XX ANOS DO PPG EM MÚSICA DO IA-UNESP II VOLUME Sonia R. Albano de Lima Nahim Marun Eduardo F. Gianesella (org) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) _________________________________________ XX anos do PPG em música do IA-UNESP [livro eletrônico] : I volume / Sonia R. Albano de Lima , Nahim Marun, Eduardo F. Gianesella (org.). -- São Paulo, SP : Tesseractum Editorial, 2023. ePub Vários autores. ISBN 978-65-89867-70-8 1. Educação musical 2. Música - Estudo e ensino 3. Música - Teoria I. Lima, Sonia R. Albano de. II. Marun, Nahim. III. Gianesella, Eduardo F. 23-179447 CDD-780.7 _________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Música : Estudo e ensino 780.7 Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253 Coordenação Editorial: Equipe Tesseractum Editorial Diagramação: Equipe Tesseractum Editorial Revisão: Organizadores e equipe Tesseractum Editorial Arte da capa: Aline Cardoso Primeira Edição, São Paulo, fevereiro de 2024 © Tesseractum Editorial Site da Editora: www.tesseractumeditorial.com.br Nenhuma parte dessa publicação, incluindo o desenho de capa, pode ser reproduzida, armazenada, transmitida ou difundida, de maneira alguma nem por nenhum meio sem a prévia autorização do autor. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos do Código Penal), com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indenizações diversas (art. 101 a 110 da Lei 9.610 de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais) http://www.tesseractumeditorial.com.br/ Os XX anos de implantação do PPG em Música do IA-UNESP é contemplado com esse novo volume da edição comemorativa contendo parte da produção intelectual de discentes, egressos e docentes do Programa, de 2019 a 2023. Integraram essa edição docentes e discentes do programa com produção destacada. Sumário Apresentação ........................................................................................................................5 Segmentação e temporalidades musicais .............................................................................7 Ph. Dr. Marcos Mesquita Estreia, repercussão e questões interpretativas relacionadas a três títulos da literatura pianística francesa apresentados nos salões da Société Nationale de Musique-SNM e da Société Musicale Indépendante-SMI ................................................................................................................. 21 Prof. Dr.Danieli Verônica Longo Benedetti Ms. Ana Carolina Gouveia Prof. Dr. Lorraine Gregório de Oliveira Prof. Ms. Liz Helena Minadeo Considerações comparativas entre as versões pianística e orquestral da Rapsódia Húngara nº14 de Franz Liszt.............................................................................................. 36 Prof. Ms. Raphael de Lima Puccini Prof. Dr. Maurício Funcia De Bonis A escrita musical de Liduino Pitombeira em duas obras contrastantes: Suíte Russana op. 11 e Sertão Central op. 84 ............................................................................................ 76 Prof. Ms. Felipe Aparecido de Mello Prof. Dr. Nahim Marun Filho Recorrências temáticas e processos direcionais na organização formal de Rebonds b, de Iannis Xenakis .................................................................................................................... 94 Prof. Ms Rubén Ricardo Zúñiga Roja Prof. Dr. Arthur Rinaldi Websites interativos na prática docente do educador musical ........................................ 108 Prof. Ms. Adriano Felício da Costa Prof. Dr. Sonia Regina Albano de Lima 5 APRESENTAÇÃO O II volume da coletânea do Programa de Pós-Graduação em Música do IA-UNESP, comemorando os XX anos de implantação do Programa, além de trazer textos de discentes contempla artigos produzidos pelos próprios docentes do Programa. Acompanhando os critérios adotados no Iº volume da coletânea, inicialmente foram transcritos os artigos produzidos pelos docentes, seguidos de textos de discentes que contaram com a colaboração de seus orientadores para a feitura dos artigos, o que tem sido bem valorizado tanto pela CAPES como pelos órgãos de fomento. Conforme consta no release curricular dos autores, foram privilegiadas as três linha de pesquisa do programa, a saber: a- Música, Epistemologia e Cultura; b- Composição, Cognição e Estruturação Musical; c- Performance. Todos os textos aqui relatados são inéditos e podem ser considerados como produção destacada tanto dos docentes como dos discentes. Temos a consciência que não haveria momento mais oportuno para a realização dessa edição comemorativa, pois o trabalho aqui exposto evidencia de forma clara e objetiva a trajetória do nosso trabalho realizado no quadriênio que se encerra em 2024. Muito nos honra o texto produzido pelo Prof. Dr. Marcos José Cruz Mesquita articulando questões significativas da cognição musical, na linha de pesquisa Composição, Cognição e Estruturação musical. Sua incessante atuação nesse campo (e as inúmeras premiações recebidas nesta área) impacta sobremaneira o nosso programa, já que contempla uma modalidade de investigação que integra diversos campos de conhecimento sob uma ótica inter e transdisciplinar, o que tem promovido avanços consideráveis em nossa área. O texto da Prof. Dr. Danieli Verônica Longo Benedetti que atua em duas linhas de pesquisa do PPG, a primeira - Musica, Epistemologia e Cultura, na especialidade Estética e Musicologia Histórica; a segunda - Perfomance, na especialidade Práticas Instrumentais, traz um texto produzido no ano de 2023, resultado da sua atuação na disciplina “Sociedades Musicais Francesas do início do séc. XX: um laboratório para as práticas interpretativas e a pesquisa musicológica”. O texto contou com a participação de três discentes que cursaram sua disciplina: a mestranda Ana Carolina Gouveia, a pós-graduada Lorraine G. de Oliveira e a doutoranda Liz Helena Minadeo. Trabalhos desta natureza têm se intensificado em nosso programa, seja na elaboração de textos científicos, ou realizando práticas artísticas e técnicas nos cursos de graduação e em trabalhos de extensão. Há que se observar a competência performática desta docente, considerando sua especialização no ensino de piano em sua passagem pela École Normale de Musique de Paris e Conservatoire National de Strasbourg na França. O texto do orientador Prof. Dr. Maurício De Bonis com o discente Raphael de Lima Puccini, na linha de pesquisa Composição, Cognição e Estruturação Musical, traz uma análise profunda da obra Rapsódia Húngara n. 14 de Franz Liszt, para piano e sua versão para orquestra, considerando-se que não se trata de uma simples transposição da obra original para piano, mas o resultado de um projeto composicional distinto. Neste texto observa-se o cuidado dos autores no sentido de pensar questões que envolvem o ensino da composição musical e o quanto a análise musical pode apontar soluções possíveis para o melhor entendimento do contexto musical deste repertório. Há que se mencionar a atuação 6 multifacetada do Prof. Dr. Maurício de Bonis que atua não só na composição, como na docência e na performance e sua dedicação ao programa, enquanto membro oficial da Comissão de Reavaliação e Remodelação do Processo Seletivo do PPG em Música. A pesquisa do doutorando e mestre Felipe A. Mello, ligado à linha de pesquisa Performance, orientado pelo Prof. Dr. Nahim Marun em coorientação com o Prof. Dr. Arthur Rinaldi, está voltada para escrita musical e o repertório para piano do compositor brasileiro Liduino Pitombeira, fomentando elementos que orbitam entre o universo da análise musical do compositor e sua obra, estimulando pressupostos que ecoam nas práticas interpretativas. Seu trabalho tem um impacto cultural e histórico relevante, considerando-se que o discente investiga a produção musical de um compositor brasileiro importante em nosso cenário. O texto de Rubén Ricardo Zúñiga Rojas — instrumentista, diretor artístico, entre outros atributos —, em conjunto com o Prof. Dr. Arthur Rinaldi, vem mais uma vez demonstrar o quanto o PPG de Música do IA-UNESP tem privilegiado a produção de textos de mestrandos e doutorandos nas disciplinas que são ministradas pelos docentes. Mesmo sendo orientado pelo Prof. Dr. Eduardo Gianesella na linha de pesquisa ligada à Performance, a realização conjunta deste artigo com um docente da linha de pesquisa Composição, Cognição Musical e Estruturação Musical, retrata a importância que o discente atribui à análise de uma obra do repertório contemporâneo, capaz de influenciar em muito a interpretação desse material composicional, considerando-se o fato de que o Prof. Dr. Arthur Rinaldi atua como pesquisador do repertório musical dos séculos XX e XXI e realiza um estudo crítico das diferentes abordagens de análise musical e suas relações com o discurso musical e a linguagem verbal, com diversas publicações voltadas para essas questões. O texto do doutorando Adriano Felício da Costa, orientando da Prof. Dr. Sonia Regina Albano de Lima, está ligado à linha de pesquisa Música, Epistemologia e Cultura, na especialidade educação musical. O artigo retrata de que forma as tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs) podem complementar de forma benéfica as ações de um educador musical em contexto escolar, principalmente, na educação básica. O discente traz exemplos de aplicação desse material tecnológico empregado em suas aulas e como sua atuação enquanto Coordenador do Curso de Licenciatura em Música da Universidade de Sorocaba e Professor de Música no Conservatório de Tatuí e no Conservatório de Salto-SP auxiliou-o na propagação desse material. Apesar de se tratar de uma edição comemorativa, os textos aqui produzidos revelam a diversidade dos trabalhos realizados tanto pelos docentes como pelos discentes de nosso programa e a devida adequação às linhas de pesquisa e missão instituídas. Desejamos a todos uma ótima leitura. Prof. Dr. Sonia R. Albano de Lima & Prof. Dr. Nahim Marun Prof. Dr. Eduardo F. Gianesella setembro de 2023 7 SEGMENTAÇÃO E TEMPORALIDADES MUSICAIS Ph. Dr. Marcos Mesquita IA-UNESP Como, decerto, mostra-se em reflexão mais precisa, que as transformações que uma situação parece sofrer no decorrer do tempo não são transformações da coisa em si, mas apenas o desenvolvimento de meu ponto de vista sobre ela [...] (KAFKA, 1922/2000, p. 472)1. Considerações prévias Partindo de uma discussão sobre os conceitos de segmentação (teoria musical) e de temporalidade (psicologia e sociologia), o texto aborda as implicações e ramificações destes conceitos para a cognição musical, propondo, também, uma taxonomia de estratégias de projeção do material sonoro no tempo que possa ser aplicada a reflexões analíticas e interpretativas. Segmentação e temporalidade: duas palavras com uma multiplicidade de usos e sentidos. Sem dúvida, muito recorrentes em pesquisas sobre cognição musical. Obviamente, este texto não pretende e nem poderia esgotar os assuntos relacionados a elas. Meu objetivo é apresentar um recorte relacionado a minhas reflexões e pesquisas. Minhas pesquisas começaram de maneira absolutamente prática, tanto na composição como na interpretação musical; depois, no decorrer de meu amadurecimento pessoal e profissional, propus-me pesquisas e reflexões nas áreas de teorias musicais, filosofia, estética e cognição. Compositores e intérpretes têm um interesse particular em tempo e sua percepção, pois, seja lá quais forem seus estilos composicional e interpretativo, eles sempre pensam temporalmente sua prática artística. Nas palavras do compositor Roger Sessions, “música é movimento controlado do som no tempo” (SESSIONS, 1971, p. 42). Meu interesse pela segmentação veio como consequência de meu envolvimento com o tempo, pois a música apresenta, em muitos estilos, uma justaposição de eventos sonoros, algo que, como veremos, é praticado e estudado pela música há muitos séculos. A segmentação apresenta um vasto campo de pesquisa em teoria e cognição musical. Talvez porque nosso cérebro apresente, entre muitas outras, três características biogenéticas que o induzem à segmentação e que devem ser destacadas aqui. A primeira diz que nós percebemos o mundo em “fatias” de durações: “[...] o limite da formação subjetiva de 1 Todas as traduções foram feitas pelo autor do texto. 