UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” MARIANA GOMES MAZIERO PERCUSSÃO CORPORAL PELA ABORDAGEM BARBATUQUES SEGUNDO AS CRIANÇAS: uma cartografia de escuta São Paulo 2021 MARIANA GOMES MAZIERO PERCUSSÃO CORPORAL PELA ABORDAGEM BARBATUQUES SEGUNDO AS CRIANÇAS: uma cartografia de escuta Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-graduação em Música, área de concentração Educação Musical do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), como requisito parcial para obtenção do título de mestre em música. Linha de pesquisa: música, epistemologia, cultura Orientadora profª Drª Margarete Arroyo São Paulo 2021 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. M476 p Maziero, Mariana Gomes, 1984- Percussão corporal pela abordagem Barbatuques segundo as crianças : uma cartografia de escuta / Mariana Gomes Maziero. - São Paulo, 2021. 135 f. : il. + anexo Orientadora: Prof.ª Dra. Margarete Arroyo Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Música - Instrução e estudo. 2. Percussão (Música). 3. Música e crianças. I. Arroyo, Margarete. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 780.7 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 MARIANA GOMES MAZIERO PERCUSSÃO CORPORAL PELA ABORDAGEM BARBATUQUES SEGUNDO AS CRIANÇAS: uma cartografia de escuta Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-graduação em Música, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp) como requisito parcial para obtenção do título de mestre em música. Dissertação aprovada em: 22/10/2021 Banca examinadora _____________________________ Professora Doutora Margarete Arroyo Universidade Estadual Paulista – orientadora ________________________________ Professora Doutora Viviane Beineke Universidade Estadual de Santa Catarina ________________________________ Professora Doutora Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento Universidade de São Paulo Ao amigo e mestre Fernando Barba In memoriam Muito obrigada por nossos caminhos terem se cruzado. AGRADECIMENTOS Agradeço, em primeiro lugar, aos meus pais, Marineide e José Carlos que, cada um à própria maneira, sempre me incentivaram nas escolhas profissionais que tive e, principalmente, para a trajetória acadêmica. E aos meus familiares que de alguma forma me apoiam, indo assistir as apresentações musicais ou palestras. À minha orientadora professora Drª Margarete Arroyo, que teve toda a generosidade de entrar, junto comigo, no universo da infância e da cartografia, me dando um suporte fundamental para esse início de jornada na pós-graduação stricto sensu. Todos os questionamentos, sugestões de novas leituras, escritas e acompanhamentos, com certeza, foram essenciais para que chegasse à conclusão da dissertação, sendo o começo de uma caminhada acadêmica e de pesquisa que poderá ainda vir. À Sâmia Chang, que colaborou com transcrições de algumas entrevistas. Ao Rodrigo Garcia, que fez as transcrições para percussão corporal. Ao Carlos Bauzys e Daniel Rocha, que gentilmente cederam partituras para este trabalho. Aos integrantes do Barbatuques que sempre acompanham as pesquisas que faço, em destaque ao André Hosoi, que pode me co-orientar na monografia da especialização que fiz em 2016, à Luciana Horta, João Paulo Simão e Mauricio Maas, que deram o apoio em leituras, comentários e conversas sobre o grupo e a pesquisa. Ao Fernando Barba, que partiu em fevereiro de 2021, a quem dedico este trabalho, com quem tive a oportunidade e privilégio de aprender e conviver de perto. Agradeço por abrir portas e mentes para um fazer musical tão próprio e tão universal ao mesmo tempo. Ao apoio incondicional que ele sempre deu a quem quisesse fazer pesquisa sobre percussão corporal, com o qual me sinto contemplada. Espero que esta pesquisa possa ser uma das sementes do legado que o Barba plantou. Aos professores e colegas de pós-graduação, com quem dividimos experiências, leituras, disciplinas, discussões, reflexões, saberes e angústias, sobretudo aos integrantes do grupo de pesquisa Apremus que sempre, colaborativamente, contribuem para as pesquisas dos membros. À equipe do Lar Sírio Pró-Infância que sempre me deu suporte e apoio para a realização da pesquisa. E, por fim, agradeço às crianças copesquisadoras deste trabalho, que, sem a disponibilidade e abertura delas para participarem junto, a investigação teria outro rumo. RESUMO A pesquisa objetiva compreender como crianças de oito e nove anos, que frequentam um projeto social localizado no município de São Paulo, entendem a proposta de percussão corporal, a qual está baseada na abordagem educacional do grupo Barbatuques. Com uso da metodologia qualitativa, por meio do método da cartografia, busquei escutar essas crianças em ambiente de aula de percussão corporal, das quais elas participam há, no mínimo, dois anos, para trazer as perspectivas delas no âmbito das descobertas sonoras do corpo, das relações entre si e da compreensão dessa prática da educação musical. O referencial teórico baseia-se no tripé da sociologia da infância como campo epistemológico, na educação musical a partir da pedagogia do acontecimento musical proposto por Teca Alencar de Brito e na conexão entre infância e corpo alertada por Miguel Arroyo. Por fim, trago relatos do campo, que indicam pistas acerca da potencialidade da escuta das crianças, das ideias de música e do corpo como instrumento. Palavras-chave: Educação musical. Percussão corporal. Escuta das crianças. Barbatuques. Método da Cartografia. Aulas de música. ABSTRACT The research aims to understand how children aged eight and nine, who attend a social project located in the city of São Paulo, understand the proposal of body percussion, which is based on the educational approach of the Barbatuques group. Using a qualitative methodology, through the method of cartography, I tried to listen to these children in a body percussion classes, in which they participate for at least two years, to bring their perspectives in the scope of sound discoveries of the body, of the relations between themselves and the understanding of this practice of music education. The theoretical referential is based on the tripod of childhood sociology as an epistemological field, on musical education based on the pedagogy of the musical event proposed by Teca Alencar de Brito and the connection between childhood and the body as warned by Miguel Arroyo. Finally, I bring reports from the field, which indicate clues about the potential of listening to children, ideas about music and the body as an instrument. Keywords: Music education. Body percussion. Listening to children. Barbatuques. Cartography Method. Music classes. LISTA DE FIGURAS E QUADROS FIGURAS Página Figura 1 – Mapa conceitual 57 Figura 2 – Vista panorâmica do Lar Sírio 65 Figura 3 – Espaço musicalidade 66 Figura 4 – Transcrição da proposta de Pétala 78 Figura 5 – Transcrição do Volume 2 79 Figura 6 – Transcrição do Volume 3 79 Figura 7 – Transcrição do Volume 4 82 Figura 8 – Transcrição do Volume 5 82 Figura 9 – Mapa conceitual com pistas 102 QUADROS Página Quadro 1 – Etapas da pesquisa 69 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Abem – Associação Brasileira de Educação Musical CCA – Centro para Criança e Adolescente CD – Compact Disc CEU – Centro Educacional Unificado DVD – Digital Vídeo Disc EMEI – Escola Municipal de Educação Infantil EUA – Estados Unidos da América IBMF – International Body Music Festival ONG – Organização Não Governamental PAP – Programa de Apoio à Profissionalização Pase – Programa de Apoio Socioeducativo PIA – Programa de Iniciação Artística Saica – Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes Sebrae – Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequenas Empresas Senac – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SESI – Serviço Social da Indústria Simpom – Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música SMADS – Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social TALE – Termo de Assentimento Livre e Esclarecido TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Unicamp – Universidade Estadual de Campinas SUMÁRIO Página INTRODUÇÃO 13 Capítulo um | ESCUTA DO CORPO 18 1.1 Percussão corporal como prática em variadas culturas 18 1.2 Barbatuques 20 1.2.1 Núcleos educacional e artístico 25 1.2.2 Fundamentos conceituais da percussão corporal do Barbatuques 32 1.2.3 Estudos sobre o Barbatuques 33 Capítulo dois | ESCUTA DE CRIANÇAS 38 2.1 Revisão bibliográfica 38 2.2 Referencial teórico 44 2.2.1 Sociologia da infância: um campo de pesquisa 44 Cultura de pares 48 Agência/protagonismo e escuta 49 2.2.2 Educação musical e a pedagogia do acontecimento musical 51 2.2.3 Corpo – infância 54 Capítulo três | CONTEXTOS E CAMINHOS DA ESCUTA 58 3.1. Pesquisa qualitativa e método cartográfico 58 3.2. Lar Sírio Pró-Infância 62 3.2.1 "Vamos fazer aquele Barbatuques?": histórico da presença da música no Lar 66 3.3 Etapas da pesquisa 68 Capítulo quatro | ESCUTA DAS CRIANÇAS 74 4.1 Explicando a pesquisa para as crianças 74 4.2 “-É... outra versão.” “- Volume dois!” 77 4.3 “Tem que explicar por partes” 85 4.4 “A brincadeira do pause” 86 4.5 “A música, para mim, é um quebra-cabeças” 90 4.6 “Porque quando tem uma banda sem instrumento, aí faz música no corpo” 92 4.7 “Você está esquecendo da nossa lista” 96 CONSIDERAÇÕES DAS ESCUTAS 99 Referências 104 Anexo A - Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa 109 Anexo B – Bula para percussão corporal desenvolvida por Carlos Bauzys para o Núcleo Barbatuques 112 Apêndice A – Categorias do diário de campo 113 Apêndice B – Bula de transcrições das sequências elaboradas pelas crianças 117 Apêndice C – Sequências criadas pelas crianças. Os “volumes” 118 Apêndice D – Arranjo criado pelas crianças para a música Fome Come 120 13 INTRODUÇÃO Pesquiso e pratico a percussão corporal desde 2007. Nos últimos cinco anos, tenho investigado possibilidades dessa instrumentação musical com crianças. Desde o início, participei de grupos de estudos de percussão corporal e, a partir de 2010, fui chamada por Fernando Barba (1971-2021 - um dos fundadores do grupo Barbatuques1) para integrar a equipe de produção do 3º Festival Internacional de Música Corporal2, que aconteceria em São Paulo no mesmo ano, já que eu também trabalhava com produção cultural. Depois desse festival, comecei a trabalhar com o Barbatuques como produtora local freelancer, acompanhando-os em viagens, eventos e shows. Isso ocorreu de forma intensa por cerca de quatro anos e continua até hoje de maneira esporádica. Nos últimos anos, pela experiência e pesquisa com aulas de percussão corporal, de vez em quando sou convidada a substituir algum integrante em apresentações e em oficinas organizadas pelo grupo. De 2014 a 2020 transitei como monitora e produtora das oficinas em módulos de responsabilidade de Fernando Barba. Paralelo ao Barbatuques, Fernando Barba criou a Orquestra do Corpo em 2014, grupo do qual integro como instrumentista desde o início. Nesse mesmo ano, me formei no curso técnico em música e comecei a dar aulas, nas quais sempre utilizei a percussão corporal como ferramenta principal, seja em oficina pontual ou em aulas regulares. Dessa experiência como educadora musical, surgiu a ideia de iniciar uma investigação em aulas de musicalização para crianças de quatro e cinco anos em que o tema central era o corpo como instrumento, com ênfase na percussão corporal. Assim, desenvolvendo técnicas de execução, diferenciação de timbres, definição de alturas, ritmo, criação musical, entre outros aspectos musicais, o corpo foi tratado como qualquer outro instrumento. Tal estudo teve início no curso de Especialização (Lato-Sensu) em Educação Musical (MAZIERO, 2016)3, na intenção de que o tema pudesse ser aprofundado em nível de mestrado. Uma vez que a minha base de formação em percussão corporal é de oficinas, cursos e grupos de estudos do Barbatuques, nos quais os jogos e práticas são realizados com adultos, a monografia de conclusão do referido curso conteve um caráter descritivo 1Barbatuques é um grupo musical brasileiro que há mais de 20 anos trabalha exclusivamente com sons do corpo, sendo referência mundial nessa área, tanto na abordagem educacional, quanto na estética/artística. 2Edição brasileira do IBMF – International Body Music Festival 3MAZIERO, M. G. Percussão corporal na Educação Infantil. Monografia. Especialização em Educação Musical) - Faculdade Cantareira, São Paulo, 2016. 14 de atividades com indicações de possibilidades e adequações lúdicas com crianças pequenas (quatro e cinco anos), de uma escola particular. Avançando na compreensão da prática da percussão corporal com crianças, nesta investigação do mestrado trago o problema de pesquisa: como crianças de oito e nove anos percebem, elaboram e refletem sobre a percussão corporal, a partir de aulas que vivenciam semanalmente em uma Organização Não Governamental? Nota-se que aqui, diferente da pesquisa anterior, é um outro contexto de aprendizagem, que não mais o da educação infantil, embora eu também atue como educadora musical, com crianças de idades variadas. A partir da reverberação das vozes dessas crianças, mais do que analisar a execução musical da percussão corporal, a intenção está em reconhecê-las como pensadoras sobre esse fazer musical. Assim, o objetivo principal é conhecer como as crianças entendem a percussão corporal segundo a proposta fundamentada na abordagem educacional do grupo Barbatuques. O foco está na perspectiva da criança sobre as descobertas sonoras do corpo, as relações entre elas e a escuta do que as crianças manifestam acerca da percussão corporal. Também há a intenção de discutir a repercussão dessa compreensão na prática da educação musical e constituir fonte para minha própria reflexão como educadora musical. Os sujeitos parceiros da pesquisa e copesquisadores são cerca de 20 crianças de oito e nove anos, das quais 70% fazem aula de percussão corporal comigo há dois anos em uma Organização Não Governamental, que trabalha no contraturno escolar, com crianças em situação de vulnerabilidade econômica e/ou social. Portanto, são crianças que já vivenciam o corpo como instrumento, tendo passado pela experiência dos jogos propostos pelo Barbatuques e é nesse ponto que essas duas pesquisas se relacionam (aquela desenvolvida em nível lato sensu, em 2016, e a stricto sensu, aqui apresentada). Por mais que tenham uma diferença de idade e contexto social, o grupo que participou da atual pesquisa também experienciou, em anos anteriores, as mesmas atividades de exploração de timbres, construção de ritmos e jogos. A percussão corporal faz parte dos jogos infantis, sendo uma prática transcultural que está presente nos jogos de mãos, brincadeiras de roda, amarelinha, pular corda ou elástico, entre outros. Ela também compõe propostas de alguns pensadores europeus da educação musical do início do século XX, como Jacques Dalcroze e Carl Orff. Nessas propostas, buscava-se a utilização do corpo no processo de compreensão de alguns saberes musicais (pulsação, ostinatos, células rítmicas, frases musicais etc) para, após a 15 assimilação desses conteúdos, iniciar o estudo de um instrumento musical. Contudo, nesta pesquisa, o corpo não é apenas um meio de compreensão de conteúdos musicais, uma etapa preparatória para o estudo de um instrumento. Ele é o próprio instrumento. Desta maneira, por compor parte da cultura infantil e propostas de educação musical, a percussão corporal merece foco de atenção quando praticada por crianças, pois, conhecer como elas percebem e elaboram essa prática poderá fornecer contribuições significativas para educadores musicais. Sobretudo ao levarmos em conta que o corpo é uma fonte sonora potente, com valor em si mesmo como instrumento musical. Considerando que o fazer musical é um processo conjunto que envolve a exploração, criação, execução de sons e o pensar nessa produção, ouvir o que as crianças têm a dizer sobre como compreendem esse fazer musical, por meio da percussão corporal, pode propiciar avanços para a educação musical ao também reconhecer esses sujeitos como produtores de música. Entendo que, com essa escuta, a pesquisa também revela o protagonismo da criança no âmbito musical. Para Júlia Oliveira Formosinho e Sara Barros Araújo (2008, p. 13) as pesquisas relacionadas à infância, por muitos anos, tiveram “um viés adultocêntrico, isto é, tendo como referência e recorrendo à voz do adulto, sobretudo pais e professores, para a obtenção de informação relacionada com as experiências diárias da criança”. No entanto, teóricos e investigadores da infância em diversos países, como Silvia Cruz (Brasil), William Corsaro (Estados Unidos da América), Manuel Jacinto Sarmento (Portugal), Jens Qvortrup (Dinamarca), entre outros, têm apontado a importância da pesquisa com crianças e/ou de se escutar as crianças no que tange às dimensões que lhe dizem respeito de forma direta, assim como a concepção de que a criança é um ser ativo, competente e com direitos. Formosinho e Araújo (2008, p.13) ressaltam que “naturalmente, esta tendência encontra-se estritamente relacionada com a reconstrução da imagem convencional da criança que tem vindo a permear a teoria e investigação na infância”. Desta maneira, esta pesquisa se concentra em ouvir as crianças como construtoras de conhecimento e não apenas descrever as possibilidades de adequação dos jogos de percussão corporal. Busco, assim, atentar para a expressão e reflexão das crianças sobre essa prática musical. Para tanto, encontrei respaldo teórico na sociologia da infância e na pedagogia do acontecimento musical abordada por Teca Alencar de Brito. Metodologicamente, os procedimentos do método cartográfico propiciaram registrar processos e pensamentos das crianças. 16 Pode-se notar ao longo desta dissertação que, em alguns momentos, é usado o termo percussão corporal e, em outros, música corporal. Em muitos trabalhos acadêmicos encontram-se essas duas terminologias. Os mais recentes usam música corporal, por entender que com o uso da voz as possibilidades melódicas e harmônicas são ampliadas, além das percussivas. Na instituição em que atuo, e que foi o campo empírico desta pesquisa, a aula é denominada música corporal. No entanto, ao pensar o corpo como instrumento, preferi referir-me à percussão corporal, pois, no meu entender, ao traçar um paralelo com a percussão tradicional com os instrumentos melódicos e harmônicos, como tímpanos, marimbas e vibrafones, a percussão corporal também tem timbres e combinações que possibilitam a elaboração de melodias e harmonias e não só de ritmos. Além disso, música corporal, às vezes, a meu ver, soa como um “estilo” (música para crianças, música para bebês, entre outros) e não como instrumento. Para não gerar essa possível confusão, utilizo percussão corporal ao abordar a instrumentação e música corporal quando trato das aulas oferecidas pela instituição. Este trabalho está dividido em quatro capítulos e as considerações finais. No primeiro capítulo é apresentada a percussão corporal como prática presente em diversas culturas e o grupo Barbatuques. No capítulo dois, uma revisão bibliográfica dá conta de trabalhos que discorrem sobre as perspectivas das crianças sobre o fazer musical. Ainda neste capítulo, o referencial teórico é desenvolvido acerca de três principais temas: a sociologia da infância como campo epistemológico, a pedagogia do acontecimento musical e, por fim, corpo e infância, provocando a pensar que corpos são esses que produzem música. O terceiro capítulo é o metodológico, em que discorro sobre o tipo de pesquisa, o método cartográfico e contextualização da instituição em que as aulas aconteceram bem como descrevo os procedimentos investigativos e os copesquisadores. No quarto capítulo são relatadas as cenas do campo, a partir da escuta das crianças, trazendo pistas de o que e como as crianças entendem das vivências de percussão corporal. E, para conclusão, as considerações dessas escutas. É importante mencionar que o projeto teve permissão para a realização da pesquisa na instituição com a concordância da coordenação, das crianças e dos respectivos responsáveis. Com isso, obteve parecer favorável do Comitê de ética4, o que fez com que eu pudesse iniciar a pesquisa de campo em outubro de 2019. Outro 4 Número do parecer: 3.671.855 | CAAE: 22766919.4.0000.5663, anexo A. 17 acontecimento relevante foi a pandemia provocada pelo novo coronavírus (Covid-19), reconhecida pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020. Esse evento repercutiu na pesquisa, efeito que está detalhado no capítulo três. 18 CAPÍTULO UM | ESCUTA DO CORPO Quando se trata de percussão corporal, acredito ser mais apropriado utilizarmos o termo “descobrir” no lugar de “inventar”. Afinal, a técnica já existe há muito tempo. A contribuição do método5 Barbatuques talvez tenha sido a de acrescentar o uso do peito, do estalo e da palma como se fossem uma bateria – o peito no lugar do bumbo, o estalo como o chimbal e a palma para a caixa. Por isso, nunca registrei essa “criação” como minha. Penso que ela pertence a todos que a ela se dedicam (BARBA; TORRES, 2019, p. 72). O objetivo deste capítulo é explicitar e contextualizar os fundamentos práticos e conceituais da percussão corporal que compõem este trabalho com as crianças parceiras desta pesquisa. Inicio mencionando práticas de percussão corporal em diferentes culturas no intuito de situar o grupo Barbatuques nesse conjunto de manifestações culturais. Sigo trazendo José Eduardo Gramani e Stenio Mendes, músicos e educadores que fizeram e fazem parte da formação e base do Barbatuques, bem como apresentar os núcleos artístico e educacional do grupo. Por fim, alguns conceitos que permeiam essa prática e uma revisão bibliográfica sobre trabalhos que abordam o Barbatuques, sobretudo os que dialogam com o trabalho do núcleo educacional. 1.1 Percussão corporal como prática em variadas culturas A percussão corporal está presente em diversas culturas, seja em gestos habituais, como estalos de língua ou de dedos, ou em danças tradicionais e brincadeiras da infância. Em muitas delas não é possível separar a percussão corporal da dança e vice-versa. No Brasil, podemos encontrar batidas de pé em ritmos e danças como coco6, xaxado7 e catira8 (que tem o acréscimo de combinações com palmas, por exemplo), além das brincadeiras tradicionais infantis, como jogos de mãos e de roda. 5 Apesar do próprio Fernando Barba referir-se ao Barbatuques como método, a discussão desse conceito na educação musical contemporânea deve ser considerada. Entendendo que não é o caso de me deter muito nesse assunto aqui, pois, ao considerar que o Barbatuques propõe caminhos e não uma estrutura fechada, utilizo nesta dissertação o termo prática – prática da percussão corporal baseada no grupo Barbatuques - ou abordagem – abordagem baseada no grupo Barbatuques. 6 Coco - https://www.youtube.com/watch?v=Hmwf226Z5TQ Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 7 Xaxado - https://www.youtube.com/watch?v=EQtjfoClDvg Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 8 Catira - https://www.youtube.com/watch?v=2lZJBKXL2lc Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 https://www.youtube.com/watch?v=Hmwf226Z5TQ https://www.youtube.com/watch?v=EQtjfoClDvg https://www.youtube.com/watch?v=2lZJBKXL2lc 19 Diferentes práticas de sapateado são realizadas ao redor do mundo, como o sapateado irlandês9, o clogging10 inglês e o tap dance11 americano. O stepping12, originado nos Estados Unidos com jovens afro-americanos, traz não só batidas de pé, mas também no peito, coxas e palmas. Vindo de tradição da Síria, Líbano e Palestina, o dabke13 é dançado tendo as batidas de pé no chão como uma das fortes características. Além de um virtuoso sapateado de origem espanhola, o flamenco14 também trabalha com diferentes tipos de palmas, assim como a dança cigana15, de origem húngara, em que são executados diversos outros timbres além das palmas e pés, como estalo de dedos, batidas nas coxas, panturrilhas, costas das mãos, entre outros. Da África do Sul vem o gumboot16 que, inicialmente, era uma forma de mineradores se comunicarem por meio de batidas nas botas de borracha, com cantos e gritos sem o uso da fala (GUMBOOT DANCE, 2020). Incluindo a voz nesse panorama, encontramos formas vocais de percussão, como o beatbox17, que apresenta efeitos de uma bateria com a voz e sons de lábios. Da Indonésia vem o kecak18, tradicional dança balinesa, no qual a música é feita pelo canto de frases rítmicas. De uma forma mais abrangente, alguns artistas e grupos vocais além de todo o trabalho melódico e harmônico característicos desses grupos, também utilizam a percussão vocal e a imitação de instrumentos convencionais, como o grupo cubano Vocal Sampling19 e o artista americano Bobby McFerrin20. 9 Sapateado irlandês - https://www.youtube.com/watch?v=HgGAzBDE454 Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 10 Clog - https://www.youtube.com/watch?v=s1yYM7fKLS0&feature=youtu.be Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 11 Tap dance – https://www.youtube.com/watch?v=0-b4M8jssX8 Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 12 Stepping - https://www.youtube.com/watch?v=xuTFauBPHww Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 13 Dabke - https://www.youtube.com/watch?v=9axQZmDfHHw Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 14 Flamenco - https://www.youtube.com/watch?v=kSA1bXgOQTQ Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 15 Dança cigana - https://www.youtube.com/watch?v=TYgl6qfPdd4 Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 16 Gumboot - https://www.youtube.com/watch?v=U0Q51WVrR40 | https://www.youtube.com/watch?v=uuSuKKFzaho Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 17 Beatbox - https://www.youtube.com/watch?v=0KCt2hAzeW0 Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 18 Kecak - https://www.youtube.com/watch?v=t0HY0oD84OM Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 19 Vocal sampling - https://www.youtube.com/watch?v=TgvdjhbGGVI Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 20 Bobby McFerrin - https://www.youtube.com/watch?v=snFZFw2y9Gk Disponível no site youtube.com. Último acesso em 01/09/2020 https://www.youtube.com/watch?v=HgGAzBDE454 https://www.youtube.com/watch?v=s1yYM7fKLS0&feature=youtu.be https://www.youtube.com/watch?v=0-b4M8jssX8 https://www.youtube.com/watch?v=xuTFauBPHww https://www.youtube.com/watch?v=9axQZmDfHHw https://www.youtube.com/watch?v=kSA1bXgOQTQ https://www.youtube.com/watch?v=TYgl6qfPdd4 https://www.youtube.com/watch?v=U0Q51WVrR40 https://www.youtube.com/watch?v=uuSuKKFzaho https://www.youtube.com/watch?v=0KCt2hAzeW0 https://www.youtube.com/watch?v=t0HY0oD84OM https://www.youtube.com/watch?v=TgvdjhbGGVI https://www.youtube.com/watch?v=snFZFw2y9Gk 20 Diante desse cenário em que temos o corpo em diversas práticas culturais/musicais, em 2008, o americano Keith Terry criou o International Body Music Festival (IBMF)21, evento que acontece desde então todos os anos mostrando artistas de vários países que utilizam a percussão corporal como instrumento principal. Neste evento, usam a expressão música corporal, por entende-la de uma forma mais ampla, como demonstrado nos exemplos anteriores nos quais não podemos distinguir até onde vai a dança ou a música. O slogan do festival é “see music, hear dance”, que no Brasil, onde foi realizada a terceira edição22 do evento em 2010, teve como tradução “música que você vê, dança que você ouve”. O festival começou na Califórnia, Estados Unidos da América. Além do Brasil (2010), já aconteceu na Tuquia (2012), Itália (2014), Indonésia (2015), Grécia (2017), Ghana (2018), entre outros países e cidades americanas. Tive a oportunidade de estar na edição brasileira na equipe de produção e tocando no show de encerramento com a Orquestra do Corpo, que fez uma participação no show do Barbatuques. Esta edição aconteceu em São Paulo e os artistas que se apresentaram e ofereceram oficinas foram: B.A.S.E – Bay Area Sonic Ensemble (EUA), Barbatuques (Brasil) com participação de Stenio Mendes e Orquestra do Corpo, Jep Meléndez (Espanha), KeKeÇa (Turquia), Kenny Muhammad (EUA), Las Flamencas (Espanha), LeeLa Petronio (França), Max Pollak (Áustria), Sandy Silva (Canadá), Slammin All-Body Band (EUA) Step Afrika! (EUA), Steven Harper (EUA – Brasil) e Tekeyé (Colômbia). A maioria desses artistas se apresenta nas outras edições do festival, que sempre inclui grupos do país/região que recebe. Essa breve incursão em práticas de percussão corporal situa a proposta do Barbatuques e a que tenho realizado com crianças. 1.2 Barbatuques O Barbatuques é um grupo musical paulistano fundado por Fernando Barba e André Hosoi em 1995, que desenvolve pesquisas a partir da exploração e combinação da diversidade de timbres possíveis de serem realizados com o corpo como sons de pés, mãos percutindo nas pernas, barriga, peito, bochecha, boca, palmas e voz. 21 http://www.internationalbodymusicfestival.com/ 22 Traduzido como 3º Festival Internacional de Música Corporal http://www.internationalbodymusicfestival.com/ 21 O grupo, cuja abordagem é a base para esse trabalho, utiliza a percussão corporal como um processo de compreensão e como fim estético musical, com construção de repertório de uso exclusivo do corpo como instrumento, com arranjos contendo ritmo, melodia, harmonia e efeitos sonoros. Desta maneira, Roberta Forte completa: Grupo Barbatuques trazia composições com timbres corporais que iam além da voz, das palmas, das batidas de pés e estalos de dedos. Cada timbre, como palmas e percussão na boca, por exemplo, foi explorado em suas capacidades de variações de alturas, volumes e técnicas, expondo a possibilidade de pensar o corpo como um instrumento de percussão (FORTE, 2018, p. 36). Antes de abordar o grupo em si, darei destaque ao educador musical brasileiro José Eduardo Gramani23 e ao músico Stenio Mendes, pois entendo que os pensamentos e trabalhos deles têm influência e diálogo com os processos artísticos e educacionais do grupo Barbatuques, servindo de base para a constituição do grupo. Fernando Barba, André Hosoi e Luciana Horta, integrantes fundadores do grupo, foram alunos de Gramani no curso de música popular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) no começo dos anos 1990, na disciplina de rítmica. Sobre isso, Barba comenta: Gramani era um professor sui generis. O método dele era totalmente diferente de tudo o que a gente conhecia. [...] Seu método rítmico fazia todo o sentido para mim. Lembro do modo como ele conduzia os trabalhos, sua maneira bem- humorada de lidar com os músicos, sempre deixando que os ritmos aparecessem naturalmente. E ele conseguia isso de forma lúdica no trabalho com o grupo: alguém contribuía com um pedaço, outra pessoa, com outro. Éramos estimulados a ouvir ora o todo, ora um som em particular, a perceber como a nota de uma parte do corpo podia se relacionar com a de outra parte, a fazer essa conta em alguns momentos e, em outros, a não fazer, deixando a música se desenrolar com naturalidade. Todo esse fundamento permanece comigo ainda hoje. Foi um contato importante e que acrescentou muito à minha bagagem. Nessa época, eu já pesquisava a música corporal, explorando as possibilidades de coordenação dos braços, da voz e dos pés, experimentando o som das palmas, dos pés, dos estalos de boca etc. Gramani, que tinha um conhecimento bem mais avançado nesse sentido, foi quem me apresentou o pensamento contrapontístico entre voz, mãos e pés, que era o exato oposto daquilo que eu chamaria de “música acadêmica” – o método de estudo aritmético e formal que eu via nos conservatórios. Essa sacada me impulsionou muito. Era como se eu visse confirmado tudo aquilo que eu já intuía: que a música podia ser, também, uma brincadeira. [...] Gramani faleceu em 1998, em Campinas, e foi, seguramente, um dos pilares da educação musical no Brasil (BARBA; TORRES, 2019, p.64 e 65). 23 Considero José Eduardo Gramani como educador musical, pois entendo que ele foi professor de música em diversas instituições ao longo da carreira, sobretudo no Ensino Superior (como no curso de música popular da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp), contribuindo para o ensino de música, principalmente no âmbito do ensino de rítmica. 22 No livro Rítmica (2018), Gramani aborda o que Barba conta sobre as linhas rítmicas terem mais relação com contraponto do que com a harmonia, ou seja, não é um pensamento vertical, “a frase rítmica não se subordina ao tempo; ela acontece sobre ele, horizontalmente, conservando assim suas características básicas.” (GRAMANI, 2018, p. 11). Ao entendermos que o ritmo não está em função do tempo, mas com ele, percebemos a música e não um mero contar de tempos. Os livros do Gramani são de exercícios rítmicos, na maioria, para serem executados com duas ou três linhas sonoras simultâneas, envolvendo voz, alternância de mãos, pés, regência, timbres e alturas, com variação na voz, com “tum” (grave) e “tchi” (agudo) e com o punho (grave) e com a ponta dos dedos (agudo). No entanto, ele também sugere que alguns desses exercícios possam ser executados com outro instrumento como piano, bateria e violão, por exemplo. Entretanto, tais exercícios sempre passam pelo corpo, como acesso inicial, processo de compreensão e finalidade, executando uma produção sonora. Explicações de exercícios e frases como “feche os olhos e sinta o balanço do contraponto rítmico” ou “dançar também é bom” (GRAMANI, 2013 p. 143) apontam um aspecto muito importante do pensamento de Gramani: para além da execução está a sensibilidade rítmica. Contudo, vejo que ele nos provoca a trabalhar a sensibilidade musical e não só rítmica, conforme afirma: O estudo da música parte da sensibilização – um ótimo começo. As aulas de iniciação musical para crianças trabalham arduamente o “sentir”, conscientes de que a base para um desenvolvimento musical profundo está na possibilidade de o estudante descobrir seu interior por meio do estudo da música. Porém, essa fase do estudo rítmico é bruscamente interrompida quando o aluno começa a ter contato com a notação rítmica, um código que, se mal interpretado, pode significar apenas um conjunto de sinais para grafar durações dos sons. [...] Nota-se, então, um salto retroativo de qualidade: deixa-se de trabalhar a sensibilidade e o estudo se concentra no aspecto racional. Deixa-se de sentir e começa-se a contar (GRAMANI, 2013, p. 15). Seguindo a provocação do educador, pergunto: como e quando perdemos essa sensibilidade no processo de educação musical? Sobre essa importância do sentir estar presente na prática musical, Gramani e Cunha (2016) reiteram que apesar de complexos, os exercícios são muito musicais e percebe-se isso “quando a sensibilidade é requisitada e utilizada, o músico passa a sentir as vozes em sua independência” (GRAMANI; CUNHA, 2016, p. 195). 23 Além do sentir, outro ponto significativo da abordagem de Gramani como educador musical é a valorização da individualidade dos aprendizes. Em Rítmica viva – a consciência musical do ritmo (2013), no capítulo A “compartimentação” - um problemão, ele nos instiga a pensar em como é feito o ensino tradicional de música, no qual a melodia é ensinada separada do ritmo, que está distante da harmonia e que, por fim, “ensinamos música isolada da individualidade de cada aluno” (GRAMANI, 2013, p. 85). Não sabemos ensinar. [...] Ensinamos todos os alunos da mesma maneira, esquecendo que ainda resta (?) ao ser humano o privilégio de ter sua individualidade. Não aproveitamos esse fato; ao contrário: tentamos fazer sempre com que cada aluno se adapte ao geral, perdendo assim sua personalidade. [...] O correto seria conhecer o aluno, suas características de personalidade, seu repertório de informações, sua atitude perante a vida, perante a si próprio. (GRAMANI, 2013, p. 85). Se o professor não se preocupa com o aluno-indivíduo, fatalmente irá trabalhar a matéria e não o aluno. A “matéria” vai ser útil para muitos e inútil para “outros” muitos. (GRAMANI, 2013, p. 86). Quando os processos educativos fazem sentido para quem está na relação de ensino e aprendizagem musical é que eles se tornam, de fato, significativos e úteis, tanto para que o professor não seja apenas um fornecedor de conteúdos, quanto para o estudante que muitas vezes não se envolve nesses processos. Para além dos exercícios com percussão corporal (e aqui, talvez, seja o ponto mais convergente com o fazer musical utilizando o corpo como instrumento): partir do indivíduo para o coletivo. Valorizar o indivíduo é colocar luz às particularidades que cada corpo tem, com timbres e sonoridades peculiares que só a anatomia daquele corpo permite. Desta maneira, pode-se trabalhar as potências de cada pessoa para um fazer musical coletivo, reconhecendo o outro (na pluralidade de sons), trazendo sentido para quem está no processo. Repetindo o que Gramani colocou, “resta ao ser humano o privilégio da sua individualidade”. Nesse instrumento (o corpo), cada pessoa tem uma sonoridade particular, ampliando as possibilidades de riqueza de timbres. A individualidade na percussão corporal é, de fato, um privilégio, o que a difere de qualquer outro instrumento musical. Logo, é uma prática coletiva que parte do reconhecimento das individualidades para se fazer música junto. Após o contato com Gramani, Fernando Barba, André Hosoi e Marcos Azambuja, três músicos então recém-formados na Unicamp, abriram a escola de música Auê – Núcleo de Ensino Musical, que ficava no bairro de Higienópolis, em São Paulo e existiu 24 de 1993 a 2006. Na autobiografia de Fernando Barba, ele comenta que “uma característica da Auê era que nós, sócios e professores, fazíamos música o tempo inteiro. Às vezes, sentávamos no chão da sala de recepção e fazíamos percussão corporal.” (BARBA; TORRES, 2019, p. 75). Algo que era uma brincadeira nos períodos de intervalo de aula da escola de música vinha de uma pesquisa pessoal desde a adolescência e ganhava mais força depois do encontro com José Eduardo Gramani, Barba começa a pensar sobre dar aulas acerca dessa prática: A partir de 1995, eu comecei a sistematizar para valer as minhas pesquisas com percussão corporal. Era um assunto já bastante sedimentado em mim e, ao mesmo tempo, estava em pleno desenvolvimento. Havia dez anos que eu pesquisava música com meu corpo e achei que era hora de começar a dar aulas sobre isso [...] Depois de amadurecer a ideia, conversei com o Buja e com o Hosoi sobre a possibilidade de oferecermos aulas de música corporal na Auê. Hosoi, sensato, disse que eu deveria fazer primeiro uma experiência, antes de a escola oferecer o curso regularmente. Iniciei, então, um curso gratuito para interessados. A experiência foi uma grande descoberta. Os alunos me ensinaram muito e percebi a importância dos métodos pedagógicos. [...] Quando me aprimorei o suficiente, dei início às turmas na escola e o Hosoi se juntou a mim para dar essas aulas. Senti que havia encontrado o que eu realmente gostava de fazer (BARBA; TORRES, 2019, p. 73, 74 e 75). De uma dessas turmas surgiu o grupo artístico, que passaria a construir um repertório autoral e a se apresentar. No mesmo ano em que Barba começou a oferecer o curso de música corporal na Auê, ele conheceu Stenio Mendes, importante músico para a trajetória do grupo. Foi Mendes quem trouxe propostas de improvisação que teriam desdobramentos tanto no repertório dos shows quanto para jogos que fazem parte das oficinas até hoje. “Foi Theophil 24 que apresentou, para ele (Stenio Mendes), os três pilares fundamentais do jogo musical de improvisação: ouvir o outro, sentir o outro e manter o outro.” (MAAS, 2018, p. 28). Stenio Mendes é craviolista e pesquisador de fonéticas e de efeitos vocais. Na década de 1980, teve contato com o músico alemão Theoplill Maier que foi transformador para o trabalho que desenvolve com a exploração de sons (SIMÃO, 2013). 24 “Theophill Maier, alemão, ator, cineasta, integrante do grupo performático Trio ExVOCO e intérprete contemporâneo de John Cage”. (SIMÃO, 2013, p. 17) 25 Stenio ressaltou a sua identificação com o trabalho de Theophil Maier, que incluía em sua prática pedagógica uma ampla exploração de recursos vocais: a fonética e a produção de ruídos com a voz. Para Stenio, tornou-se muito prazerosa a arte de trabalhar com pesquisa. Essas experiências complementavam a sua formação como músico que explorava efeitos sonoros e percussivos da voz com a craviola. Maier tinha uma influência forte com dadaísmo, da poesia concreta como fonte para uma nova forma de fazer arte a partir dessas novas estéticas que geravam um estranhamento no público ouvinte (SIMÃO, 2013, p. 17). Simão (2013) resume o que representa a junção das pesquisas de Barba e Stenio: Com a fusão do trabalho de Stenio (com seus sons mais abertos e orgânicos, sua busca por novos timbres e seus jogos musicais), Barba (suas atividades rítmicas e combinatórias dos sons e outros jogos musicais) potencializou a transformação e a complexidade do trabalho do Barbatuques (SIMÃO, 2013, p. 20). Forte (2018), em entrevista com Mendes, conta que em um desses contatos com o Maier, este “proferiu uma frase que até hoje utiliza em suas aulas: ‘ouvir o outro, sentir o outro, manter o outro. [...] São três atitudes diferentes, apesar de parecerem a mesma coisa, são três dimensões bem diferentes.’” (FORTE, 2018, p. 50). Esta frase foi (e ainda é) levada adiante para as práticas de improvisação que Mendes conduz e que, consequentemente, também é praticada pelo grupo Barbatuques. De um ponto, uma experiência vinda da graduação por alguns integrantes, do contato com o Gramani, que consolidou alguns conceitos que foram difundidos pela prática do grupo. De outro, o contato com Mendes, que permeia o grupo até hoje, e que trouxe novas camadas sonoras. O Barbatuques, entre outras influências, traz a base desses dois músicos, pesquisadores e educadores. Talvez, Gramani tenha tido uma influência no princípio do grupo. Stenio Mendes é reconhecido como uma fonte inspiradora por todos os integrantes, pois ainda é próximo ao grupo, então, não é possível datar nem quantificar até quando ou o que exatamente é a contribuição dele, pois está em constante troca. Por isso, ainda neste capítulo, permeado por outros assuntos, a influência de Stenio reaparece em algumas falas pontuais. 1. 2.1 Núcleos educacional e artístico Quanto a mim, gosto de pensar que a percussão corporal é capaz de plantar uma semente nas pessoas, fazendo-as perceber que qualquer um pode praticá- la. Até porque já temos nosso próprio instrumento – o corpo (BARBA; TORRES, 2019, p. 72 e 73). 26 Nesta seção, abordo os dois eixos de atuação do grupo Barbatuques: o que ficou referenciado como Núcleo Educacional e como Núcleo Artístico. A vertente educacional começou a ser desenvolvida antes da artística. Para Simão (2013), o Núcleo Barbatuques atua nas frentes artística e pedagógica. A pedagógica25, por meio de oficinas, vivências e cursos de diversos formatos de conteúdo e duração; já a artística é concretizada pelas apresentações dos espetáculos criados pelo Barbatuques como O corpo do som (2002), Indivíduo corpo coletivo (2007), Tum Pá (2011)26. Essas duas frentes caminham paralelamente desde então. No entanto, a percussão corporal vivenciada pelas crianças nas aulas que ministro é referenciada na abordagem educacional. As oficinas são oferecidas pelo grupo em diversos formatos e durações a partir da sistematização iniciada por Fernando Barba. No entanto, desde 2013, Barba, independentemente do grupo, começou a fazê-las sozinho, pensadas em seis módulos, com duração de 12 horas cada, como uma forma de proporcionar tanto o acesso à abordagem nos módulos iniciais, quanto o aprofundamento nos conceitos, jogos e desafios técnicos e motores. A partir de 2014, me aproximei dessas oficinas em módulos como monitora e em 2016 passei a produzi-las e a pensar junto os conteúdos de cada módulo. Desde 2019, após o afastamento físico de Barba dessas oficinas, eu e João Paulo Simão começamos a estruturá-las de forma que outros integrantes do grupo pudessem ministrá-las, com a supervisão do próprio Fernando e, em 2020, elaboramos os conteúdos do formato on-line dos módulos iniciais dessas oficinas (lançadas em 2021), estabelecendo, assim, uma parceria com o núcleo educacional do grupo. Nas dissertações de João Paulo Simão (2013) e Mauricio de Oliveira Maas (2018), que são integrantes do grupo, estão descritos como são realizados os jogos e execução de timbres trabalhados nas oficinas. Em artigo de minha autoria (MAZIERO, 2020a) também trago algumas dessas descrições. Por isso, aqui cabe mais tratar sobre essa abordagem educacional da percussão corporal praticada pelo Barbatuques do que, mais uma vez, descrever os jogos, ritmos e explicação de como fazer cada som. 25 Simão (2013) e Maas (2018), ambos integrantes do grupo Barbatuques, explicam que a frente pedagógica do grupo é chamada também de núcleo educacional. Neste trabalho, optei por adotar o termo educacional. 26 Os espetáculos Ayú (2015), Barbatuquices (2016), 20 anos (2017) e Só mais um pouquinho (2018) foram lançados após a publicação de João Paulo Simão, bem como os CDs Ayú (2015) e Só mais um pouquinho (2018). 27 Para Granja (2006), combinar dinâmicas de naturezas diferentes é um dos principais pontos das oficinas do Barbatuques, uma vez que são intercaladas atividades que exijam mais concentração e raciocínio lógico, como as montagens de ritmos e jogos de coordenação motora e atividades que trabalham mais a emoção e percepção, como nos jogos de improvisação. Um aspecto particular das atividades desenvolvidas nessas oficinas: o caráter lúdico. O jogo, a brincadeira, a descontração são características constantes em quase todas as atividades, o que propicia um clima favorável ao aprendizado, ao despojamento e à intuição. Ao encarar o desafio de fazer música coletivamente, usando os sons do próprio corpo, tudo se passa numa conversa entre amigos. (GRANJA, 2006, p. 125) É uma prática musical coletiva, que pode ser agradável, prazerosa e muitas vezes lúdica, que se contrapõe a alguns métodos tradicionais de ensino de música, corroborando com a provocação que Gramani nos trouxe, já mencionada nesse capítulo. Quanto a isso, Maas (2018) afirma que: Indo na contramão de muitos métodos musicais que propõem um início da aprendizagem a partir de uma partitura, os jogos de musicalização corporal criam uma empatia lúdica de imediato naqueles que os praticam, justamente porque é possível fazer música por um viés mais prazeroso. Aprender música fazendo música. E as oficinas ministradas pelo grupo começaram a ser reconhecidas justamente por esta característica. (MAAS, 2018, p. 29) Outro aspecto particular das oficinas é a de acolher os diferentes níveis de conhecimento musical, de desenvolvimento motor e de escuta. Não é preciso ser músico (profissional ou amador) para participar dessas oficinas. Na percussão corporal, o acesso ao instrumento é imediato, pois não é preciso ter ou estar com um objeto sonoro à tiracolo. O corpo, o instrumento, está instantaneamente presente com quem for tocar, sem necessitar de ambientes e materiais específicos para o fazer musical, como explica Maas (2018): A técnica desenvolvida pelo grupo [Barbatuques] também começou a ser utilizada, cada vez mais, nas aulas de música, nas escolas brasileiras – tanto particulares quanto públicas – e ganhou força entre os educadores pela facilidade de aplicação, inovação, simplicidade e baixo custo para as instituições, pois não é necessário ter instrumentos musicais. Apenas uma sala de aula com as cadeiras afastadas já é suficiente para se ter um aprendizado musical concreto, lúdico e bastante rico em conteúdos. (MAAS, 2018, p. 31 e 32) 28 Nas oficinas também é comum ter educadores que, de um modo geral, não têm, necessariamente, uma formação musical tradicional. Isso vem ao encontro da citação acima no que se refere aos recursos disponíveis ou não para as aulas. Entretanto, fico com uma inquietação do porquê educadores (musicais ou não) também não buscam essa forma de ensinar, aprender e fazer música quando há recursos e investimento. A prática da percussão corporal na educação musical independe de existir ou inexistir meios financeiros para essas aulas. Ao considerar o corpo como instrumento, ela tem valor próprio. Não é uma prática e instrumentação inferior ou menor. Com mais de 20 anos de trajetória, o Barbatuques conta, como produção do núcleo artístico, com seis CDs e dois DVDs lançados e sete espetáculos27, nos quais usam exclusivamente o corpo como instrumento. O grupo já se apresentou em diversos países, como França, Colômbia, Bélgica, Estados Unidos da América, China, Líbano, Suíça, África do Sul, entre outros. Está em trilhas sonoras de peças publicitárias, games e filmes, tais como: Tropa de Elite (direção: José Padilha), 1,99 – um supermercado que vende palavras (direção: Marcelo Masagão), Trash – a esperança vem do lixo (direção: Stephen Daldry), O menino e o mundo (direção: Alê Abreu) e Rio 2 (direção: Carlos Saldana), os dois últimos indicados ao Oscar. Também participou de significativos eventos nacionais e internacionais, entre eles, o encerramento das Olimpíadas 2016. Hoje, o grupo conta com 13 integrantes: André Hosoi, André Venegas, Charles Raszl, Giba Alves, Helô Ribeiro, João Simão, Marcelo Pretto, Lu Cestari, Lu Horta, Mairah Rocha, Mauricio Maas, Renato Epstein e Tais Balieiro. Os espetáculos possuem diferentes formações, variando a quantidade de integrantes presentes no palco. 27CDs: O corpo do som (2002), O seguinte é esse (2005), Tum Pá* (2012), Ayú (2015), Só mais um pouquinho* (2018); DVDs: O corpo do som (2007), Tum Pá* (2014; Espetáculos: O corpo do som (2002 – direção musical: Fernando Barba, direção cênica: Deise Alves), Indivíduo corpo coletivo (2007 – direção musical: Fernando Barba, direção cênica: Deise Alves), Tum Pá* (2011 – direção musical: Fernando Barba e Lu Horta, direção cênica: Deise Alves), Ayú (2015 – direção musical: Fernando Barba e Carlos Bauzys, direção cênica: Ana Fridman), Barbatuquices* (2016 – direção musical e cênica: Núcleo Barbatuques), 20 anos (2017 – direção musical: Carlos Bauzys, direção cênica: Gustavo Kurlat), Só mais um pouquinho* (2018 – direção musical: Carlos Bauzys, direção cênica: Dafne Michellepis). *Trabalhos dedicados às crianças. 29 Em abril de 2021, um evento remoto promovido pelo grupo Barbatuques – Festival Barbatuques de Música Corporal 28- teve, como abertura, uma mesa redonda virtual, da qual tive a oportunidade de participar e que agregou pessoas de diferentes épocas ao longo da trajetória de Fernando Barba, são elas: Luciana Horta, Mairah Rocha e Mauricio Maas (Barbatuques), Cadu Souza, Tais Baileiro, Mari Maziero e Marcelo Michelino (Orquestra do Corpo), Ronaldo Crispim e Pedro Consorte (Música do Círculo) e Stenio Mendes e Carlos Bauzys. O encontro foi um acontecimento relevante para esta pesquisa, pois, ainda tomados pelo sentimento de perda de Fernando Barba, ocorrida em fevereiro desse ano, os depoimentos no conjunto, entremeados de vídeos de Barba em atuação, resultaram em uma síntese dessa abordagem de percussão corporal. Desse modo, alguns dos conceitos e processos lembrados, puderam ser registrados e serão mencionados ao final desta seção. No curta-documentário sobre a Orquestra do Corpo, em que trechos foram apresentados na abertura desse Festival, Barba comenta que foi descobrindo “esse brinquedo que é a percussão no corpo” como uma forma de “pesquisa de material, de paleta sonora”. Foi comum, ao longo dessa mesa redonda (feita em forma de janelas virtuais), as pessoas dizerem o quão transformador foi conhecer o Barba e essa forma de fazer música. No entanto, Luciana Horta viu essa prática se iniciar, enquanto ainda estudantes do curso de música popular da Unicamp. Essa prática que resultou no aprimoramento de uma outra linguagem, a partir do contato com o Gramani, como já explicitado anteriormente: Eu vi o Barba tendo essa sacada a partir de exercícios que ele fazia ali no hall, despretensiosamente, e pegando exercícios do Gramani, que era o nosso professor de rítmica na Unicamp, e transformando aquilo numa coisa completamente nova e autêntica, porque a visão que ele trouxe era completamente autoral. Ele já vinha com assinatura muito poderosa e que a gente consegue reconhecer isso quando a gente vê a linguagem da música corporal espalhada pelo mundo (PRIMEIRO..., 2021, 14 min.). Da maneira como Barba foi desenvolvendo essa técnica, quem tem o contato com essa forma de fazer música, se coloca em uma constante prática de descobertas sonoras, combinações de ritmos e camadas sonoras. De modo que, individualmente, há um aprimoramento e, coletivamente, abre-se para uma escuta mais ampla. Horta reflete sobre: Não você só põe as pessoas para fazerem música, mas essa auto sustentação, sustentabilidade de você, individualmente, conseguir reproduzir uma série de camadas e como isso amplia nossa audição. Eu sempre chamei muita atenção a isso como um ouro pedagógico, que a sua escuta melhora. Só o fato de você 28 https://www.youtube.com/watch?v=Wszw3OtDYGk&t=9851s https://www.youtube.com/watch?v=Wszw3OtDYGk&t=9851s 30 tentar coordenar dois sons ao mesmo tempo, ou essa pesquisa de luthieria, que o Stenio é um grande mestre nesse sentido da pesquisa dos timbres, como isso coloca você, sem nenhum outro aparato, num lugar muito precioso para se aproximar mais e mais da música (PRIMEIRO..., 2021, 49 min.). Sobre essa pesquisa sonora que se expandiu a partir do encontro entre Barba e Stenio Mendes, Luciana Horta fala para Mendes: É um legado construído com toda a delicadeza e as sutilezas do seu conhecimento, da sua escuta, do seu cuidado né. Se tem alguém que ensinou muito a gente sobre esse respeito, sobre a escuta, foi você né. Ouvir o outro, sentir o outro, manter o outro. Quantas vezes a gente não ouviu essa frase nas suas dinâmicas, nas suas aulas que você dava? Na maneira como você ensinava a gente a dar essa permissão para que o caos se estabelecesse e a partir desse caos a gente fosse encontrando um resultado harmônico e musical, então, sem dúvida você foi o nosso, e ainda é, o nosso mestre maior, nesse sentido de fazer uma ponte da linguagem musical com as relações humanas e como isso é tão refinado na maneira como você entende a música (PRIMEIRO..., 2021, 76 min.). Contudo, um jeito de se aproximar mais da música é por meio do jogo. Corroborando com Teca Alencar de Brito (2019) que faz esse paralelo da música como um jogo, no qual não há vencedores ou perdedores, a percussão corporal, dentro dessa abordagem, também exerce essa prática. Ronaldo Crispim esclarece essa perspectiva: É um jeito de fazer música que era a partir do jogo. Eu gosto muito de jogar. E aí era jogando, era brincando, era com a possibilidade de errar e tava tudo bem. E só que esse “tudo bem” não no lugar que “tudo bem, né, faz qualquer jeito”. Não, tudo bem no lugar de “vai, experimenta, você consegue, você pode, vamos em frente juntos e tal” (PRIMEIRO..., 2021, 61 min.). Ainda sobre o jogo, Mauricio Maas reflete sobre o pertencimento corporal desta abordagem, por quem passa por essa prática do fazer musical tendo o corpo como instrumento, do ter um corpo presente, em estado de prontidão para o jogo, para estado de jogo musical corporal: É como se o corpo, para quem já passou por esses exercícios, esses jogos, é como um lugar que a gente conhece muito bem, de esse estar pronto para improvisar, é uma coisa também sensorial, uma coisa motora. [...] Eu acho que é tão interessante esse conceito de que o Barba e os Stenio trouxeram pra gente, é esse estado de jogo musical corporal, né? Então é como se fossem times de futebol, assim, que não interessa que time você está, você sabe qual a regra, você sabe como estar presente, você sabe como trocar, como ouvir [...]. Mas, corporalmente, mexe com a gente, é um lugar que parece que o nosso corpo entende o que é estar presente né, o que é estar nesse improvisão29, o que é trocar esse maestro30. Então, eu vejo um pouco isso [...] que esses grupos que formaram, até mesmo lá atrás quando eu comecei com a Orquestra Orgânica 29 Improvisão é um jogo de improvisação, também chamado de contágio livre que, sem um regente, os participantes improvisam livremente a partir dos estímulos sonoros que emergem do próprio grupo. 30 “Trocar esse maestro” é uma referência ao jogo, também de improvisação, chamado de maestro ou carrossel, em que pequenos grupos tocam simultaneamente. Cada grupo tem um regente/compositor que indica o que é que o grupo que está conduzindo vai tocar. Porém, esse regente se alterna entre os integrantes do próprio grupo. No capítulo quatro explico mais sobre essa dinâmica. 31 Performática, que de muitos vieram, muitos jogadores desses grandes clubes estão jogando aqui, foram jogar ali, estão aqui jogando bola porque a regra é clara, o jogo é claro, o corpo é claro, o instrumento é claro, né? Então, não sei para quem, talvez, fez oficina também de ter sentido um pouco esse gosto sim, mas é esse corpo presente (PRIMEIRO..., 2021, 135 min.). Ainda dentro dessa perspectiva de jogo, de estar com o corpo presente e ter consciência da música que está sendo feita para além da performance, ter espaço para a criatividade nessa abordagem de fazer musical, Carlos Bauzys reflete: O Barba tinha uma maneira de trabalhar que nunca era somente a performance, o que podia ser e ia ser lindo, porque a performance do Barbatuques é maravilhosa. Mas a maneira dele trabalhar era sempre da conscientização da música né, ele trabalhava de um jeito que você era plenamente consciente de tudo o que você estava fazendo musicalmente. E, fora isso, com todos os jogos de improviso e criatividade, cada artista era também um artista criador ali, mesmo na performance, em tudo. E isso é o que muda tudo né e é o que realmente define o trabalho do Barbatuques e todo esse trabalho (PRIMEIRO..., 2021, 65 min.). Luciana Horta continua: “essa coisa da linguagem criativa e você ir ganhando autonomia e apropriação” (PRIMEIRO..., 2021, 66 min.). Tais Balieiro prossegue: Esse trabalho que qualifica a criação coletiva do tempo real, que é esse fazer a música no aqui e agora mas com essa característica de composição mesmo. E isso a gente vai conquistando através das propostas de jogos de improviso, dos estudos de regência que que o Stenio traz que é infinito [...], dos carrosséis31, duplas harmônicas32, dos mapas sonoros33, então tudo isso vai trazendo esse refinamento e vai elevando, vai trazendo essa coisa do fazer musical para um lugar mágico, que vai muito além da música e que, realmente, afeta as nossas relações diretamente. [...] O Barba, sempre com essa generosidade, tentar promover essa generosidade de uma forma musical na roda. Então, em vez de você trazer uma ideia nova, por que que você não apoia o outro, ideias que já estão borbulhando na roda, né? E é uma coisa que num primeiro momento eu sentia que quando as pessoas chegam, elas têm uma ansiedade em trazer ideias, em aportar coisas novas, e fazer entender que isso não necessariamente é o ideal, realmente eu acho que eleva o nível dessa criação coletiva (PRIMEIRO..., 2021, 122 min.). Algo muito recorrente em todas as conversas em relação ao Barba é comentarem sobre a generosidade dele e é interessante quando Balieiro faz a ponte com esse fazer musical, pois, para apoiar a ideia musical do outro é preciso ter algum grau de 31 Explico o jogo do carrossel (ou maestro) no capítulo quatro. 32 Duplas harmônicas é um jogo de improvisação em duplas que estabelecem um diálogo sonoro-musical entre si. 33 Mapas sonoros são mapas de condução da improvisação. 32 generosidade em “abrir mão” da própria ideia e, muitas vezes, entender que, naquele momento, o melhor para a música está no apoio e não em uma ideia nova sobreposta. O trazer ideias musicais é uma forma de destacar as potências individuais dessa prática, bem como o estado de presença e as escutas (de si, do outro, do grupo). Ronaldo Crispim nos instiga a refletir sobre: Mantendo viva essa coisa dessa presença, da escuta, como que, ao abrir a escuta para fazer música junto a gente também se convida a abrir uma escuta para o outro, né? Para o que o outro é, uma possibilidade de cada um se expressar naquilo que é, naquilo que ele tem de potência, né? Então, como que a gente vai tirando esses espaços para as pessoas se expressarem, se escutarem, se apoiarem, como a gente aprendeu com o Stenio, citando Theophil: ouça o outro, sinta o outro, sustente outro, isso levado também para questão musical, mas levado para as relações humanas em geral (PRIMEIRO..., 2021, 151 min.). 1.2.2 Fundamentos conceituais da percussão corporal do Barbatuques A descrição acerca da abordagem Barbatuques feita até aqui permitiu contextualizar processos e conceitos que foram construídos ao longo dos anos pelos praticantes dessa proposta de percussão corporal. Como esses processos e conceitos fundamentam as aulas com as crianças participantes desta pesquisa, os usarei também para a análise das cenas no capítulo quatro e destaco-os a seguir: - Música como brincadeira (x racionalização) - Corpo como instrumento musical - Prática musical coletiva - Trabalhar a sensibilidade - Trabalhar com a individualidade (modo de ser cada um e sonoridades próprias de cada indivíduo) - Escuta (o que envolve a escuta nesta abordagem do Barbatuques) - Ouvir o outro, manter o outro e sustentar o outro - Aprender música fazendo música - Descobertas sonoras - Estado de jogo - Pesquisa de paleta sonora - Experimentação - Estar presente - Ganhar autonomia e apropriação 33 - Consciência do fazer musical - Caráter lúdico da abordagem educacional 1.2.3 Estudos sobre o Barbatuques A partir daqui, exponho uma revisão de estudos que focalizam a abordagem educacional do grupo Barbatuques, restritos aos trabalhos de pós-graduação stricto sensu. Talvez, uma recente produção acadêmica acerca da percussão corporal dê-se ao fato de que “a partir dos anos 90 é que a prática começa a ganhar força, enquanto fenômeno artístico global, principalmente, com o surgimento do Stomp34 na Inglaterra, o Barbatuques no Brasil e, nos EUA, o Crosspulse, liderado por Keith Terry” (AMORIM, 2016, p. 46 e 47). O Barbatuques não é o único grupo a fazer música com o corpo, mas é um dos pioneiros a sistematizar uma abordagem pedagógica com essa fonte sonora (inicialmente para um público não infantil), por meio de jogos, composições e práticas de improvisação, sobretudo no Brasil. Em entrevista concedida à Góes (2015), Pedro Consorte elucida que “a música corporal no Brasil é, felizmente, muito contaminada pelo trabalho do Barbatuques, que é um grande, senão o único, grupo profissional de música corporal” no país. Maas (2018) mostra a impressão dessa prática: Após me apresentar junto com o grupo Barbatuques pelas várias regiões do Brasil e diversos países, percebi que a música corporal tem um efeito muito interessante nestes públicos, primeiramente pela curiosidade e espanto que causam. Parece que este efeito é universal. As pessoas percebem que o acesso ao instrumento é imediato porque se dá através do próprio corpo. É como se, de repente, as pessoas descobrissem que possuem um novo brinquedo, mesmo ele estando lá, adormecido por todo este tempo (MAAS, 2018, p. 17). Um dos primeiros trabalhos acadêmicos a trazer um pouco da prática das oficinas de percussão corporal do Barbatuques é a dissertação, defendida em 2005, Música, conhecimento e educação: harmonizando os saberes na escola, de Carlos Eduardo de Souza Campos Granja, a qual foi lançada, posteriormente, com o título Musicalizando a escola: música, conhecimento e educação (2006), publicado como livro no ano seguinte. Esse trabalho tem parte de um capítulo dedicado a descrever o grupo Barbatuques (ainda com só um CD lançado à época), assim como alguns jogos musicais. Granja é professor 34Grupo do Reino Unido, que existe desde 1991, e tem um show que viaja o mundo há mais de 20 anos, no qual utiliza diversos objetos do cotidiano como instrumentos de percussão (pias de cozinha, latas de lixo, canos, isqueiros etc), além da percussão corporal. 34 de matemática no Ensino Médio e traça relações da música com o ensino de matemática. Desta forma, ele não só descreve as atividades das oficinas do Barbatuques, como relata a experiência com os jovens para quem lecionava na época sobre essa interface música/percussão corporal versus ensino de matemática. A pesquisa de Granja envolveu adolescentes, porém os estudos que seguem são voltados para o público não infantil, exceto o trabalho de Amorim (2016). Os jogos e práticas de improvisação são descritos com mais profundidade por João Paulo Simão, em 2013, na dissertação Música corporal e o corpo do som: um estudo dos processos de ensino de percussão corporal do Barbatuques. No entanto, Simão é integrante do grupo em questão e se atém a um relato histórico do coletivo musical e à descrição das atividades do núcleo educacional, tendo como base entrevistas e materiais produzidos pelo grupo, seja apostila das oficinas ou os produtos artísticos. Porém, também cita outras práticas de percussão corporal pelo mundo. Cada estilo de música corporal tem influência das artes corporais e cênicas que dialogam com a música. Há grupos que são fortemente influenciados pelo sapateado, outros, pela linguagem teatral, outros ainda, pela música vocal. É importante ressaltar que essas formas de produzir música estão relacionadas com a história, os costumes e a cultura das pessoas de cada região do mundo (SIMÃO, 2013, p.37). Nesse diálogo com outras linguagens e culturas, o também integrante do grupo, Mauricio de Oliveira Maas, produziu, em 2018, a dissertação Música corporal e jogos musicais corporais. Um estudo das práticas do grupo Barbatuques na educação musical do artista teatral. Neste trabalho, Maas também descreve as atividades do núcleo educacional do Barbatuques. Contudo, faz relações com o trabalho do ator, pois acredita que o artista teatral precisa ter um mínimo de formação musical para entender alguns parâmetros sonoros (pulso, timbre, duração, intensidade, altura, entre outros) para que esse artista possa ter mais consciência das próprias possibilidades artísticas. Mesmo utilizando os mesmos exemplos timbrísticos de Simão (2013)35, Maas organiza-os a partir do que ele chama de “centro sonoro corporal”, dividindo entre sons de boca, mãos e pés, assim: Nos três centros sonoros, existe uma progressão em relação à quantidade de sons que o corpo humano pode produzir. A diversidade sonora que os pés podem executar é menor do que as possibilidades que mãos produzem. Estas, 35 Os exemplos de ambos foram extraídos de BARBOZA, Fernando; HOSOI, André (organizadores). Apostila de música corporal (Barbatuques). Módulos I, II, III e IV. São Paulo, 2015, mimeo. 35 por sua vez, são ainda menores que a numerosidade de sons feitos pela boca (MAAS, 2018, p.34). O pesquisador vai um pouco além, pois tem como inspiração o fichário de jogos teatrais de Viola Spolin36, no qual ele apresenta cada jogo de percussão corporal da seguinte forma: introdução, instrução, variação e reflexão musical e cênica. Assim como o fichário de Spolin é uma referência para as aulas de teatro e métodos de preparação de atores, Maas, de certo modo, cataloga os jogos de percussão corporal praticados pelo Barbatuques, fazendo uma ponte entre as duas linguagens. Mais de 10 anos antes de Maas, Alexandre Cintra Leite Rüger narra o trabalho que teve com atores na dissertação A percussão corporal como proposta de sensibilização musical para atores e estudantes de teatro. Rüger relata a experiência de um curso de extensão para alunos de teatro da Unesp e com um grupo teatral da mesma universidade, no qual ele reproduz, com estudantes de teatro e atores em processo de montagem, os jogos que aprendeu em oficinas do Barbatuques. Após o término do curso, ele realizou questionários com os estudantes e atores, a fim de quantificar o impacto desse conteúdo nas práticas teatrais deles. Ainda de maneira embrionária, aqui já foram descritos alguns dos jogos de percussão corporal em que Simão (2013) e Maas (2018) se aprofundaram posteriormente. Granja (2005), Rüger (2007), Simão (2013) e Maas (2018) trazem a descrição de alguns jogos do núcleo educacional do Barbatuques como base para os respectivos trabalhos. De maneira mais reflexiva, Amanda Acuan Góes, em Corpo sonoro e som em movimento: um estudo sobre a prática da música corporal, traz conceitos para a formação musical envolvendo o corpo. Dissertação defendida em 2015 em Portugal, a autora, além de citar também o que acontece no mundo em relação à percussão corporal, tem como referência grupos e músicos brasileiros como o Barbatuques e Pedro Consorte, artista que ela acompanha por um período, que foi integrante do Stomp e do Fritos37 e hoje é um dos 36Viola Spolin foi autora e diretora teatral norte-americana, considerada referência em teatro improvisacional. Mauricio Maas faz referência ao Jogos teatrais - o fichário de Viola Spolin, publicado em português pela editora Perspectiva. 37Originado em 2003 como grupo de estudos de percussão corporal, orientado inicialmente por Fernando Barba, o Fritos adquiriu independência do fundador e até 2013 atuou como grupo para estudo e pesquisa e treino de técnica, independência rítmica, coordenação motora e improvisação. (fritosbr.wordpress.com/sobre) 36 idealizadores da Música do Círculo38. Góes chama a atenção ao fato de, na percussão corporal, o instrumentista ser o instrumento intrinsecamente e não “portar” um objeto sonoro externo: Ao considerar-se o corpo como fonte sonora exclusiva é que quando se pensa uma maneira de produção musical basicamente através de sons corporais, percussivos ou vocais, somos induzidos a transformar o corpo em instrumento, ou seja, no objeto que produzirá o som final. Concebendo a ideia de um corpo- instrumento, logo somos tentados a converter nossos corpos em materiais que servem, simplesmente, para concretizar algo, correndo o grande risco de esquecer que nossos corpos somos nós e nós, enquanto seres humanos, nunca seremos objetos auxiliares (GÓES, 2015, p. 33 e 34). Ainda sobre formação, só que não só do instrumentista e sim do educador musical, há um trabalho que trata tanto do histórico do grupo Barbatuques quanto de como se constituíram como educadores dois personagens centrais no desenvolvimento do grupo: Fernando Barba e Stenio Mendes. Em A música corporal na educação musical brasileira: contribuições e facilitações na visão de educadores musicais contemporâneos, dissertação de Roberta do Amaral Forte (2018), a autora entrevista educadores musicais da atualidade que, de alguma forma, foram influenciados pela linguagem da percussão corporal e a utilizam em aula como ferramenta de educação musical. Como um exemplo de trabalho continuado com percussão corporal em educação musical, Amorim (2016) relata o projeto Batucadeiros, que ele lidera e que tem o Barbatuques como uma das principais fontes. Atualmente, o Batucadeiros é um projeto que atende cerca de 90 crianças e adolescentes de seis a 18 anos de Brasília. Na dissertação Batucadeiros: Educação musical por meio da percussão corporal, Amorim tem como objeto de pesquisa o processo educativo musical, por meio da percussão corporal no Batucadeiros. Nesse trabalho, ele descreve o procedimento que teve com essas crianças e adolescentes, participantes do projeto, para a escuta das falas e percepções desse processo educativo, além de contextualizar o projeto histórica e socialmente. Contudo, “a pesquisa aponta, ainda, para um processo educativo que envolve o respeito, ao tempo de cada um, em sua singularidade e desenvolvimento. Ou seja, uma prática educativa musical, que confia e espera o tempo de cada criança” (AMORIM, 2016, p.166). Possivelmente, esse seja o trabalho que mais se aproxime da 38“A Música do Círculo cria espaços de conexão, cooperação e convivência apoiadas em práticas de música corporal, comunicação não violenta, pedagogia da cooperação e metodologias colaborativas.” (www.musicadocirculo.com) 37 minha proposta de pesquisa. Todavia, no relato de Amorim, por vezes, falta distanciamento crítico da própria prática, podendo causar uma impressão romantizada e idealizada do Batucadeiros, uma vez que ele é o idealizador do grupo, da instituição e facilitador das aulas de percussão corporal. Esse distanciamento crítico é um ponto no qual me esforço para me manter atenta no que se refere à minha pesquisa. 38 CAPÍTULO DOIS | ESCUTA DE CRIANÇAS Para uma escuta de crianças, este capítulo trata dos aspectos teóricos que fundamentam esta ação. É iniciado com uma revisão bibliográfica realizada de pesquisas relacionadas à educação musical sob o prisma da escuta de crianças como pensadoras e construtoras de conhecimento musical. Em uma segunda parte, é apresentado o referencial teórico, que se baseia no tripé da Sociologia da Infância como campo epistemológico, da pedagogia do acontecimento musical e, por fim, dos temas corpo e infância. 2.1 Revisão bibliográfica Essa revisão bibliográfica consta com trabalhos empreendidos no campo da educação musical que abordam a escuta de crianças. A maioria das pesquisas brasileiras aqui mencionada dialoga entre os campos da educação musical e o da sociologia da infância. No entanto, antes de discorrer sobre as dissertações e teses, trago alguns pontos desenvolvidos pela educadora musical americana Patrícia Campbell sobre o fazer pesquisa em música com crianças, considerando-as protagonistas. Para a educadora, a partir de observações etnográficas, são ouvidas as vozes das crianças, a musicalidade e o pensamento musical delas mesmas, percebendo, desta forma, o que ocorre musicalmente quando as crianças brincam e interagem e que, assim, elas podem nos mostrar as compreensões musicais que têm. Todas as crianças, em maior ou menor grau, são musicais. É isso que eu sempre quis acreditar e é a premissa a partir da qual sempre ensinei. Mas agora conto com dados reais e críveis, que indicam que as crianças têm mais música dentro delas do que tendemos a reconhecer. Como definiu John Blacking "a música é um som humanamente organizado" (1973, p.10) e existe nas vidas infantis graças a suas habilidades biológicas para discernir, sentir e expressar. Todas as crianças têm a ferramenta mental e física para organizar perceptivamente os sons que recebem e para organizar lógica e inventivamente os sons que produzem (CAMPBELL, 2001, p.73. Tradução livre39). 39 Todos los niños, en mayor o menor grado, son musicales. Eso es lo que siempre quise crer, y es la premissa a partir de la cual siempre enseñé, Pero ahora cuento com datos reales y creíbles, que indican que los niños tienen más música dentro de ellos que lo que tendemos a reconocerles. Como definió John Blacking “la música es el sonido organizado humanamente” (1973, p.10), y existe em las vidas infantiles gracias a sus habilidades biológicas para dicernirla, sentirla, y expresarla. Todos los niños tienen la herramienta mental y física para organizar perceptivamente los sonidos que reciben y para organizar lógica e inventivamente los sonidos producen (CAMPBELL, 2001, p. 73). 39 Com a visão adultocêntrica, tendemos a conceber padrões acerca dos conhecimentos, aptidões e valores para as crianças. Todavia, Campbell (2001) coloca que existe uma distância considerável entre o que cremos ser para as crianças e a realidade do que elas podem necessitar para o próprio desenvolvimento, pensamento e sentimos como indivíduos. Observar os comportamentos musicais delas pode ser uma experiência transformadora e enriquecedora musicalmente para as vidas das crianças pelas quais, como educadores, somos responsáveis. Para Campbell (2016), uma “etnomusicologia das crianças” está começando a emergir. Segundo a autora, inicialmente, as crianças recebiam, de forma passiva40, as propostas e expressões artísticas dos adultos. Por muito tempo, as canções infantis eram compreendidas como primitivas, tanto a criança como primitiva quanto também o primitivo como criança. Porém, na última década têm aumentado os estudos sobre crianças, cultura de pares, relações familiares, entre outros aspectos que as envolvem. A compreensão das crianças como crianças, como tendo suas próprias identidades, crescendo no meio de sua própria cultura de pares, no locus de seus papéis dentro da família e sob a influência ou através da interação com forças mediadas, ainda está para ser descoberta dentro o domínio do método sociológico. [...] Uma abordagem sociológica provavelmente lançaria luz sobre as experiências musicais das crianças dentro das famílias e grupos de pares e um conjunto de casos locais podem fornecer uma compreensão global de sua natureza sócio-musical (CAMPBELL, 2016, p. 559. Tradução livre41). Campbell diz que as crianças aprendem música vivendo a própria cultura no contexto nas quais estão inseridas, misturando canções e brincadeiras com instrumentos e fontes sonoras, assobios e batidas, desenvolvendo-se musicalmente à medida em que esses sons mostram “resultado direto dos sons que chegam aos seus ouvidos” (Campbell, 2016, p. 572, tradução livre42). Desta forma, ela também destaca que a música, assim como é um fenômeno humano, também é um comportamento que possa ser aprendido. As crianças estão em alguma medida similarmente “conectadas”, independentemente de onde vivam, de modo que algumas facetas da maneira como percebem, recebem e crescem para conhecer a música são evidentes em todas as culturas. No entanto, se há variação na expressão musical de uma 40 Entendo que pode-se pensar que, até então, era feita uma leitura de que as crianças não só recebiam de forma passiva, como não tinha espaço para uma livre manifestação, sendo forçadas a receber as propostas dos adultos. 41 An understanding of children as children, as having their own identities, growing in the midst of their own peer culture, in the locus of their roles within the family, and under the influence or through interaction with mediated forces, is yet to be discovered within the realm of sociological method. […] A sociological approach would be likely to shed light on children’s musical experiences within families and peer groups, and a pastiche of local cases might provide a global understanding of their socio-musical nature. (CAMPBELL, 2016, p. 559). 42“Direct result of what sounds come into their ears” (CAMPBELL, 2016, p.572). 40 cultura para outra, segue-se também que a maneira como é aprendida pode ser afetada pela própria música, e pelos modos, meios e valores da localidade relativos à transferência de conhecimento (CAMPBELL, 2016, p. 572. Tradução livre43). Diante disso, sob a ótica da escuta das crianças em contextos de aprendizagem musical, Lino (2008), na tese Barulhar: a escuta sensível da música nas culturas da infância, revela diversos conceitos teóricos-reflexivos sobre música, músicas nas culturas da infância, brincadeiras e o ouvir as crianças, sobretudo as produções sonoras das mesmas, bem como as respectivas vozes. E é a escuta que é o fio que interliga as diferentes áreas de conhecimento desta pesquisa. Ao compreender que a escuta sensível da música na infância se dá nos contextos de socialização múltiplos e heterogêneos dos quais as crianças participam, a renúncia à ilusória concepção de que todo o mundo social seria coerente e unificado emerge no presente estudo para explicitar que é na escuta do mundo social que podemos ver contemplada a singularidade individual das crianças como atores plurais (LINO, 2008, p. 50). Ao retratar a pesquisa de campo em uma creche de Educação Infantil de Porto Alegre, com crianças de três e quatro anos, Lino (2008) utiliza “o cruzamento dos produtos da etnografia clássica, da escuta sensível e dos desafios [do seu pensar] a partir da observação das próprias crianças no campo” como mote para a construção do texto. Contudo, como o próprio título da tese salienta, é na escuta que a pesquisa é desenvolvida, na escuta que produz sonoridades: Este estudo compreende que a música na infância é o encontro dos corpos no som, uma experiência sonora imbricada nas práticas sociais e culturais nas quais as pessoas criam significados plurais na diversidade de contextos culturais que lhe fazem sentido, expressando uma forma de organização do discurso sonoro. Isso porque o ouvido escuta, mas é o corpo que faz, é a mão que escuta. [...]Toda mão corporaliza a música no desenho do gesto. Mão que toca para ouvir, calar, comungar (LINO, 2008, p. 31). É no gesto (da mão que toca), no corpo que produz sons, que se tem a experiência da música, da execução sonora. Dentro disso, é contemplada a escuta das vozes das crianças, no que expressam musical e verbalmente, em que elas “adquirem e produzem criativamente culturas e articulam espontaneamente rotinas lúdicas para animar, perpetuar ou transformar a música na sociedade” (LINO, 2008, p. 49). 43 Children are to an extent similarly “wired,” regardless of where they live, so that some facets of the manner in which they perceive, receive, and grow to know music are evident across cultures. Yet if there is variance in musical expression from one culture to another, it follows also that the manner in which it is learned may be affected by the music itself, and by the ways, means, and values of the locality concerning the transfer of knowledge (CAMPBELL, 2016, p. 572). 41 A autora denomina barulhar como essa expressão das crianças que abrange silêncios, interações sonoras, combinações, nuances etc que, diante da escuta sensível, é possível compreender singularidades dentro do coletivo. A partir do trabalho de campo realizado, a pesquisadora entende que: A escuta não se relacionava apenas à escuta musical que sempre esteve imbrincada aderentemente à ação do barulhar, mas que essa potência tatuava a imaginação sonora na infância. Sendo imprevisível, a ação do barulhar sublinhava a dimensão poética da infância sem medir vibrações, mas expor singularidades (LINO, 2008, p. 354). Extrapolando as dimensões da escuta, que não só o que se produz ou se imagina sonoramente, a tese Crianças e músicas como potência de transformação: brincadeira, interação e criação na Educação Infantil do Colégio Pedro II, de Wasti Silvério Ciszevski Henriques (2018) tem como objetivo: compreender como os atores dos processos educativos musicais constroem e enxergam seus percursos musicais na escola. Foi então que, permeada pelas discussões e estudos da infância, decidiu-se ater-se à importância do direito dela à participação, o qual pressupõe uma real escuta da criança (HENRIQUES, 2018, p. 25). Tendo como um dos propósitos elaborar uma proposta pedagógica para a instituição em questão, é importante ressaltar que a estruturação do texto de Henriques (2018) segue a um dos objetivos que ela se propõe, que é o da importância do direito da criança à participação na construção do conhecimento musical. A autora coloca no mesmo patamar tanto uma fala de uma criança quanto a de um pensador ou teórico da educação e/ou educação musical. “Essa valorização permitiu tornar visíveis os olhares, as escutas, os sorrisos, os movimentos, e tantas linguagens que configuram as formas de expressão da infância” (HENRIQUES, 2018, p. 256). Assim, percebe-se uma escuta amplificada do que a criança tem a dizer. Para Henriques, sobre a música na escola, a maioria da produção científica intelectual brasileira traz a perspectiva do docente. Desta forma, “mudar o foco para a perspectiva da própria criança, considerada como sujeito de pesquisa e copesquisadora competente, é um importante avanço e mostra a adequação da escolha da técnica de estudo de caso” (HENRIQUES, 2018, p. 255). Como concluído por Henriques (2018), são raras as pesquisas acadêmicas em educação musical que têm uma escuta sensível das vozes das crianças. Nesse trabalho, especificamente, mais do que ter uma escuta de sons, teve uma escuta das reflexões, das vontades e desejos e dos direitos que as crianças têm de poder construir com e a partir delas um documento que norteará o projeto artístico-pedagógico de uma escola pública 42 bicentenária. Nessa investigação, a autora constatou que essas crianças constroem a educação musical brincando, integrando-se e criando. Assim como na tese de Lino (2008), Henriques (2018) também revela que dentro dos contextos socioculturais, as crianças são únicas e singulares, mas os aprendizados são múltiplos. Renata Oliveira Antônio (2019) traz na dissertação Escutando crianças em processo de aprendizagem musical o relato de experiência da pesquisadora, enquanto educadora musical, em dois contextos diferentes, um no PIA (Programa de Iniciação Artística) da Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo, que contempla crianças de cinco a 14 anos, e outro no CEU (Centro Educacional Unificado) Parque Bristol, no qual ela já tinha sido professora de artes, e que voltou para realizar cinco encontros com alunos do terceiro ano do Ensino Fundamental com o objetivo de observar as escutas possíveis das crianças nesse ambiente. Assim, a autora traça diálogos entre esses dois locais como ambientes de aprendizagem musical. Sobre os processos de escuta nesses espaços, Antônio conclui que: Foi possível observar que a escuta discutida nesta pesquisa tem como principais pilares a compreensão dos fazeres musicais das crianças, a presença enquanto disponibilidade do educador, a aceitação do risco e da incerteza como fundamentais nos processos de aprendizagem musical, a valorização do diálogo com as crianças e entre elas, a compreensão do brincar como potente fonte de expressão das crianças, a escuta dos corpos das crianças e a autoescuta dos educadores. Uma postura que não visa dar voz, porque as crianças já têm sua própria voz, mas escutar essas vozes e considerá-las (ANTÔNIO, 2019, p. 138). Antônio (2019) se propõe a ter uma escuta mais ampla das crianças para além das produções musicais, mas também as “ideias, necessidades e interesses”, que são expressas em gestos, perguntas que se relacionam com “o estado físico, emocional, mental” das crianças naquele momento e que, muitas vezes, a observação do professor pode demandar tempo para compreender o que é que emerge dali. Talvez, esse ponto que Antônio coloca seja o que eu mais tenha demorado para perceber e ter um olhar para demandas além da dimensão sonora, como descrevo em uma das cenas no capítulo quatro. A autora também traz questionamentos sobre uma educação musical que faça sentido na aprendizagem das crianças envolvidas, proporcionando espaços para essas escutas e não só reproduzir atividades excessivamente estimulantes, disfarçadas de lúdicas, com muitos jogos e objetos coloridos, mas sem um foco no que é que as crianças estão aprendendo, no que elas expressam (ANTÔNIO, 2019). Permitir que os alunos sejam protagonistas e criadores de suas experiências artísticas implica em perceber suas necessidades e interesses e, propiciando espaço e condições materiais para desenvolver suas criações, desenvolver os 43 processos conjuntamente com eles oferecendo outras referências técnicas, tecnológicas e artísticas. Este processo se dá de maneira complexa e não linear e apresenta desafios diversos nos espaços – principalmente os escolares – onde “conteúdos” e “atividades” são sempre propostos por educadores ou profissionais de outras instituições. Ele se dá por meio da escuta da criança pelos educadores, no intuito de instigar o protagonismo da criança em seus processos de aprendizagem e construção do conhecimento (ANTÔNIO, 2019, p. 22). Acrescento que essa escuta se dá não só pelos educadores, mas também entre as crianças, revelando as culturas de pares latentes, uma vez que a pesquisa, tanto no caso de Antônio quanto no meu, é em meio a um coletivo de crianças. As relações entre elas também contribuem para a construção de conhecimento, de maneira a estimular que elas se escutem e colaborem nas criações, reflexões, indagações etc. A partir dos relatos de experiência da autora, ela elabora considerações que dão luz às necessidades, expressões, reflexões e sons acolhidos em um espaço considerado, pela educadora em ação, para as diversas escutas. Em Crianças e música: educação musical e estudos da infância em diálogo, Sandra Mara Cunha também aproxima a sociologia da infância e a educação musical, traçando um paralelo entre as duas áreas, sobretudo em processos musicais criativos com crianças. Cunha (2020) afirma que, com processos e abordagens colaborativas e inventivas, por meio da experiência artística, desenvolvemos pessoas mais criativas, críticas e autônomas. Por isso: A conexão infância-arte acontece o tempo todo em suas vidas, principalmente no caso das crianças pequenas e, talvez por isso, seja tão fácil para elas se manifestarem por meio das linguagens artísticas, que são também as linguagens da infância. Afinal, suas vozes falam por meio de desenhos, cenas, danças, músicas inventadas, e também pela quietude e pelo silêncio (CUNHA, 2020, p. 8 e 9). Dentro da perspectiva de escuta das vozes, a autora denomina como dupla escuta: a das vozes das crianças (discursos, sejam ditos verbalmente ou por outra forma de expressão) e das músicas que elas “inventam e reinventam” (CUNHA, 2020, p. 3).: Nesse caminho de escutas, adultos reconfiguram suas concepções de educação musical e de infância e são conclamados a reposicionar o lugar docente: de ensinadores de habilidades de tocar e cantar para o de acolhedores da curiosidade das crianças diante de instrumentos musicais e objetos que soam, e o de promotores de aprendizagens pela via dos processos de criação (CUNHA, 2020, p. 3 e 4). 44 Sobre os promotores de aprendizagem, Sandra Mara nos provoca, enquanto professores, a considerar as propostas musicais de que as crianças se apropriam e das que também não se apropriam e como se dão as interações entre elas. Diante isso: Os interesses das crianças em saber mais pode ser questão norteadora das propostas, bem como o exercício e a construção da autonomia, a valorização do conhecimento musical e o engajamento nos processos de construção de conhecimento, tidos também como princípios fundantes. Os direitos das crianças e jovens entram na agenda das discussões em torno dos processos criativos na educação musical da infância, e trazem para o debate a questão dos seus direitos de participação (CUNHA, 2020, p.17). Desta maneira, para conseguir estabelecer conexões e ampliar o conhecimento na interface da educação musical e a sociologia da infância, mais do que nunca é urgente que escutemos de fato o que as crianças têm a dizer, seja por fala, sons ou manifestações corporais para que possamos trazer novas perspectivas para a educação e o fazer musical com crianças. 2.2 Referencial teórico As crianças são as melhores fontes para a compreensão da infância (CORSARO, 2011, p. 138). Falar sobre e/ou fazer música remete à escuta e à produção de significados com sons e silêncios; e, entre outros aspectos, remete, também, ao significado que a música assume nos diversos grupos sociais em que atualiza (BRITO, 2019, p. 55). [...] essas experiências e contextos sociais corpóreos concretos radicalizam a construção da infância como sujeitos de transformação social e de história (ARROYO; SILVA, 2018b, p. 13). Esta pesquisa desenvolveu-se referenciada em três frentes: (1) na sociologia da infância como campo teórico; (2) no âmbito da Educação Musical, fundamento-me na pedagogia do acontecimento musical e nos conceitos de educação musical menor e ideias de música abordados por Teca Alencar de Brito; (3) completando esse triplo referencial, considero as reflexões de Miguel Arroyo (2018) acerca do corpo e infância. 2.2.1 Sociologia da infância: um campo de pesquisa Não nos parece que o pressuposto da necessidade de dar voz às crianças seja que elas reproduzam as culturas dominantes e hegemônicas que configuram a estrutura social. Ao contrário, busca-se nessa escuta confrontar, conhecer um 45 ponto de vista diferente daquele que nós seríamos capazes de ver e analisar no âmbito do mundo social de pertença dos adultos. [...] As crianças não só reproduzem, mas produzem significações acerca de sua própria vida e das possibilidades de construção da sua existência. (ROCHA, 2008, p. 46) Como parte do processo de pesquisa, cursei a disciplina Sociologia da Infância, oferecida44 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo, que me forneceu fundamentos teóricos importantes para esta investigação. O estudo da sociologia da infância permitiu que eu pudesse ter um novo olhar para a minha atuação como educadora musical. Ofereceu subsídio teórico para compreender melhor as relações entre as crianças, entender que as crianças são agentes de direitos e protagonistas, nesse caso, do processo que envolve a educação musical, e passar a escutá- las não só musicalmente, mas também nas vontades e desejos em relação às aulas de música corporal das quais participávamos. Desta forma, apresento a Sociologia da Infância como campo de pesquisa de uma forma ampla, a partir das abordagens de diversos pesquisadores sobre cultura de pares, agência, protagonismo e escuta. A Sociologia da Infância proporciona fundamentos, apresentados a seguir, que embasam esta pesquisa com crianças de oito e nove anos participantes de um projeto social e servem de base para a escuta das vozes, gestos, percepções e reflexões referentes à prática da percussão corporal e o fazer musical. Estudar a Sociologia da Infância como um campo ainda é abordar uma área de conhecimento recente. Estudos e relatos que apresentam a criança como parte da sociedade e do mundo começam a aparecer na segunda metade do século XX, ganhando mais força no final do referido século e maior abrangência no século XXI. Para Jucirema Quinteiro (2002, p. 139), “é no campo das relações sociais que a criança cresce e se constitui como sujeito”. Segundo o pesquisador dinamarquês Jens Qvortrup (1999), só a partir da segunda metade do século XX é que há um boom de interesses nos estudos sociais da infância, em pesquisas com crianças (e não mais só sobre crianças). É então que o estudo da infância passa a ter os próprios méritos, compreendendo as crianças como informadoras sobre as próprias vidas e não entendendo mais a criança como mera receptora de ensinamentos dos adultos. Tanto Jens Qvortrup (1999) quanto Jucirema Quinteiro (2002) relatam sobre o fato de o Congresso Mundial de Sociologia, em 1990, ser o propulsor para a produção acadêmica estrangeira com um olhar para a criança como agente social, a integração dela 44 Disciplina cursada entre os meses de agosto e novembro de 2019. 46 na sociedade contemporânea e os processos de socialização. Desta forma, dispara-se um novo paradigma de construção social da infância, fazendo, sobretudo, uma crítica à visão adultocêntrica, na qual o adulto imprime a própria cultura, considerando a criança como uma tábula rasa. Em Nove teses sobre a infância como fenômeno social, Qvortrup (2011) traz a ideia de compreender as crianças como cidadãs a partir da reflexão de tópicos relevantes para fundamentar o entendimento de criança e infância nesta pesquisa: (1) A infância é uma forma particular e dist