unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP VIVIAN CARNEIRO LEÃO SIMÕES QVOD ERAT DEMONSTRANDVM Os Exempla no discurso gramatical de Mário Vitorino e Élio Aftônio ARARAQUARA – SP 2014 2 VIVIAN CARNEIRO LEÃO SIMÕES QVOD ERAT DEMONSTRANDVM Os Exempla no discurso gramatical de Mário Vitorino e Élio Aftônio Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título Mestre. Linha de pesquisa: Teoria e crítica da poesia Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado Bolsa: Capes/CNPq ARARAQUARA – SP 2014 3 Simões, Vivian Carneiro Leão Quod erat demonstrandum : os exempla no discurso gramatical de Mário Vitorino e Élio Aftônio / Vivian Carneiro Leão Simões – 2014 188 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara) ORIENTADOR: JOÃO BATISTA TOLEDO PRADO l. Língua latina -- Gramática. 2. Língua latina -- Métrica e ritmo. 3. Literatura latina. I. Título. 4 Vivian Carneiro Leão Simões QVOD ERAT DEMONSTRANDVM Os Exempla no discurso gramatical de Mário Vitorino e Élio Aftônio Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título Mestre. Linha de pesquisa: Teoria e crítica da poesia Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado Bolsa: Capes/ CNPq Data da Defesa: 22 de abril de 2013 MEMBROS DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras, Câmpus de Araraquara. Membro Titular: Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras, Câmpus de Araraquara. Membro Titular: Prof. Dr. Marcos Martinho dos Santos Universidade de São Paulo – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 5 VIVIAN CARNEIRO LEÃO SIMÕES QVOD ERAT DEMONSTRANDVM Os Exempla no discurso gramatical de Mário Vitorino e Élio Aftônio Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título Mestre. Linha de pesquisa: Teoria e crítica da poesia Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado Bolsa: Capes/CNPq ARARAQUARA – SP 2014 6 RESUMO Caio Mário Vitorino, africano de origem, ensinou retórica em Roma no tempo do imperador Constantino; teria chegado ao apogeu de sua carreira como rétor de Roma entre os anos 350 e 355 d. C. Sua evidência materializou-se por meio de uma estátua junto às de grandes outros imperadores e funcionários do alto escalão no Fórum de Trajano. Sobre Élio Aftônio, contemporâneo a Mário Vitorino, pouco se sabe a respeito de sua biografia e poucos registros restaram de comentários às suas obras. É atribuída a ambos os gramáticos a autoria dos Marii Vitorini Artis Grammaticae Libri IIII, os “Quatro livros de Mário Vitorino sobre a Arte Gramatical”, o manual técnico, acerca das modalidades técnicas métricas para a composição artística de poemas, sobre o qual este estudo se debruça. Depois de pesquisa bibliográfica a respeito da fortuna crítica dos autores, a atenção do estudo recaiu sobre a análise do manual técnico, o Ars Grammatica, presente no volume VI dos Grammatici Latini, texto editado e compilado pelo filólogo alemão Heinrich Keil, em 1860, e, especialmente, dos exempla, ferramenta presente no discurso gramatical que, na obra, foi o suporte para que se discorresse sobre a flexibilidade da métrica na poesia latina, para a elaboração de poemas. Concluídas as considerações sobre os exempla, elaboraram-se notas explicativas para as lições poéticas, bem como uma introdução em que se apresentaram os autores e sua obra. Palavras-chave: Gramática latina. Métrica latina. Tradição literária. Marius Victorinus. Aelius Festus Aphtonius. 7 RÉSUMÉ Caius Marius Vitorinus, africain d’origine, a enseigné la rhétorique à Rome au temps de l’empereur Constantinus ; il serait arrivé à l’apogée de sa carrière comme rhéteur à Rome entre les années 350 et 355 d. C. Son évidence s’est matérialisée par une statue auprès celles des grands empereurs et des fonctionnaires de plus haute poste sur le Forum de Trajan. Quant à Élio Aftônio, contemporian de Mário Vitorino, peu se peut savoir à propos de sa biographie et peux d’enregistrements sont resté avec des commentaires sur ses œuvres. C’est attribuée à tout les deux grammairiens la création des Marii Vitorini Artis Grammaticae Libri IIII, les «Quatre livres de Mário Vitorino sur l’Art Grammatical », le manuel technique, auprès des modalités techniques métriques pour la composition artistique de poèmes, sur lequel se penche cette étude. Après une recherche biographique auprès d’une fortune critique des auteurs, l’attention de l’étude centre sur l’analyse d’un manuel technique, l’ Ars Grammatica, présent au volume VI des Grammatici Latini, texte réuni par le philologue allemand Heinrich Keil, en 1960 et, spécialement, sur les exempla, qui sont un outil présent au discours de la grammaire que, dans l’oeuvre, est le soutien pour que s’analyse la flexibilité de métrique dans la poésie latine, pour organiser les poèmes. Une fois conclues les considérations sur les exempla, se façonnent les notes explicatives pour les leçons poétiques, aussi comme une introduction qui présente les auteurs et son œuvre. Mots-clés: Grammaire latine; Métrique latine; Tradiction littéraire; Marius Victorinu Aelius Festus Aphtonius. 8 AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. João Batista Toledo Prado, orientador e amigo em todas as etapas deste trabalho. À CAPES/ CNPq, por seu auxílio imprescindível. Ao Prof. Dr. Brunno Vinícius Gonçalves Vieira, ao Prof. Dr. Marcos Martinho dos Santos, ao Prof. Dr. Márcio Thamos e ao Prof. Dr. Fábio da Silva Fortes, pela prestatividade e atenção. Ao Prof. Dr. Henrique Fortuna Cairus e à Prof. Dr. Tatiana Ribeiro, por muito. Aos professores Alceu Dias Lima, José Dejalma Dezotti, Márcio Thamos, também João Batista e Brunno, pelas primeiras letras em Latim. A meus pais, Almir e Maria José por fornecerem o maior e o melhor de todos os exemplos. À minha doce irmã, Bruna, que se fez presente em todos os momentos. A Daniel, pelo carinho, pela confiança e motivação. Aos amigos, Daniel Leone, Nikita Ramos e Aline Polachini pela força e pelo apoio ao longo desta jornada. A todos esses, em especial, e a todos os outros que me tenham auxiliado em algum momento, meu sincero: Muito obrigada! 9 A UM POETA Longe do estéril turbilhão da rua, Beneditino escreve! No aconchego Do claustro, na paciência e no sossego, Trabalha e teima, e lima , e sofre, e sua! Mas que na forma se disfarce o emprego Do esforço: e trama viva se construa De tal modo, que a imagem fique nua Rica mas sóbria, como um templo grego Não se mostre na fábrica o suplício Do mestre. E natural, o efeito agrade Sem lembrar os andaimes do edifício: Porque a Beleza, gêmea da Verdade Arte pura, inimiga do artifício, É a força e a graça na simplicidade.1 1 BILAC, Olavo. Poesias. Rio de Janeiro: Agir, 1972 10 SUMÁRIO LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS 11 LISTA DE FIGURAS 15 ESCLARECIMENTOS 16 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 17 PARTE A – CAIO MÁRIO VITORINO I. Testemunhos antigos: esboço biográfico 22 II. O embate entre cristãos e pagãos: a atmosfera espiritual de Roma no século IV 27 PARTE B – MARII VICTORINI ARTIS GRAMMATICAE LIBRI IIII III. A história do texto de Mário Vitorino: introdução de Keil 35 IV. A estrutura da Ars Grammatica 39 IV. 1 – A Ars Grammatica de M. Vitorino, as primeiras noções de prosódia e ortografia. 39 IV. 2 – A Ars Grammatica de E. Aftônio, o tratado de métrica 43 V. Os exempla no discurso gramatical 48 V. 1 – As várias tentativas de definição 50 V. 2 – Demarcação: A inserção do exemplo no discurso gramatical 52 V. 2. 1 – A marcação tipográfica 53 V. 2. 2 – A marcação robusta 56 V. 2. 3 – A ausência de demarcação: integracionismo 59 V. 3 – A questão da representação 60 V. 3. 1 – Representação em extensão 60 V. 3. 2 – Representação em compreensão 61 V. 4 – Os tipos de exemplos 64 V. 4. 1 – Listas fechadas vs não fechadas (ou abertas) 64 V. 4. 2 – Paradigmas: conjugação e declinação 64 V. 4. 3 – Exemplos forjados 65 V. 4. 4 – Citações 68 V. 4. 5 – Anti-exemplos 72 V. 4. 6 – Exemplo herdado 73 11 V. 5 – O discurso didático sobre o bom uso dos exemplos 76 V. 6 – As funções dos exemplos 77 VI. Conclusão 79 VII. Anexos VII. 1 – Apresentação 89 VII. 2 – Listagem: os exempla de Mário Vitorino 91 VII. 3 – Listagem: os exempla de Élio Aftônio 105 VII. 4 – Rol de autores e obras 173 VIII. Referências bibliográficas VIII. 1 – Texto do córpus 181 VIII. 2 – Textos clássicos 181 VIII. 3 – Referências do córpus ilustrativo da obra Marii Victorini Artis Grammaticae Libri IIII 182 IX. 4 Textos modernos 184 12 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS SEÇÕES DOS MARII VICTORINI ARTIS GRAMMATICAE LIBRI IIII LI Liber primus de Orthographia et de Metrica ratione [LI D. Voc.] De Voce [LI D. Litt.] De Litteris [LI D. Orthog.] De Orthographia [LI D. Syll.] De Syllabis [LI D. Enunt. Littm.] De enuntiatione Litterarum [LI D. Syllm. Nat. et Conex.] De Syllabarum natura et conexione [LI Mens. Long. et Breu. Syllm.] Mensura longarum et breuium syllabarum [LI D. Ar. et Th.] De Arsi et thesi [LI D. Rhyt.] De rhythmo [LI D. Ped.] De pedibus [LI D. Met.] De metris [LI D. C. Metm.] De colis metrorum [LI D. Vers.] De uersu [LI D. Poe.] De poetice [LI D. Stro. et Antis. et Ep.] De strophe et antistrophe et epodo [LI D. Metm. Fine seu Clau.] De metrorum fine seu clausula [LI D. Epi. id est Metm. Ampl.] De epiploce id est metrorum amplexione [LI D. Tom. Siu. Inc. Uersm.] De tome siue incisione uersuum [LI D. Con. e Coll. Uoca.] De concursu et collicione uocalium [LI D. Vit. Versm.] De uitiis uersuum LII Liber secundus de prototypis speciebus nouem [LII D. Dac. M. ] De dactylico metro [LII D. Anap. M.] De anapaestico metro [LII Iam. M.] Iambico metro [LII D. M. Troc.] De metro trochaico [LII D. Chor. M.] De choriambico metro [LII D. M. Antis.] De metro antispastico [LII D. M. Ion. AM] De metro ionico AΠΟ ΜΕΙΖΟΝΟC [LII D. M. Ion. AE] De metro ionico ΑΠ ΕΛΑCCONOC [LII D. Paeon. M.] De paeonico metro [LII D. M. Proc.] De metro proceleumatico LIII Liber tertius de coniunctis inter se et mixtis metris pragmaticus [LIII Des. Num. quae Metm. Mult. Red.] [Desumma numeri quae metrorum multiplicatione redigitur] [LIII Quot ex Dact. Her. Metm. Gena. Deriu.] [Quot ex dactylico heroo metrorum genera deriuentur] 13 [LIII D. Gnb. Metm. quae a Pent. Profl.] [De generibus metrorum quae a pentametro profluunt] [LIII D. Enunt. Penti. Eleg.] [De enuntiatione pentametri elegiaci] [LIII D. Rec. Versib.] [De reciprocis uersibus] [LIII D. Tetra. Vers.] [ De tetrametro uersu] [LIII D. Phal. M.] [ De phalaecio metro] [LIII D. Trim. Vers.] [ De trimetro uersu] [LIII D. Dim. Vers.] [De dimetro uersu] [LIII D. Met. quae ex Penthm. et Hephtm. tome Proprag.] [De metris quae ex penthemimere et hephthemimere tome propagantur] [LIII D. Anapi. Meti. Gnb. quae ex Her. Deru.] [De anapaestici metri generibus quae ex heroo deriuantur] [LIII Chor. quod ex Pent. Her. Man.] [De metro choriambico quod ex pentametro heroo manat] [LIII D. Duo. Ioni. a Dact. Hex. Gene.] [De duobus ionicis a dactylico hexametro generatis] [LIII D. Gnb. Metm. quae a Iam Profl.] [De generibus metrorum quae a iambico profluunt] [LIII D. Trim. Vers Iam.] [De trimetro uersu iambico] [LIII D. Sat. Vers.] [De saturnio uersu] LIV Liber quartus de conexis inter se atque inconexis quae graeci ΑΣΥΝΑΡΤΗΤΑ uocanti pragmaticus [LIV D. Mets. H.] De metris horatianis [LIV D. Num. Eor.] De numero eorum [LIV A.F.Aph.] [Aelii Festi Aphthonii V. P. de metris omnibus explicit liber IIII] AUTORES E OBRAS Acc. Trag L. Accius Tragoediae ACT. Pal. Trag. Anonymi Comici et Tragici Palliatae poetarum incertorum Tragoediae poetarum incertorum AEL. Ser. Ver. R. Ver. C. Ver. A. Anonymi Epici et Lyrici Serioris aetatis uersus. Versus reciproci Versus aeui Catullian Versus aevi Augustei Ann. Annianus Carmen Archil. Arquiloco Fragmenta Bass. Carm. Metr. C. Caesius Bassus Carmen De metris, fragmenta Frag. Bob. Fragmenta Bobiensia De Versibus Caec. M. Caecilius Metellus Versus in Naevium Catul. Carm. Carm. fr. C. Valerius Catullus Carmina Carmina, fragmenta Cn. Naev Cn. Naevius Bellum Punicum 14 Hom. Il. Od. Homerus. Ilíada Odisseia Hor. Ars Carm. Ep. Epod S. Saec. Ser. Q. Horatius Flaccus. Ars Poetica Carmina Epistulae Epodi Sermones Carmen Saeculare Sermones L. Cin. Gram. L. Cincius Grammatica Luc. M. Annaeus Lucanus Bellum Ciuile Lucil. C. Lucilius Saturae, fragmenta Lucr. T. Lucretius Carus. De Rerum Natura Mart. I4. M. Valerius Martialis Epigrammata Maur. Terentianus Maurus De litteris, De Syllabis, De Metris. Ovid. Amor. Ars. Epist. Met. Rem. Trist. P. Ovidius Naso Amores Ars Amatoria Epistulae Metamorphoses Remedia Amoris Tristia Pac. Trag. M. Pacuuius Tragoediae Petron. Sat. Petronius Satyrica, fragmenta Pom. S. Trag. P. Pomponius Secundus Tragoediae Plaut. Plautus Miles Gloriosus Sal. C. B. Iug. C. Sallustius Crispus. Bellum Iugurthinum, Seren. Q. Serenus Liber Medicinalis. Seru. A. Maurus Seruius Honoratus Vergilium Commentarius Sep. S. Carm. Septimius Serenus. Carmen Tib. Albius Tibullus Carmina Tibulliana V. Ruf. Trag. L. Varius Rufus Tragoediae Varr. Carm. P. Terentius Varro Atacinus Carmina Verg. A. Ecl. G. P. Vergilius Maro. Aeneis Eclogae Georgica 15 NOTAÇÕES S. n. Sem nota. Mod. Modificado Cf. Conferir/Comparar 16 LISTA DE FIGURAS As figuras constantes deste trabalho foram escolhidas de modo que representassem os temas aqui abordados, as Artes Grammaticae e os poetas latinos. FIGURA I – La Grammaire et son amphithéâtre d'élèves. – X a. C. 20 FIGURA II – Virgílio e as Musas, Museu do Bardo, Tunis, Tunísia. – III a. C. 33 FIGURA III – Horatius reads before Maecenas. – 1863. 89 17 ESCLARECIMENTOS 1. Quando, no texto, aparecerem passagens em língua estrangeira, acompanhadas de equivalentes vernáculos sem qualquer menção a seu tradutor, tratar-se-ão de traduções livres da autora, preparadas para este trabalho; 2. Por vezes, durante a pesquisa, foi necessário consultar obras paralelas que não mantêm relação direta com os temas que este estudo propôs-se tratar, desse modo e por esse motivo, suas referências não se localizam na seção Referências Bibliográficas, mas, em vez disso, foram alocadas como notas de rodapé ao fim das páginas em que foram utilizadas como citações. Além disso, referências bibliográficas diluídas no corpo do trabalho aparecem de forma simplificada, i. e., apenas com o nome do autor, da obra e da página ou intervalo de páginas que compreende a(s) passagem(s) citada(s), e estando essas referências localizadas, sistematicamente, em nota de rodapé, uma vez que as completas podem ser encontradas na seção Referências Bibliográficas. 3. Por sugestão do Prof. Dr. Henrique Fortuna Cairus, docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nas mais diversas oportunidades (encontros, reuniões e congressos fundamentais para o embasamento e progresso deste estudo), a presente pesquisa, desde o seu projeto inicial, foi nomeada QVOD ERAT DEMONSTRANDVM, “Como queríamos demonstrar”, em tradução livre. O título coube convenientemente ao trabalho, uma vez que sua múltipla significação abarca dois aspectos do estudo: primeiramente, o córpus utilizado são os exempla que M. Vitorino e E. Aftônio utilizaram para demonstrar e ilustrar teoria poética em sua Ars Grammaticae, dessa forma, a expressão latina reitera neste estudo o objetivo dos rétores em aliar teoria e exemplo; em segundo lugar, a expressão também recupera seu vínculo com o contexto de sua utilização no campo da matemática, que reitera a acurácia da percepção de Vitorino no que tange à Literatura de sua época, ou seja, evoca a intenção do que Vitorino buscava com sua obra, como é também o objetivo final do presente trabalho. 18 CONSIDERAÇÕES INICIAIS O interesse pela métrica e seu papel na produção do sentido poético, mormente nos poemas da tradição literária da Roma antiga, motivou este trabalho que pretende constituir uma modesta contribuição para a historiografia dos estudos de Poética e Métrica Clássicas na Poesia Latina, debruçando-se, para tanto, sobre os Marii Victorini Artis Grammaticae Libri IIII (“Os quatro livros de M. Vitorino sobre a Arte Gramatical”). Escrita por volta de 340 a 355 d. C., a Ars Grammatica tem, como principal matéria, a descrição dos metros da lírica latina. Essa obra participa do conjunto de textos produzidos entre os séculos I e V d. C., intitulados Artes grammaticae que, segundo Bernard Colombat (2007, 71), surgiram como manuais didáticos descritivos da língua latina, e acabaram por constituir, por fim, a origem do que, posteriormente, se configuraria como preceitos da gramática. O presente trabalho organiza-se em duas partes fundamentais. Numa primeira etapa, discorreu-se, brevemente, sobre a biografia e o contexto histórico de M. Vitorino em seus aspectos decisivos para a composição da Ars Grammatica e investigou-se ainda a respeito de Élio Aftônio que, como se pretende demonstrar, é o responsável por grande parte das teorias métricas de que é composta a Ars. Reuniu-se, para tanto, todo o material disponível para consulta elaborado principalmente por Pierre Hadot (1971), Italo Mariotti (1967), Albert Travis (1943) e Frederick Bruce (1946), alguns dos poucos estudiosos modernos que se dedicaram a investigar a vasta obra de M. Vitorino. À segunda etapa propôs-se um exame detalhado da Arte Gramatical, no qual foram destacados a estrutura da obra e os tópicos que a constituem. A organização da Ars Grammatica de M. Vitorino e Élio Aftônio é fortemente motivada pela métrica, que se sobreleva como fator preponderante. Com o objetivo final de compor um tratado métrico, no qual fossem expostos conceitos e teorias a respeito dos mais diversos metros da lírica latina, os autores compuseram um tratado rico em demonstrações e detalhes acerca do funcionamento do sistema linguístico latino, bem como uma grande amostra de versos e procedimentos métricos, carregados de juízos valorativos e eivados de comentários positivos ou depreciativos. O discurso gramatical da Ars Grammatica foi escolhido para análise, justamente por ser um daqueles tratados que têm como assunto principal a métrica, tal como os tratados de 19 Máximo Vitorino, Césio Basso, Atílio Fortunaciano, Terenciano Mauro, Mário Plócio Sacerdote e Rufino, para citar aqueles que foram reunidos no volume VI da obra de Heinrich Keil, intitulado Grammatici Latini (GL). Vol. VI: Scriptores Artis Metricae. É necessário mencionar a existência do projeto “Scripta Latina de Re Metrica - Tradução de fontes primárias” – projeto do Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP, Campus de Araraquara, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq. Sob a orientação do Prof. Dr. João Batista Toledo Prado –, a partir do qual são desenvolvidos outros subprojetos, todos unidos pelo mesmo propósito: analisar a importância da métrica em textos de autores latinos, segundo os manuais contidos na obra citada de Keil. Escolheu-se investigar a obra Marii Victorini Artis Grammaticae Libri IIII, pois esta pesquisadora participou do desenvolvimento da primeira fase do projeto, intitulada “Scripta Latina de Re Metrica - Tradução de fontes primárias I”, que se ocupou da tradução, ainda incompleta, da obra. Em outras etapas, o projeto buscou traduzir e investigar a obra de C. Basso, estudo que resultou na Dissertação de Mestrado “Os Fragmenta de Césio Basso: leitura crítica e tradução anotada” de Francisco Diniz Teixeira (TEIXEIRA, F. D., 2005) e, em etapa posterior em andamento, o projeto dedica-se à tradução e investigação da obra Terentianus de littera, de syllaba, de pedibus, por Mariana Peixoto Pizano, (PIZANO, M., 2012). O discurso das Artes Grammaticae que têm como escopo a métrica latina é, como se pretende demonstrar ao longo do presente trabalho, bastante distinto das demais Artes cujo objetivo é investigar a matéria linguística do latim e que tiveram seu início com a obra de Palêmon, mestre de Quintiliano, no século I, conforme Baratin (1994, 142), e floresceram ao longo dos séculos III, IV e V com Donato, Carísio e Diomedes, entre outros. As Artes Grammaticae abarcavam um conteúdo descritivo da língua latina, ao compreender desde o estudo dos sons e da formação de palavras até as partes do discurso, e as suas virtudes e seus vícios, de modo a orientar a correção da leitura e da escrita, também de acordo com Baratin (1994, 147). Esse modelo didático-pedagógico parte dos elementos mais rudimentares da língua e avança rumo aos mais complexos. No entanto, a diversidade de planos adotados pelos gramáticos deve-se principalmente à focalização de cada tratado. Um ‘detalhe’, como define Baratin (1994, 156), escolhido por cada gramático para tratar mais 20 especificamente poderá guiar a organização, a exposição das teorias linguísticas e o discurso adotado pelo autor, como é o caso da métrica dentro da Ars Grammatica de M. Vitorino. O presente trabalho propõe, em sua segunda etapa, analisar os exempla, que se afiguram ferramenta metalinguística para demonstração e ilustração do discurso gramatical, e que, na obra de Vitorino, são o suporte para que se discorra sobre a flexibilidade da métrica na poesia latina. Jean-Luc Chevillard (2007, 5) assevera que “Toutes les grammaires comportent des exemples. C’est là un ingrédient probablement nécessaire du discours grammairien, en tout cas dont on constate empiriquement la quasi universalité”. Estudiosos da gramática antiga como Jean-Marie Fournier (2007), Bernard Colombat (2007), Jean Lallot (2007), Jean-Luc Chevillard (2007) e Marc Baratin (2011), no entanto, atentam para a diversidade daquelas sequências, a que chamamos exemplum, seja por seu estatuto epistemológico, seja por sua forma, ou, enfim, por sua função. Por isso, buscou-se, aqui, discorrer a respeito da definição, da construção e da manipulação dos exemplos e de seus efeitos dentro do discurso gramatical da Antiguidade Clássica, mormente dentro dos Marii Victorini Artis Grammaticae Libri IIII. Para tanto, investigou-se quais as formas e funções que eles podem assumir dentro dessa Arte, que trata, sobretudo, da métrica e de quais os critérios orientadores de M. Vitorino e Élio Aftônio na escolha de versos citados como exemplos de matrizes métricas, principalmente, no que tange à predileção por determinados autores que compõem o cânone da produção poética da literatura greco-latina. Atente-se, contudo, ao critério fundamental deste estudo: de maneira alguma propõe- se avaliar o julgamento que os autores teceram sobre os poetas de que escolheram ocupar-se em sua obra, ou seja, a função não é aprová-los ou não como críticos de poesia, mas descrever e sistematizar os dados elencados por Vitorino e Aftônio, e apontar quais as possíveis motivações para suas escolhas e predileções por certos autores greco-latinos em detrimento de outros. 21 FIGURA I La Grammaire et son amphithéâtre d'élèves (Martianus Capella, Noces de Philologie et de Mercure, Xe siècle Paris, BnF, département des Manuscrits, Latin 7900 A, fol. 127) 22 PARTE A CAIO MÁRIO VITORINO 23 I. Testemunhos antigos: esboço biográfico A maioria das informações disponíveis a respeito da vida de M. Vitorino foi recolhida de testemunhos daqueles que o conheceram ou conservaram em textos escritos sua memória. Parte considerável dos dados biográficos provém das obras de Jerônimo e Agostinho, essas informações foram reunidas principalmente por Pierre Hadot (1971), Italo Mariotti (1967), Albert Travis (1943) e Frederick Bruce (1946). O primeiro de vários registros sobre M. Vitorino na obra de Jerônimo está presente no livro Chronicon, escrito por volta de 380 d. C. Nele é mencionada a estátua de M. Vitorino, erigida em sua homenagem no Fórum de Trajano, em 354 d. C., dada a sua importância como rétor para a sociedade culta de Roma, “Victorinus rhetor et Donatus grammaticus, praeceptor meus, Romae insignes habentur. E quibus Victorinus etiam statuam in foro Traiani meruit.”2 [O rétor Vitorino e o gramático Donato, meu mestre, são considerados ilustres em Roma. O mesmo Vitorino recebeu também uma estátua no Fórum de Trajano.] O segundo registro data de 386 ou 387 d. C., corresponde ao comentário de Jerônimo sobre a Epístola aos Gálatas, em que o autor demonstra não apreciar os ensaios exegéticos do rétor convertido. Non quod ignorem Caium Marium Victorinum, qui Romae, me puero, rhetoricam docuit, edidisse Commentarios in Apostolum; sed quod occupatus ille eruditione saecularium litterarum, Scripturas omnino sanctas ignoraverit: et nemo possit, quamvis eloquens, de eo bene disputare, quod nesciat. 3 [Não é que eu desconheça que Caio Mário Vitorino, que ensinou retórica em Roma quando eu era criança, tenha escrito comentários sobre o Apóstolo (Paulo), mas sim que ele, enquanto esteve ocupado com o estudo da literatura profana, era ignorante das letras seculares, e ninguém, mesmo eloquente, poderia lidar de forma adequada com aquilo que desconhece.] Jerônimo é quem formula para o autor o epíteto “Victorinus (natione) Afer” – pelo qual será reconhecido pelos pósteros –, sem deixar, no entanto, de criticar o estilo obscuro de sua obra. 2 JÉRÔME, Chronicon: R. HELM, Eusebius’Werke, t. VII, C. G. S , T. XLVII, Berlin, 1956, p. 239. In: MARIOTTI, 1967, 4. 3 JÉRÔME, In epistolam Pauli ad Galatas commentarium, P. L., t. XXVI, col. 307, p. 308. Apud MARIOTTI, 1967, 4. 24 Victorinus, natione Afer, Romae sub Constantio principe rhetoricam docuit et in extrema senectute Christi se tradens fidei scripsit adversus Arium libros more dialectico valde obscuros, qui nisi ad eruditis non intelleguntur et commentarios in Apostolum4 [Vitorino, africano de origem, ensinou retórica em Roma, sob o imperador Constantino, e já na extrema velhice, entregando-se à fé de Cristo, escreveu livros contra Ário verdadeiramente obscuros e à maneira dos dialéticos, que são compreendidos somente pelos eruditos e escreveu comentários sobre o Apóstolo (Paulo)]. Agostinho, em suas Confesiones, escritas entre 397 e 401 d. C., narra a história que ouvira anos antes de Simpliciano e o encontro deste com M. Vitorino, ocorrido em 386 d. C., segundo Hadot (1971, 14). Agostinho tomara conhecimento de M. Vitorino por meio das traduções que o rétor de Roma, que ouvira dizer ter morrido cristão, teria feito de obras platônicas e, ao comentar sobre o assunto com Simpliciano, este lhe contou ter conhecido intimamente M. Vitorino, quando estava em Roma. Deinde, ut me exhortaretur ad humilitatem Christi sapientibus absconditam et revelatam parvulis, Victorinum ipsum recordatus est, quem Romae cum esset familiarissime noverat, deque illo mihi narravit quod non silebo. habet enim magnam laudem gratiae tuae confitendam tibi, quemadmodum ille doctissimus senex et omnium liberalium doctrinarum peritissimus quique philosophorum tam multa legerat et diiudicaverat, doctor tot nobilium senatorum, qui etiam ob insigne praeclari magisterii, quod cives huius mundi eximium putant, statuam Romano foro meruerat et acceperat, usque ad illam aetatem venerator idolorum sacrorumque sacrilegorum particeps, quibus tunc tota fere Romana nobilitas inflata spirabat, †popiliosiam†5 et omnigenum deum monstra et Anubem latratorem, quae aliquando contra Neptunum et Venerem contraque Minervam tela tenuerant et a se victis iam Roma supplicabat, quae iste senex Victorinus tot annos ore terricrepo defensitaverat, non erubuerit esse puer Christi tui et infans fontis tui, subiecto collo ad humilitatis iugum et edomita fronte ad crucis opprobrium6. [Em seguida, para me exortar à humildade de Cristo, “escondida aos sábios e revelada aos pequeninos”, recordou-se de Vitorino, a quem conhecera intimamente, quando estava em Roma. Não guardarei silêncio sobre o que me contou dele, porque encerra grande louvor, que só à tua7 graça se deve atribuir: ele, o tão célebre e doutíssimo ancião, o mais perito em todas as artes liberais, leitor e crítico de tantas obras filosóficas, preceptor de tantos senadores ilustres; ele, que, pelo seu insigne e notável magistério, merecera e aceitara uma estátua no Foro romano, coisa que os cidadãos deste mundo têm por mais excelsa; ele, até aquela idade, um adorador dos ídolos e um comparticipante dos ritos sacrílegos, com que então quase toda a nobreza romana, arrogante, “de monstros de deuses de todo o gênero e até do 4 JÉRÔME, De uiris illustribus, éd. E. Richardson, T. U., XVI, I, Leipsig, 1896, p. 57. In: MARIOTTI, 1967, p. 4. 5 Popiliosiam, relativo a Popilius, nome de uma gens romana: Popilia. 6 AGOSTINHO, Confissiones, 8, 2, 3 sqq. In: MARIOTTI, 1967, 5. 7 O pronome ‘tua’ refere-se à graça divina, como se pode depreender do texto. 25 ladrador Anúbis” — monstros que outrora “pegaram em armas contra Netuno, Vênus e Minerva” — a quem Roma fazia súplicas, depois de os ter vencido; ele, enfim, o velho Vitorino, que por tantos anos defendera esses deuses com aterradora eloquência, esse mesmo ancião Vitorino não teve vergonha de se fazer servo do teu Cristo e um bebê na tua fonte, sujeitando o pescoço ao jugo da humildade e dobrando a fronte sob o opróbrio da cruz.] Com relação às datas de nascimento de M. Vitorino, os biógrafos dividem-se em dois grupos, segundo Hadot (1971, 23) aqueles que não mencionam o assunto ou admitem nada saber sobre ele e aqueles outros que afirmam, com base em conjecturas, M. Vitorino ter nascido por volta de 300 d. C8. No entanto, Travis (1943, 83) aponta evidências suficientes para mostrar o silêncio ou o extremo cuidado dos primeiros serem desnecessários, mas também assinala que, embora aproximada, a data de 300 d. C. deve ser substancialmente alterada. A expressão empregada por Jerônimo in extrema senectute9 para designar M. Vitorino na época de sua conversão, somada ao relato vívido que faz Agostinho a respeito da história da conversão de M. Vitorino deixam claro que este era um homem velho à época e trazia consigo uma longa e distinta carreira profissional. Travis (1943, 84) e Baltes (2002, 25) denotam que M. Vitorino não é apenas retratado como um homem de idade avançada, o texto coloca em maior destaque a sua erudição, ‘ille doctissimus senex’10. Travis (1943, 85) observou em obras do mesmo período11 o emprego da expressão ‘extrema senectute’ e concluiu ser incomum aplicar essa expressão a pessoas abaixo dos 70 anos. O termo senex, de fato, seria indicado para esboçar uma idade que varia entre 70 e 90 anos, nunca menos, como é possível encontrar em Cícero, Tácito, São Jerônimo e Cornélio Nepos 12. Assim, seria possível considerar que a conversão de M. Vitorino deva ter acontecido quando ele atingia a uma idade entre 70 e 90 anos, para se justificar o emprego do ‘in extrema senectute’. A conversão de Vitorino é posterior à construção da sua estátua no Fórum de Trajano, isto é, posterior a 354 d.C., como sustenta Hadot (1971, 27); entretanto, é anterior à data de 8 “P. Monceaux, Hist. litt. de 1'Afrique chretienne III, Paris, 1905, p. 374; P. de Labriolle, Hist. de la litt. lat. chretienne, Paris, 1924, p. 346.” (TRAVIS, 1943, 83) 9 JÉRÔME, De uiris illustribus, éd. E. Richardson, T. U., XVI, I, Leipsig, 1896, p. 57. In: MARIOTTI, 1967, p. 4 10 AGOSTINHO, Confesiones, 8, 2, 3 sqq. In: MARIOTTI, 1967, 5. 11 C.f. TRAVIS, 1943, 85. 12 Senex equivale a “90 ans, CICÉRON, Cato, 22; 86 ans, TACITE, Ann., V, I; 85 ans, JÉRÔME, Epist., CXXX, 13; CICÉRON, De republ., I, I; Verrin., V, 180; 80 ans, TACITE, Ann., IV, 8; 78 ans, TACITE, Ann., IV, 58; 77 ans, CORNELIUS NEPOS, Vita Att., XXI, I; TACITE, Ann., IV, 29.” (HADOT, 1971, 24). 26 composição de uma de suas obras cristãs, o Adversus Arium, pouco antes da morte do imperador Constantino, em novembro de 361 d.C. Hadot estabelece para a conversão de M. Vitorino o ano de 355 d. C., assim, considerando que Vitorino estivesse em idade avançada nessa data, subtraindo-se um mínimo de 70 anos, chegar-se-ia ao ano de 285 d. C., que é consideravelmente inferior ao ano sugerido pelos biógrafos, ou seja, o de 300 d. C. Travis (1943, 85) propõe a idade de 75 anos para M. Vitorino, dessa forma, a data do seu nascimento cairia para 280 d. C. Se M. Vitorino era um homem na velhice em 355 d. C., não seria possível admitir que sua data de nascimento fosse anterior a 280 d. C., pois isso faria dele um homem extremamente velho em atividade, por essa razão Travis (1943, 87) apresenta 280 d. C. como uma aproximação mais correta da data de nascimento de Vitorino. Hadot (1971, 25) é menos exato e admite o intervalo de anos entre 281 e 291 d. C. A respeito da provável data de sua morte, toma-se como referência o trecho da declaração de Agostinho, cujo relato anuncia que M. Vitorino teria abandonado a docência em 362 d. C; quando o edito de Juliano, o ‘Apóstata’, impôs condições severas para que os cristãos pudessem assumir a função de mestre. Seria preciso, dentre outras exigências, sobressair-se pelos costumes e submeter-se a uma avaliação da cúria municipal, cujo resultado deveria ser encaminhado ao próprio imperador. Posteaquam vero et illud addidit, quod imperatoris Iuliani temporibus lege data prohibiti sunt Christiani docere litteraturam et oratoriam, quam legem ille amplexus loquacem scholam deserere maluit, quam uerbum tuum, quo linguas infantium facis disertas non mihi fortior quam felicior visus est, quia invenit occasionem vacandi tibi”13 [De fato, toda a sua narração tinha este mesmo fim em vista. Porém, quando depois acrescentou que, de acordo com uma lei, promulgada nos tempos do Imperador Juliano, os cristãos tinham sido proibidos de ensinarem literatura e oratória — lei que Vitorino abraçou, preferindo assim abandonar antes a escola dos palradores do que a tua Palavra, "com que tornais eloquentes as línguas das crianças" — a mim não pareceu que Vitorino era mais corajoso que feliz, por ter encontrado ocasião propícia para entregar-se a ti] (AGOSTINHO, 1980, 170). 13 AGOSTINHO, Confesiones, 8, 2, 5 sqq. Apud MARIOTTI, 1967, 5. 27 Para Travis (1943,88), M. Vitorino teria vivido pouco além de 362 d. C., tendo em vista a sua “extrema senectute”, fixada em torno de 355 d. C., e os seus trabalhos posteriores à sua conversão. Agostinho, também no livro VIII de suas Confesiones, atribui a M. Vitorino o título Rhetor urbis Romae, o que significava que M. Vitorino era titular da cátedra de retórica instituída por Vespasiano. A narrativa de Simpliciano, tal como nos conta Agostinho, sustenta a impressão de M. Vitorino ter exercido durante longo período essa função, segundo Hadot (1971, 30), embora não seja possível estabelecer a possível data de sua nomeação. Ainda de acordo com Hadot (1971, 34) e Mariotti (1967, 15), a notoriedade de M. Vitorino não teria sido ofuscada por seus contemporâneos, em especial por Donato. Agostinho nos diz que M. Vitorino fora mestre de muitos nobres senadores, afinal, toda carreira pública exigia uma formação retórica, princípio, portanto, condizente com as ideias do imperador Constantino, que dignificara a cultura literária, elevando-a ao patamar de primeira qualidade necessária a um homem (“litteratura quae omnium virtutum maxima est”14). Infelizmente, além do testemunho de Agostinho, não restou à posteridade nenhum registro dos nomes desses homens notáveis que foram alunos de M. Vitorino. 14 COD. THEOD.: Theodosiani libri XVI, éd. Th. Mommsen, I, i, Berlin, 1954 apud: HADOT, 1971, p. 34. 28 II. O embate entre cristãos e pagãos: a atmosfera espiritual de Roma no século IV A reorganização do império sobre a base da religiosidade tradicional do culto aos deuses pagãos por Diocleciano, imperador romano de 284 a 305 d. C., não pôde extinguir o cristianismo (FUNARI, 2002, 140), mas conseguiu adiar o declínio de Roma e criou as bases para o império bizantino. Em 285 d. C., Diocleciano dividiu o império em dois, o do Oriente e do Ocidente; e em seguida, repartiu ainda mais o poder num sistema chamado Tetrarquia, nomeando como seus homens de confiança Maximiano, Constâncio Cloro e Galério. Quatro editos consecutivos nos anos de 303 e 304 d. C. impuseram aos cristãos a destruição das igrejas, o confisco dos bens, a entrega dos livros sagrados, a tortura até a morte para quem não propusesse sacrifícios em honra do imperador. Era preciso retornar às antigas leis e à tradicional disciplina romana: só o retorno à antiga fé de Roma poria fim às pressões dos pagãos fanáticos e reestabeleceria a precária situação econômica em que se encontrava o império (CARLAN, 2009, 28). As perseguições violentas contra os cristãos só abrandaram quando, em 311 d. C., já no fim da sua vida, Galério, junto de seu César Licínio, emitiu um edito de descriminalização do Cristianismo; no documento declarava que perseguir os cristãos tornara-se inútil, e ainda pedia a estes orações pelo seu reestabelecimento (FUNARI, 2002, 140). O edito de tolerância de Galério abriu caminho ao Edito de Milão de 313 d. C., com o que Constantino I legalizou e apoiou fortemente a cristandade, ao mesmo tempo em que admitia também culto pagão, assim, tornava lícita toda e qualquer prática religiosa no Império. A aplicação do edito acabou com toda a perseguição sancionada oficialmente e fez devolver os lugares de culto e as propriedades que tinham sido confiscadas dos cristãos. De acordo com Funari (2002, 142), a política religiosa encaminhava-se claramente na direção de uma aliança entre o Estado e a Igreja, na mesma proporção em que os cultos aos deuses pagãos perdiam sua importância. Dessa maneira, de acordo com o historiador Pedro Paulo Funari, O imperador Constantino concedeu aos cristãos, por meio do chamado Edito de Milão, em 313, liberdade de culto. Em seguida, esse mesmo imperador procurou tirar vantagem e interveio nas questões internas que dividiam os próprios cristãos e convocou um concílio, uma assembleia da qual participavam os principais padres cristãos (2002, 143). 29 Na tentativa de consolidar a totalidade do Império Romano sob o seu domínio, Licínio arma seu exército contra Constantino I, porém é derrotado e, em 324 d. C., Constantino reunifica o império. Durante todo o seu reinado, o imperador dedicou-se a promover profundas reformas, ao mesmo tempo em que zelava pela unidade religiosa. Constantino I quis resolver o problema da divisão da elite dirigente, propôs então uma modificação na composição do Senado, cujo conselho estava composto por seiscentos membros, aumentando esse número para dois mil. Tratava-se, pois, de uma hierarquia de status, sem poderes ou responsabilidades, e a formação de outra classe, a hierarquia burocrática, de altos funcionários dotados de amplos poderes civis, responsáveis por manter a ordem pública e as finanças (FUNARI, 2002, 141). Após 326 d. C., os altos funcionários passam a pertencer à ordem senatorial, os clarissimi, que, sem quaisquer poderes políticos, não interferiam na escolha dos imperadores, os candidatos vinham da família do imperador ou eram membros do exército. Indivíduos não oriundos da aristocracia tradicional tornavam-se automaticamente senadores ao serem nomeados pelo imperador, para cargos da hierarquia senatorial, ou pelos próprios senadores, que podiam eleger novos membros para a sua classe. Este parece ter sido o caso de M. Vitorino. Sabe-se de seu título de “vir clarissimus” por meio da tradição manuscrita de suas obras cristãs, o Adversus Arium e o Hymne. É possível que o próprio imperador Constâncio II (337 - 361 d. C.) o tivesse nomeado “vir clarissimus”; é improvável, no entanto, que essa nomeação tenha sido feita por Constantino, antes de 337 d. C. (HADOT, 1971, 34), uma vez que não há registros desse título em obras anteriores à sua conversão. Constantino I, antes de morrer, repartiu o poder entre seus três filhos: Constantino II, o mais velho, a quem couberam os domínios da Hispânia, Gália e Britânia, a parte ocidental do Império; Constâncio II, que foi agraciado com a parte oriental do Império: o Egito e as províncias asiáticas; e, por último, Constante, a quem, por causa da tenra idade, restou a menor fatia de terras: a Itália, a Ilíria e os domínios romanos na África. Constante, desgostoso da partilha, já nos primeiros anos de seu reinado, rebelou-se contra seu irmão mais velho, derrotando-o em Aquileia, em 340 d. C., e assumindo, assim, o controle de todo o Ocidente. Anos mais tarde, aliou-se a Constâncio II em uma luta na Gália contra Magno Magnêncio, no entanto, foi morto em batalha, em 350 d. C. Em 353 d. C, após o suicídio de Magno Magnêncio, Constâncio II emergiu como Augustus único. 30 Segundo Carlan (2009, 31), os problemas administrativos e a questão sucessória levaram Constâncio II a nomear seu primo, Constâncio Galo, como César, porém, este foi assassinado no ano seguinte, acusado de traição. Em 355 d. C., Constâncio II nomeia César da parte ocidental do Império o seu primo Juliano, que se destacou como estrategista, administrador e legislador após várias batalhas vitoriosas. Depois de ordenar que suas tropas da Gália, comandadas por Juliano, fossem transferidas para o exército do leste, Constâncio II teve de enfrentar a insurreição provocada por sua decisão, e, dessa maneira, as tropas de Juliano proclamaram-no Augustus e novo imperador (FUNARI, 2007, 20). Porém, enquanto se deslocava para a Gália, ao encontro de Juliano, Constâncio II morreu de peste, não havendo, por isso, nenhuma luta. As próprias legiões de Constâncio II reconheceram Juliano como único imperador. Juliano, segundo Funari (2007, 21) foi um anacronismo no seu tempo: último representante da família de Constantino, criado na educação cristã, recebeu a influência do neoplatônico Máximo de Éfeso, de modo que, sob a aparência de católico, abraçou o paganismo já no início de seu governo, o que lhe valeu o cognome o Apóstata. Quis promover a restauração cultural pagã transferindo os direitos conquistados pela Igreja aos templos pagãos (AMMIEN MARCELLIN, 1977, XVI, 6, 1-26). Em Junho de 362 d. C., Juliano publicou um abrangente edito sobre educação no qual impedia os cristãos de lecionar. Tal medida atingiu M. Vitorino que, sem forças para enfrentar o governo, teria desistido de lecionar, segundo depoimento de Agostinho. Como Juliano não deixou herdeiros, soldados cristãos apressaram-se em aclamar como augusto um oficial da guarda imperial, general das tropas leais a Constâncio II. Ele teve, como principal ato, a adoção do cristianismo como religião oficial do Estado, como havia decretado pela primeira vez o grande imperador Constantino, e, por meio de um edito restituiu aos cristãos todos os privilégios retirados por Juliano (AMMIEN MARCELLIN, 1977, XVI, 6, 1-26). A incerteza militar e política provocou uma perpétua atmosfera de desconfianças e suspeitas, definida por Hadot da seguinte maneira: “Chaque triomphe est suivi de procès, de tortures, d’exécutions, de bannissements” (HADOT, 1971, 36), corroborada pela visão de Mariotti (1967, 25) “Quest’atmosfera, ancora così viva ala fine del secolo – e che serà presente, soprattutto nella scuola, anche nel secolo successivo (...) – , spiega i dubbi e le 31 incertezze”. No entanto, mais grave do que a crise político-econômica era a crise espiritual que se configurava àquela conjectura na qual, de acordo com Hadot, L’Empire est à la recherche d’une nouvelle base spirituelle: le paganisme rejeté, persécuté, est encore puissant, comme le montrera la réaction de Julien ; le christianisme, apparemment triomphant, est lui-même déchiré par la terrible querelle arienne. (1971, 36). Foi durante o reinado de Constâncio II (337-361 d.C.) que Constantinopla se consolidou como a nova capital do Império, a nova Roma, a Roma cristã. Para a antiga e verdadeira Roma, restava ser uma espécie de ‘encarnação viva da eterna Roma’, resplandecente em seus templos pagãos e monumentos magníficos como o Fórum de Trajano. Roma é “le centre sacré et inviolable de l’univers. Sorte de sanctuaire ou de musée (...)” (HADOT, 1971, 38). Diante da Roma cristã, Constantinopla, que se edificava cada vez mais sólida, e dos imperadores que haviam abandonado os deuses tradicionais, ainda existia uma aristocracia romana, consciente do papel que devia desempenhar, defensora da Roma tradicional e do culto aos deuses pagãos. “Il fallait ‘protéger les institutions des anciens, les prérogatives sacrés, les destinées éternelles de la patrie’”15. Naturalmente, o que sustentou a aristocracia romana tradicionalista foi o orgulho: fosse da grandeza do passado, fosse da riqueza do presente. De acordo com Hadot (1971, 40) e Mariotti (1967, 22), o conservadorismo e a romântica nostalgia do passado fizeram ressurgir, sob diversas formas, nomes que lembravam uma época feliz de Roma, tais como Nero e Trajano, sinônimos de justiça e grandiosidade; também os deuses, como Cibele – a mãe de todos os deuses –, Baco, Hércules – duas divindades populares da Roma Antiga –; e ainda uma galeria de homens importantes, como Horácio, Virgílio, Terêncio, Salústio, Apuleio, em geral, grandes escritores. A nostalgia aristocrática da Roma de outrora traz à luz um aspecto valioso: o amor pelas letras antigas. Revela-se, então, toda a concepção de vida da sociedade em que viveu M. Vitorino. Um verdadeiro espírito de renascença literária que se estenderá por todo o século IV. 15 SYMMAQUE: Q Aurelii Symmachi quae supersunt, éd. O. Seeck, Monummenta Germaniae Historica, Auctores Antiquissimi, t. VI, I, Berlin, 1883. Apud HADOT, 1971, 39. 32 Alguns manuscritos, segundo HADOT (1971, 40) conservam ainda os traços dessa atividade literária que, não somente copiava os textos dos autores antigos, mas também os revisava. Tito-Lívio, Marcial, Quintiliano e Juvenal, estavam no rol dos autores que tiveram suas obras reeditadas durante esse período. Tais trabalhos de revisão eram comumente conduzidos por rétores e gramáticos, “D’une manière plus génerale, nous autons à replacer l’activité littéraire de Victorinus, dans ce contexte de ‘renaissance’ du IVe siècle. Ces aristocrates humanistes furent ou les contemporains ou les élèves de Victorinus” (HADOT, 1971, 41); certamente M. Vitorino exerceu sua própria influência nesse movimento. Numa época que conheceu uma fecunda atividade de escoliastas e de comentadores, é possível presumir que tal tenha sido a centelha motivadora de M. Vitorino para a composição de sua Ars Grammatica. Em paralelo às atividades literárias da aristocracia tradicionalista romana e o seu esforço por voltar às antigas crenças pagãs, sempre houve um governo que estava obstinado a instaurar o cristianismo como religião oficial do Império. No entanto, o paganismo, como afirma Hadot (1971, 42), não era estritamente literário, era também uma prática religiosa nos meios aristocráticos, assim, paganismo e cristianismo conviveram durante muito tempo. O mais precioso exemplo dessa extraordinária simbiose entre ambos é um calendário, copiado e ilustrado por Philocalus em 353, referente ao ano 354 d. C., em que, cada mês ilustra tanto as festas cristãs, quanto as pagãs (HADOT, 1971, 42). M. Vitorino foi, durante quase toda a sua vida, um adepto da antiga mentalidade, segundo Hadot (1971, 47), para a qual o paganismo representava mais do que uma crença religiosa, significava também fidelidade às tradições históricas de Roma, dentre elas a valoração da língua e da literatura daquela sociedade. Le perplessità che un’adesione pubblica al cristianesimo suscitava nel suo animo erano infatti anche di ordine pratico (...): l’acclamato maestro di tanti giovani e non più giovani membri della classe senatoria, il difensore della tradizione pagana la cui effigie era stata eretta nel foro col plauso di quei potenti amici valutava senza dubbio relazioni sociali (MARIOTTI, 1967, 25-6) Dessa forma, é possível ver os reflexos dessa postura engajada na primeira fase de sua obra. 33 Como apontam Hadot (1971) e Mariotti (1967), o caminho que M. Vitorino percorreu até encontrar-se na fé cristã é demasiadamente longo e, por vezes, lacunar, desse modo, como seu percurso de conversão pouco influiu na obra que é objeto de estudo da presente pesquisa, os Marii Victorini Artis Grammaticae Libri IIII, acredita-se que as pesquisas e a explanação realizadas sejam suficientes para demonstrar o contexto de produção da obra. 34 FIGURA II Virgílio e as Musas, Museu do Bardo, Tunis, Tunísia. (Mosaico supostamente representando o poeta Virgílio ladeado pelas Musas Clio e Melpômene). 35 PARTE B MARII VICTORINI ARTIS GRAMMATICAE LIBRI IIII 36 III. A história do texto de M. Vitorino e Élio Aftônio: introdução de Keil O filólogo alemão Heinrich Keil reuniu, em seu magnífico trabalho de coleta e edição de textos de gramáticos latinos (KEIL, 1961), no volume VI (Scriptores Artis Metricae) de sua obra, os textos de gramáticos antigos que desenvolveram reflexão, descrição, catalogação e prescrição de expedientes poéticos da métrica latina. Integram a compilação de Keil textos dos autores Mário Vitorino, Máximo Vitorino, Céssio Basso, Atílio Fortunaciano, Terenciano Mauro, Mário Plócio Sacerdote, Rufino e Málio Teodoro, além de haver dedicada uma seção aos Fragmentos e Excertos Métricos. Tais textos foram organizados e reunidos pelo autor que ainda elaborou um prefácio, escrito em latim, à sua obra. Nele Keil descreve, dentre outros expedientes, seu contato e trabalho de pesquisa com os manuscritos latinos para o estabelecimento dos textos na sua edição moderna. Por meio do prefácio de Keil tem-se notícia de que a Ars Grammatica de M. Vitorino chegou à posteridade na forma de três manuscritos principais: os códices Palatinus 1753, Parisinus 7539 e Valentinianus M. 6. 10; os três datam de meados do século IX (KEIL, 1961, vii). Chamam a atenção, na obra de Keil, o prefácio e a profusão de notas elaborados em latim, aquele reservado aos comentários sobre o trabalho de investigação nos códices antigos, e estas, em sua maioria, dedicadas a expor as diferentes grafias encontradas entre os códices, além das referências de alguns versos citados dentro da obra para as explanações sobre a teoria métrica. Em sua obra Scriptores Artis Metricae, Keil produz um grande prefácio dedicado aos estudos relativos à Ars Grammatica de M. Vitorino, em especial, ao estado dos títulos e certas inscrições nos manuscritos que trazem à luz o problema da autenticidade da obra que chegou à posteridade em quatro volumes, sob o título Ars Grammatica. O título inicial atribuído à obra de M. Vitorino é, no manuscrito Palatinus 1753: (ar)s grammatica Marii Vict(orini); no Parisinus 7539: Incipit ars grammatica Victorini Mari de ortografia et de metrica ratione; e no Valentinianus M. 6. 10: Incipit ars grammatica Marii Victorini. Nos três manuscritos, ao final do primeiro livro, De orthographia et de metrica ratione, lê-se Marii Victorini de metricis didascalicis liber primus explicit. O título do segundo livro, de acordo com Keil (1961, viii), é Didascalicus prototyporum novem liber 37 secundus e, segundo a tradição manuscrita, os títulos dos dois últimos livros são: Liber tertius de coniunctis inter se et mixtis metris pragmaticus e Liber quartus de conexis inter se atque inconexis quae Graeci ἀσυνάρτητα vocant pragmaticus. No entanto, o que mais desperta a atenção é que, ao final do quarto livro, lê-se, nos três manuscritos, Aelii Festi Apthonii v(iri) p(erfectissimi) de metris omnibus expliciunt libri quatuor, seguido de um estudo relativo aos metros do poeta Horácio, sem título e sem especificações. A menção a E. Aftônio permite inferir que, em algum momento, o texto desse gramático, composto por quatro livros, foi inserido no texto de M. Vitorino, sem quaisquer notas. Afora os títulos e subtítulos, Hadot (1971, 63) atenta para uma lacuna existente no primeiro livro, em que o desenvolvimento de M. Vitorino sobre as sílabas é interrompido bruscamente16 e uma nova progressão de ideias é encaminhada sobre o mesmo assunto. A lacuna, na página 31, linha 13 na edição de Keil (1961), é indicada pelo filólogo alemão por meio de um asterisco e notas explicitando o tratado de E. Aftônio que se iniciaria a partir daquele ponto, dando continuidade ao capítulo sobre letras e sílabas. Dessa forma, Hadot (1971, 63) distingue quatro porções diferentes nesse conjunto de quatro volumes da Ars Grammatica. A primeira parte, que corresponde na edição de Keil às páginas 3, 6 a 31, 12, traz o título Ars Grammatica Marii Victorini, compreende os seguintes capítulos: de arte, de voce, de litteris, de orthographia e de syllabis; a segunda parte corresponde às páginas 31, 13 a 173, 32 de Keil e aborda uma obra em quatro volumes, dois teóricos, introduzidos pelo termo didascali, e dois práticos, introduzidos por pragmatici; estes discorrem sobre os metros e são atribuídos, pelo termo explicit17, a Élio Festo Aftônio; a terceira parte estende-se da página 174, I à 183, 21 da edição de Keil, e trata-se de algumas páginas consagradas aos metros de Horácio, que não são introduzidas por incipit18 ou explicit, como seria conveniente, mas apresentam estreito vínculo com a obra precedente; por fim, a quarta parte corresponde às últimas páginas da edição de Keil, 182, 22 a 184, 14, que enumeram algumas definições de conceitos métricos como ode, colon, comma e melos. 16 A ruptura ocorre quando, à página 31, encerra-se um parágrafo que disserta sobre a letra ‘i’ intervocálica e imediatamente inicia-se outro parágrafo, in media res, tratando das cinco vogais existentes, assunto já abordado por M. Vitorino anteriormente (KEIL, 1961, 29) 17 Trad.: acaba aqui; fim da obra. “Usava-se pôr esta palavra no fim dos livros, nos tempos da baixa latinidade, para indicar que a obra acabava ali” EXPLICIT. In: SARAIVA, F. R. Novíssimo Dicionário Latino-Português. 12ª ed. Belo Horizonte: Garnier, 2006, p. 457. 18 Trad.: começar, dar princípio. INCIPIO. In: SARAIVA, F. R. Novíssimo Dicionário Latino-Português. 12ª ed. Belo Horizonte: Garnier, 2006, p. 590. 38 A diferença entre a obra de E. Aftônio e o tratado de M. Vitorino, seu precedente, é possível reconhecer de acordo com Hadot (1971, 63), pelas fontes19 que os autores utilizam e, certos critérios estilísticos confirmam-na20. Keil (1961), Hadot (1971) e Mariotti (1967) levantam hipóteses que justificam a ligação entre os dois gramáticos antigos e mesmo a inserção do texto de E. Aftônio na Ars Grammatica de M. Vitorino: a primeira possibilidade seria a de o próprio M. Vitorino ter sido o responsável por tal junção dos tratados; a segunda hipótese admite a chance de a ligação ser uma simples consequência de um erro de copista. Na primeira hipótese, levantada por Keil (1961, xiv - xviii), M. Vitorino, ao compor um breve tratado de gramática, cuja maior parte é consagrada à ortografia, vê-se impelido a completar a sua obra anexando-lhe o tratado de E. Aftônio. Ao final do tratado, assinalado por um explicit que se encontra em todos os manuscritos (Aelii Festi Aphthonii de metris omnibus explicit), M. Vitorino acrescenta uma breve listagem de metros de Horácio e mais algumas definições sobre ode, colon, comma e melos, por exemplo. Para Keil (1961, xv), os argumentos apresentados em favor dessa primeira hipótese, tais como a presença de repetições inúteis de desenvolvimentos anteriores ou mesmo retomada de conteúdos, são suficientes para atribuir a M. Vitorino a ligação entre as duas obras. Para Mariotti (1967, 50), tais repetições de segmentos são traço comum à tradição na literatura didascálica e nenhum argumento apresentado por Keil é bastante consistente para confirmar a autoria da ligação. De acordo com a segunda hipótese, a ligação entre a Ars Grammatica de M. Vitorino e o De metris de E. Aftônio seria produto de um mero acaso, somente as primeiras páginas seriam de M. Vitorino, o restante da obra seria de E. Aftônio. De acordo com Hadot (1961, 68) e Mariotti (1971, 50) essa possibilidade é mais verossímil: a confusão entre as duas obras seria proveniente do acaso que suprimiu da Ars Grammatica as suas últimas páginas e as 19 A evidente quebra sintática e semântica que existe dentro do capítulo sobre as sílabas, no primeiro livro da Ars, página 31, 17 da edição de Keil, proporciona um confronto entre o texto de M. Vitorino e a produção de E. Aftônio. Keil assinala, em notas, numerosos desenvolvimentos na obra de M. Vitorino que encontram eco em Carísio e Donato, enquanto o capítulo sobre as sílabas, atribuído a E. Aftônio, assemelha-se à obra de T. Mauro. Note-se que, é Keil quem, em nota ao texto da Ars, destaca tais afinidades entre os autores. 20 Cf. HADOT 1971, 61-68; MARIOTTI, 1967, 10-23; Mariotti e Keil observam os diferentes empregos da palavra igitur por toda a Ars. No trecho que se acredita ter sido verdadeiramente escrito por M. Vitorino, todas as ocorrências de igitur aparecem como a primeira palavra da frase, tal como acontece também em suas obras cristãs. No entanto, nas ocorrências de igitur, bastante numerosas, dentro do trecho da Ars que fora atribuído a E. Aftônio, no primeiro livro, de 19 ocorrências de igitur, 13 encontram-se no início da frase e somente 6 como primeira palavra; no segundo livro, de um total de 14 igitur, 9 estão no início da frase, porém somente 5 vezes o termo está em posição inicial. 39 primeiras do tratado de E. Aftônio. Essa lacuna certamente remonta ao século IV, já que Rufino de Antioquia menciona como sendo de M. Vitorino um trecho da obra de E. Aftônio (HADOT, 1971, 68). O melhor dos manuscritos, o Palatinus, termina todo o conjunto da obra com um simples explicit, somente o Parisinus repete a inscrição Ars grammatica Victorini Mari de orthographia et de metrica ratione; dessa forma, é mesmo possível admitir que se trata da iniciativa de um copista. O presente trabalho não pretende esquadrinhar a questão da autoria do texto, apenas expor as teorias que puderam ser depreendidas dos levantamentos promovidos pela pesquisa; o expediente de confrontar posições de comentaristas foi necessário também porque suas teorias, em torno da questão da autoria, são fundamentais para compreender a composição estrutural da Ars Grammatica. 40 IV. A estrutura da Ars Grammatica Da legítima Ars Grammatica de M. Vitorino restaram apenas algumas páginas, que correspondem exatamente às vinte e nove páginas iniciais, da edição de Keil (1961), e às onze páginas finais, de acordo com Mariotti (1967, 50). Para Mariotti, Keil teria cometido um grave engano ao propagar o texto de E. Aftônio ainda relacionado à obra de M. Vitorino: uma vez que o filólogo alemão responsável pela edição moderna havia reconhecido grande parte do conjunto de quatro volumes da Ars não pertencer ao autor que dá título à obra, o mais adequado teria sido desvincular os textos, publicando-os separadamente. Keil, porém, manteve os tratados unidos e a justificativa para tal escolha estaria no fato de o editor julgar que tal união teria sido feita pelo próprio M. Vitorino. Acredita-se, no entanto, que os argumentos que refutam tal hipótese, como, principalmente, a identidade que se pode traçar entre as obras de Donato, Carísio e M. Vitorino e entre T. Mauro, A. Fortunaciano, C. Basso e E. Aftônio, como dito anteriormente, esteja mais fortemente amparada pelos dados do próprio texto, por isso este trabalho pretende endossar o ponto de vista de I. Mariotti, que atribui a um erro de um copista a junção entre a obra de M. Vitorino e E. Aftônio. Pretende-se, no presente estudo, examinar a Ars Grammatica tal como os manuscritos originalmente a conservam, afinal, mesmo que sob fontes e formas diferentes ao longo dos quatro volumes, a Arte Gramatical constitui um conjunto inestimável de postulados das doutrinas métricas em circulação na antiguidade. Para que se faça uma análise justa da estrutura da Ars, propõe-se sondar-lhe os preceitos, obedecendo à questão da autoria do texto conforme se definiu há pouco. IV. 1 – Ars Grammatica de M. Vitorino: as primeiras noções de prosódia e ortografia Os capítulos De arte, De uoce, De litteris, De orthographia e De syllabis do Liber Primvs de Orthographia et de metrica ratione são atribuídos a M. Vitorino e, como define Keil (1961, 3- 31), guardam notável aproximação com a obra de Carísio; enquanto Mariotti (1967, 47-53) assinala estreita relação entre esse início da Ars Grammatica e a obra de Donato. Dessa maneira, submeteu-se à análise a obra de M. Vitorino e, quando foi possível, buscou-se estabelecer um diálogo entre o córpus principal desse estudo e as obras de Donato e 41 Carísio, para que se pudesse traçar um perfil da estrutura que dá início aos estudos gramaticais, nas Artes Grammaticae. As Artes Grammaticae consistem em uma descrição da língua latina, que compreende desde o estudo dos sons e da formação de palavras até as partes do discurso, as suas virtudes e os seus vícios, de modo a orientar a correção da leitura e da escrita. Baratin discorre do seguinte modo sobre a estrutura da descrição dos elementos constituintes da língua: Pour pouvoir en traiter valablement, la grammaire doit d'abord procéder à une analyse qui dégage les éléments qui constituent la langue, et leurs variations formelles. D'où, comme plan: une première partie sur les éléments (lettres, syllabes, catégories de mots), et une deuxième sur la correction, c'est-à-dire sur les critères qui permettent de l'établir et, corollairement, sur les manquements dont elle peut faire l'objet, c'est-à-dire sur les fautes. (BARATIN, 1994, 147) Esse modelo de descrição comporta uma progressão uox, littera, syllaba, que remonta a uma prática de ensino de leitura e de escrita da língua que parte da letra (vogal ou consoante), para, em seguida, passar à sílaba, e, depois, à palavra. Essa progressão é inerente ao ensino gramatical e isso já atestara Platão, como lembra Baratin (1994, 146), e, apesar dessa progressão ser prática recorrente entre os artígrafos, Law assevera que o ensino de língua independe da fixação de conceitos gramático-linguísticos como ‘letra’, ‘sílaba’ ou ‘palavra’: Of course, one can teach someone to read without any grammatical concepts more sophisticated than ‘letter’, ‘sound’ and ‘word’: equivalent terms are found in all literate societies, and in most, if not all, preliterate societies. In other words, the ability to read and write – and by implication to devise a writing system – does not presuppose an extensive repertoire of linguistic concepts, still less a well-developed system of grammar or theoretical linguistics. (LAW, 2003, p. 52) A progressão gramatical uox, littera, syllaba tem por referência a prática de ensino da língua latina e, por isso, tal sequência figura nas Artes grammaticae, uma vez que elas abrangem as matérias de caráter descritivo da língua de maneira didático-pedagógica: Dans cette structure de description, la progression lettres, syllabes, catégories de mots remonte à la pratique de l'enseignement de la lecture et de l'écriture, où l'on part de la lettre pour passer ensuite à la syllabe, puis au mot. Cette progression est inhérente à cet enseignement, et elle est déjà attestée chez Platon (BARATIN, 1994, 145). 42 Assim, ao analisar o trecho que é originalmente atribuído a M. Vitorino, é possível identificar, logo de saída, que o autor conserva os tópicos da progressão gramatical, no entanto, procede, como única alteração do modelo, a inserção do capítulo orthographia, depois de haver dissertado sobre as litterae. M. Vitorino detém-se minuciosamente sobre os tópicos uox, littera, orthographia e syllaba, e chama a atenção o alto nível de complexidade das teorias e conceitos e a descrição primorosa do autor. Existe um claro paralelo entre a obra de M. Vitorino e aquela de Donato, especialmente com a Ars maior, como já assinalara Mariotti (1967, 51). O tratado de Donato parece sobressair aos de sua época e aos posteriores devido ao grande esmero do autor quanto à organização de suas duas Artes (MARIOTTI, 1967, 51). É possível verificar que o texto de Donato descreve sistematicamente a língua latina utilizando-se, para tanto, do mesmo esquema progressivo de organização comum às Artes Grammaticae. Se o conteúdo a ser tratado é assunto comum entre as Artes Grammaticae e se a organização se fundamenta sobre o mesmo esquema progressivo, como afirma Baratin (1994), o que haveria na obra de Donato que teria faltado aos demais artígrafos? O rigor da exposição teórica da obra de Donato é o que parece destacar as Artes de Donato das demais, de acordo com Baratin (1994, 142). O autor prima pela clareza e pela concisão, pela brevidade e pela perfeição formal ao descrever o sistema da língua latina, uma vez que tais atributos seriam capazes de auxiliar no processo de ensino-aprendizagem. Essas características da composição donatiana estariam, segundo Dezotti (2011, 14), no cerne da discussão sobre a supremacia da Ars minor e da Ars maior de Donato no campo das Artes Grammaticae. Tradicionalmente a Ars Donati é constituída de dois tratados, a Ars minor e a Ars maior, que consiste na reunião de três outros tratados menores. Para o presente estudo, interessa sobremaneira a Ars maior, organizada de acordo com a seguinte sequência: Ars maior I: De uoce; De littera; De syllaba; De pedibus; De tonis; De posituris. Observa-se que Donato segue rigorosamente a estrutura base do estudo progressivo da gramática latina, uox, littera, syllaba, e que a essa progressão somam-se os estudos das partes da oração (Ars maior II), e os estudos sobre os vícios e virtudes (Ars maior III). Conforme já se disse, Donato objetiva escrever com exatidão e clareza, talvez por isso, tenha-lhe parecido melhor ater-se ao essencial, eliminando o acessório e as informações adicionais em prol de 43 um texto mais objetivo e didático, trazendo ao leitor uma abordagem simples, mas completa do sistema da língua latina, como sugere Baratin (1994, p. 142). Já no tocante a Carísio, uma das características mais marcantes de sua Ars Grammatica é o caráter compilatório, reconhecido pelo autor no próprio prefácio da obra21. Esse manual de gramática descreve o sistema da língua latina de maneira breve e concisa, combinando em suas partes materiais distintos, extraídos com maior ou menor grau de fidelidade de diversas fontes. O caráter compilatório da Ars de Carísio faz dela um documento de sumo interesse para o estudo das múltiplas fontes que não apenas serviram para moldá-la, mas também indicam uma verdadeira concatenação de estudos gramaticais, da qual se podem extrair além de fragmentos de autores anteriores ao século IV, transmitidos unicamente por Carísio, também aspectos importantes da doutrina gramatical latina e traços característicos de autores de épocas mais distantes, como assegura Baratin (1994, 144). Carísio tem a sua obra dividida em cinco livros, o primeiro, sobre o qual recai o olhar deste estudo, traz a teoria da littera através da progressão grammatica, uox, littera e syllaba. Os demais livros tratam: o segundo, as partes do discurso; o terceiro, alguns desdobramentos a respeito dos verbos; o quarto, os vícios e as virtudes do discurso; e, o quinto, algumas construções idiomáticas. Há, assim, entre as Artes Grammaticae de M. Vitorino, Donato e de Carísio grande proximidade, isso porque, segundo Baratin (1994, 143), os modelos de descrições linguísticas, ou seja, as Artes, formavam um conjunto de textos com os mesmos princípios e objetivos: dar a conhecer a estrutura da língua latina por meio de expedientes didático-pedagógicos. De acordo com Baratin, há uma gigantesca diversidade de planos adotados pelos gramáticos latinos, porém, antes de se distanciarem e cuidarem cada qual do enfoque que lhes é mais caro, todos partem de um início comum, os fundamentos da língua latina, a uox, a littera e a syllaba, e nisto são iguais: En d'autres termes, je ne pense pas que la diversité des plans adoptés par les grammairiens latins tienne à un quelconque souci de se démarquer les uns des autres, à l'amour de l'un pour les travaux de marqueterie ou au goût d'un autre pour les paquets de fiches, mais au fait que les grammairiens ne disposaient plus, au moins à partir du 3e.s., des moyens de repéter la moindre cohérence dans le matériau à décrire. (BARATIN, 1994, 153) 21 Cf. a esse respeito VARELA, U. J. Consideraciones sobre el prefacio del Arte gramática de Carísio, STVDIVM. Revista de Humanidades, 12, 2006, 113-25. 44 IV. 2 – Ars Grammatica de E. Aftônio: o tratado de métrica É possível perceber a diversidade de planos adotados a que se refere Baratin (1994) nas Artes Grammaticae que escolhem a métrica como enfoque principal. A métrica, nesse caso, é o que Baratin (1994, p. 153) denominou de ‘detalhe’, escolhido pelo gramático para ser estudado com maior profundidade. A definição do assunto principal a ser abordado no tratado é o que determinará a organização do trabalho, a exposição das teorias linguísticas e o discurso adotado pelo autor. Baratin destaca ainda, no que tange à métrica, que existe uma dificuldade quando os estudos avançam o nível das sílabas: “a éventuellement un accent, et, surtout, toujours une quantité, est susceptible de se combiner en mot, mais également en pied.” (BARATIN, 1994, 149). Assim, Luque Moreno (2001, p. 22-23.) e Baratin (1994, 149) veem a assimilação dessa estrutura pelos metricistas num modelo de descrição organizado hierarquicamente da seguinte maneira: pé > metro > poema voz > fonema > sílaba > palavra > enunciado > discurso. Dessa forma, para Luque Moreno: He aquí, pues, la progresión jerárqueica de constituyentes a que me refería antes: de las letras a las sílabas, de las sílabas a las palabras, de las palabras a la oración. Los metricólogos pasarán de las sílabas a los pies, la mínima unidade significativa en el flujo rítmico-métrico, equivalente en muchos sentidos a la palabra en la cadena hablada. Pies o ritmos denomina Dionísio a las palabras, identificando así los dos tipos de unidades, la lingüística y la rítmico-métrica (LUQUE MORENO, 2001, 23). E, nas palavras de Baratin, On a donc là une bifurcation, d'un côté vers les classes de mots, de l'autre vers les différents types de pieds, et éventuellement vers leur propre mode de combinaison, c'est-à-dire les mètres. Cette bifurcation, qui est à coup sûr très ancienne, pose dans le détail des problèmes délicats, parce que la morphologie (traitement des classes de mots), et la métrique (traitement des mètres), ne sont évidemment pas sur le même plan (1994, 149). 45 É também à luz das teorias expostas sobre a progressão gramatical que se pretende estudar o trecho da Ars Grammatica atribuído a M. Vitorino e destacar as correspondências existentes entre esse tratado e aquele de T. Mauro, que teria sido a principal fonte de M. Vitorino. A porção mais volumosa da obra Marii Victorini Artis Grammaticae Libri IIII, conforme foi abordado aqui, teria sido escrita por Élio Festo Aftônio (MARIOTTI, 1967, 47). A ruptura do tratado de M. Vitorino que dá início ao texto de E. Aftônio está localizada na página 31, 13 da edição de Keil (1961). Keil assinala a quebra com um asterisco no corpo do texto acompanhado de nota de rodapé com a seguinte inscrição: “lacuna quam indicavi exciderunt quaedam, a quibus initium novi tractatus de litteris et de syllabis”. Keil não avalia o novo tratado que tem início a partir daquele ponto, a menção a E. ,Aftônio acontecerá somente na página 173, 33, em que se encontra a inscrição Aelii Festi Aphthoni V. P. metris omnibus explicit liber IIII, como observado anteriormente (Cf. Capítulo III. A história do texto de M. Vitorino: introdução de Keil). Assim sendo, as noções de métrica que se estendem da página 31 à 173 corresponderiam, de acordo com Hadot (1971, 64) e Mariotti (1967, 47), ao tratado De metris de E. Aftônio. O trecho da Ars que é atribuído a E. Aftônio tem o seu início in media res, isto é, com o capítulo sobre as sílabas em pleno desenvolvimento. Deste ponto em diante, o que se segue é uma mudança radical quanto às fontes que orientaram a teoria e a estruturação da obra. Luque Moreno (2005) analisa as confluências entre as obras de T. Mauro, A. Fortunaciano e E. Aftônio. Estruturas gramaticais e sintáticas22 de T. Mauro e A. Fortunaciano são apontadas no texto de E. Aftônio por Keil, em notas à sua edição23. Chama a atenção não apenas a profusão de notas que denunciam a clara influência que aqueles autores exerceram na obra de E. Aftônio, mas também o rigoroso paralelo que se pode traçar entre elas. O texto de T. Mauro “De littera, de syllaba, de pedibus” é dividido em três grandes partes, de litteris: p. 11, v. 85 a p. 23, v. 278, segundo a compilação de Keil (1961); De syllabis (etiam metrica ratione): p. 25, v. 279 a p. 93, v. 1299 e De arte metrica (cum poemate, compositione, structura, musica): p. 95, v. 1300 a p. 213, v. 2981. 22 Cf. MORENO, 2005. 23 Deve-se observar que, em todos os textos de sua compilação, Keil (1961) investiga e anota todas as passagens que são comuns entre as Artes ou, que ressoam Artes, é a essas anotações às quais o presente trabalho recorre. 46 Chiara Cignolo (2002, xxxiii), na introdução da versão italiana do Terentianus de littera, de syllabis, de pedibus, demonstra a organização da obra de T. Mauro. Após uma breve apresentação da sua Ars, T. Mauro, no capítulo De litteris, estuda a sequência já conhecida, comum às Artes Grammaticae, iniciando pela descrição da articulação dos sons, vocálicos e consonantais e, já no início do terceiro capítulo, De syllabis, o autor apresenta letras, vogais, ditongos e consoantes e, por fim, a formação das sílabas. Após o estudo das sílabas, sua formação e composição, T. Mauro dedica o último capítulo de sua obra ao estudo dos metros da lírica latina (CIGNOLO, 2002, xxxiv). Nesse ponto, dá início à explanação a respeito da formação e da natureza dos pés da lírica latina. Segue-se, então, um estudo detalhado dos metros, a começar pelo hexâmetro e daí uma sucessão deles: pentâmetro, arquiloqueu, anapesto, coriâmbico, arquebuleu, etc. Ao findar a sua obra, T. Mauro dedica algumas páginas aos metros mistos e a estrofes, como a estrofe alcaica e outros metros usados por Horácio. A análise da sistematização dos dados na obra de T. Mauro permite entrever que também esse autor aplica à sua Ars a organização a que Baratin (1994) nomeou progressão gramatical. Note-se, entretanto, que T. Mauro não aparece na relação elaborada por Keil, às primeiras páginas da Ars de M. Vitorino, com justiça atribuída a ele; em seu lugar, Keil estabelece a analogia com Carísio e Donato. Todas essas Artes, as de T. Mauro, Carísio e Donato, adotam o mesmo modelo de organização estrutural, ao menos no que tange aos primeiros tópicos a serem abordados, uox, littera, syllaba; no entanto, M. Vitorino e E. Aftônio buscaram cada qual a sua referência, fator este que demonstra, conforme assinalado, o conjunto dos quatro livros da obra Marii Victorini Artis Grammaticae Libri IIII ter sido composto por dois autores diferentes (MARIOTII, 1967, 50). O tratado técnico Marii Victorini Artis Grammaticae Libri IIII, cujas páginas iniciais são atribuídas a M. Vitorino e a volumosa porção central, que trata dos assuntos métricos, atribuída a E. Aftônio, dá prosseguimento à sequência de Artes Grammaticae que aplicam a progressão gramatical uox, littera, syllaba, no princípio dos estudos, como já se demonstrou, e têm sua continuidade, após o estudo das sílabas, na formação dos pés e metros da lírica latina, semelhante ao modelo empregado por T. Mauro e descrito por Baratin (1994) e Moreno (2001). Tal construção é incomum a Donato e Carísio, que, após o estudo das sílabas, dedicaram-se ao exame da formação de palavras, das estruturas sintáticas e à análise do 47 discurso; ela, porém, é encontrada frequentemente nas Artes Grammaticae cujo principal interesse está nos estudos métricos. É possível notar, pela organização estrutural da Ars de T. Mauro, que o seu objetivo é compor um tratado que esgotasse o assunto ‘métrica’, e o mesmo se pode dizer a respeito do texto de E. Aftônio, inserido na Ars de M. Vitorino24. Assim, o que se tem é uma série de obras voltadas para os estudos aprofundados da métrica em língua latina, isto é, sem quaisquer fins didático-pedagógicos, conforme afirma Cignolo: Il trattato, poi, non ha certo le caratteristiche di un manuale di scuola e non può in nessum modo essere stato pensato per uso didattico, anzitutto per le difficoltà che lo renderebbero inaccessibile per degli studenti alle prime armi.(2002, xxix) Cignolo refere-se especificamente ao tratado de T. Mauro, no entanto, pela semelhança que se denota entre os tratados de T. Mauro e E. Aftônio, é possível transferir e aplicar também a este as ponderações feita àquele por Cignolo. Os textos de T. Mauro, portanto, justamente por causa da complexidade que atingem nos estudos métricos, não estão, segundo Ciagnolo (2002, xxix), destinados aos jovens aprendizes da língua de nível escolar, mas sim, àqueles que já dominavam a língua latina e estariam buscando aprofundar seus conhecimentos a respeito da métrica, ou mesmo aos pretensos novos poetas, o mesmo se pode dizer a respeito de E. Aftônio, dadas as semelhanças estilísticas encontradas em ambos os tratados. Possiamo allora forse immaginare una figura di poeta erudito, in accordo con il modello comune dell’Africa del sec. III, buon conoscitore di metrica e grammatica, anche se non maestro di scuola, che scrive con l’obiettivo di teorizzare le competenze tecniche in campo prosodico e metrico acquisite in anni di pratica poetica, proponendosi come ideali dei colleghi, persone già competenti in materia, per cosè dire ‘aspiranti poeti’. (CIGNOLO, 2002, xxix) É necessário ressaltar que Baratin associa a progressão gramatical como um modelo didático-pedagógico inerente ao processo de ensino-aprendizagem da língua (BARATIN, 1994, 145). Porém, não diferencia os níveis de dificuldades impostos ao aprendiz por uma Ars Grammatica que pretende analisar de maneira breve e sucinta o sistema linguístico latino, praticar análise do discurso e arrolar os vícios e virtudes do enunciado, como fazem os textos de Donato e Carísio, daqueles outros textos que, como os de T. Mauro, A. Fortunaciano e E. 24 Também na obra Fortunatiani Ars Metrica, a Arte Gramatical de A. Fortunaciano (MARIOTTI, 1967, 52). 48 Aftônio, têm por pretensão aprofundar-se nos estudos métricos e proporcionar ao leitor uma análise completa dos metros da lírica latina. 49 V. Os exempla no discurso gramatical Todas as gramáticas comportam exemplos. Esse parece ser um ingrediente indispensável ao discurso do gramático (CHEVILLARD, 2007, 6). Entretanto, o estatuto epistemológico, a forma e o funcionamento semiótico dessas sequências intituladas exemplum podem ser diferentes, segundo o córpus que se observa, quer se trate de tradições gramaticais distintas, quer se situem no interior de uma mesma tradição, em momentos históricos diferentes. Enquanto os discursos gramaticais já foram alvo de numerosos e exaustivos estudos sobre sua história, epistemologia e semiologia, é recente o interesse pelo estudo dos exempla, e alguns dos pesquisadores que se dedicaram a essa classe de estudos reúnem nomes como os de J.-C. Chevalier (2007), J.-L. Chevillard (2007), B. Colombat (2007), J. Lallot (2007), J.-M. Fournier (2007), J. P. Guillaume (2007) e M. Baratin (2009; 2011). É necessário salientar que a fonte mais abundante em informações sobre o estudo dos exempla dentro do discurso gramatical encontrada por esta pesquisa é o volume 166, L’exemple dans les traditions grammaticales, da Revista Langages. O volume é consagrado ao exemplo em várias tradições gramaticais e apresenta um conjunto de reflexões sobre esse fato do discurso característico das gramáticas. A partir do confronto e da comparação dessas práticas em diferentes tradições, como as tradições grega, latina, árabe, tâmil e francesa, os artigos do volume descrevem as soluções imaginadas pelos gramáticos para a elaboração do discurso, para a manipulação do exemplo e para a construção de uma representação da língua objeto. Assim, por meio desses elementos, é possível traçar uma tipologia dos exemplos no discurso gramatical, como fizeram os autores que compõem o Volume 166 da Revista Langages e como pretende também fazer este estudo. O que se seguirá é uma reflexão de ordem teórica, à luz dos conceitos expostos pelos pesquisadores há pouco citados, sobre as propriedades e a natureza desse fato do discurso que é característico aos gramáticos. É a partir do confronto e da comparação das abordagens que se tem hoje sobre os exempla que trataremos, neste capítulo, de lhes propor uma definição e de determinar as técnicas de inserção e de manipulação no discurso de que fazem parte, bem como a construção de uma representação da língua-objeto, a partir de alguns de seus elementos. Ressalta-se, porém, que cada um daqueles modernos estudiosos dos exemplos e do discurso gramatical apresentados nos artigos reunidos da Revista Langages, volume 166, 50 expõe suas reflexões à medida que analisa um córpus selecionado. Chevillard (2007), por exemplo, escolhe como objeto de pesquisa algumas tradições gramaticais bastante distintas entre si como a tradição tâmil, o discurso gramatical da Nouvelle Méthode latine de Port- Royal e a obra de Apolônio Díscolo, também objeto dos estudos de Jean Lallot (2007). Bernard Colombat (2007) tomará como córpus os dois pilares da tradição latina, as Ars maior e Ars minor de Donato e as Institutiones grammaticales de Prisciano. Jean-Marie Fournier (2007) investiga os dados das gramáticas de tradição francesa e Jean Patrick Guillaume (2007), os de tradição árabe. Além desses artigos publicados na Revista Langages, há ainda que se mencionar dois outros artigos ainda mais recentes, o de Baratin, intitulado “La littérarité comme performance de textes techniques: les Artes grammaticae antiques”, apresentado ao XVIII Congresso Nacional de Estudos Clássicos, realizado no Rio de Janeiro em 2011 – ao qual essa pesquisadora teve acesso privilegiado, por gentileza do autor na data do evento – que aborda os exemplos literários inseridos no discurso gramatical; e o de Alessandro Garcea & Angelo Giavatto, denominado “Les citations d’auteurs grecs chez Priscien: un premier état de la question”, artigo publicado na Revista Letras Clássicas da FFLCH/USP, lançado em setembro de 2012, no qual os autores estudam a presença de citações literárias gregas na obra de Prisciano, traçando uma tipologia desses exemplos, analisando as formas que assumem e, especialmente, os principais autores citados. Este trabalho não pretende adotar metodologia diferente. Neste capítulo acerca dos exemplos, intenta-se abordar os exempla da obra Marii Victorini Artis Grammaticae Libri IIII, cotejando-os com os exemplos presentes nas Artes com as quais, conforme se demonstrou (Cf. Capítulo IV), têm estreita afinidade, quais sejam, as de Carísio, de Donato e de T. Mauro, e ainda outros autores presentes na edição compilatória de Keil (1961), tais como C. Basso e A. Fortunaciano, à medida que se julgar valorosa a contribuição desses autores para a presente pesquisa. Optou-se por discriminar neste trabalho aqueles exemplos presentes nas 29 primeiras páginas e nas páginas finais da obra Marii Victorini Artis Grammaticae Libri IIII que, de acordo com o exposto, foram estabelecidos por M. Vitorino, daqueles outros pertencentes à grande fatia da Ars Grammatica atribuída a E. Aftônio. Para tanto, o presente estudo, doravante, empregará ‘M. Vitorino’ para se referir aos exemplos presentes exclusivamente nas 29 páginas iniciais e nas 11 finais da obra Marii Victorini Artis 51 Grammaticae Libri IIII, e ‘E. Aftônio’ para aludir aos exemplos do grande volume do tratado De metris inserido na obra deste. Há que se destacar, entretanto, que a recorrência de exemplos nas obras daqueles gramáticos que dissertaram sobre a métrica é muito maior quando comparada ao número de exemplos presentes nas obras de Carísio e de Donato, que tiveram por intenção descrever a matéria linguística do latim, de maneira sucinta, mas em sua totalidade. Dessa maneira, há uma quantidade consideravelmente menor de exemplos no segmento da Ars Grammatica atribuído a M. Vitorino se comparada à exorbitante quantia daqueles que se encontram no tratado De metris de E. Aftônio. V. 1 – As várias tentativas de definição A dificuldade de definir de maneira satisfatória o que seja um exemplum dentro do discurso gramatical advém da imensa variedade de formas e funções que ele pode assumir, assim é, de fato, ocioso insistir na complexidade de se colocar sob um único rótulo dados que podem parecer, e muitas vezes são, bastante diferentes. Para que a definição consiga abarcar a maior parte dos dados de língua presentes no discurso gramatical, não seria possível fundamentá-la na natureza dos dados linguísticos representados pelo exemplo, uma vez que ela varia de acordo com a finalidade do discurso em que ele está inserido; também não seria possível estabelecer uma definição assentada na forma dos exemplos, pois é grande a diversidade de formas que eles podem assumir. A definição, de acordo com Bernard Colombat (2007, p. 72), deve apreender o conjunto de fenômenos através dos quais se manifestam, no discurso gramatical, os dados da língua-objeto. Jean-Luc Chevillard, em artigo composto a várias mãos (CHEVILLARD et al., 2007, 5-6), chega à conclusão de que a melhor maneira de se definir o que seja um exemplum é por meio de seu funcionamento semiótico: “tout objet linguistique, quelle que soit sa structure, issu de la langue objet: tout fragment de la langue objet inséré dans le discours grammatical” (CHEVILLARD, et al., 2007, 5-6). Trata-se, pois, de uma sequência autônoma dentro do texto fonte. É possível concordar com Chevillard (2007, 6) que ainda é cedo para dizer se tal formulação atende aos critérios de exaustibilidade requeridos por uma boa definição; os exempla, tomados como objeto de considerações teóricas, têm sido objeto de 52 recente interesse dos investigadores, no entanto, já é possível avaliar alguns resultados do pensamento até agora elaborado acerca dos exemplos. Admitindo-se como exemplo uma sequência autônoma dentro do discurso, é possível recolher dados à mancheia, o que, se por um lado, é positivo, pois consegue superar a dificuldade de agrupar todas as variedades de exemplos em um único conjunto, por outro, permite que sejam recolhidas, além de frases completas, também as listas de morfemas e palavras, prefixos e marcas de flexão, e até mesmo simples letras. Malgrado a proporção que tomaram as listas de exemplos, como lembra Bernard Colombat (2007, 71), a definição apresentada por Chevillard (2007, 6) parece ser a mais profícua. Chevillard propõe a seguinte fórmula: “un exemple n’est pas n’importe quel fragment de la langue, il correspond plutôt à un échantillon représentatif de cette dernière” (2007, 6), i. e., o exemplo é a criação de uma representação da língua dentro do discurso gramatical. Chevillard (2007, 7) destaca que podem existir gramáticas que dispensem o exemplo como recurso linguístico, isto é, uma gramática que descreva a língua somente por metalinguagem; embora seja possível, não se tem ainda notícia de qualquer caso que venha servir como referência. O extremo oposto, isto é, uma gramática inteiramente constituída por exemplos, assemelhar-se-ia, para o autor, muito mais a “un exercice de style un peu gratuit” (CHEVILLARD, 2007, 7) que a uma descrição séria da língua e, por sua vez, também não legou nenhum representante. C. Marchello-Nizia e G. Petiot (1977, 84) lembram, no entanto, que a maioria das obras situa-se bem aquém desses dois limites, admitindo a variação entre conter muitos exemplos e conter poucos exemplos. Ao propor uma definição do que sejam os exemplos dentro do discurso gramatical, concorda-se com Chevillard, (2007, 27) qualquer definição de exemplo dificilmente poderá prescindir de uma análise de suas funções nos planos didático e epistemológico, e isso porque os tipos de exemplos são comandados pelo modelo de realidade empírica à qual corresponde a língua-objeto descrita pela gramática. As formas, o funcionamento e o tipo de exemplos escolhidos pelo autor dependem da orientação da obra, que pode ser didática, erudita, etc. Quando coloca lado a lado diferentes tradições gramaticais, como as gramáticas latinas tardias, as gramáticas latinas produzidas na França durante o século XVI, textos gramaticais tâmil e textos da tradição árabe, Chevillard (2007, 8) observa que o estatuto epistemológico do exemplo manifesta-se de maneira diferente nessas tradições. 53 Certaines opèrent sur un corpus clos, achevé, de textes classiques (comme la tradition latine), d’autres sur un corpus non clos. La fonction (cognitive, sociale…) des outils linguistiques – grammaires et dictionnaires – (Auroux, 1993), n’est pas la même dans les deux cas: élucidation et conservation vs grammatisation, c’est-à-dire description et normalisation. (CHEVILLARD, 2007, 8) A respeito das funções desempenhadas pelos exemplos dentro do discurso gramatical, de córpus fechado ou aberto, falaremos mais adiante, ainda neste capítulo; por ora, o que deverá estar claro é que todos os aspectos do exemplo, quais sejam, definição, demarcação, forma e função, não são aspectos singulares, ao contrário, concorrem todos para a criação de uma representação da língua-objeto dentro do discurso. V. 2 – Demarcação: a inserção do exemplo no discurso gramatical A inserção do exemplo dentro do discurso gramatical traz à baila a questão da heterogeneidade enunciativa que existe entre o discurso do exemplo e o discurso que o cita, ou seja, aquele do gramático. De acordo com Authiez-Revuz (1990, 29) “a heterogeneidade que constitui um fragmento mencionado, entre os elementos linguísticos de que faz uso, é acompanhada de uma ruptura sintática”. Esses fragmentos, como os denomina Authiez- Revuz, apresentam-se nitidamente delimitados na cadeia discursiva. A pluralidade de vozes que pode existir no discurso gramatical deve ser colocada em evidência, pois, segundo Chevillard “C’est là une condition nécessaire (et suffisante) pour qu’un énoncé, une séquence linguistique quelconque, soit reconnue comme exemple, comme fragment de la langue objet”(2007, 8). No caso dos discursos gramaticais, reconhecer e dar a conhecer esse ‘outro’, como denomina Authiez-Revuz (1990), significa descentralizar-se e dar-se um ancoramento real, mas, fora de si próprio. Os exemplos, como se pretende demonstrar, compõem o córpus ilustrativo das gramáticas: eles são imprescindíveis para que a gramática exerça a sua função de descrição do conhecimento linguístico e constituem, pois, a aplicação da teoria do sistema linguístico na prática da língua, por meio da criação de um momento de representatividade da mesma língua (CHEVILLARD, 2007, 9). Chevillard lembra que, no caso das gramáticas bilíngues, a distinção entre os discursos está já nos códigos linguísticos e, por isso, é mais visível. Nas gramáticas monolíngues, a diferença é menos perceptível, porém, mesmo assim, existem recursos que podem tornar mais evidentes a heterogeneidade discursiva e podem ser empregados em ambos os tipos de 54 gramática. Chevillard distingue dois tipos de marcação: a tipográfica e a robusta; Colombat (2007, 78) define ainda um terceiro tipo, aquele que busca ocultar tais marcações. V. 2. 1 – A marcação tipográfica Os exemplos, tanto nas gramáticas quanto nas obras linguísticas e literárias, são, muitas vezes, imediatamente observados, graças ao destaque que lhes atribuem os artifícios tipográficos destinados a distingui-los do discurso metalinguístico, segundo C. Marchello- Nizia e G. Petiot (1977, 84). É preciso destacar que esse tipo de marcação não é encontrado nas tradições manuscritas e estará sempre submisso ao tratamento dado ao texto em suas prováveis diferentes edições. Segundo Chevillard (2007, 9), a tradição tipográfica repousa sobre um largo inventário de termos, signos e técnicas tipográficas instaurados pelas obras publicadas ao longo do tempo, e cuja escolha não depende somente dos gramáticos; diz respeito à, principalmente, limitação imposta aos textos pelas técnicas de impressão e de composição, i.e., a limitação dos meios reprográficos que introduziram notações específicas. Dentre as principais, Chevillard destaca o uso de: a) sinais de pontuação: traço, vírgula, ponto seguido ou não de maiúscula, dois pontos, ponto e vírgula; b) sinais tipográficos: parênteses, colchetes, chaves, aspas duplas, aspas simples, etc.; c) mudança de fonte: destaque com letras itálicas em oposição à fonte normal, pequenas capitais (modernamente chamadas small caps); d) mudança de linha e recuo. Nos textos do volume VI, Scriptores Artis Metricae, da obra Grammatici Latini, edição e compilação de Keil (1961), os exemplos das Artes Grammaticae de todos os autores ali reunidos têm como principal marcação tipográfica o uso de aspas simples, quando o exemplo está inserido no corpo do texto teórico, ou aparecem em separado, ocupando uma linha isolada, alinhados ao meio da página, como no excerto a seguir, da obra de E. Aftônio. [...] Non amat autem, ut dictum est, per singulos pedes verba finire, sed immiscere syllabas. Nam qui per singulos pedes verba terminarit, erit indecens, sicut Pythie, Delie, te colo, prospice votaque firma. 55 at si misceantur syllabae, erit decentissimus, ut at regina gravi iamdudum saucia cura. (VICTORINUS, 1961, 71) [...] Não é bom, porém, como já se disse, que palavras concluam pés inteiros, mas, ao contrário, que as sílabas [nele] se mesclem. Aquele [verso], pois, que separar as palavras em pés únicos, será considerado inadequado, assim como: [Pythĭĕ,| Dēlĭĕ,| tē cŏlŏ,| prōspǐcĕ | vōtăquĕ | fīrmă.] 25 mas, se as sílabas se misturarem, será o mais harmonioso possível, como em: [āt rē|gīnă gră|vī iām|dūdūm| sāucǐă| cūrā]. 26 O único autor, daqueles recolhidos por Keil (1961), que destoa do conjunto e segue normas diferentes para a apresentação dos exempla, é T. Mauro, isso por que a sua Ars é composta em versos hexâmetros datílicos em sua maioria. Esse autor, em particular, constrói seu trabalho visando não somente a descrever os expedientes métricos na elaboração de poemas, ou destacando a importância da métrica para a lírica latina, mas, faz de seu próprio tratado, ao exercer o papel de versificador, um modelo de poesia (CIGNOLO, 2002, xxxiv). Em Aftônio, os exemplos em língua estrangeira, no caso, em grego, são introduzidos como os exemplos latinos, por meio da marcação tipográfica, recuo, mudança de linha e aspas simples e da marcação robusta, principalmente com partículas demarcadoras como pronomes (dêiticos, anafóricos, relativos, enfáticos, etc...) e conjunções. Os exemplos gregos sempre estão acompanhados da indicação de seu autor, Homero em todas as ocorrências, e inseridos num contexto positivo, sobre o que se falará mais adiante. Nam si una syllaba brevius fuerit a legitimo hexametro heroo, dicetur diphilium metrum, ita tamen ut ista versificatio tertium pedem spondeum semper habeat. Hoc quoque dignum eruditis auribus non praetermiserim repertum in hexametro versu dactylico, cui tamen duo cola e duobus dactylis et spondeo constabunt, quattuor pedes disyllabos, id est trochaeum iambum pyrrichium spondeum, per ordinem semper positos inveniri, si velis alias, quam hexametri heroi lex postulat, scandere, ut est apud Homerum Ζεὺς δὲ θεῶν ἀγορὴν ποιήσατο τερπικέραυνος et apud nostrum conciliumque vocat divum pater atque hominum rex. (VICTORINUS, 1961, 73) Assim, se uma sílaba breve for par