8 agrupamentos para a maioria dos seres humanos se situa entre 2 e 3 segundos” (PÖPPEL, 2000, p. 64). Esta constatação não deve fazer supor que experienciemos o mundo em fragmentos de 2-3 segundos. Além desta espécie de tique-taque cerebral, temos a segunda característica que, devido ao assunto tratado aqui, vou relacionar à memória auditiva. Ela: [...] cumpre ambas as importantes funções de integrar, no tempo, a informação acústica que chega e deixá-la disponível por alguns segundos. Informação acústica só pode ser transmitida no decorrer do tempo, por isso, é necessária a integração temporal para se reconhecer elementos conexos na informação contínua do fluxo acústico (KOELSCH; SCHRÖGER, 2008, p. 395). Ou seja, aqueles fragmentos de 2-3 segundos são integrados em um contínuo perceptivo — é deste contínuo que temos consciência na maior parte de nossas vivências em vigília. A terceira e última característica se refere à hierarquia de nossa vivência temporal que é marcada pelos seguintes fenômenos elementares: “Vivência da simultaneidade em oposição à não-simultaneidade, vivência da sucessão ou da ordenação temporal, vivência do presente ou do agora e a vivência da duração” (PÖPPEL, 2000, p. 20). Todos estes fenômenos elementares estão relacionados, como se percebe, à segunda característica que diz respeito à integração de eventos sucessivos. Estas constatações da neurociência nos mostram que há uma interação entre nossa biogenética perceptiva e nossa maneira tradicional de compor e escutar música. Mas atenção: não quero dizer com isso que somente a maneira tradicional ocidental de compor música seja cognitivamente correta! Os milhares de tradições musicais ao redor do planeta, bem como transformações estilístico-musicais em um determinado contexto cultural, mostram-nos que a (con)vivência cultural também desempenha um papel imprescindível na dinâmica da cognição musical, fazendo com que nós transformemos e expandamos nossa escuta musical no decorrer da vida. Geralmente este processo de aprendizado e vivência cultural é chamado de enculturação em antropologia, sociologia, psicologia e cognição musical. O conceito de enculturação, embora fascinante, não será aprofundado aqui, mas será o pano de fundo dos assuntos tratados. Cito uma definição sucinta do termo: “Enculturação musical é o processo pelo qual indivíduos adquirem conhecimento cultural específico sobre a estrutura da música à qual eles são expostos nas experiências do dia-a-dia, como escuta de rádio, canto e dança” (HANNON; TRAINOR, 2007, p. 466). Resumindo: ao escutar música, estabelecemos inter- relações multiestratificadas entre aspectos endógenos — por exemplo, a nossa anatomia perceptiva, nossos processos cognitivo-cerebrais e nossa vivência musical pessoal — e aspectos exógenos — entre outros, o meio ambiente cultural em que vivemos e as características sistemáticas dos tipos de música aos quais estamos habituados. Afinal, a integração ou segregação de elementos sonoros “será o resultado da interação de um número de fatores, possivelmente concorrentes, e das sensibilidades particulares do ouvinte individual” (STAINSBY; CROSS, 2016, p. 73). Nestas perspectivas, quero considerar a segmentação e temporalidades musicais2. 2 Vou me restringir a exemplos da assim chamada música de concerto ocidental. Estou convicto, entretanto, que as observações que se seguem podem ser transpostas a outros estilos musicais. 9 Segmentação em música Eu poderia retornar à Idade Média para começar a discutir a questão da segmentação a partir da notação neumática — o neuma era um símbolo gráfico que representava um pequeno conjunto de tons a serem cantados (JEFFERY, 2017). Menciono isso para dar uma pequena noção da longa tradição teórico-prática a respeito da segmentação em música. Vou me contentar, entretanto, a retornar ao recente ano de 1806 para citar a classificação de secionamento do compositor e teórico Jérôme-Joseph de Momigny. Ele escreveu: A Proposição harmônica é composta por dois acordes; o Hemistíquio é composto por dois, três ou quatro Proposições musicais (este número não é compulsório); dois Hemistíquios compõem um Verso; dois Versos, ou três e, às vezes, um número maior, compõem um Período. Vários Períodos compõem uma peça (MOMIGNY, 1806, p. 145-146; itálicos e maiúsculas no original). Abstraindo o vocabulário específico usado por Momigny, quero enfatizar que ele parte do menor elemento (proposição), agrupando-o em conjuntos cada vez maiores, até chegar à peça inteira. Tal procedimento se origina, certamente, em outras áreas de estudo, a gramática e a sintaxe. Seja como for, esta foi — e, de certa maneira, ainda é — a estratégia mais adotada em análise musical para tratar a segmentação (MESQUITA, 2016): partir de elementos discretos e agrupá-los em configurações mais e mais extensas. Entre muitos outros autores do século XIX que fizeram abordagens semelhantes à de Momigny, podemos citar Adolph Bernhard Marx (1837) e Johann Christian Lobe (1844). Já na segunda metade do século XX, o semiólogo Nicholas Ruwet e os criadores da teoria gerativa da música tonal3, Fred Lerdahl e Ray Jackendoff, “descobriram” estratégias analíticas semelhantes àquela de Momigny para fundamentar suas argumentações. Para ilustrar rapidamente seus métodos, vou comentar dois esquemas analíticos. O primeiro (Ex. 1), de Ruwet (1966, p. 77), apresenta a Geisslerlied4 (Canção do flagelador) horizontalmente, da esquerda para a direita, e relaciona os trechos semelhantes verticalmente, ou seja, é um esquema tabelar. Percebemos que a canção inteira é constituída por uma sucessão de trechos curtos que são repetidos em uma determinada ordem. Tais trechos são designados por letras minúsculas e agrupados em seções designadas por letras maiúsculas5: 3 Em inglês, GTTM, generative theory of tonal music. 4 Para escutar: . 11 são relacionados entre si, seja por algum grau de semelhança em um parâmetro, por exemplo, contorno melódico, estrutura rítmica ou sucessão intervalar, seja por algum grau de diferença ou contraste em qualquer um destes parâmetros. É este conceito de parâmetro que vou aprofundar para discutirmos, na seção 3, a questão das temporalidades musicais. Vou considerar o termo parâmetro em sua acepção mais geral: “elemento variável (característica ou dado) que entra na elaboração de um conjunto, o qual constitui um todo” (HOUAISS et al., 2001). Considerando-se uma melodia isoladamente, podemos dizer que ela é constituída por diferentes parâmetros. Por razões de concisão, vou mencionar somente o parâmetro rítmico — as durações das notas — e o parâmetro intervalar — as distâncias de altura entre as notas. Frequentemente, há, em música, a ocorrência simultânea de estabilidade em um parâmetro e mudança em outro. O compositor Arnold Schoenberg chamou a atenção sobre esta característica da música, quando definiu variação como “mudança de um número de características de uma unidade, enquanto preservação de outras” (SCHOENBERG, 1948/2010, p. 287). Vou chamar tal característica de aspecto multiparamétrico da música. Para exemplificar isso, vou retornar à melodia do exemplo 2. Os analistas enumeraram seis ocorrências do motivo “a”. Todas elas apresentam a mesma estrutura rítmica, quatro semicolcheias e uma semínima. Mas, enquanto este aspecto rítmico é recorrente, podemos assinalar variações no parâmetro intervalar. Considerando a primeira ocorrência como modelo ( inicio na nota Lá 5)7 temos, nas próximas ocorrências. 2ª) início em Dó#5, consequentemente, outra estrutura intervalar; 3ª) início em Dó#4, o mesmo motivo da 2ª ocorrência, mas uma oitava abaixo; 4ª) início em Sol#5, consequentemente, outra estrutura intervalar; 5ª) início em Sol#4, o mesmo motivo da 4ª ocorrência, mas uma oitava abaixo; 6ª) início em Ré4, consequentemente, outra estrutura intervalar. Deve-se mencionar que as mudanças na estrutura intervalar do motivo não são decididas arbitrariamente pelo compositor, mas estão relacionadas a fundamentos do sistema musical europeu: a tonalidade (Lá maior), a escala (escala de Lá maior) e a harmonização da melodia com acordes, ou funções harmônicas, do campo tonal de Lá maior. Tais elementos de fundo, conhecidos por todos aqueles que são enculturados em música tonal tradicional, garantem a estabilidade, a continuidade e a compreensibilidade da percepção melódica — qualidades sempre condicionadas por um determinado contexto cultural e, mais especificamente, por um determinado estilo musical. O aspecto multiparamétrico da música traz dificuldades para as pesquisas experimentais em cognição musical e é neste contexto que devemos entender a declaração de Diana Deutsch: [...] a evidência mostra que decisões de agrupamento não são tomadas por um sistema único, internamente coerente, mas, antes, por um número de diferentes 7 Lá4 = 440Hz. 12 subsistemas que, em algum estágio, atuam independentemente uns dos outros e podem chegar a conclusões inconsistentes (DEUTSCH, 2013, p. 184). Podemos mencionar três teorias sobre a atuação destes “diferentes subsistemas” no processo perceptivo. A teoria modular argumenta que as informações captadas separadamente são integradas em um estágio posterior do processamento perceptivo; outra teoria sugere que propriedades de um padrão podem reforçar a percepção em outro: “ouvintes são mais hábeis em detectar desvios em altura quando o padrão rítmico realçou a posição temporal da nota alterada” (PRINCE; PFORDRESHER, 2012, p. 185); uma terceira teoria alega que as relações entre os parâmetros não são fixas, mas flexíveis, e podem mudar conforme a característica do estímulo, propondo o termo saliência dimensional: “uma dimensão [parâmetro] com mais alta saliência contribui mais intensamente para a representação mental do estímulo, proporcionando uma estrutura (i.e., esquema) no qual se decodifica informação de dimensões adicionais” (PRINCE; PFORDRESHER, 2012, p. 185). Na melodia de Beethoven (Ex. 2), o parâmetro saliente seria, sem dúvida, a estrutura rítmica do motivo “a”, pois, devido a sua recorrência, ela conduz a percepção da melodia e, simultaneamente, amortece o impacto das variações ocorridas no parâmetro intervalar. Temporalidades musicais Para abordar as temporalidades musicais, devemos discutir sucintamente questões de antropologia cultural e sociologia (MESQUITA, 2017). O tempo cronométrico, tal como o conhecemos hoje, não é somente uma invenção da cultura europeia, mas a consequência de uma construção conceitual que se desenvolveu no decorrer de séculos, influenciou todas as vivências temporais do Ocidente e determina, atualmente, a vida de quase toda a humanidade: trata-se do tempo linear. Em consequência de observações e interpretações de fenômenos naturais, por exemplo, a repetição dia/noite, as fases da Lua ou as estações do ano, a humanidade criou o conceito de um sistema cosmogônico que espelhava a mesma ordenação temporal destes fenômenos. O aspecto temporal deste sistema se chama tempo cíclico. Para rastrearmos as origens do conceito de tempo linear, na opinião de Gerald James Whitrow, devemos retornar à primeira escatologia religiosa conhecida. Ela foi propagada por Zaratustra (Zoroastro) no século VI a.C. e influenciou posteriormente o judaísmo, o cristianismo e o islamismo: [...] na hora da morte, Deus julga o homem e isso decide seu destino quando o mundo finalmente voltasse ao mesmo estado de perfeição de quando ele deixou as mãos do Criador. No final, a glória imortal seria a recompensa daquele que fosse devotado à Verdade, enquanto que os seguidores da Mentira seriam condenados a “uma longa era de escuridão, comida podre e gritos de aflição” (WHITROW, 1988, p. 34; maiúsculas no original). 13 Esta concepção teleológica do tempo influenciou definitivamente o desenvolvimento da mentalidade euro-ocidental e, devido a longos processos de colonização, de vastas parcelas da população em outros continentes. Mais ou menos a partir daquele ponto no tempo, século VI a.C., os judeus viam a história como a revelação gradual do propósito divino. Mais tarde, como os cristãos atribuíam uma dimensão universal a sua crença, eles viam, na crucificação de Cristo, um acontecimento irrepetível. Isso levou à conclusão de que o “tempo deve ser linear e não cíclico. Esta visão de tempo essencialmente histórica, com sua ênfase particular na não-repetibilidade de eventos, é a essência mesma da Cristandade” (WHITROW, 1988, p. 57). Temos que levar em consideração, entretanto, que o conceito de tempo linear não suplantou, ou substituiu, aquele do tempo cíclico. Hoje, decerto, nossas vivências temporais são uma mistura de ambos os conceitos, talvez com predomínio de vivências lineares8. A vivência temporal do ser humano revela-se, além disso, uma inter-relação, nem sempre pacífica, entre características humanas inerentes — recordem-se, neste contexto, os fenômenos elementares da vivência temporal mencionados na seção 1, especialmente a vivência da sucessão ou da ordenação temporal — e conceitos aprendidos na cultura de origem do indivíduo: [...] o ser humano isolado decerto não inventa o conceito de tempo por seu próprio esforço. Aprende-se, desde a infância, tanto o conceito como, inseparável dele, a instituição social do tempo [...] Cada criança conhece [...] logo cedo o “tempo” como símbolo para uma instituição social cuja coação externa [Fremdzwang] a criança logo começa a sofrer (ELIAS, 1988, p. xviii). Complementando estas constatações de Elias, podemos dizer que a: Atuação social está sempre ligada a tempo e estruturas temporais: é causada por eventos precedentes e tem, como condição prévia, a presentificação do futuro. Cada interação pressupõe uma sincronização de tempo e consciência temporal dos parceiros de atuação. Por isso, os limites do tempo não são superfícies espaciais, mas limites da capacidade de atuação (BERNART, 2003, p. 442; itálicos no original). Como Elias e Bernart nos advertem, os conceitos de tempo de uma dada sociedade permeiam as práticas individuais e coletivas de seus membros. Tenho a convicção que tais conceitos também estão infiltrados nas práticas musicais, práticas estas com suas inúmeras nuances derivadas de interações culturais e ramificações estilísticas diversificadas. 8 Muitos autores mencionam, além dos conceitos de tempo cíclico e linear, o conceito de presente perpétuo (ACHTNER et al., 1998; FILICE, 2009), mas penso que este conceito está mais próximo da teologia, do misticismo e da metafísica do que do assunto tratado neste capítulo. Lembrando que, em outro contexto, a expressão “presente perpétuo” foi apropriada por alguns teóricos do Pós-Modernismo (ELIAS, 2016). 14 Por um lado, o conceito de tempo cíclico apresenta, simboliza, a noção de repetição derivada, como mencionado acima, de observações e interpretações de fenômenos naturais — não uma repetição mecânica, idêntica, mas variada em maior ou menor grau. Cada ciclo dia/noite tem sempre 24 horas, mas apresenta diferenças ou variações em inúmeros parâmetros: luminosidade, temperatura, pressão atmosférica etc. Por outro lado, o conceito de tempo linear apresenta, simboliza, a noção de não-repetibilidade. Analogamente, podemos constatar estas duas noções em música. Repetição literal em música e, até certo ponto, repetição variada podem ser associadas ao conceito de tempo cíclico, pois elas criam elos com algo que foi escutado no passado — recente ou distante9. Escrevi “até certo ponto” porque, se a variação apresentada for muito diferente do modelo original, o ouvinte dificilmente será capaz de reconhecer a variação como recorrência do modelo original. A capacidade mnemônica do ouvinte de perceber, com maior ou menor competência, estes elos em músicas de seu contexto cultural, induz-no a “fechar um ciclo” em um processo cognitivo, estabelecendo uma relação entre o que está escutando agora e o que ele se lembra de ter escutado anteriormente. Contrastes de diversos graus podem ser associados ao conceito de tempo linear, pois eles cortam — não completamente, enfatizo — a conexão com os eventos sonoros que estavam sendo ouvidos até a ocorrência do evento contrastante e, por assim dizer, trazem o ouvinte para o presente ou fazem-no imaginar o que ocorrerá no futuro próximo em consequência do contraste apresentado. Obviamente, as fronteiras entre repetição e contraste não são tão fáceis de serem medidas em música, pois, como vimos acima, por ser uma arte multiparamétrica, a música pode apresentar, simultaneamente, repetição em um parâmetro e contraste em outro. Ao fruir música, portanto, o ouvinte verdadeiramente atento está vivenciando, paradoxalmente, o mesmo e o diferente ao mesmo tempo. No plano duracional-cognitivo, está: 1) vivenciando o fluxo sonoro do/no presente com diferentes graus de repetição e contraste; 2) estabelecendo relações entre o que escuta no presente e os eventos sonoros do passado recente ou distante, dos quais ele consegue se recordar; 3) criando, em certa medida, expectativas em relação aos eventos sonoros que poderão ocorrer no futuro próximo ou distante (MEYER, 1956; HURON, 2006). As inúmeras possibilidades neste contexto criam vivências cognitivas ambíguas ou multifacetadas que são tremendamente difíceis de serem constatadas e medidas em simples testes psicométricos que, muitas vezes, são concebidos para direcionar a percepção para somente um parâmetro. O que discuti até agora nesta seção foi, preponderantemente, o aspecto microtemporal da música, ou seja, as relações entre pequenos trechos que se encadeiam sucessivamente. Para complementar esta discussão, quero mencionar quatro estratégias de projeção do material sonoro no tempo (MESQUITA, 2010). Tais estratégias moldam aquilo que é chamado tradicionalmente de forma musical e influenciam a vivência da música no decorrer 9 A noções de passado ou futuro recente e distante em música devem ser pensadas sempre em relação a contextos específicos: as Seis bagatelas, op. 9, de Anton Webern, duram cerca de quatro minutos e meio, enquanto que a Sinfonia nº 3, de Gustav Mahler, dura cerca de uma hora e quarenta minutos 15 de uma duração mais extensa, geralmente determinada pelo compositor10. Enfatizo que a maioria das obras musicais apresenta todas estas estratégias em maior ou menor grau, mas, por razões de clareza de exposição, selecionei trechos e peças que representam exemplarmente cada uma delas. A primeira estratégia, provavelmente a mais difundida, é a justaposição: cada frase ou seção musical chega a alguma espécie de “pontuação”, seguindo-se, então, outra frase ou seção. Com certa frequência, estes trechos são separados por uma pequena cesura. Existem vários recursos composicionais para “camuflar” a justaposição (MESQUITA, 2016). Um bom caso de justaposição é mostrado no exemplo 311. Os finais dos trechos são assinalados por linhas verticais nos compassos 12 e 22. Repare-se que: 1) o estilo de apresentação do material temático é predominantemente homofônico, ou seja, melodia principal com acompanhamento; 2) cada trecho é separado por cesuras, especificamente, pausas de semínima; 3) cada trecho é finalizado com uma pontuação, chamada, no estudo de harmonia musical, de cadência conclusiva perfeita. Exemplo 3: Wolfgang Amadeus Mozart. Sonata para piano, KV 332, 1º movimento, compassos 1-24 A segunda estratégia é a sobreposição. Claro, qualquer música composta por mais do que uma melodia sem qualquer acompanhamento apresenta algum tipo de sobreposição. Mas, como o exemplo 3 demonstra, a homofonia, caracterizada pela melodia com acompanhamento, direciona a atenção do ouvinte para a primeira. Início, desdobramento e final da melodia apresentam uma estrutura duracional unívoca e o acompanhamento geralmente confirma tal estruturação. A sobreposição à qual me refiro é, por exemplo, aquela que ocorre na música polifônica, na qual uma ou diferentes melodias são apresentadas 10 “Geralmente” porque há peças musicais cujo andamento não é especificado pelo compositor. No século XX, há tendências composicionais que deixam a duração de trechos ou mesmo da peça inteira a critério do(s) intérprete(s). 11 Para escutar: . 13 Por razões de direito autoral, não vou mostrar nenhuma partitura dos compositores minimalistas citados. Como exemplo desta estratégia de projeção, recomendo a audição de Variations, de Steve Reich: . 17 música liberada da expressão intensificada do Romantismo tardio ou do Expressionismo de Arnold Schoenberg e Alban Berg. A resposta foi a instituição do tom isolado — o ponto — como único elemento que poderia estabelecer novas relações estruturais, relações que seriam válidas por si sós e que não despertariam nenhuma associação extramusical, fossem elas de natureza descritiva ou evocativa14. A principal característica desta estratégia é a apresentação de motivos muito curtos, geralmente separados por pausas, procedimento este que pode prejudicar a percepção de uma continuidade sonora, tal como a conhecemos em estilos tonais tradicionais15i. Obviamente, o ouvinte eclético que está habituado a escutar músicas que apresentam as quatro estratégias de projeção do material sonoro no tempo sugeridas aqui não terá dificuldade em ajustar sua percepção para cada uma destas estratégias. O principal a ser relevado aqui é exatamente esta questão do ajuste, pois, mesmo que não estejamos totalmente conscientes dele, ele ocorre em consequência: 1) de nossas características cognitivas biogenéticas; 2) de nossos hábitos auditivos; 3) do processo de enculturação vivenciado por cada um de nós, incluindo, obviamente, eventuais treinamentos musicais (in)formais; 4) de características intrínsecas e extrínsecas de cada obra musical que escutamos. Para concluir esta seção, eu gostaria de sugerir uma definição de temporalidade musical: “enquanto a música institui seu próprio tempo, temporalidade é a vivência cognitivo- duracional, para o ouvinte atento, dos eventos sonoros estabelecidos pela música” (MESQUITA, 2020). Ou seja: 1) a música, em minha opinião, não ocorre no decorrer do tempo, mas institui eventos sonoros (MESQUITA, 2013) que são moldados, entre outros, pelos procedimentos composicionais discutidos nas seções 2 e 3 deste capítulo; 2) estou considerando a temporalidade como um aspecto experiencial, por parte de um ouvinte atento, de eventos sonoros que estabelecem durações discretas e inter-relações musicais multiparamétricas entre si; 3) como somos bilhões de seres humanos, com nossas respectivas histórias culturais, psicológicas, familiares etc., existem tantas temporalidades como seres humanos, levando-se em consideração, obviamente, que existem interseções mais ou menos amplas entre indivíduos que compartilham horizontes culturais similares. 14 A dessemantização em música é um tema controverso e foi discutido por mim em outros textos (MESQUITA 2010 e 2017). 15 Novamente, por razões de direito autoral, não vou mostrar nenhum trecho de partitura. Como exemplo desta estratégia de projeção, recomendo a audição do Quarteto, op. 22, de Anton Webern: . 18 Considerações finais Vários aspectos da segmentação, praticados pela composição musical e discutidos pelas teorias musicais há vários séculos, foram testados e comprovados experimentalmente por pesquisas em cognição musical — a partir da década de 1990, também com o auxílio de várias tecnologias de imageamento cerebral. Um problema com o qual ainda nos defrontamos, é que a maioria destas pesquisas ainda se baseia em peças ou padrões da música tonal tradicional europeia (HENRICH et al., 2010). Com isso, quero dizer que há grandes lacunas para serem devidamente exploradas por pesquisadores com interesses mais diversificados. O conceito de parâmetro abre perspectivas importantes para a pesquisa em cognição, pois mostra que os eventos sonoros podem ser analisados, medidos, sob diferentes ângulos e que os graus de repetição ou contraste destes eventos podem ser relativizados. Tal relativização é extremamente benéfica para a pesquisa: o desenho de qualquer experimento em música só tem a ganhar com o devido conhecimento dos parâmetros que estão em ação em um dado teste e, caso necessário, deve-se tentar desativar, o quanto for possível, um determinado parâmetro, para se chegar a resultados mais coerentes com o objetivo que se quer alcançar. As estratégias de projeção do material sonoro no tempo são elementos indispensáveis para pesquisas que envolvam trechos musicais/sonoros mais extensos, pois diferentes estratégias causam diferentes reações cognitivas — sempre lembrando que tais reações estão indissoluvelmente relacionadas ao processo de enculturação de cada indivíduo. Um dos aspectos mais fascinantes da música é sua vivência cognitivo-duracional por parte do ouvinte, o que eu chamei de temporalidade. Como todo ouvinte é um ser dinâmico, em constante transformação, arrisco afirmar que um dos maiores prazeres em escutar música reside em usufruir, a cada audição, de novas nuances devidas à percepção diferenciada de algum ou alguns dos vários parâmetros que constituem seus inúmeros eventos sonoros. Esta percepção diferenciada nos mostra que transformamos nosso ponto de vista sobre a música e, quem sabe, sobre nós mesmos. Referências ACHTNER, W. et al. Dimensionen der Zeit. Die Zeitstrukturen Gottes, der Welt und des Menschen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998. BERNART, Y. Zeit. In: SCHÄFERS, B. et al. Grundbegriffe der Soziologie. 8ª ed. expandida. Opladen: Leske + Budrich, 2003. p. 442-445. DELIÈGE, I. Grouping Conditions in Listening to Music: An Approach to Lerdahl & Jackendoff’s Grouping Preference Rules. Music Perception, vol. 4, nº 4, p. 325-360, jul. 1987. DEUTSCH, D. Grouping mechanisms in music. In: ______ (ed.). The Psychology of Music. 3ª ed. Amsterdam: Academic Press, 2013. p. 183-248. DIBELIUS, U. Moderne Musik I, 1945-1965. 2ª ed. Munique: Piper Verlag, 1984. ELIAS, A. J. Past / Future. In: BURGES, J; ELIAS, A. J. (eds.). Time: A Vocabulary of the Present. Nova Iorque: New York University Press, 2016, p. 35-50. 19 ELIAS, N. Über die Zeit. Ed. por Michael Schröter. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1988. FILICE, C. Now, Eternal. In: BIRX, H. J. (ed.). Encyclopedia of Time. Los Angeles: Sage Publications, Inc., 2009. v. 2, p. 936-938. HENRICH, J. et al. The weirdest people in the world? Behavioral and Brain Sciences, 33:2/3, p. 61-83, jun. 2010. JEFFERY, P. Musical Legacies from the Ancient World. In: EVERIST, M.; KELLY, T. F. (eds.). The Cambridge History of Medieval Music. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2017. p. 15- 68. HANNON, E. E.; TRAINOR, L. J. Music Acquisition: Effects of Enculturation and Formal Training on Development. Trends in Cognitive Sciences, vol. 11, nº 11, p. 466-471, nov. 2007. HURON, D. Sweet Antecipation: Music and the Psychology of Expectation. Cambridge: The MIT Press, 2006. KAFKA, F. Ein Hungerkünstler – Vier Geschichten. In: ______. Werke, vol. II. Dreieich: Komet, 2000. p. 463-499. (Publicado originalmente em 1922.) KOELSCH, S.; SCHRÖGER, E. Neurowissenschaftliche Grundlagen der Musikwahrnehmung. In: BRUHN, H. et al. (eds.). Musikpsychologie: Das neue Handbuch. 2ª ed. Reinbeck: rororo, 2008, p. 393-412. LERDAHL, F.; JACKENDOFF, R. A generative theory of tonal music. Cambridge, MA: MIT Press, 1983. LOBE, J. C. Compositions-Lehre. Weimar: Druck und Verlag von Bernhard Friedrich Voigt, 1844. MARX, A. B. Die Lehre der musikalischen Komposition, vol 1. Leipzig: Druck und Verlag von Breitkopf und Härtel, 1837. MESQUITA, M. Klangprojektion in die Zeit: Ein Weg zum Orchesterwerk Staub von Helmut Lachenmann. Hoffheim: Wolke Verlag, 2010. ______. (2013). Sound material as moulding of musical time. In: Encontro Internacional de Teoria e Análise Musical, 3., 2013, São Paulo. Anais... São Paulo: ECA-USP, 2013, p. 260-269. ______. Segmentation and Juxtaposition: A Brief Critical Survey. Percepta, 3(2), p. 69-80, jan./jun. 2016. ______. Concepts of time and music. In: Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais, 13., 2017, Curitiba. Anais... Curitiba: Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais et al., 2017, p. 53-59. ______. On Account of Musical Parameters and Temporalities. In: Nogueira, M. V.; Bertissolo, G. (eds.). Composition, Cognition, and Pedagogy. Curitiba: Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais, 2020, p. 71-99. MEYER, L. B. Emotion and Meaning in Music. Chicago: University of Chicago Press, 1956. MOMIGNY, J.-J. de. Cours complet d’harmonie et de composition d’après une théorie neuve et générale de la musique, vol. 1. Paris: Chez I’Auteur, en son magasin de Musique, 1806. PARÂMETRO. In: HOUAISS, A. et al. (eds.). Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001. 1 CD-ROM. 20 PÖPPEL, E. Grenzen des Bewußtseins. Wie kommen wir zur Zeit, und wie entsteht Wirklichkeit. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 2000. PRINCE, J. B.; PFORDRESHER, P. Q. The Role of Pitch and Temporal Diversity in the Perception and Production of Musical Sequences. Acta Psychologica, 141, p. 184-198, jul. 2012. REICH, S. Music as a Gradual Process. In: ______. Writings on Music 1965-2000. Ed. por Paul Hillier. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 34-36. (Texto publicado originalmente em 1969.) RUWET, N. Méthodes d’analyse en musicologie. Revue Belge de Musicologie, vol. 20, nº 1/4, p. 65-90, 1966. SCHOENBERG, A. Connection of musical ideas. In: STEIN, L. (ed.). Style and Idea: Selected Writings of Arnold Schoenberg. Com traduções de Leo Black. Oakland: University of California Press, 2010, p. 287-288. (Texto publicado originalmente em 1948.) SESSIONS, R. Questions About Music. Nova Iorque: W. W. Norton & Company, Inc., 1971. STANSBY, T.; CROSS, I. The Perception of Pitch. In: HALLAM, S. et al. (eds.). The Oxford Handbook of Music Psychology. 2ª ed. Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 63-79. WHITROW, G. J. Time in History. The evolution of our general awareness of time and temporal perspective. Oxford: Oxford University Press, 1988. 21 ESTREIA, REPERCUSSÃO E QUESTÕES INTERPRETATIVAS RELACIONADAS A TRÊS TÍTULOS DA LITERATURA PIANÍSTICA FRANCESA APRESENTADOS NOS SALÕES DA SOCIÉTÉ NATIONALE DE MUSIQUE-SNM E DA SOCIÉTÉ MUSICALE INDÉPENDANTE-SMI Prof. Dr.Danieli Verônica Longo Benedetti Discente do Mestrado Ana Carolina Gouveia Prof. Dr. Lorraine Gregório de Oliveira Prof. Ms. Liz Helena Minadeo IA-UNESP O presente artigo tem como objetivo refletir sobre três títulos da literatura pianística francesa apresentados nos salões da Société Nationale de Musique-SNM e da Société Musicale Indépendante-SMI. Somam-se assim, às questões relacionadas a estreia e a sua repercussão, questões interpretativas levantadas para as peças Jeux d’eau de Maurice Ravel (1875-1937), a Gymnopédie n.3 de Erik Satie (1866-1925) e o Estudo n.1 - “Pour les cinq doigts, d’après Monsieur Czerny” de Claude Debussy (1862-1918). As Sociedades Musicais Francesas criadas entre o final do séc. XIX e início do séc. XX constituíram um importante instrumento agregador e de luta pela criação da música contemporânea francesa. Esses agrupamentos foram responsáveis pela estreia de obras referencias de compositores como Claude Debussy, Maurice Ravel, Gabriel Fauré, Arnold Schoenberg, Heitor Villa-Lobos e tantos outros. A criação dessas associações representou uma real oportunidade para uma geração de jovens compositores tornarem-se visíveis, tendo suas composições executadas, uma vez que as associações musicais existentes divulgavam apenas “os nomes de Beethoven, Mozart, Haydn e Mendelssohn” (Saint-Saëns, 1880), oferecendo ainda um espaço sem precedente aos vários intérpretes, responsáveis por uma quantidade incalculável de execuções e estreias. A certeza de terem suas obras executadas significou para esses músicos uma motivação concreta de trabalho e, possivelmente, muitas das obras apresentadas por essas associações não existiriam se estas não tivessem sido criadas. O presente artigo é resultado de reflexões trazidas durante a realização da disciplina “Sociedades Musicais Francesas do início do século XX: um laboratório para as práticas interpretativas e a pesquisa musicológica”, credenciada no Programa de Pós-Graduação em Música da UNESP, na área da performance, sob a responsabilidade da Profa. Dra. Danieli Longo Benedetti no primeiro semestre de 2023. O artigo traz assim questões relacionadas a três composições apresentadas em duas dessas associações musicais, que pretendemos discutir aqui. São elas: a conservadora Société Nationale de Musique-SNM (1871-1998), cujo objetivo principal foi o de apoiar os compositores franceses e encorajar o despertar de um pensamento musical liberto de todo tipo de influência vinda da tradição germânica; e a Société Musicale Indépendente-SMI (1910-1935), criada por membros dissidentes da SNM, entre os quais, Maurice Ravel, Charles Koechlin e Florent Schmitt, descontentes do modo de funcionamento desta, e na qual o principal objetivo foi o de divulgar a música contemporânea sem distinção de escola e nacionalidade. As três composições aqui trazidas fazem parte da literatura pianística francesa. Em ordem cronológica de estreia, são elas: Jeux d’eau de Maurice Ravel (1875-1937), a Gymnopédie n.3 de Erik Satie (1866-1925) e o Estudo n.1 - “Pour les cinq doigts, d’après Monsieur Czerny” de Claude Debussy (1862-1918). Todas as traduções do idioma francês contidas neste artigo são das autoras. 22 Jeux d’eau (1901) para piano solo, composta por Maurice Ravel, foi dedicada ao compositor e mestre Gabriel Fauré (1845-1924). Teve sua primeira audição pública em concerto organizado pela Société Nationale de Musique-SNM, na Sala Pleyel em Paris, em 5 de abril de 1902, pelo pianista espanhol Ricardo Viñes (1875-1943)16. A peça foi parcialmente inspirada em Jeux d’eau à la Villa d’Este de Franz Liszt (1811- 1886) e traz impresso à partitura a epígrafe Dieu fluvial riant de l'eau qui le chatouille17, do poeta simbolista francês Henri de Régnier (1864-1936). Segundo Cristina Buga, existem algumas similaridades entre as duas obras que vão além da temática em Liszt e Ravel: “Uma atrativa virtuosidade e um sedoso brilho do som; a linha melódica integrada com figurações e o polegar no comando dos elementos quase melódicos; a mesma importância de envolvimento do nível das mãos; o uso do pedal como elemento ativo da performance” (BUGA, 2011: p.53). Suas considerações baseiam-se nas conversas entre o pianista polonês Vlado Perlemuter (1904-2002), considerado um dos maiores intérpretes de Ravel, e Hélène Jourdan- Morhange (1888-1961), violinista responsável por muitas das estreias de obras de Ravel e pertencente ao seu círculo de amizades — ambos, autores do livro Ravel according Ravel (PERLEMUTER, MORHANGE, 1988). O musicólogo Arbie Orenstein declara que Jeux d'eau está “firmemente estabelecida como um marco importante na literatura do piano” e “com sua mescla única de virtuosismo lisztiniano, bitonalidade, pentatonicismo e impressionismo, marca uma eminente conquista cuja importância é de longo alcance” (ORENSTEIN, 1991: p.154). Em seu esboço autobiográfico, Maurice Ravel expressa sua intenção ao compor o Jeux d’eau: Os Jeux d'eau, publicado em 1901, está na origem de todas as novidades para piano que as pessoas queriam ver na minha obra. Esta peça, inspirada no som da água e nos sons musicais produzidos por jatos de água, cascatas e rios, baseia-se em dois motivos como a primeira parte de uma sonata, sem, no entanto, estar sujeita ao nível tonal clássico. (ORENSTEIN, 1993, p.44) Renato Calza, menciona Casini, crítico musical e historiador, sobre “o virtuosismo exigido do pianista [na obra em questão] que confere um valor libertador” e “a nitidez das figurações, predominantemente composta de arpejos e cadências, incluindo a admirável que termina com o glissando em Lá na extremidade inferior do teclado, exigem uma sonoridade forte e uma pronúncia muito rápida silábica, típica dos cravistas (CALZA, 1999: p. 3 e 16). Traz ainda a seguinte declaração do pianista Ricardo Viñes, responsável pela estreia da peça: Os Jeux D’eau são o triunfo dos timbres médio-agudos do teclado, de sonoridades precisas — por vezes quase cravistas — que, no entanto, geram iridescência harmônica graças ao uso do pedal abafador nas passagens no registro agudo, 16 Programa complete do concerto https://dezede.org/evenements/id/68523/ In: JARDIN, Étienne. Société nationale de musique (1871-1939). Dezède [en ligne]. dezede.org/dossiers/id/467/ 17 Deus dos rios rindo da água que lhe faz cócegas. https://dezede.org/evenements/id/68523/ 23 visando não dar a clareza das notas, mas as impressões fluidas da vibração no ar (CALZA, 1999: p.3). Calza também faz referência à necessidade de se tocar com comandos rápidos dos dedos a fim de obter uma resposta clara do som. A nitidez das figurações, predominantemente composta de arpejos e cadências, incluindo a admirável que termina com o glissando em Lá na extremidade inferior do teclado, exigem uma sonoridade forte e uma pronúncia muito rápida silábica, típica dos cravistas (CALZA, In: CASINI, 1989, p. 16). Segundo testemunho de Vlado Perlemuter, Ravel pretendia que o tema inicial fosse executado com um toque fluido, não muito articulado, “souple et lié 18”, que o pianista, já aluno de Ravel, sugere tentando manter a mão “leve, mas com os dedos próximos das teclas”. (PERLEMUTER, MOHRANGE, 1970, p. 11). Jeux D’eau é uma obra completa e inovadora. Nela Ravel nos fornece todos os elementos para a execução e a interpretação e oferece ao pianista todas as possibilidades de desenvolvimento técnico. A composição explora toda a extensão do teclado, usando duas ou mais oitavas em sequência, acordes, arpejos, notas duplas, sequência de escalas, movimentos ascendentes e descendentes, glissando; com andamento rápido (para produzir os efeitos sonoros da água). Composta em um único movimento e poucos momentos de descanso. Apenas a fermata com acordes em clusters alternados entre as mãos (cp.48) permite-nos essa sensação. As indicações de dinâmica se estendem do pp ao fff. O intérprete deve buscar a necessária leveza do toque, a fim de despertar a imaginação e a escuta do movimento das águas em todas as suas formas. O uso do polegar nas melodias e em mudanças ou resoluções harmônicas é solicitado no decorrer de toda a peça. Assim, o pianista deve estar atento ao resultado almejado. Todos os elementos usados por Ravel estão claramente inseridos na partitura e são indicadores para o intérprete no sentido de uma maior percepção e assimilação da proposta do compositor. A técnica de Jeux d’eau está diretamente vinculada à Liszt, mas possui intercorrências diversas e exige do pianista um preparo muito diferente do utilizado para resolver os problemas da música do período romântico. O pianista francês Henri Gil-Marchex (1894-1970) fala sobre a admirável clareza da composição de Ravel, em que cada sinal tem sua exata e própria importância; por outro lado, a interpretação poética é extremamente sutil: “Esta música deve ser tocada com o coração através de uma clareza intelectual; esse último, controlando uma possível indisciplina do primeiro” (GIL-MARCHEX, 1926: p.1090). E acrescenta: Jeux d’eau foi um marco criador do início do século XX e fomentou a estética musical do impressionismo. Esse trabalho comprovou ser o início de uma nova abordagem pianística, que estava destinada a restaurar para a virtuosidade todo o brilho perdido e para reviver muitas combinações engenhosas que se tornaram exclusivamente monótonas. (GIL-MARCHEX, 1926, p. 1087) 18 Flexível e ligado. 24 Exemplo 1 — Maurice Ravel, Jeux d’eau, cp. 1-4. New York: Schirmer, 1907. Segundo a crítica especializada, o sexto concerto organizado pela Sociedade Musical Independente-SMI 19, realizado na Salle Gaveau em Paris em 16 de janeiro de 1911, foi “uma das solenidades musicais mais notáveis da temporada, pela originalidade do programa com peças de vanguarda” (MUSIQUE, 1911: p. 7). No programa, repertório majoritariamente composto para instrumentos de teclado solo (piano e órgão) e camerístico. Dentre as contribuições de nomes importantes da música francesa, uma em especial teve grande atenção da crítica, porém de maneira ambígua e polarizada: a Gymnopédie n.3 de Erik Satie. O compositor, que nesse período já era reconhecido, trouxe ao público através da interpretação de Maurice Ravel, três de suas composições para piano solo: Le fils des étoiles - Prelúdio (1891), Trois Sarabandes — nº 02 (1887), e Trois Gymnopédies — nº 03 (1888). Todas as peças do programa já eram conhecidas da crítica e do público, motivo pelo qual se tornou o cerne dos comentários e impressões que surgiriam naquela noite. Para alguns as peças trazidas por Satie não contribuíam com a busca por novas sonoridades: [...] as peças para piano de Erik Satie, esse "brilhante precursor", parafraseando o programa biográfico, não aliviam meu cansaço auditivo... M. Ravel interpretou, com uma convicção que respeito sem entender, as obras do Sr. Satie; só descobri sucessões harmônicas e procedimentos conhecidos [...]. (LA MUSIQUE, 1911: p. 3) 19 https://dezede.org/evenements/?oeuvre=|525|&dates_0=1911&dates_1=1911 In: CORNEJO, Manuel; BENEDETTI LONGO, Danieli. Société musicale indépendante (1910-1935). Dezède [en ligne]. dezede.org/dossiers/id/466/ https://dezede.org/evenements/?oeuvre=|525|&dates_0=1911&dates_1=1911 25 Outros, no entanto, puderam apreciar as contribuições do compositor como pedras essenciais no caminho da vanguarda que se organizava, uma vez que Satie não apenas foi um dos primeiros a usar as texturas e ideias que viriam a serem exploradas e desenvolvidas anos depois por outros compositores, mas também por influenciar na formação do estilo de nomes representativos da música francesa, contemporâneos e posteriores a ele (GROUT e PALISCA, 2007: p. 688): […] Mas é da temporada de 1911 que devo tratar hoje, e não da temporada de 1910 a atração mais rara: refiro-me às três peças para piano de Erik Satie (Segunda sarabanda, prelúdio de filho das estrelas, terceira gymnopedia). [...] Satie é o mais significativo e o mais direto dos precursores de Debussy, de Ravel, de toda a pequena plêiade, triunfante apesar de todos os ataques, de nossos mais ousados compositores. [...] escreveu uma série de obras, muito imperfeitas sem dúvida no desenvolvimento e na estrutura, mas que não só revelam grande engenho para inventar voltas melódicas e harmônicas, idênticos aos que constituem o idioma musical de hoje, mas também e, sobretudo, uma extraordinária sensibilidade de ouvido, graças à qual um perfeito sentimento artístico não deixa de presidir à elaboração das mais estranhas raridades sonoras [...] (CALVOCORESSI, 1911: p. 305-306). Não se sabe ao certo qual a verdadeira origem do termo “gymnopédie”, adotado pelo compositor para intitular o conjunto de três peças, mas especula-se que haja alguma relação com o antigo festival grego Gymnopadia, dedicado ao Deus Apolo, no qual jovens nus dançavam ao som da flauta e da lira (CARNEIRO, 2021). O que podemos perceber ao certo é que de modo geral, o ciclo possui um caráter estático e meditativo, no qual a estrutura musical se divide em três camadas: um baixo que marca a entrada de cada compasso e se sustenta por toda sua unidade, um bloco harmônico que surge precisamente no segundo tempo de cada compasso, e uma sugestiva melodia com início no quinto compasso de cada uma das peças, conforme destaca o exemplo 2: Exemplo 2- Erik Satie, Gymnopédie n.3, cp. 1-5. Paris: Ed. Baudoux, 1896. Cada uma dessas camadas exige um tratamento timbrístico especial no que diz respeito à pesquisa do toque ao piano, de maneira que elas possam coexistir como unidade mantendo suas singularidades devidamente respeitadas e balanceadas. O baixo solicita ser tocado em profundidade e abandonado sem o movimento de alavanca, o que seria natural se 26 levarmos em consideração o deslocamento da mão para o próximo evento em um curto espaço de tempo. Paralelo a isso, o bloco harmônico deve pousar em uma forma consistente, que faça soar todas as notas ao mesmo tempo com precisão e serenidade, utilizando o toque a partir da tecla, conforme ilustra o exemplo 3: Exemplo 3 - Erik Satie, Gymnopédie n.3, cp. 6-10. Paris: Ed. Baudoux, 1896. A melodia, por sua vez, exige que seu caráter lírico seja exprimido e paire livremente sobre as outras camadas que a sustentam, o que torna necessário um toque de falange inteira que possa tecer o discurso através de um legato expressivo, como demonstrado pelo exemplo 4: Exemplo 4 - Erik Satie, Gymnopédie n.3, cp. 6-10. Paris: Ed. Baudoux, 1896. Mesmo com todas essas especificidades, a pesquisa ao instrumento ainda trata apenas de aspectos técnicos da performance que vão proporcionar as ferramentas para construir uma interpretação artística coerente. Porém a imprevisibilidade das frases, que se apresentam sem padrão de tamanho, bem como o andamento arrastado, abre margem para uma proposta de liberdade rítmica, e uma apreensão sobre o que virá a seguir, como mostram os exemplos 5 e 6: 27 Exemplo 5 - Erik Satie, Gymnopédie n.3, cp. 40-48. Paris: Ed. Baudoux, 1896. Exemplo 6- Erik Satie, Gymnopédie n.3, cp. 49-55. Paris: Ed. Baudoux, 1896. Todas essas especificidades inspiram um caráter meditativo, citado anteriormente, que se caracterizam por um estado de presença onde o ouvinte está aberto ao sensorial, sem expectativa do que virá, e sem a real noção do tempo. Cabe assim ao intérprete criar essa atmosfera. Além disso, o uso de dissonâncias como aspecto timbrístico é mais um grande ponto da obra a ser explorado, elas não devem aparecer em destaque como uma resolução de tensão ou direcionamento melódico, mas sim, integrar a peça como parte da textura que está sendo construída, conforme ilustra o exemplo 7: 28 Exemplo 7- Erik Satie, Gymnopédie n.3, cp. 6-8. Paris: Ed. Baudoux, 1896. O primeiro contato com a obra de Erik Satie, em particular a Gymnopedie n.3, pode ser superficialmente subestimado pela aparente simplicidade do material proposto, no que diz respeito ao texto musical, desafios técnicos ou por sua estrutura. Nesse sentido, os aspectos levantados têm como objetivo sugerir ao intérprete um olhar para as perspectivas aqui apontadas. A última composição aqui trazida à discussão é o primeiro dos Douze Études (1915) de Claude Debussy, “Pour les cinq doigts, d’après Monsieur Czerny”, apresentado em concerto da Sociedade Musical Independente-SMI, realizado na Salle des Agriculteurs, no dia 28 de outubro de 1926, em programa inteiramente dedicado ao compositor20. A coleção de estudos de Debussy figura como uma das obras mais emblemáticas do repertório pianístico e representa uma importante contribuição para o gênero estudo. Compostos durante um período conturbado da vida do compositor, em meio à Grande Guerra e ao diagnóstico de sua doença terminal. O conjunto dos doze estudos foi dedicado ao compositor franco-polonês Frédéric Chopin (1810-1849), uma notável referência para Debussy. Assim como a coleção de 24 estudos de seu predecessor, Debussy escolhe algumas questões técnicas para o instrumento a serem trabalhadas e resolvidas a partir de cada estudo específico, como arpejos, saltos de acordes, terças, entre outros. Particularmente comum aos estudos do século XIX, visando resolver dificuldades técnicas, como escalas e arpejos, muitos compositores estimulavam um estudo abstraído e repetitivo, algo que ficou conhecido como “escola do mecanismo” ou “escola do dedo”. Alguns compositores, como Kalkbrenner (SERRÃO, 2019: p. 155), entendiam e postulavam a necessidade de desenvolvimento mecânico dos instrumentistas com o objetivo de adquirir velocidade e força em todos os dedos. No entanto, na visão de Chopin, essa abordagem apresentava limitações, especialmente pelo fato desta concepção não englobar a sonoridade nas obras como algo essencial a ser praticado e estudado pelos pianistas. Segundo Mikuli (apud EINGELDINGER, 1993: p. 55), Chopin sempre dizia que o verdadeiro exercício não estava na “abstração da dificuldade”, ou seja, na 20 Programa completo do concerto em: https://dezede.org/evenements/id/72156/ In: CORNEJO, Manuel; BENEDETTI LONGO, Danieli. Société musicale indépendante (1910-1935). Dezède [en ligne]. dezede.org/dossiers/id/466/ https://dezede.org/evenements/id/72156/ 29 realização de um desafio mecânico por numerosas repetições impensadas, mas, sim, no exercício da concentração voltado à escuta e à compreensão da obra (ibidem, p.156). Debussy, assim como Chopin, também acreditava que a sonoridade não deveria ser deixada de lado em função de uma suposta mecanicidade no estudo do instrumento e, portanto, criticou essa tecnicidade tanto a partir de suas cartas quanto a partir de suas composições (SERRÃO e GARCIA, 2019: p. 87-88). Assim, o contexto histórico, que remonta também à história do ensino e à prática pianística, possibilita uma compreensão sobre o pensamento composicional e a postura de Debussy nessa conjuntura, bem como viabiliza considerarmos relações entre elementos da própria obra e questões que nortearam sua elaboração a fim de definirmos escolhas interpretativas coerentes. O estudo aqui analisado será investigado de acordo com essas relações históricas, bem como a partir dos elementos musicais encontrados, com o objetivo de pontuar as possíveis escolhas interpretativas que surgem desta averiguação. “Pour les cinq doigts, d’après Monsieur Czerny” traz uma referência ao compositor Carl Czerny (1891-1857) cuja opinião era de que “primeiro se deveria desenvolver a técnica de forma independente da música, em seguida, fazendo esta técnica eventualmente servir para a realização de objetivos artísticos” (KOCHEVITSKY, 1967: p. 6). Novamente, compreendendo o posicionamento de Debussy em relação à técnica pianística do mecanicismo, é plausível entender a referência como algo que se aproxima mais de uma ironia do que de uma homenagem ao compositor austríaco. Investigando os primeiros compassos da obra podemos observar a proximidade desta com inúmeras composições de Czerny, que se baseiam em um mesmo gesto: as cinco primeiras notas da escala de Dó maior tocadas em direção ascendente e, em sequência, descendente, em figuras de semicolcheias, como indicam os exemplos 8 e 9 abaixo: Exemplo 8: Claude Debussy - Estudo n° 1, cp. 5-6. Paris: Ed. Durand, 1916. Exemplo 9: Carl Czerny - Estudo op. 740 n° 1, cp. 1-3. German: Peters, 1888. 30 Essa referência de Debussy à Czerny não se resume aos dois compassos apresentados. O início da obra também demonstra a relação com a figura tocada pelos cinco dedos, no entanto, de maneira aumentada, isto é, em colcheias ao invés de semicolcheias. São nestes 4 primeiros compassos iniciais (Exemplo 9) que podemos perceber ainda mais claramente as críticas de Debussy ao analisarmos as diferenças entre suas indicações e as de Czerny. Ver no exemplo que segue: Exemplo 10: Claude Debussy - Estudo n° 1, cp. 1-4. Paris: Ed. Durand, 1916. Debussy inicia o trecho com a indicação Sagement para que o intérprete mantenha o ritmo das colcheias, sem se apressar, com a articulação legato e dinâmica piano, o que posteriormente é interrompido pelo Lá bemol em staccato, mais grave do que as alturas tocadas pelas cinco notas. O Lá bemol atua como interrupção do diatonismo das notas da escala e as segue interrompendo, impacientemente, sendo encurtado pelas pausas e pelo accelerando, até culminar em um movimento mais animado (Exemplo 11), não mais sagement, formando acordes diminutos. Exemplo 11: Claude Debussy - Estudo n° 1, cp. 5-10. Paris: Durand, 1916. Já em Czerny (ver Exemplo 9) temos uma preocupação com a velocidade e também com o uso dos 5 dedos de maneira uniforme, exemplificada pela dinâmica forte, pela repetição da figura e pelo andamento Molto alegro, categoricamente demarcado: 92 batidas por mínima. Em Debussy temos, compreensivelmente, uma preocupação maior com a sonoridade dos trechos e especialmente pelo contraste gerado entre as variações de dinâmica e andamento apontadas. Outras passagens incorporam escalas ou fragmentos de escalas onde ambas as mãos tocam juntas. No entanto, as variações de dinâmica, saltos intervalares e figuras rítmicas em Debussy estabelecem um contraste ainda mais significativo se comparado com a constância apresentada por Czerny (Exemplos 12 e 13): 31 Exemplo 12: Carl Czerny op. 740 n° 1, cp. 46-48. German: Peters, 1888. Exemplo 13: Claude Debussy - Estudo n° 1, cp. 44-47. Fonte: Durand, 1916 Além do estudo op. 740 n° 1, é possível que Debussy tenha referenciado também outros estudos de Czerny, dada a variedade que sua obra detém. Podemos considerar certos compassos como modificações do motivo inicial, dentre elas transposições, fragmentações, inversões, entre outras, bem como excertos de outros estudos, em que Czerny também incorpora o mesmo gesto das cinco notas. Serrão e Garcia (2019, p. 91) identificam uma semelhança do motivo inicial de Debussy com o evidenciado no caderno Les cinq doigts op. 777, de Czerny, que também apresenta o movimento ascendente de 5 notas a partir de Dó, enfatizando o trabalho mecânico dos cinco dedos de ambas as mãos, indicado abaixo no exemplo 14: Exemplo 14: Carl Czerny op. 777 n° 1, cp. 1-8. German: Peters, 1896. Ademais, a análise das referências à Czerny no estudo de Debussy potencializa decisões interpretativas que de outro modo estariam à critério de uma concepção que levaria em conta apenas aspectos harmônicos e da própria forma da peça. Uma vez que a obra 32 contém tanta diversidade de andamentos, ritmos, dinâmicas e motivos que se alternam rapidamente, poderia ser preparada como uma colagem destes que prezasse por exemplo, por uma ligação e conciliação dos contrastes. No entanto, compreendendo a distinção entre a estabilidade que os exemplos de Carl Czerny apresentam e assimilando as direções específicas de Debussy em cada compasso, podemos sugerir o destaque dos momentos em que o contraste se apresenta. Desse modo, é possível evidenciar a crítica de Debussy à “escola do dedo” e seu empenho em apontar para um estudo e desenvolvimento pianístico que trouxesse como prioridade a sonoridade dos elementos, para além do aspecto técnico que estes possuem. A compreensão da forma da peça, a partir de seus diversos elementos heterogêneos (dentre dinâmicas, marcações de expressão, andamento, alturas, etc) e da constante retomada do motivo inicial, variado e transformado, algo inexistente no compositor austríaco, representa em Debussy as infinitas possibilidades que um mesmo motivo pode encerrar. Esse motivo é tratado, portanto, em uma perspectiva de priorizar a sonoridade ao invés da técnica abstraída. Os Exemplos 15 e 16 indicam compassos onde esses elementos contrastantes podem ser observados: Exemplo 15: Claude Debussy - Estudo n° 1, cp. 11-15. Paris: Durand, 1916. Exemplo 16: Claude Debussy - Estudo n° 1, cp.75-81. Paris: Durand, 1916. 33 Assim, a valorização das diferenças entre eles acentua-se a partir de uma decisão interpretativa consciente, contribui para uma escuta em que a diferenciação entre a concepção de Debussy e de Czerny se torna ainda mais aparente. Referências Anúncio “Musique”. Paris: Excelsior Journal Ilustre Quotidien, n. 10, p. 7, 16 de janeiro de 1911. Disponível em: https://www.retronews.fr/journal/excelsior/16-janvier- 1911/353/2772577/7 Acesso em: 21 jul. 2023. BANOWETZ, Joseph. The pianist's guide to pedaling. Bloomington: Indiana University Press, 1992. 320 p. BENEDETTI LONGO, Danieli. As Sociedades Musicais Francesas do início do século XX: Ideologias e Consequências. São Paulo: Alameda/Fapesp, 2020. BUGA, Cristina. Lisztian Highlights of Jeux d’Eau by M. Ravel. Bulletin of the Transilvania University of Brasov. Romênia, Series VIII, v. 4, n. 2, p. 23-30, 2011. Disponível em: http://webbut2.unitbv.ro/bu2011/Series%20VIII/BULETIN%20VIII/03_Buga_Cristina- %20muzica.pdf Acesso em: 04 jul. 2023. CALVOCORESSI, Michel Dimitri. Aux concerts. Société Indépendante: M. Erik Satie. Auteurs divers. Société Nationale. M. Liadov. Concert diverts. Paris: Jornal Comoedia ilustre, n. 10, p. 305-306, 15 de fevereiro de 1911. Disponível em: https://dezede.org/sources/id/78995/ Acesso em: 22 jul. 2023. CALZA, Renato. “Toute la fête d’eau, de cristal et de joie - Jeux D’Eau di Maurice Ravel”. Diastema. Itália: DIASTEMA, n. 12, 1901/I. Disponível em: https://www.academia.edu/3989599/_Toute_la_fete_d_eau_de_cristal_et_de_Joie_Jeux_d _eau_di_Maurice_Ravel Acesso em: 21 jul. 2023. CARNEIRO, Gyovana. Papo musical, Erik Satie: um compositor excêntrico. Goiás: Jornal UFG, 2021. Disponível em: https://jornal.ufg.br/n/141088-papo- musical#:~:text=O%20t%C3%ADtulo%20Gymnop%C3%A9die%20%C3%A9%20tido,dos%20co mpositores%20e%20cr%C3%ADticos%20musicais Acesso em: 26 jun. 2023. CASINI, Claudio. Maurice Ravel. Pordenone: Edizioni Studio Tesi, 1989. 232 p. CORNEJO, Manuel; BENEDETTI LONGO, Danieli. Société musicale indépendante (1910-1935). Dezède [em ligne]. Disponível em: https://dezede.org/dossiers/smi-1910-1935/ Acesso em: 03 set. 2023. CZERNY, Carl. Die Kunst der Fingerfertigkeit: n° 1, estudo, Dó maior, op. 740; piano solo. Leipzig: Peters, 1888. Partitura. 4 f. Disponível em: https://imslp.org/wiki/The_Art_of_Finger_Dexterity%2C_Op.740_(Czerny%2C_Carl) Acesso em: 18 jun. 2023. CZERNY, Carl. 24 Uebungsstücke: Les cinq doigts - 24 exercises n° 1, estudo, Dó maior, op. 777; piano solo. Leipzig: Peters, 1896. Partitura. 1 f. Disponível em: https://imslp.org/wiki/Les_cinq_doigts%2C_Op.777_(Czerny%2C_Carl) Acesso em: 18 jun. 2023. https://www.retronews.fr/journal/excelsior/16-janvier-1911/353/2772577/7 https://www.retronews.fr/journal/excelsior/16-janvier-1911/353/2772577/7 http://webbut2.unitbv.ro/bu2011/Series%20VIII/BULETIN%20VIII/03_Buga_Cristina-%20muzica.pdf http://webbut2.unitbv.ro/bu2011/Series%20VIII/BULETIN%20VIII/03_Buga_Cristina-%20muzica.pdf https://dezede.org/sources/id/78995/ https://www.academia.edu/3989599/_Toute_la_fete_d_eau_de_cristal_et_de_Joie_Jeux_d_eau_di_Maurice_Ravel https://www.academia.edu/3989599/_Toute_la_fete_d_eau_de_cristal_et_de_Joie_Jeux_d_eau_di_Maurice_Ravel https://jornal.ufg.br/n/141088-papo-musical#:~:text=O%20t%C3%ADtulo%20Gymnop%C3%A9die%20%C3%A9%20tido,dos%20compositores%20e%20cr%C3%ADticos%20musicais https://jornal.ufg.br/n/141088-papo-musical#:~:text=O%20t%C3%ADtulo%20Gymnop%C3%A9die%20%C3%A9%20tido,dos%20compositores%20e%20cr%C3%ADticos%20musicais https://jornal.ufg.br/n/141088-papo-musical#:~:text=O%20t%C3%ADtulo%20Gymnop%C3%A9die%20%C3%A9%20tido,dos%20compositores%20e%20cr%C3%ADticos%20musicais https://dezede.org/dossiers/smi-1910-1935/ https://imslp.org/wiki/The_Art_of_Finger_Dexterity%2C_Op.740_(Czerny%2C_Carl) https://imslp.org/wiki/Les_cinq_doigts%2C_Op.777_(Czerny%2C_Carl) 34 DEBUSSY, Claude. Pour les cinq doigts, d’après monsieur Czerny, estudo, Dó maior; piano solo. Paris: Durand & Cie., 1916. Disponível em: https://imslp.org/wiki/Etudes_(Debussy%2C_Claude) Acesso em: 24 mai. 2023. DITTRICH FILHO, Wilson. Jeux d'eau: O belo, a poética e a mímesis no simbolismo pianístico de Ravel. Curitiba, 2013. 68 f. Dissertação (Mestrado em Música), Universidade Federal do Paraná, 2013. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/32583/R%20-%20D%20- 20WILSON%20DITTRICH%20FILHO.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 03 jul. 2023. DUCHESNEAU, Michel. L’avant garde musicale à Paris de 1871 à 1939. Hayen: 1997. DUMONT, Auguste (dir.). Musique Concert de la S.M.I. Paris: Jornal Gil Blas, n. 15, p. 3, 18 de janeiro de 1911. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k7538454v/f3.item# Acesso em: 21 jul. 2023. GIL-MARCHEX, Henri. Ravel's Pianoforte Technique. The Musical Times, v. 67, n. 1006, p. 1087-1090, 1926. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/912607 Acesso em: 04 jul. 2023. GROUT, Donald; PALISCA, Claude. História da Música Ocidental. 5ª edição. Lisboa: Gradiva, 2007. 760 p. JARDIN, Étienne. Société nationale de musique (1871-1939): Jeux d’ eau. Dezède. Disponível em: https://dezede.org/dossiers/societe-nationale-de-musique/ Acesso em: 03 set. 2023. KOCHEVITSKY, George. A arte de tocar piano: uma abordagem científica. Tradução: Paulo Novais de Almeida. Salvador: PPGPROM - UFBA, 2016, p.102. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/21387/4/A%20Arte%20de%20Tocar%20Piano%20- %20Kochevitsky.pdf Acesso em: 28 jun. 2023. ORENSTEIN, Arbie. Ravel: man and musician. New York: Dover Publication, 1991, p. 292. PERLEMUTER, Vlado; JOURDAN-MORHANGE, Hélène. Ravel according to Ravel. Londres: Kahn & Averill, 1988. 104 p. RAVEL, Maurice. Jeux d’eau, Mi maior; piano. New York: G. Schirmer, 1907. Partitura. Disponível em: https://imslp.org/wiki/Jeux_d%27eau_(Ravel,_Maurice) Acesso em: 17 jul. 2023. ROGERS, Jillian. Mourning at the Piano: Marguerite Long, Maurice Ravel, and the Performance of Grief in Interwar France. Transposition: Musique et sciences sociales, n. 4, 2014. Disponível em: https://journals.openedition.org/transposition/739?lang=en Acesso em: 03 jul. 2023. SAINT-SAENS, Camille. La Societé Nationale de Musique. Paris: Le Voltaire, 1880. SATIE, Erik. Trois Gymnopédies, peças curtas; piano solo. Paris: Eric Satie, 1888. Partitura. 10p. Disponível em: https://imslp.org/wiki/3_Gymnop%C3%A9dies_(Satie%2C_Erik) Acesso em: 23 mai. 2023. SERRÃO, Ricardo Henrique. O som nos estudos para piano de Chopin: premissas à música do século XX. Debates - Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música, Unirio, n. 23, p. https://imslp.org/wiki/Etudes_(Debussy%2C_Claude) https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/32583/R%20-%20D%20-20WILSON%20DITTRICH%20FILHO.pdf?sequence=1&isAllowed=y https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/32583/R%20-%20D%20-20WILSON%20DITTRICH%20FILHO.pdf?sequence=1&isAllowed=y https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k7538454v/f3.item https://www.jstor.org/stable/912607 https://dezede.org/dossiers/societe-nationale-de-musique/ https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/21387/4/A%20Arte%20de%20Tocar%20Piano%20-%20Kochevitsky.pdf https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/21387/4/A%20Arte%20de%20Tocar%20Piano%20-%20Kochevitsky.pdf https://imslp.org/wiki/Jeux_d%27eau_(Ravel,_Maurice) https://journals.openedition.org/transposition/739?lang=en https://imslp.org/wiki/3_Gymnop%C3%A9dies_(Satie%2C_Erik) 35 155-176, 2020. Disponível em: http://seer.unirio.br/revistadebates/article/view/9716 Acesso em: 18 jun. 2023. SERRÃO, Ricardo Henrique; GARCIA, Denise Hortência Lopes Garcia. Douze Études para piano de Claude Debussy: territórios de performance e experimentação composicional. Revista da Associação Brasileira de Teoria e Análise Musical, v. 3, n. 2, p. 86-83, 2019. Disponível em: http://revistamusicatheorica.tema.mus.br/index.php/musica-theorica/article/view/83 Acesso em: 18 jun. 2 http://seer.unirio.br/revistadebates/article/view/9716 http://revistamusicatheorica.tema.mus.br/index.php/musica-theorica/article/view/83 36 CONSIDERAÇÕES COMPARATIVAS ENTRE AS VERSÕES PIANÍSTICA E ORQUESTRAL DA RAPSÓDIA HÚNGARA Nº14 DE FRANZ LISZT Prof. Ms. Raphael de Lima Puccini Prof. Dr. Maurício Funcia De Bonis IA-UNESP Introdução O texto que se segue traz a análise da Rapsódia Húngara nº 14, de Franz Liszt, levando em consideração o contexto em que foi produzida, as tendências composicionais do compositor e de sua época. Foi possível observar uma significativa diferenciação entre a versão para piano e a orquestral, evidenciando o fato de que a elaboração orquestral, realizada posteriormente, não é uma transposição da obra original para piano, mas o resultado de um distinto projeto composicional. Um pianista prodigioso, considerado um dos mais importantes compositores para o instrumento em toda a história da música, Franz Liszt foi um dos responsáveis por sintetizar diversas inovações musicais de seu tempo para além do próprio repertório pianístico, incorporando e transcendendo as contribuições de seus contemporâneos em suas composições. Olivier Alain exemplifica a amplitude desta síntese, que abarca: o “chant au piano” de Thalberg; os novos efeitos revelados pela acrobacia violinística de Paganini; o retorno cíclico dos temas, esboçado pelos primeiros românticos; o esplendor do relevo orquestral descoberto por Berlioz; a densidade harmônica de Schumann; a sedução da sonoridade própria a Chopin21 (ALAIN et al, 1967, p.238, tradução nossa). Olivier Alain refere-se ainda a uma aproximação do piano em relação à orquestra, ou de uma “orquestração pianística”. Características como o uso particular da tessitura do piano possibilitado por sua expansão para os dois extremos, o uso consciente dos registros sonoros como recursos colorísticos, recursos de escrita em oitavas que possibilitam uma sonoridade possante, dentre outros aperfeiçoamentos técnicos exigidos ao pianista são exemplos destas inovações (ALAIN et al, 1967, p. 239-245). Em termos harmônicos, observa-se o uso de todo o ciclo de tonalidades e dos graus fortes e fracos do interior destas, e a partir deste uso, a possibilidade de incorporar uma coloração modal à harmonia. Na mesma lógica desta ampliação, observa-se também maior frequência e distância tonal das modulações, assim como o uso recorrente de diferentes materiais escalares (cromáticos, modais, e até mesmo de escalas pouco usuais na música erudita ocidental, como pentatônicas, hexatônicas e modos estruturados a partir de divisões simétricas da oitava) (ALAIN et al, 1967, p. 248-251). As combinações intervalares também anunciam recursos musicais presentes em movimentos musicais posteriores, como o uso de quartas e quintas arpejadas, ou configurações simultâneas por terças ou quintas; recursos comuns à música impressionista, 21 No original: “le «chant au piano» d’un Thalberg; les effets nouveaux révélés par l’acrobatie violonistique de Paganini; le retour cyclique des thèmes, esquissé par les premiers romantiques; la splendeur du relief orchestral découvert par Berlioz; la densité harmonique de Schumann; la séduction de la sonorité propre à Chopin". 37 antecipados em sua obra, para não mencionar o frequente uso expressivo de dissonâncias (ALAIN et al, 1967, p. 252-253). Não é possível abordar a música de Liszt — e menos ainda a obra em particular que aqui nos concerne — sem pontuar, dentre as motivações que concernem à sua atuação, aquelas relacionadas à sua origem húngara. A certa altura de sua vida, já como grande pianista e compositor em ascensão, quando, em dezembro de 1839, na cidade de Viena, levantava fundos para a construção de um monumento em homenagem a Beethoven, recebe, de uma delegação vinda de Pest com este fim, um convite para retornar à sua terra natal, após dezesseis anos de distanciamento. Em meio a controvérsias implicadas nesta visita, este retorno o colocou em um renovado contato com os ciganos — cultura que, em sua infância, lhe causava grande admiração — e com sua música (WALKER, 1983, p. 448-465). Em visita a um acampamento cigano, Liszt deixa uma descrição gráfica do que presencia, como transcrito a seguir: Após examinar alguns cavalos que foram recentemente dados a eles, os homens puseram um celestial sorriso em seus rostos, exibindo seus dentes, que eram tão brancos quanto a neve. Depois eles começaram a imitar castanholas estalando as juntas de seus dedos, que eram sempre longos e carregados com eletricidade. Eles começaram a jogar seus chapéus ao alto, desfilando em seguida como pavões. Então eles examinaram os animais novamente. De repente, como se inspirados por uma gratidão que eles estiveram o tempo todo tentando expressar, e a verdadeira manifestação da qual apenas havia lhes ocorrido, eles recorrem a um meio mais nobre. Voando em direção a seus violinos e pratos, eles dão início a um real furor de excitação. A friska não demorou em se elevar a um frenesi de exultação, e então quase ao delírio. Em seu estágio final ela podia apenas ser comparada àquele vertiginoso e convulsivo movimento de contorção que é o ponto culminante no êxtase dervixe22 (LISZT apud WALKER, 1983, p. 466, tradução nossa). Seu especial interesse pelos ciganos levou-o a produzir, em 1840, um conjunto de obras chamado Magyar Dallok, a partir de um apanhado de melodias nacionais húngaras baseadas nos materiais musicais ouvidos em contato com este povo. Futuramente, esta obra foi revisada e deu origem ao que seria conhecido como as Rapsódias Húngaras, escritas entre 1851 e 1853. A concepção de Liszt acerca destas obras, que se inspira nas bandas ciganas, bem como no caráter improvisatório de sua música, é resultado da busca por um “épico nacional”. O termo rapsódia, então, se adequaria a estas peças, advindo do sentido do canto épico dos feitos e da história de seu povo, que seriam, então, cantados pela pena e pelo piano de Liszt. O resultado de seu contato com a multitude de materiais aos quais teve acesso, não seria a criação de peças individuais, mas de uma 22 Texto em inglês advindo da fonte consultada: “After examining some horses which had recently been given them, the men put on a heavenly smile, showing off to advantage their teeth, which were as white as snow. After that they started imitating castanets by cracking the joints of their fingers, which are always long and charged with electricity. They began throwing their caps into the air, following this by strutting about like peacocks. Then they examined the animals again. Suddenly, as if inspired by a gratitude which they had all the while been trying to express, and the true manifestation of which had only just occurred to them, they had recourse to a nobler medium. Flying to their violins and cymbals, they began a real fury of excitement. The friska was not long in rising to a frenzy of exultation, and then almost to delirium. In its final stage it could only be compared to that vertiginous and convulsive writhing motion which is the culmination point in the Dervish ecstasy.” 38 única obra épica, cujo espírito só poderia ser alcançado face à compreensão do conjunto, do qual cada rapsódia seria uma faceta (WALKER, 1983, p. 466-469). Como veremos a seguir, as sonoridades e recursos que serviriam a Liszt como inspiração, em contato com a música das bandas ciganas, são ouvidos nesta parcela do ciclo intitulada Rapsódia Húngara nº 14, na qual se apresentam na forma de elementos improvisatórios que incluem a alternância de tempo entre lento e rápido — conhecidos, em húngaro, como lassan e friska, respectivamente —, ou a alusão a efeitos advindos da superfície sonora das bandas ciganas, como o som do cimbalom — espécie de cítara de martelos — e de tambores, bem como a citação de melodias originárias (WALKER, 1983, p. 466-468). Alguma controvérsia surge a respeito destas melodias, sobretudo no interior de uma discussão de caráter etnomusicológico acerca dos métodos de registro deste material. Esta discussão coloca em dúvida a sua autenticidade como música verdadeiramente cigana, controvérsia esta reforçada pela publicação do livro de Liszt dedicado a esta música, Des Bohémiens et de leur musique en Hongrie. No entanto, falha-se em notar, como já dito por Béla Bartók, o anacronismo deste pensamento, que cobra do compositor, dedicado integralmente à criação e à performance, uma postura que seria possível apenas em uma abordagem científica não existente ainda em sua época (BARTOK, 1977, p. 229-236). Não se pode deixar falhar, no entanto, a compreensão do sentido que esta música assumia em relação à sua obra musical, que em nada tinha a ver com o empenho de preservação e divulgação de uma cultura em declínio por meio do seu registro, o que teria seu sentido no século XX, quando a música originária e tradicional das diferentes culturas passa a ser entendida como uma música outrora viva e que é aos poucos substituída por uma cultura popular feita e (cada vez mais amplamente) distribuída para as massas, que toma o seu lugar. De maneira distinta, como fica claro pelo próprio relato e contexto em que a obra se originou, o intuito era o de exaltar um povo a partir da música que, a partir de seu próprio testemunho, Liszt pôde conhecer desde o interior dos próprios acampamentos ciganos. Além deste ponto, outro aspecto deste impasse também foi fonte de controvérsia, ainda à época de Liszt: a relação direta feita pelo compositor entre as melodias identificadas como ciganas e o fato delas serem originárias, na realidade, da cultura popular do povo húngaro, e não especificamente dos ciganos. Estes, povos nômades que eram, comumente se apropriavam de elementos musicais existentes nas localidades por onde viviam, e, desta forma, imprimiam a estas melodias o seu caráter próprio e a sua maneira de tocar e improvisar a partir delas (WALKER, 1989, p. 577). Este espírito é o que subsiste no caráter das rapsódias, como procuraremos evidenciar pontualmente no decorrer da nossa análise, que abarcará, além disso, a própria novidade do discurso musical de Liszt em si. Análise da Rapsódia Húngara nº 14 — Considerações gerais Em um primeiro momento, levantaremos eventos estruturais e materiais relevantes que permeiam a obra — considerando a versão para piano como sendo a principal de nosso estudo e indicando devidamente as menções à versão orquestral quando necessário23, o que será útil para a compreensão da organização de cada um dos dois projetos composicionais. 23 Dado o fato de que a versão orquestral tem uma numeração de compassos ligeiramente distinta da versão original, serão reservadas as identificações dos trechos com a numeração de compassos apenas para a versão para piano, dado que o ouvinte poderá encontrar com relativa facilidade as correspondências de cada trecho da obra, por comparação, na parte orquestral, seguindo as descrições contidas no texto e as indicações de andamento que abrangem cada 39 Um destes materiais faz evidente referência — como apontado por Walker (1983, p. 467) — à canção popular húngara Magasan repül a darú, szépen szól, tocada pelos próprios ciganos a Liszt. Esta melodia se encontra como tema principal e central para a estrutura da obra, e, com ela, já se tem contato desde os compassos iniciais. Em sua constituição própria, este tema tem como característica a apresentação de duas frases iniciais; em cada uma delas, um mesmo segmento melódico: a primeira vez na região da tônica, e a segunda, transposto, na região da dominante. Figura 1: Frases iniciais de Magasan repül a darú, szépen szól Como se sabe, a harmonia no período romântico pôde extrapolar as relações inequívocas próprias do tonalismo, que visam a clara afirmação da tonalidade como pré-requisito para a compreensão do discurso. Aqui, a harmonia é expandida, ou seja, considera-se como parte do “tom” toda a sorte de relações possíveis para além das regiões vizinhas da tonalidade entendida como principal. É característica da Rapsódia Húngara nº 14 um navegar por regiões mais ou menos distantes do tom principal, em diversas ocasiões a partir de relações cromáticas ou de submediantes e mediantes advindas de um amplo escopo, que inclui ambos os modos (maior e menor). Outra característica da obra é o recurso da justaposição de materiais, desde a própria montagem de alguns dos temas até a sequenciação dos diferentes materiais ao longo da obra. É comum, ao longo da peça, a separação de segmentos por fermatas e silêncios, algumas vezes dispensando transições graduais de uma região harmônica a outra, de um material a outro. Cria-se a partir da elaboração de quadros sonoros que se sucedem, e que, embora muitas vezes distintos entre si, unem-se dentro do espírito e da própria estrutura do plano da obra que os associa. 1- Início: preparação ao tema principal (c. 1 a 24) O início da peça é ouvido, a princípio, em modo menor, surgido a partir do inicialmente solitário ruído grave na mão esquerda — os tambores ciganos abafados, como diz Walker (1983, p. 467). Estes são intermeados por um movimento anacrústico ascendente que evidencia o intervalo de segunda aumentada, dentro de um segmento escalar típico da escala cigana (equivalente a um modo eólio com quarta aumentada e sétima maior). O conjunto, uma quase marcha fúnebre, solene e obscura. A primeira e a segunda frases, na tônica e na dominante, são reescritas uma após a outra logo na abertura da obra — embora em modo menor —, a partir de uma transposição literal de todas as notas, uma em fá menor, a outra em dó menor. O mesmo ocorrerá, por exemplo, na aparição principal do tema, já em modo maior, no compasso 25, no andamento Allegro eroico. segmento analisado. Eventualmente, quando aplicável, recorreremos também às letras de ensaio para identificar passagens da versão orquestral. 40 No final da primeira e de cada uma destas duas frases iniciais — nos compassos 6 e 10 —, ocorre como se dos pesados tambores nascessem os ressonantes tilintares do cimbalom, que varre a tessitura de baixo ao alto. Figura 2: Versão para piano. Frases iniciais da introdução e sonoridades particulares das figurações pianísticas (c. 1-10) (LISZT, 1913-17, p. 144-145). Neste relato acerca da peça, como já comentado, recorreremos a outra versão desta mesma obra, para orquestra, orquestrada por Franz Doppler sob supervisão de Liszt24, para, a partir da comparação de alguns momentos-chave entre ambas, elucidar características fundamentais da escrita de Liszt, e de como foi pensado cada um dos dois projetos composicionais, dentro de suas especificidades. Percebe-se, então, que este mesmo trecho inicial, na versão orquestral, apresenta 24 “Rapsódias Húngaras para grande orquestra, orquestradas por F. Doppler – revisada por F. Liszt. (…) O nome Doppler não deve ser omitido da página de título, pois ele realizou o trabalho maravilhosamente” (WALKER, 1989, p. 856, tradução nossa), deixa Liszt como anotação em seu testamento. Na fonte original consultada: "Hungarian Rhapsodies for large orchestra, orchestrated by F. Doppler—revised by F. Liszt. N.B.: The name Doppler must not be omitted from the title page, for he has done the work marvellously." 41 algumas diferenças: o murmúrio grave ao piano, que é composto a partir de um tremolo escrito entre a 5ª Justa Fá-Do e a oitava Fá, aparece na versão orquestral como um rufo de tímpano, sobre a nota Fá, apenas dobrado por uma trompa solo em uníssono. O arpejo ascendente da versão para piano é omitido na versão orquestral, e é substituído pela adição, ao tremolo do tímpano, de um tremolo de arco nas cordas mais graves (exceto violinos) formando um acorde de fá menor, dobrado pelos metais, fagote e clarinete, em um acorde sustentado. Algo semelhante ocorre na segunda frase, sobre dó menor. Uma clara diferenciação acerca da expressão de ideias para meios distintos, que, como tais, se expressam de maneiras distintas. Figura 3: Versão orquestral, primeira frase da introdução. Acorde de Fá menor, dobrado pelos metais, fagote e clarinete, em um acorde sustentado, em diferenciação ao arpejo ascendente da versão para piano (LISZT, 1875, p. 4). Até então viemos apontando as características presentes nas duas primeiras frases do tema, da maneira como surgem na introdução. O compositor as expõe logo de início e com um notável cuidado em relação à elaboração particular das figurações sonoras neste trecho, o que coloca este momento de abertura em evidência. No entanto, nesta primeira exposição — a qual entendemos aqui como introdutória —, estão contidas outras duas frases — dos compassos 11 a 15, e 15 a 19 — que também se assemelham ao tema principal ao qual se faz referência, e que soará apenas mais à 42 frente. Esta semelhança é reconhecível sobretudo pelo perfil melódico, embora não pela harmonia e tonalidade em que se encontram. A textura muda consideravelmente em relação ao que se ouvia antes, agora mais comedida em uma sequência de acordes atravessada por notas pedal de dominante, oitavadas (desde o baixo e em vozes superiores). A tonalidade em cada uma delas se alterna por uma relação de mediante: a primeira, na região da mediante menor da tonalidade de Fá menor (Lá bemol menor, portanto,) e a segunda, de volta à tônica menor (Fá menor). Os ritmos pontuados colcheia pontuada / semicolcheia e semínima pontuada / colcheia conduzem a sequência de acordes, também extraídos do tema. Os compassos seguintes desta parte introdutória, de 19 a 22, retomam um gesto pianístico que permeia toda a peça, ou seja, da harmonia expressa por meio de arpejos, antes apresentada nos compassos 6 e 10, pela figuração que, como dissemos, remetia ao som do cimbalom, embora aqui de maneira menos impetuosa. Figura 4: Versão para piano. Arpejos temáticos e harmonia do final da introdução (LISZT, 1913-17, p. 145). 43 Na versão orquestral observa-se que os dois últimos compassos são diversos em relação à versão para piano. Ali se retoma o motivo inicial anacrústico — evidenciando o intervalo de trítono (também presente na escala cigana) ao invés da segunda aumentada — que, dos compassos de 1 a 10, preparou o “rufar de tambores” graves na mão esquerda25. É uma variante daquele material inicial e a harmonia aqui é adequada a esta variante, desviando-se daquela que aparece na versão para piano. