas expressões, quando mencionadas, aparecerão entre aspas, para expressar meu distanciamento em relação a qualquer abordagem teórica nelas embutida. Em outros momentos, esses países serão chamados de “periféricos”, sempre para se referir à parte do mundo que não corresponde ao “centro” mais desenvolvido do sistema capitalista – basicamente, os integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE – nem aos países da antiga URSS e do Leste Europeu. Para uma discussão interessante sobre o tema, recomendo o artigo “Is There a Third World?”, em Current History, November 1999, pp. 355-358. 17 perspectiva de um confronto mundial do tipo Norte-Sul; e, finalmente, na esteira do avanço das idéias neoliberais, o predomínio da crença otimista de que o poder ilimitado da tecnologia pudesse compensar qualquer eventual escassez de recursos naturais, inclusive o esgotamento dos combustíveis fósseis. Na visão de Peters, a ação conjunta desses três fatores impediu que a guerra entre a coligação liderada pelos EUA e o Iraque, em 1991, motivada principalmente, segundo ela, pelo controle do petróleo no Golfo Pérsico, fosse devidamente entendida pelos estudiosos das RI. Esse conflito, na sua opinião, “não representa uma aberração no sistema internacional (...), mas aponta para a evolução de um novo padrão de guerra”, que se manifestaria novamente em 2003, com a ocupação do Iraque (2004, 189). Ao longo da década de 90, o interesse pelos antagonismos relacionados com matérias-primas se deslocou do plano interestatal para a esfera doméstica, já que a maior parte dos conflitos violentos no período posterior ao fim da Guerra Fria se travou a partir de divisões étnicas ou religiosas. Nessa época, um grupo de pesquisadores da Universidade de Toronto (Canadá), liderado por Thomas Homer-Dixon, introduziu o conceito da “escassez ambiental” para explicar os conflitos causados ou agravados pela degradação e/ou destruição de recursos naturais como a água, as florestas, a terra fértil e as reservas de pesca (1994). As obras elaboradas nessa linha estão voltadas apenas para os recursos renováveis e para os conflitos intra-estatais. Como observa Peters, “o subcampo da ‘escassez ambiental’ surgiu num contexto em que o petróleo, o mais saliente dos recursos não-renováveis, parecia (a julgar pelo seu baixo preço) existir em abundância – portanto, conflitos interestatais sobre o petróleo pareciam improváveis” (2004). Somente na virada do século é que, sob a dupla influência da defasagem entre a demanda e a oferta de petróleo e da intensificação das disputas em áreas petroleiras chaves, como o Golfo Pérsico e a bacia do Mar Cáspio, é que o tema 18 voltou a ser tratado, de modo ainda incipiente e pouco sistematizado do ponto de vista teórico, no campo das RI. Certamente, a queda do entusiasmo com os supostos benefícios da globalização oferece um ambiente intelectual e político propício a essa vertente de análise e de pesquisa. 1.2. A utilidade e as limitações do pensamento “realista” No ponto em que nos encontramos agora, como escolher uma abordagem teórica adequada aos objetivos deste trabalho? A questão nada tem de ociosa. Toda construção intelectual está assentada sobre algum pressuposto teórico, ainda que de modo não explícito ou consciente. Stephen Walt explica que as teorias servem para “dar sentido à tempestade de informações que nos bombardeia diariamente” (apud Stuart: 2002). Ele acrescenta: “Até mesmo os formuladores de política que desprezam a ‘teoria’ são obrigados a adotar como base suas próprias (e freqüentemente não explicitadas) idéias sobre como o mundo funciona a fim de decidir sobre o que fazer. (...) Todo mundo usa teorias – sabendo disso ou não – e os desacordos sobre política usualmente derivam de desacordos mais fundamentais sobre as forças básicas que moldam os fatos internacionais.” À primeira vista, o realismo, com sua ênfase nas guerras e na busca da segurança, parece a teoria mais adequada para tratar dos conflitos que marcam a política dos EUA no Golfo Pérsico. Não é por acaso, aliás, que a maioria dos autores já citados integra essa corrente de pensamento ou é fortemente influenciada por ela. O realismo apresenta, em seus pressupostos, algumas idéias de alta relevância para a compreensão da política de segurança norte-americana e do cenário petroleiro mundial. Três desses pressupostos merecem ser destacados, de acordo com a sistematização de Paul Viotti e Mark Kauppi (1987): 19 1. Os Estados são os atores mais importantes do sistema internacional (os demais, como as empresas transnacionais, as organizações intergovernamentais, as ONGs e os grupos ilegais, exercem papéis secundários devido à incapacidade de influenciar os resultados de modo decisivo); 2. no plano das relações externas, cada Estado se comporta como um ator unitário, ou seja, decide sua conduta a partir de sua concepção do que é o interesse nacional, independentemente do entrechoque de forças no plano doméstico. 3. em um cenário internacional marcado pela anarquia (ou seja, a inexistência de uma autoridade capaz de se impor sobre os atores individuais, como ocorre no interior de cada país), os Estados buscam o máximo de poder ao seu alcance, e a preocupação com a segurança nacional ocupa o topo da agenda dos governantes, com destaque para o uso da força, como simples possibilidade ou como realidade concreta (a guerra). Limitações inerentes à abordagem realista das RI impedem a utilização dessa abordagem teórica como linha-mestra para o presente estudo. Com seu foco restrito às grandes potências, o realismo é incapaz de explicar a conduta internacional dos Estados menos poderosos, os chamados países “em desenvolvimento” ou “periféricos” (em relação ao núcleo econômico capitalista). Alguns desses Estados, tratados pelos autores realistas como meros peões no tabuleiro estratégico, passivos, sem capacidade de ação autônoma, constituem, na realidade, atores chaves na disputa global por matérias-primas. Na irônica observação de Michael Mann, “as opções imperiais enfrentam limites na era do nacionalismo” (2003, 95). É evidente a dificuldade dos autores realistas em explicar os dois “choques do petróleo” – para não falar na sua total incapacidade de prevê-los! Simplesmente, 20 não cabe no estreito figurino do realismo, seja em sua vertente “clássica” (Morgenthau), seja na sua reconstituição “estrutural” (Waltz), a idéia de que um Estado-cliente como a Arábia Saudita pudesse enfrentar as potências ocidentais com o uso da “arma” do petróleo em desafio à política norte-americana numa região estratégica e, pior ainda, desencadeando uma escalada de preços que levou a economia mundial à semiparalisia. O próprio Morgenthau deixa transparecer sua perplexidade diante dos acontecimentos de 1973. Ele se mostra atordoado diante de uma reviravolta em que certos países, mesmo “destituídos de todos os demais elementos tradicionalmente associados ao poder nacional”, e que em muitos casos “só por cortesia semântica podem ser chamados de Estados”, emergiram da noite para o dia como “um fator poderoso na política mundial” (1993, 130-131). Outro obstáculo à capacidade explicativa do realismo tem a ver com a separação absoluta entre a política interna e a política externa dos Estados (Rosenberg, 1994, 1-58). Os realistas definem a ação dos Estados no cenário internacional a partir da conhecida metáfora das bolas de bilhar – unidades maciças e rígidas, que se chocam umas contra as outras. Essa metáfora encontra sustentação empírica quando se constata, por exemplo, a linha de continuidade entre a atuação de administrações norte-americanas democratas e republicanas em relação ao Golfo Pérsico no longo período que se estende desde o mandato de Franklin Roosevelt até a presente gestão de George W. Bush (Anderson, 2002). As diferenças entre os dois partidos no plano da política doméstica não afetaram a coerência da conduta dos EUA numa região vital para os interesses do país. O problema surge quando se tenta explicar, só com base nos postulados do realismo, os fatores internos que podem ter influenciado as opções de política externa. Se os interesses nacionais são fixos no tempo, à margem de qualquer risco de ser alterados pela ação dos homens, como se pode admitir a possibilidade de mudança? Como afirma Peter Gowan, “não podemos ignorar as estruturas sócio- 21 políticas internas dos países ao estudar as suas políticas externas” (2002). Gowan prossegue: “As estratégias nacionais dos Estados sempre operam para mediar impulsos sócio-econômicos e políticos domésticos e externos, e a estabilidade dos sistemas interestatais depende de um ajuste entre os arranjos internos e externos feitos nos principais países”. Nesse terreno, uma contribuição mais proveitosa pode ser obtida a partir da interpretação de Ikenberry, um autor não-realista, de forte inclinação liberal. Em Reasons of State (1988), Ikenberry formula um raciocínio interessantíssimo sobre a relação entre os fatores domésticos e os interesses externos dos EUA no campo dos recursos de energia – a hipótese de que um Estado poderoso, política e militarmente, no plano internacional, porém com uma margem de ação restrita no cenário interno devido à existência de atores muito influentes, tende a buscar fora de suas fronteiras a solução para problemas domésticos, tais como o da segurança no suprimento de combustíveis. 1.3. O neoliberalismo e o marxismo O exame dos demais paradigmas teóricos das RI não oferece perspectivas animadoras. O neoliberalismo é, na prática, incompatível com o próprio foco escolhido para a presente dissertação. Os adeptos dessa corrente acreditam que a cooperação tomará o lugar do conflito como marca predominante do sistema internacional e que a interdependência econômica é capaz de dar resposta a impasses como o da redução dos estoques disponíveis de recursos estratégicos. Mas o quadro que esboça nos capítulos seguintes não confirma essas suposições otimistas. O marxismo, em compensação, apresenta elementos bem mais promissores. Teorias de matriz marxista como a dos sistemas-mundo (Wallerstein, 2004), a do 22 imperialismo (Lênin) e a teoria da dependência (Gunder Frank, 1978), procuram explicar uma dinâmica do sistema mundial na qual o núcleo de países do Norte explora os Estados periféricos do Sul por meio da extração de suas matérias-primas baratas, da exploração da sua força de trabalho e de uma estrutura de comércio desigual. Como assinala John Bellamy Foster (2003), a extração de matérias-primas das regiões periféricas em benefício dos capitalistas dos países centrais – um dos traços definidores do imperialismo – acompanha a evolução do capitalismo desde os seus primórdios, no século XVI, até a atualidade. No ponto de vista de Foster, o controle informal dos recursos da periferia do sistema, obtido “não só por meio de políticas do Estado, mas também de ações de corporações empresariais e de mecanismos de mercado, finanças e investimento”, é tão efetivo quanto a dominação política formal exercida na época do colonialismo. O pensamento marxista é útil também para entender os fatores domésticos, ligados aos interesses sócio-econômicos que influenciam as decisões de política externa, assim como a relação entre o Estado e as grandes corporações empresariais no plano da atuação internacional. O marxismo falha, porém, ao diluir a dimensão nacional da atuação externa dos Estados. Com sua ênfase nas classes sociais e na interpretação dos processos políticos a partir da sua “base econômica”, os autores marxistas mostram dificuldade diante dos fenômenos ligados ao nacionalismo – que William Pfaff aponta como “a força política mais poderosa do século XX” (1993, 13). Assim como o realismo, o marxismo se revelou incapaz de prever e de explicar a nacionalização da maior parte das reservas petroleiras da América Latina e do Oriente Médio, os “choques do petróleo” dos anos 70, a ascensão do fundamentalismo islâmico e os processos políticos no mundo árabe-muçulmano pós-colonial. A dificuldade de encontrar uma análise satisfatória sobre os conflitos por recursos energéticos entre as principais linhas teóricas das RI leva o presente 23 trabalho a não se filiar a nenhuma dessas correntes, preferindo buscar contribuições intelectuais em diversas delas, na medida da sua utilidade. Essa opção busca respaldo nas reflexões presentes em textos de dois renomados autores no campo da teoria das RI – um deles, de James Rosenau (2001: 427), e o outro, de Barry Buzan e Richard Little (2001: 34). Num balanço dos debates teóricos dessa disciplina nas décadas de 70 e 80, Rosenau afirma que a antiga separação dos estudiosos das RI em campos opostos e inconciliáveis deu lugar a “uma atitude de viva-e-deixe viver”. Na sua visão, “mesmo os debates substantivos parecem ter-se conduzido [a partir dos anos 90] dentro de um contexto de uma tolerância compartilhada, uma disposição de reconhecer que não há respostas simples, que as RI se tornaram extremamente complexas e que, portanto, o entendimento progride melhor por meio de uma variedade de abordagens”. Buzan e Little também defendem o pluralismo teórico como meio de superar o que chamam de “tendência crônica à fragmentação” (do conhecimento) no campo do estudo das RI. Eles se referem, especificamente, à necessidade de incorporar ao mainstream da disciplina as contribuições da sociologia histórica (como os trabalhos de Charles Tilly e de Michael Mann) e dos teóricos dos sistemas-mundo (como Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi). “A suposição de que as diferentes narrativas sobre as RI devem ser apresentadas em oposição umas às outras deve ser substituída pela suposição de que é interessante e de que vale a pena contar essas histórias em paralelo”, afirmam. 24 1.4. A corrente ambientalista e a “guerra por recursos” As obras mais diretamente relacionadas com o tema do presente trabalho são aquelas construídas na busca de um vínculo entre os conflitos humanos e a obtenção de recursos naturais escassos ou de acesso difícil. Esse pressuposto está implícito nas obras de vários autores. No caso de Homer-Dixon, um deles, a hipótese construída para explicar os conflitos da “escassez ambiental” se restringe, conforme já foi dito, às disputas intra-nacionais por recursos renováveis. Ele escreve (1994: 5) que “a escassez de recursos renováveis pode produzir conflitos civis, instabilidade, deslocamentos populacionais desestabilizadores em larga escala e debilitar as instituições políticas e sociais”. Nessa situação de crise, a legitimidade dos regimes políticos e dos sistemas sócio-econômicos pode se ver ameaçada, com o risco de conflitos étnicos, insurreições e golpes de estado. Homer- Dixon discorda do argumento liberal de que a globalização favorece a solução pacífica dos conflitos. Ele sustenta que, ao contrário, a liberalização econômica em escala mundial tende a insuflar a competição por recursos, na medida em que os Estados nacionais perdem o controle sobre as atividades econômicas em seus territórios. Com uma linha de pensamento muito identificada com a dos teóricos da “escassez ambiental”, Michael Renner (2002: 15) elaborou para o Worldwatch Institute, onde trabalha como pesquisador sênior, um estudo sobre as causas de 16 conflitos intra-nacionais na Ásia, África, América Latina e Oceania. Todos, com exceção de dois (na Birmânia, atual Mianmá, iniciado em 1949, e na província indonésia de Papua Ocidental, iniciado em 1969), começaram a partir da segunda metade da década de 70, e sete deles ainda estavam em andamento quando a pesquisa foi publicada (2001). Oito dos conflitos analisados tiveram como causa principal ou muito importante a disputa por recursos naturais valiosos: Angola 25 (Cabinda) a partir de 1975, República do Congo em 1997, Zaire em 1996-1997, República Democrática do Congo a partir de 1998, Indonésia (Aceh) a partir de 1975, Papua Nova Guiné (Bougainville) em 1988-1998, Serra Leoa em 1991-2000 e Sudão, a partir de 1983. De acordo com Renner, esse tipo de conflito se sustenta sobre “um círculo vicioso no qual os lucros da exploração dos recursos financiam a guerra, e a guerra proporciona os meios e as condições que permitem a continuidade do acesso ilegítimo a esses recursos”. Um exemplo citado por ele é o da guerra civil no Sudão, em que as exportações de petróleo permitiram ao governo central levar adiante a guerra contra os rebeldes sulistas. No entanto, para bancar os custos da guerra, o governo necessita expandir a produção de petróleo, e para isso é necessário explorar depósitos petrolíferos situados cada vez mais fundo no território rebelde. Alguns críticos, como Phillipe Le Billon (2001: 563) e Jon Barnett (2001: 53), apontam uma limitação na corrente da “escassez ambiental”. Ela dirige seu foco para os “conflitos sociais”, como rebeliões e guerras civis, deixando de lado os conflitos interestatais, marcados quase sempre por combates em escala muito maior. Como os “conflitos sociais” ocorrem geralmente em países pobres e atrasados, são considerados conseqüência do subdesenvolvimento – e o envolvimento de potências ocidentais é ignorado. “A literatura do conflito ambiental está quase totalmente assentada sobre a premissa etnocêntrica de que os povos do Sul vão recorrer à violência em casos de escassez de recursos”, escreveu Barnett. “Raramente, ou nunca, esse mesmo argumento é aplicado aos povos do Norte industrializado.” Outras obras, publicadas a partir da década de 90, abordam as implicações estratégicas da escassez dos suprimentos de água potável, um problema que põe em risco a atividade econômica e a própria sobrevivência de muitos Estados (Gleick, 1993; Hillel, 1994). O foco de muitos desses trabalhos se localiza no Oriente 26 Médio, região onde a disputa pelo acesso aos recursos hídricos suficientes têm gerado ou agravado tensões entre coletividades nacionais (como os israelenses e os palestinos) e entre Estados que compartilham as mesmas fontes de água. É o caso da animosidade que se manifestou entre a Turquia, a Síria e o Iraque em torno de um projeto do governo turco para a construção de um sistema de irrigação com as água dos rios Tigre e Eufrates. O efeito dessas disputas sobre o panorama internacional é, no entanto, limitado, uma vez que não se registra, até agora, nenhum conflito violento em que a água tenha sido um motivo importante. O mesmo não ocorre com os recursos não-renováveis. Homer-Dixon, embora priorize o estudo dos recursos renováveis e dos conflitos internos, esboçou a hipótese de que os Estados lutam mais por recursos não-renováveis do que por recursos renováveis. Ele apontou dois motivos para isso: 1) como os combustíveis fósseis e os minérios são componentes críticos da produção voltada para a guerra, esses recursos podem ser convertidos em poder de Estado de um modo mais direto do que, por exemplo, peixes e florestas; 2) os países mais dependentes de recursos renováveis, e que, portanto, teriam mais motivos para se apoderar dos recursos dos seus vizinhos, também tendem a ser os mais pobres – o que, obviamente, limita a sua capacidade de agressão. Quem elaborou de modo mais sistemático a hipótese da “guerra por recursos” foi o norte-americano Michael Klare, autor de numerosos artigos e de dois livros importantes sobre o assunto: Resource Wars (2001a) e Blood and Oil (2004a). Do mesmo modo que Samuel Huntington (1997) formulou a teoria de que os confrontos violentos do pós-Guerra Fria serão travados principalmente em torno de diferenças culturais e de políticas de identidade, Klare desenvolveu uma linha de explicação para as causas dos conflitos na nossa época. Para ele, a questão chave não é o “choque de civilizações”, como defende Huntington, e sim a disputa por recursos naturais, cada vez mais escassos. “As guerras por recursos se tornarão, 27 nos anos vindouros, o traço mais marcante do ambiente de segurança global”, escreve (2001a). Trata-se, na sua visão, de uma tendência universal, na medida em que a demanda, intensificada pelo crescimento populacional e pelo desenvolvimento econômico, ultrapassa cada vez mais a capacidade da natureza de fornecer os materiais essenciais para a vida moderna. Em apoio à sua hipótese, Klare observa que a competição e o conflito em torno do acesso às principais fontes de materiais valiosos e/ou essenciais – água, terra, ouro, pedras preciosas, especiarias, madeira, combustíveis fósseis e minerais de uso industrial – acompanha a trajetória da humanidade desde os tempos pré- históricos (2000, 403-407). O impulso inicial que levou os europeus à conquista de territórios nas Américas, na Ásia e na África, a partir dos séculos XV e XVI, foi, em grande medida, a busca de recursos preciosos. Esse foi, também, um dos motivos para a dominação colonial que se estabeleceu logo em seguida. O avanço da industrialização, no século XIX, desencadeou uma nova corrida para o controle das fontes de matérias-primas. Entre elas estava o petróleo, que se revelou decisivo para o desenlace das duas guerras mundiais. Na visão de Klare, o período da Guerra Fria constitui uma exceção nesse processo – embora a disputa internacional por recursos naturais estratégicos não tenha desaparecido nessa época, as preocupações dos Estados Unidos e da União Soviética se voltaram mais para a disputa por influência política e ideológica. “Agora, com o fim da Guerra Fria e o início de uma nova era, a competição por recursos irá desempenhar novamente um papel crítico nos assuntos mundiais”, escreveu. Klare assinala que a influência dos recursos no cenário internacional dependerá dos padrões de evolução do consumo humano. Atualmente, afirma, “o consumo de certos recursos está se expandindo mais depressa do que a capacidade da terra em fornecê-los”, o que deverá elevar seus preços a patamares inatingíveis por grande parte da humanidade e, em alguns casos, provocar discórdia entre os 28 Estados interessados em garantir o seu acesso a custos aceitáveis. “Quanto mais intensa a pressão sobre a base dos recursos mundiais existentes, maior o risco de um grande trauma” (2000). Três tendências, na sua avaliação, são decisivas no processo de esgotamento dos recursos naturais mais importantes: 1) a globalização, que inclui entre seus efeitos a industrialização acelerada do Leste da Ásia, causando um aumento dramático do consumo de energia, e o surgimento, em várias partes do mundo, de uma classe média emergente que tenta reproduzir o estilo de vida europeu-ocidental e norte-americano, baseado no uso intenso de matérias-primas e, em especial, da adoção do carro de passeio como símbolo do sucesso pessoal; 2) o crescimento populacional, que adiciona novos fatores de pressão sobre os recursos naturais; 3) a urbanização, com um efeito especial sobre a água, em que o aumento da demanda para uso doméstico e para o sistema sanitário se agrava com a poluição causada pelos detritos lançados nos rios e nos lagos. Os teóricos da “guerra por recursos” estão convencidos de que as forças de mercado, sozinhas, são incapazes de resolver o desequilíbrio entre a oferta e a demanda, o que pode levar alguns Estados a buscar suas metas por meio da força ou da ameaça da força. Segundo Klare, o valor crescente de matérias-primas como o petróleo, aliado ao papel que desempenham no funcionamento da economia e dos aparatos militares, faz com que sejam consideradas como bens de interesse vital por muitos Estados, especialmente pelas grandes potências. O risco de ruptura do suprimento é encarado por esses Estados como uma ameaça à segurança nacional, cuja prevenção pode justificar intervenções militares e até mesmo a guerra em grande escala. A obra de Klare se soma à de outros autores que compartilham as premissas da “guerra por recursos”. Gleick, em um artigo redigido em parceria com Anne Ehrlich e Ken Conca (2000), aponta quatro condições importantes que influenciam, 29 na sua avaliação, a probabilidade de que os recursos naturais se tornem objetivo de uma ação política ou militar: 1) o grau de escassez (os recursos se distribuem pelo mundo de uma forma desigual e fatores humanos como a densidade populacional ou o desenvolvimento industrial intenso podem criar situações de escassez “relativa”); 2) a medida em que o suprimento é compartilhado por dois ou mais grupos (quando a base de recursos se estende sobre uma fronteira entre dois países, a discórdia sobre a localização ou o uso dos recursos é mais provável, como se viu na disputa que culminou na invasão do Kuwait pelo Iraque em 1990); 3) o poder relativo desses grupos (se há grandes disparidades de força econômica ou militar entre as partes envolvidas, as atitudes unilaterais são mais prováveis); e 4) a facilidade de acesso a fontes alternativas (como os conflitos trazem altos custos econômicos, sociais e políticos, eles têm boas chances de ser evitados caso se encontrem substitutos aceitáveis para os recursos em disputa). Susanne Peters (2004) agrega aos prognósticos sobre um eventual conflito internacional por recursos energéticos não-renováveis uma dimensão Norte-Sul. Uma pesquisa elaborada por ela constata que mais de 88,6% das reservas comprovadas de petróleo no planeta se situam num grupo de 19 países produtores do chamado “Terceiro Mundo” ou do antigo bloco comunista. Embora esse seja um critério discutível (como classificar, por exemplo, a Arábia Saudita, o Kuwait e os Emirados Árabes Unidos, com seus excedentes astronômicos na balança de pagamentos?), o fato, assinalado por Peters, é que nenhum dos principais países exportadores de petróleo e de gás integra a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – eles estão, portanto, do lado de fora do “clube dos ricos”. Na medida em que a demanda (dos países do “Norte”) pelo aumento das exportações desses recursos aumentar a pressão sobre as reservas (dos países do “Sul”), os produtores estarão na iminência de exaurir sua principal ou única riqueza para atender ao apetite dos consumidores. “Com a demanda 30 progressivamente ultrapassando a produção nas próximas décadas, nós podemos esperar uma luta em torno da distribuição das reservas remanescentes, com o Sul não mais disposto a aceitar a atual desproporção no consumo de energia em favor do Norte”, escreveu Peters. O eixo Norte-Sul dos conflitos por recursos também é foco das atenções de Klare (2004b). Depois de assinalar o deslocamento do centro da produção petroleira mundial dos dos EUA e das reservas britânico-norueguesas do Mar do Norte para o Golfo Pérsico, a Rússia e os países do Mar Cáspio, ele lembra que boa parte dos produtores emergentes guarda um passado colonial e abriga profunda hostilidade em relação às antigas potências imperiais da Europa: “Os EUA são vistos em muitos desses países como o herdeiro moderno dessa tradição imperial. O crescente ressentimento em função dos traumas sociais e econômicos causados pela globalização é dirigido aos EUA. Como o petróleo é encarado como o principal motivo para o envolvimento norte-americano nessas áreas, e porque as gigantescas corporações petroleiras dos EUA são tidas como a própria encarnação do poderio norte-americano, qualquer coisa que tenha a ver com o petróleo – oleodutos, poços, refinarias, plataformas – se torna, aos olhos dos insurgentes dessas regiões, com um alvo legítimo e atraente para ser atacado.” Uma crítica às hipóteses da “escassez ambiental” e da “guerra por recursos” é a de que é difícil separar os recursos naturais de outros fatores, como as rivalidades étnicas, a desigualdade social e os governos autoritários, incompetentes ou impopulares, o que tornaria impossível provar que os recursos constituem uma fonte de conflito. Essa crítica tem fôlego curto, pois os próprios alvos das críticas – autores como Homer-Dixon, Gleick e Klare – concordam que tanto os conflitos intra-estatais quanto os interestatais apresentam múltiplas causas. Na opinião de Klare (2001a), 31 “outros fatores, como hostilidade étnica, injustiça econômica e competição política, também levarão a erupções periódicas de violência. Cada vez mais, entretanto, esses fatores estarão vinculados às disputas sobre a posse ou o acesso a materiais vitais. Por mais divididos que dois Estados ou sociedades possam se encontrar em relação a assuntos como política ou religião, a probabilidade de que eles venham a entrar em guerra se torna consideravelmente maior quando um dos lados acredita que o seu suprimento essencial de água, energia ou alimentos se encontra ameaçado pelo outro lado. E, com a disponibilidade mundial de muitos recursos chaves ingressando num período de declínio, o perigo de que as disputas por recursos se misturem com outras áreas de desacordo só pode crescer.” É importante ressaltar que os defensores da hipótese da “guerra por recursos” não estão sozinhos nessas previsões. Para os marxistas, a competição entre as potências imperialistas pelo acesso aos mercados e às matérias-primas é uma das causas dos conflitos desde o século XIX (Lênin). Em termos mais gerais, Gilpin afirma que “num mundo de escassez, a questão fundamental é a distribuição do excedente econômico disponível” (1981: 67). E, para Susan Strange, o período do pós-Guerra Fria apresenta, entre suas características, “um envolvimento mais direto dos Estados na competição por parcelas da riqueza mundial” (1988 apud Kirshner, 1999). 32 Capítulo 2 2. A importância estratégica do petróleo O petróleo, principal fonte de energia da economia moderna, manterá sua importância nas próximas décadas, segundo todas as previsões, e sua posse poderá se tornar um fator de disputa política na medida em que o crescimento da demanda – principalmente nos países em desenvolvimento e nas potências emergentes, como a China – exercer pressão sobre as reservas. Grande parte dos especialistas acredita que a produção mundial de petróleo está perto de atingir o seu ponto máximo, a partir do qual iniciará um lento declínio. Essa previsão, caso se confirme, ressaltará ainda mais o papel estratégico do Golfo Pérsico, onde se situam mais de dois terços das reservas. 2.1. As fontes de energia primária na atualidade O petróleo foi a matéria-prima mais importante do século XX e manterá esse papel, ao que tudo indica, nas primeiras décadas do século XXI. Como fonte de energia, serve para quase todas as necessidades imediatas. Na forma de gasolina, óleo diesel e querosene, entre outros derivados, o petróleo responde por 95% da energia destinada aos meios de transporte, no mundo inteiro. É também um dos principais combustíveis utilizados na geração de eletricidade, além de servir de matéria-prima para uma infinidade de produtos, como os plásticos, os fertilizantes, os tecidos sintéticos e os explosivos. Atualmente, o petróleo fornece 39,3% de toda 33 a energia consumida no planeta, conforme mostra a Tabela 1. O carvão, a segunda fonte de energia mais importante, é responsável por apenas 25,5%. Os restantes 35,2% do consumo de energia se dividem entre o gás natural (23,4%), a energia nuclear (7,4%), a energia hidroelétrica e os recursos mais tradicionais, como a lenha, os resíduos de colheitas e os excrementos de animais. Tabela 1: 34 A Agência Internacional de Energia (AIE), no seu relatório World Energy Outlook 2004 (WEO 2004), prevê que o petróleo continuará ao menos até 2030 – o horizonte das projeções naquele documento – com “o mais importante combustível no mix global da energia primária” (Tabela 2). Com o esperado crescimento anual de 1,7% no consumo mundial de energia nesses próximos 25 anos, a demanda por petróleo vai quase dobrar, passando de 77 milhões de barris diários em 2002 para 90 milhões em 2010 e 121 milhões em 2030. Tabela 2: 35 A primazia do petróleo resulta, em primeiro lugar, da inexistência de qualquer produto capaz de substituí-lo de modo eficaz. A energia nuclear, que começou a ser utilizada para fins pacíficos na década de 1950, alcançou resultados limitados – sua expansão foi interrompida diante dos problemas de impacto ambiental, dada a dificuldade em se encontrar um destino satisfatório para os resíduos radiativos, e dos riscos de segurança estratégica envolvidos na difusão da tecnologia nuclear em escala mundial. Os chamados combustíveis alternativos, como as células de hidrogênio, ainda são essencialmente um objeto de pesquisa, e não se prevê que possam ser utilizados comercialmente em larga escala nos próximos vinte ou trinta anos. Outra vantagem decisiva do petróleo em relação às demais fontes de energia é o custo. Uma vez concluído o investimento necessário à descoberta da reserva a ser explorada e à instalação dos equipamentos necessários, a extração é feita com um gasto reduzido em comparação com as demais fontes de energia de origem mineral (com exceção do gás natural, que é ainda mais barato). Seu rendimento como combustível é incomparável. Uma tonelada do tipo de carvão mais utilizado gera uma energia equivalente a 0,5 tonelada de óleo cru (Smil: 2002, 126). Além disso, o petróleo pode ser transportado por longas distâncias mais depressa e a custo menor do que qualquer dos seus competidores. O gás natural, por exemplo, depende de uma estrutura dispendiosa de gasodutos para chegar aos mercados consumidores – a menos que seja transportado em forma líquida, o que também eleva significativamente o custo – e é muito menos versátil do que o petróleo no que diz respeito às possibilidades de utilização. Esse líquido está tão presente na nossa vida cotidiana que nem sequer nos damos conta da sua existência. No entanto, como escreve Daniel Yergin na obra mais completa sobre o assunto, O Petróleo, “a civilização contemporânea desabaria caso os poços de petróleo secassem subitamente” (1993, xiii). É difícil exagerar sua 36 importância econômica. Tanto para os países quanto para muitas empresas e indivíduos, o petróleo é sinônimo de riqueza. Nenhum outro produto tem importância tão decisiva para o funcionamento da economia mundial – uma simples variação no seu preço pode representar o início de uma fase de crescimento ou, ao contrário, lançar o mundo na recessão. Uma boa definição do papel do petróleo no atual cenário internacional foi apresentada por Robert Ebbel, diretor do Programa de Energia do Center for Strategic and International Studies, dos EUA, em discurso na abertura do Open Forum: Geopolitics of Energy into the 21st Century, realizado no Departamento de Estado, em Washington, em 30 de abril de 2002: “Os derivados de petróleo abastecem mais do que automóveis e aviões. O petróleo abastece o poder militar, tesouros nacionais e a política internacional. Ele não é apenas uma commodity que pode ser comprada e vendida no contexto tradicional do equilíbrio entre oferta e demanda, mas um determinante do bem - estar, da segurança nacional e do poder internacional daqueles que possuem esse recurso vital e o inverso disso para os que não o possuem.” A dimensão política do petróleo é decisiva. O petróleo contribui para determinar a hierarquia no cenário internacional. “Para os países importadores de petróleo, a garantia das entregas de petróleo é a base da segurança econômica. Já entre os países exportadores, a posse das reservas petrolífera é o elemento dominante no pensamento econômico”, escreve Klare (2002, 35). No comércio mundial do petróleo, as políticas dos Estados na busca de poder e de riqueza se misturam com os interesses privados de grandes empresas capitalistas – elas mesmas, com muita freqüência, instrumentos de estratégias estatais. 37 2.2. O petróleo e os conflitos internacionais Parafraseando Yves Lacoste, em seu comentário muito citado sobre o estudo da geografia, o petróleo serve, igualmente, para fazer a guerra. O primeiro estadista a reconhecer seu valor estratégico foi Winston Churchill. Em 1912, pouco depois de assumir o comando do Almirantado britânico, Churchill tomou uma decisão que se tornaria um marco histórico – a conversão dos navios-de-guerra da Marinha Real, movidos a carvão, para o petróleo. O novo combustível deu aos navios britânicos na I Guerra Mundial uma vantagem em velocidade e em autonomia de percurso suficiente para deixar fora de combate as esquadras alemãs, que ainda não tinham aderido ao novo combustível. O conflito assinalou, pela primeira vez, um vínculo entre o petróleo e a capacidade militar. Foi a estréia do tanque e do avião de combate – duas máquinas que iriam revolucionar a condução da guerra. Igualmente importante foi o uso de veículos movidos a gasolina para transportar as tropas até a frente de batalha. Durante a I Guerra, a frota britânica de caminhões cresceu de 10 mil para 60 mil, e recebeu, como reforço, outros 50 mil veículos enviados pelos Estados Unidos (Klare: 2002, 30). A novidade levou Lord Curzon, futuro ministro britânico do Exterior, a dizer, em 1918, que “a causa aliada flutuou para a vitória sobre uma onda de petróleo” (Yergin: 1993, 178). Desde então, o petróleo se tornou um recurso estratégico decisivo. Na II Guerra Mundial, um objetivo prioritário das tropas alemãs que invadiram a União Soviética era o controle dos valiosos campos petrolíferos da região de Baku, hoje pertencente ao Azerbaijão. O fracasso dessa tentativa deixou os nazistas sem combustível para resistir à ofensiva conjunta das tropas anglo-americanas e soviéticas que culminou com a derrota alemã em 1945. Enquanto isso, no Pacífico, a imposição de um embargo norte-americano às exportações de petróleo para o Japão – um país altamente dependente dos suprimentos externos de energia – 38 levou os dirigentes japoneses à convicção de que a guerra seria inevitável. Foi esse o motivo, juntamente com o afã de se apossar das reservas petrolíferas da atual Indonésia (na época, uma colônia holandesa), que levou o Japão a deflagrar o ataque de surpresa a Pearl Harbor, em 1941 (Weinberg: 1994, 254). Escreve Klare (2002, 38): O acesso ao petróleo era considerado pelos estrategistas americanos como algo particularmente importante por ter sido um fator essencial para a vitória dos Aliados sobre as potências do Eixo. Embora as explosões nucleares em Hiroshima e Nagasaki tenham determinado o fim da guerra, foi o petróleo que serviu de combustível para os exércitos que derrotaram a Alemanha e o Japão. O petróleo deu às forças aliadas uma vantagem decisiva sobre seus adversários, que não dispunham de fontes seguras desse combustível. Por esse motivo, disseminou-se a idéia de que o acesso a amplas fontes de petróleo seria um fator crítico para o sucesso dos EUA em quaisquer conflitos no futuro. Após a II Guerra Mundial, as imensas reservas do Oriente Médio – quase totalmente sob o controle de empresas norte-americanas e britânicas, que as comercializavam a preços baixos – constituíram um fator decisivo na reconstrução das economias da Europa Ocidental e do Japão. Nesse período, o petróleo suplantou o carvão como a principal fonte de energia do mundo. Durante as três primeiras décadas após a II Guerra, o consumo mundial de petróleo cresceu a taxas superiores a 7% ao ano. Uma parcela crescente dessa demanda passou a ser suprida pelos países produtores do Golfo Pérsico. Com o declínio do imperialismo britânico, antes hegemônico no Oriente Médio, e a ascensão do nacionalismo, que enfraqueceu a influência das grandes empresas petroleiras – em sua maioria, norte-americanas –, os soviéticos passaram a disputar influência com os EUA na região, embora sem muito sucesso. O vínculo entre a segurança nacional dos EUA e o abastecimento de combustível se tornou cada vez mais estreito a partir da crise de 1973/74. Em janeiro de 1980, pouco depois do 39 segundo “choque do petróleo”, provocado pela queda do xá do Irã, o presidente Jimmy Carter declarou que qualquer tentativa de restringir o fluxo de petróleo pelo Golfo Pérsico “será repelida por todos os meios necessários, inclusive a força” (1980). Carter se referia à União Soviética, que no final de 1979 havia invadido o Afeganistão. Mas a Doutrina Carter, como esse princípio se tornou conhecido, logo foi adaptada para lidar com outras ameaças, como o risco de ataques a navios- petroleiros em trânsito pelo Golfo Pérsico durante a guerra entre o Irã e o Iraque (1980/1988), e a invasão do Kuwait pelo Iraque, em 1990 (Palmer: 1992, 109). A permanência dessa doutrina no pensamento estratégico norte-americano se mostrou evidente em 2003, com a decisão do governo de George W. Bush de invadir o Iraque, ainda que se considere a possibilidade de que outros motivos, além do petróleo, também tenham tido peso na ação militar. 2.3. O papel do Golfo Pérsico no mercado petroleiro mundial A importância política do Golfo Pérsico é conseqüência dos fatores geológicos que determinam a localização mundial das reservas de petróleo. Ao contrário do carvão, presente em todos os continentes em grandes quantidades, o petróleo se distribui pelo planeta de um modo muito desigual. De acordo com o World Energy Outlook 2004 (WEO 2004), da Agência Internacional de Energia (AIE), os países do Oriente Médio detém cerca de 67% das reservas comprovadas de petróleo (Tabela 3), embora respondam por apenas 37% da atual produção mundial. 40 Tabela 3: Na lista dos países com as maiores reservas (Tabela 4), os cinco primeiros lugares pertencem àquela parte do mundo: pela ordem, Arábia Saudita, Irã, Iraque, Emirados Árabes Unidos e Kuwait. Somados ao Catar, Omã e Iêmen, esses países possuíam em 2002 um total de 679 bilhões de barris de petróleo no seu subsolo. 41 Tabela 4: 42 Dois fatores reforçam dramaticamente a importância do petróleo do Oriente Médio – especificamente, do Golfo Pérsico, pois a produção em outros lugares da região, como a Síria, é relativamente pequena, e exportadores importantes, como a Líbia e a Argélia, são classificados pelas publicações especializadas como africanos. Em primeiro lugar, a região exerce uma posição única no mercado internacional, por sua capacidade de ampliar significativamente a produção em curtíssimo prazo. Em 2004, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos eram os únicos países do mundo que mantinham uma reserva de capacidade ociosa pronta para ser acionada – ou seja, os únicos que não extraíam todo o petróleo de que seriam capazes. Essa posição de controle sobre a própria produção confere a esses países – em especial, à Arábia Saudita, o grande swing producer, no jargão do mercado – um poder incomparável sobre os preços, regidos, como os de qualquer outra mercadoria, pela lei da oferta e da procura. Ainda mais importante é o fato de que somente no Oriente Médio os países exportadores são considerados capazes de aumentar sua produção, de modo sustentável, ao longo dos próximos vinte ou trinta anos. Além disso, a região do Golfo Pérsico consome apenas uma pequena parcela do petróleo que produz, o que reforça ainda mais sua posição no mercado global. 2.4. A teoria de Hubbert sobre o “pico do petróleo” Conforme demonstrou o geofísico norte-americano Marion King Hubbert (1903- 1989), a extração em qualquer campo de petróleo segue, inexoravelmente, uma curva em forma de sino. No início, quando o reservatório acabou de ser perfurado e os seus limites ainda não são conhecidos, a produção é pequena. Na medida em que o campo é mapeado, novos poços são abertos e a produção cresce rapidamente e se estabiliza. É o período em que se extrai a parcela de petróleo de acesso mais 43 fácil. A partir de um certo ponto, porém, as dificuldades se tornam crescentes. A produção cai, ainda que se perfurem novos poços. Durante a década de 50 Hubbert descobriu, analisando os dados da exploração petroleira em 48 Estados norte- americanos (todos, exceto o Alasca e o Havaí), que o pico de produção ocorre quando cerca da metade do total de petróleo de um reservatório já foi extraído. Por maiores que sejam os esforços para retirar a parcela remanescente, os resultados serão declinantes (Heinberg: 2003, 87-92). Com base nesse método de cálculo, Hubbert previu, em 1956, que o pico da produção de petróleo nos EUA ocorreria em 1970 – o que, de fato, aconteceu, dando alta credibilidade a esse método de cálculo. As conclusões de Hubbert hoje estão incorporadas a todas as projeções sobre a produção de petróleo. Como a maior parte dos grandes campos petrolíferos provavelmente já foi descoberta – a taxa de novas descobertas cai ano a ano, e as novas reservas encontradas são cada vez menores --, é possível calcular o desempenho futuro de cada país produtor, com margem de erro pequena. Os diversos países do mundo estão em estágios diferentes das suas curvas de exploração. As jazidas da Grã-Bretanha e da Noruega no Mar do Norte – que ajudaram a baixar os preços mundiais nas duas décadas posteriores aos dois choques petroleiros dos anos 70 – já atingiram o pico e agora estão declinando ao ritmo de 6% ao ano. A curva dos EUA chegou ao pico em 1970, com 9,64 milhões de barris diários, e desde então vem caindo, com uma produção de apenas 5,7 milhões em 2003. Já as reservas do Golfo Pérsico ainda estão num estágio inicial de esgotamento, o que confere aos seus donos – os respectivos Estados-nacionais – uma posição privilegiada. Como a demanda mundial por petróleo continuará crescendo e os demais produtores nem sequer conseguirão manter por muito tempo os níveis atuais, caberá ao Oriente Médio atender às necessidades adicionais de suprimento 44 nas próximas décadas. De acordo com a AIE, as exportações da região responderão por mais de 2/3 do comércio global de petróleo em 2030. “Os produtores do Oriente Médio (...) vão assumir uma liderança indiscutível no lado da oferta do mercado de petróleo”, assinala Salameh (2001, 129). 2.5. A divisão da oferta entre países da Opep e não-Opep O aumento do peso relativo do Oriente Médio fará crescer a influência da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo)2 no mercado mundial. A Opep foi fundada em 1960, com o objetivo de coordenar as políticas petroleiras dos seus integrantes, em particular no que se refere aos preços e ao volume de produção. Atualmente os membros da Opep respondem por cerca de 40% da produção mundial, mas as suas reservas comprovadas atingem cerca de 77% do total. Ao tomar suas decisões, a Opep sempre leva em conta um equilíbrio entre duas metas contraditórias: o maior preço possível e a máxima fatia do mercado. Em todos os países-membros, a exploração do petróleo é controlada pelo Estado. A partir da década de 80, a influência da Opep se enfraqueceu com o agravamento das divergências entre seus integrantes, que chegaram a travar guerras entre si (Iraque e Irã e, depois Iraque e Kuwait), e com o crescimento da produção de exportadores de fora da Opep, como a Rússia, as antigas repúblicas soviéticas da bacia do Mar Cáspio e países africanos, como Angola. Nos países chamados de não-Opep, os custos de prospecção e de exploração são mais altos do que na Opep. Na medida em que as reservas dos países não-Opep declinarem, a tendência é que 2Os membros fundadores da Opep são o Iraque, o Irã, o Kuwait, a Arábia Saudita e a Venezuela. Depois ingressaram na organização o Catar (1961), a Indonésia (1962), Líbia (1962), os Emirados Árabes Unidos (1974), a Argélia (1969) e a Nigéria (1971). 45 a Opep aumente sua participação na produção mundial, retomando o controle da oferta (Tabela 5). Tabela 5: Pelos cálculos da AIE, em 2030 a Opep deverá atingir uma produção de 65 milhões de barris/dia, cerca de 53% do suprimento mundial de óleo – um pouco acima do seu topo histórico, em 1973 (DoE). 2.6. A defasagem entre a demanda e a capacidade de produção Da produção adicional de 31 milhões de barris/dia que a AIE projeta para o período entre 2010 e 2030, nada menos que 29 milhões de barris/dia virão do Oriente Médio. Esse aumento será facilitado pelos custos de produção na região – os mais baixos do mundo, numa média de US$ 2 por barril. Os custos de 46 investimento também são reduzidos, estimados no relatório da AIE em US$ 5 000 por barril/dia em capacidade de produção. O horizonte temporal dessas previsões pode parecer distante, mas, como escreve Hervé l´Huillier, diretor da empresa multinacional de petróleo francesa Total, “a prospectiva desempenha um papel decisivo na economia petroleira mundial” (2003, 6). De acordo com muitos especialistas, dois fenômenos paralelos vão impulsionar a demanda mundial por petróleo nas próximas décadas. O primeiro é a dependência crescente dos EUA em relação às importações de combustível e o segundo é o aumento vertiginoso do consumo de energia – inclusive de petróleo – nos países em desenvolvimento, principalmente na China. Com apenas 5% da população mundial, os EUA consumiram, em 2003, 27% de todo o petróleo produzido no planeta. Desse consumo, cerca de 20 milhões de barris diários, mais da metade (56%, ou 12,3 milhões de barris diários) corresponde às remessas procedentes do exterior (Tabela 6). A dependência norte-americana das importações deverá aumentar ano a ano. A explicação é muito simples: enquanto o consumo tem crescido, a produção doméstica vem caindo, conforme já foi assinalado aqui. De acordo com os dados do Departamento de Energia dos EUA (DoE), as importações norte-americanas têm aumentado, desde 1988, a uma taxa constante de 5% ao ano. Em 2025, caso se mantenha a tendência atual, 68% do petróleo consumido nos EUA será importado. (segue) 47 Tabela 6: Os EUA têm procurado diversificar os fornecedores externos a fim de reduzir sua vulnerabilidade a rupturas no suprimento de petróleo. Os dirigentes norte- americanos se preocupam, em especial, com o risco de o país se tornar dependente dos exportadores do Golfo Pérsico, uma região marcada por intensos conflitos. 48 Nos últimos anos, o fornecimento tem sido, de fato, bastante diversificado. Entre os seis países que mais exportaram petróleo para os EUA em 2001, apenas dois estão situados no Oriente Médio: a Arábia Saudita e o Iraque. Os outros quatro são o Canadá, o México, a Venezuela e a Nigéria. Mas, com o passar do tempo, na medida em que os exportadores de outras regiões se mostrarem incapazes de atender a demanda em expansão, a parcela do Golfo Pérsico no total das importações norte-americanas crescerá, passando de 20,4% em 2003 para quase 30% em 2025, de acordo com as projeções do DoE. Enquanto isso, a participação da Opep no total das importações dos EUA, que foi de 42,1% em 2003, deve superar 60% em 2025. Mas a dependência em relação às importações do Golfo Pérsico não é só norte- americana. O fornecimento de petróleo da região afeta, diretamente, todos os países que não são auto-suficientes em combustíveis e, indiretamente, o mundo inteiro, na medida em que é o principal fator na determinação dos preços. A Europa Ocidental e o Japão sempre recorreram, para se abastecer, às importações do Oriente Médio, da África e, mais recentemente, da Rússia. No caso europeu, essa dependência está fadada a crescer na medida em que as reservas do Mar do Norte completem seu ciclo de esgotamento. 2.7. A explosão do consumo nos países “em desenvolvimento” O novo complicador nos cálculos de oferta e demanda de combustíveis é a tendência de aumento acelerado do consumo nos países “em desenvolvimento”, em especial naqueles que têm apresentado nos últimos anos altas taxas de industrialização e de expansão econômica, como a Índia e a China. O relatório WEO 2004, da AIE, prevê um crescimento da demanda por petróleo nos “países em desenvolvimento” num ritmo mais veloz que a média do planeta, 49 passando de 38% em 2002 para 48% em 2030. Os outros dois grupos de países incluídos nessa projeção são os integrantes da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o antigo bloco soviético, formado pela Rússia e demais repúblicas da ex-URSS e pelos países do Leste Europeu, as chamadas “economias em transição”. Pelos cálculos da AIE, 2/3 do crescimento da demanda no período virá dos países em desenvolvimento (Tabela 7). “Esse aumento (...) resulta do crescimento mais rápido da economia e da população”, explica o relatório. “Mais pessoas viverão nas cidades e terão mais condições de obter acesso a serviços de energia”. Tabela7: No lado do consumo, o que mais preocupa o governo norte-americano e organizações como a AIE é a China, que em 1993 deixou de ser um país auto- 50 suficiente em petróleo para se tornar um importador bruto. O relatório WEO 2004 prevê que o consumo de petróleo da China crescerá 3,4% ao ano no período que se estende até 2030. É uma taxa impressionante – o dobro do índice mundial –, embora bem abaixo do extraordinário crescimento de 11% registrado em 2003. Nos próximos 25 anos, segundo as projeções da AIE, as importações da China vão crescer até alcançar 74% da demanda. Isso significa um total de 10 milhões de barris diários, o equivalente ao atual volume de importações dos EUA (WEO 2004). Já o Departamento de Energia dos EUA, nas suas estimativas para os países “em desenvolvimento” da região da Ásia/Pacífico (todos menos a Austrália, a Nova Zelândia e o Japão), prevê que o consumo vai dobrar nos próximos 25 anos, saltando de 15 milhões de barris diários para 32 milhões. Um fator poderoso por trás dessa expansão vertiginosa da demanda é a irreversível tendência de motorização nos países “em desenvolvimento”. Os efeitos são mais intensos na Ásia, que combina as populações mais numerosas do planeta com altas taxas de crescimento econômico. A China possui o mercado de carros de passageiros que mais cresce no mundo – sua frota aumentou mais de 9% ao ano entre 1998 e 2002, comparados com apenas 3% no mundo todo (39). Mais de 2 milhões de carros novos foram vendidos no país em 2003 e o espaço para a ampliação contínua da frota é enorme. Segundo o WEO 2004, há na China apenas 10 carros para cada mil habitantes, comparados com 770 na América do Norte e 500 na Europa . A explosão da demanda de energia em potências emergentes, como a China e a Índia (Tabela 8), pode trazer sérias implicações políticas, segundo Klare (2004a, 23): Esses países (...), por possuírem um suprimento doméstico apenas limitado, serão forçados a disputar com os EUA, a Europa e o Japão na busca do acesso às poucas zonas produtoras com excedentes de petróleo, o que deverá exacerbar ainda mais as pressões competitivas já existentes sobre essas áreas altamente voláteis.” (41). 51 Tabela 8: Na visão de Klare, os conflitos geopolíticos ligados à disputa pelo petróleo escasso tendem a se agravar na medida em que parcelas cada vez maiores das reservas mundiais de petróleo ingressarem na fase decrescente do seu ciclo de exploração, com a gradativa e inexorável contração da oferta global. 52 2.8. A polêmica sobre o esgotamento das reservas Como é possível saber quanto ainda existe de petróleo no planeta? “Calcular as reservas é tanto uma ciência quanto uma arte”, reconhece a AIE (WEO 2004). Os especialistas em recursos de energia travam, há décadas, uma discussão acalorada. A controvérsia envolve, no essencial, duas visões opostas sobre a evolução futura do abastecimento de petróleo (Babusiaux e Bauquis, 2005). Num dos pólos do debate estão os chamados “pessimistas”. Eles sustentam que o ponto culminante (o pico) da extração petroleira está relativamente próximo (por volta de 2010) e que, mesmo com a melhoria nas técnicas de extração, a produção logo se tornará incapaz de acompanhar o rápido aumento da demanda. Esse grupo se articula em torno da Association for the Study of Peak Oil and Gas (ASCO) e tem como principais expoentes os geólogos Colin Campbell e Kenneth Deffeyes. Os “otimistas”, por sua vez, argumentam que todas as previsões feitas no passado sobre o fim do petróleo fracassaram. Eles confiam que a introdução de novas tecnologias levará à descoberta de reservas ainda desconhecidas e permitirá melhorias sensíveis nos níveis de recuperação do petróleo existente. Na prática, as análises da AIE se alinham com esse pólo do debate – sua previsão para o pico da produção de petróleo se situa entre 2028 e 2032 (embora a organização apresente dois cenários alternativos: 2013 a 2017, para o caso de os recursos se revelarem inferiores aos previstos, e 2033 a 2037, para a hipótese contrária, de que os recursos superem as previsões) (WEO 2004). Para os “otimistas”, não faltará petróleo no mundo nas próximas décadas, desde que sejam feitos os investimentos necessários para a sua exploração. Nesse grupo, o nome mais destacado é o do economista Morris Adelman, do MIT, um influente conselheiro na formulação das políticas de energia do governo norte-americano. 53 Nesse debate, é necessário entender a diferença entre os recursos (o total de um determinado mineral existente na crosta terrestre) e as reservas (as parcelas de cada mineral podem ser extraídas com as técnicas disponíveis e a um custo aceitável). As reservas se dividem em “comprovadas” (com mais de 90% de chances de serem extraídas ao longo da vida útil de um campo), “prováveis” (aquelas que têm mais de 50% de chances de serem técnica e economicamente possíveis) e “possíveis” (as que possuem essa chance em escala menor que 50%) (BP2004). Para avaliar as reservas, o parâmetro usado convencionalmente é a razão entre a reserva comprovada e a produção, expressa na forma de r/p, uma divisão cujo resultado se expressa num determinado número de anos – o tempo necessário para consumir toda a reserva. “Avanços na exploração e na extração constantemente transferem minerais da categoria mais ampla e pouco conhecida de recursos para a de reservas”, explica Smil (2003). “O que era recurso se torna reserva.” Os recursos recuperáveis em última instância – outro conceito usado nas avaliações do futuro do petróleo – incluem as reservas comprovadas, as prováveis e as possivelmente existentes nos campos de petróleo já descobertos, assim como uma estimativa das reservas de petróleo que ainda não foram descobertas. “Quanto maior a base de recursos, maior quantidade de petróleo tem chances de ser transferida para a categoria de reserva comprovada, mais tempo levará até o pico da produção ser alcançado e mais petróleo será produzido em última instância”, afirma o WEO 2004. As poucas estimativas sobre os recursos de hidrocarburetos estão sujeitas a muitas incertezas. A fonte primária mais aceita para essas previsões é a US Geological Survey (USGS), do governo norte-americano. No seu estudo mais recente, de 2000, a USGS avalia que os recursos de petróleo existentes em última instância, inclusive os depósitos de gás natural conversíveis em combustível líquido (NGL), somavam 3,345 trilhões de barris no início de 1996. Essa cifra 54 agrega todos os tipos de reservas (inclusive as não-descobertas) e o total do petróleo já consumido desde o século XIX até aquele ano – um montante estimado em 717 bilhões de barris. A partir dos dados existentes e de uma média dos diferentes graus de probabilidade de comprovação das reservas possíveis, a USGS avalia em 2,628 trilhões de barris o estoque total de petróleo recuperável existente no planeta em 1996. Teoricamente, esse montante de petróleo seria suficiente para abastecer o mundo durante 70 anos com base no consumo médio projetado pela AIE até 2030. Na prática, não é tão simples. Em primeiro lugar, as cifras para o petróleo efetivamente disponível são bem menores – 959 bilhões de barris, segundo a estimativa da USGS. O cálculo feito pela multinacional British Petroleum Amoco (BP), uma fonte de dados sobre energia muito respeitada, deu um resultado parecido, 1,147 trilhão (BP 2004). As cifras indicam, nos dois casos, que a humanidade já consumiu cerca da metade do petróleo disponível no planeta. Em segundo lugar, há projeções bem menos otimistas que a da USGS no que se refere à razão r/p do petróleo mundial. A mesma BP estabelece essa razão em 41 anos, e a revista World Oil, em 36 anos (WEO 2004). A ASCO questiona a base de cálculo da USGS, que utiliza informações prestadas pelos países produtores. Segundo a entidade, as reavaliações das reservas feitas pelos países da Opep em 1986 e 1987 foram manipuladas, para cima, com o objetivo de ampliar as respectivas cotas de exportação, e não correspondem à verdadeira dimensão das reservas comprovadas (Babusiaux e Bauquis: 2005, 15). “A confiabilidade das reservas relatadas pelas companhias nacionais de petróleo tem sido, há muito tempo, um motivo de grande preocupação”, constata o WEO 2004. O problema da falta de transparência veio à tona em janeiro de 2004, quando, pela primeira na história do petróleo, uma companhia internacional, a Shell, revelou que havia superestimado suas reservas. A empresa admitiu que havia 55 incorporado em suas reservas comprovadas 3,9 bilhões de barris de petróleo pertencentes, na realidade, às categorias de “prováveis” ou “possíveis”. Pouco depois, a Shell rebaixou a classificação de outros 600 milhões de barris supostamente existentes em suas reservas comprovadas, enquanto empresas menores, nos EUA e no Canadá, faziam revisões semelhantes, espalhando a desconfiança pelos mercados (WEO 2004). 2.9. A “Era do Crepúsculo”? O problema mais espinhoso é o ritmo lento da expansão das reservas comprovadas em relação ao consumo. A partir da década de 1990, o nível das reservas comprovadas permaneceu praticamente estável, passando de 1 trilhão de barris em 1991 para 1,14 trilhão em 2003, pelos cálculos da BP. A AIE constata que “na última década, as descobertas repuseram apenas a metade do petróleo que foi produzido” (WEO 2004). Os “pessimistas” se apóiam nesses dados para argumentar que 1) quase todos os acréscimos à categoria de reservas comprovadas na década de 1990 se devem à reavaliação da quantidade passível de ser extraída dos campos já existentes, e não de novas descobertas, e 2) que hoje em dia praticamente todo o petróleo existente no planeta já está mapeado, o que deixa pouco espaço para descobertas importantes. O geofísico norte-americano David Goodstein (2004, 121), do California Institute of Technology (Caltech), expressou o ponto de vista dessa corrente ao afirmar em seu livro Out of Gas – The End of the Age of Oil: “Essa desaceleração da taxa de crescimento (da descoberta de petróleo) é uma conseqüência do mesmo fenômeno que levou às previsões do pico de Hubbert. (...) A razão na qual o petróleo é descoberto é uma curva em forma de sino que atingiu o seu pico décadas atrás; a razão pela qual o petróleo pode ser retirado do solo é outra curva em forma de sino cujo pico os seguidores de Hubbert estão tentando 56 prever. (...) Quando a taxa de crescimento das reservas conhecidas chegar a zero (o que, para todos os efeitos práticos, já pode ter acontecido), nós vamos pela primeira vez na História consumir mais petróleo do que estamos descobrindo.” Os “otimistas” respondem que a maior parte das prospecções feitas nos últimos quinze anos ocorreu nos países que exploram o petróleo intensamente há mais tempo, enquanto a região mais promissora – o Golfo Pérsico, onde se concentram os grandes produtores da Opep – interrompeu na década de 1960 a procura de novas reservas, por falta de interesse em explorá-las. “A Arábia Saudita sozinha tem mais de 80 campos conhecidos e explora apenas nove deles”, escreveu Adelman (2004), na revista Regulation. “É claro que há muito mais campos, conhecidos e desconhecidos.” O fator essencial, na sua opinião, é o avanço tecnológico, que sempre amplia o montante de petróleo disponível: “O crescente conhecimento reduz o custo, revela novos depósitos em áreas existentes e abre novas áreas para descoberta. Em 1950, não havia produção de petróleo offshore – ele era considerado altamente ‘não-convencional’. Cerca de 25 anos depois, poços offshore estavam sendo perfurados em profundidades de 1 mil pés. E 25 anos depois disso, trabalhadores petroleiros estavam fazendo perfurações em águas com 10 mil pés de profundidade – depois que o avanço tecnológico permitiu que eles perfurassem sem a dispendiosa estrutura de aço que antes tornava cara demais a exploração de petróleo em águas profundas. Hoje, 1/3 de toda a produção de petróleo nos EUA vem de poços offshore” (2004). Na visão “otimista”, as melhorias tecnológicas geram a perspectiva da utilização crescente dos chamados petróleos “não convencionais”, como o óleo extra-pesado da bacia do rio Orenoco, na Venezuela, e as areias betuminosas de Athabasca, no Canadá. As quantidades de petróleo existentes nessas regiões são enormes. O governo da província canadense de Alberta calcula existir 174 bilhões de barris que 57 podem ser extraídos de maneira econômica (Appenzeller, 2004), enquanto a Venezuela possui 272 bilhões de barris de petróleo extra-pesado. Mas a exploração é lenta e cara. Um poço de petróleo extra-pesado produz de 5 a 100 barris diários, enquanto um poço de petróleo convencional alcança 10 mil barris diários, todos os demais fatores sendo iguais (Salameh, 2003). A extração do petróleo contido nas areias betuminosas é um processo ainda mais moroso, com o uso intenso de capital e de energia e um impacto ambiental devastador. Na revista National Geographic, o jornalista Tim Appenzeller (2004) descreve a produção de petróleo em Athabasca: “Observando a vala de 60 metros onde gigantescas pás devoram o leito de areia betuminosa, Neil Camarta, vice-presidente da Shell para o Canadá, reconhece a diferença entre a exploração das areias e o petróleo cru líquido, que jorra livremente. ‘Você está vendo o trabalho que dá. O petróleo não jorra do chão.´ A Shell é uma das três empresas que, juntas, extraem 600 mil barris de óleo por dia das areias de Athabasca. Mas cada passo do processo exige força bruta. A areia betuminosa precisa ser minerada e extraída – 2 toneladas para produzir um barril de óleo. Caminhões enormes carregam 350 toneladas de cada vez, em recipientes que são aquecidos durante o inverno subártico para que a areia não se congele, formando uma enorme massa. Próximo à mina, a areia é lavada em gigantescas máquinas, onde torrentes de água morna e solvente retiram dela todo o alcatrão, ou betume. O que sobra são toneladas de areia molhada, ou tailings, que voltam a ser despejadas em depósitos de rejeitos. Mas, após essa etapa, o betume ainda não está pronto para ser bombeado para uma refinaria, como se fosse o óleo cru comum. Para transformá-lo em petróleo, é preciso aquecê-lo e quebrar as gigantescas moléculas de alcatrão – seja a 500ºC ou a temperaturas mais baixas, em mistura com gás de hidrogênio e um catalisador.” A AIE acredita, em caso de redução da oferta de petróleo convencional, com a conseqüente alta dos preços, os óleos “não-convencionais” se tornarão cada vez 58 mais atraentes economicamente, preenchendo o espaço vazio. Nesse cenário, eles poderão atender até 1/3 da demanda mundial de petróleo em 2030, segundo o WEO 2004. Goodstein contesta essa previsão. Ele explica que, na medida em que a humanidade seja forçada a percorrer, de cima para baixo, a lista dos combustíveis fósseis possíveis – do óleo convencional para o extra-pesado, daí para a areia betuminosa, chegando a extrair petróleo de minerais de processamento ainda mais difícil, como o xisto –, o custo em energia aumentará, sempre mais. “No momento em que a energia necessária para obter um combustível se tornar equivalente à energia que ele é capaz de produzir, o jogo estará perdido” (2004, 32). O risco de uma era de escassez de petróleo faz parte, evidentemente, dos cálculos dos estrategistas a serviço de diferentes governos. É o que explica Klare (2000, 43): “Quer a queda do fornecimento ocorra mais cedo ou mais tarde, a economia mundial, tal como está constituída atualmente, permanecerá refém da fácil disponibilidade de petróleo a um custo aceitável. Enquanto o óleo fluir em quantidades suficientes, os Estados poderão expandir suas economias e dessa maneira atender às necessidades de populações cada vez maiores e com níveis de riqueza crescentes. No entanto, se os níveis de fornecimento encolherem, ou se os preços subirem acima de um nível tolerável, muitas economias sofrerão e um grande número de pessoas passará por dificuldades. (...) Nessas circunstâncias, os governos dos países importadores se verão sob enormes pressões para fazer alguma coisa: subsidiar importações de petróleo, impor o racionamento obrigatório, liberar o combustível de suas reservas estratégicas ou empregar a força para remover qualquer obstáculo ao fluxo global de petróleo”. 59 Capítulo 3 3. Segurança energética e interesses nacionais dos EUA Na definição dos interesses nacionais relacionados com a energia, as autoridades norte-americanas se deparam com questões presentes na história do pensamento econômico desde a grande cisão entre mercantilistas e liberais no século XVII, como a dos custos e benefícios da dependência econômica e a da vulnerabilidade em relação às matérias-primas estratégicas importadas. Os atores domésticos dos EUA exercem forte influência sobre as decisões nessa área, dificultando a adoção de políticas que busquem ampliar a segurança energética por meio da redução do consumo de petróleo. A solução adotada por sucessivos governos – sobretudo a partir do “choque” de 1973, que revelou a dependência norte-americana em relação aos combustíveis importados – tem sido a de externalizar os problemas domésticos de energia, com a mobilização dos recursos políticos e militares do país para garantir fontes seguras de petróleo no exterior. 3.1. A economia e o poder nacional No estudo do papel das matérias-primas na política externa dos EUA nas últimas três décadas, é imprescindível buscar referências num debate que acompanha a 60 história do pensamento econômico desde o surgimento do capitalismo e dos Estados nacionais – o das relações entre a economia e o poder nacional. O vínculo entre a segurança de um país e a defesa dos seus interesses econômicos está no centro das teorias mercantilistas desenvolvidas a partir do século XVII (Heckscher, 1946). O mercantilismo dá ênfase à natureza conflituosa das relações econômicas interestatais e subordina a prosperidade imediata aos interesses políticos do Estado, em especial os interesses ligados à segurança e ao poder militar. Em sua formulação original, essa corrente propunha uma associação estreita entre o poder estatal e a balança comercial favorável, privilegiando o acúmulo dos metais preciosos indispensáveis para o financiamento das forças armadas. Uma obra clássica desse período é o livro do economista inglês Thomas Mun (1571-1641) intitulado England’s Treasure by Foreign Trade, em que ele defende a seguinte regra para o comércio exterior: “Vender a cada ano mais aos estrangeiros do que consumimos deles em valor”. Idéias semelhantes foram aplicadas na França por Jean-Baptiste Colbert (1619- 1683), o influente ministro da Fazenda de Luís XIV. O mercantilismo evoluiu, ao longo dos séculos, num permanente duelo de idéias contra as concepções liberais desenvolvidas inicialmente por Adam Smith. Nessa trajetória, passou por muitas metamorfoses, ganhou novos nomes e versões diferentes. Os temas em debate mudaram, mas a matriz ideológica mercantilista permaneceu – ela acompanha a história do nacionalismo econômico e do protecionismo, desde a formação das monarquias absolutistas até a atualidade, conforme analisa Gilpin (2002, 49-53): “Os nacionalistas econômicos acentuam o papel dos fatores econômicos nas relações internacionais e consideram a disputa entre os Estados (...) por recursos econômicos como inerente à natureza do próprio sistema internacional. Em um mundo de Estados que competem entre si, os nacionalistas dão mais importância aos ganhos relativos do que às vantagens recíprocas. Assim, as nações tentam 61 continuamente mudar as regras ou regimes das relações econômicas internacionais para se beneficiar desproporcionalmente, em relação às outra potências econômicas (...). Enquanto perdurar o presente sistema de Estados, o nacionalismo econômico tenderá a representar uma influência importante nas relações internacionais.” Os neomercantilistas se interessam pelo vínculo entre a capacidade econômica e a capacidade militar. Na síntese de Jonathan Kirshner (1999) sobre o pensamento neomercantilista, os Estados, se quiserem se preparar para a eventualidade da guerra, devem “preocupar-se com sua capacidade industrial, produção de aço, acesso a energia (especialmente, o petróleo), capacidade tecnológica e outros fatores necessários para sustentar um moderno esquema de defesa”. Para entender a questão, é de grande relevância a diferença estabelecida por Joseph Nye e Robert Keohane entre os conceitos de sensibilidade e de vulnerabilidade (2001: 11). Ambos os conceitos têm a ver com o impacto a que está sujeito um determinado país em caso de eventos externos que afetem o fornecimento de bens ou de capitais ou, ainda, o acesso a mercados fora de suas fronteiras. Nos dois casos, esse país será obrigado a alterar suas políticas para enfrentar a nova situação. A sensibilidade se refere “aos custos impostos a partir de fora antes que as políticas sejam alteradas para tentar modificar a situação”. Já a vulnerabilidade tem a ver com as conseqüências duradouras desses acontecimentos indesejados. Refere-se, na definição de Nye e Keohane, à exposição de um ator “aos custos impostos por eventos externos mesmo depois que as suas políticas tenham sido alteradas” (2001: 11). Esses eventos indesejados não se limitam, necessariamente, à interrupção dos suprimentos, mas podem se relacionar com mudanças abruptas na política de preços. Em geral, os países industrializados são capazes de ajustar suas tecnologias quando os preços entram em escalada, mas esses esforços geralmente demoram a dar resultados. Pela própria natureza das matérias-primas estratégicas, os países 62 são mais vulneráveis a essas importações do que a outros tipos de commodity. O cacau pode ser substituído por chocolate artificial rapidamente, mas mudar as usinas de geração de energia do petróleo para o carvão demanda mais tempo, e desenvolver novas minas de carvão, mais ainda” (Krasner, 1978). Nye e Keohane ressaltam que, para analisar as políticas de matérias-primas após o choque petroleiro de 1973, “a vulnerabilidade é claramente mais importante do que a sensibilidade”. Num exemplo imaginário, eles mencionam o caso de dois países que recorrem a uma mesma proporção de petróleo importado para atender suas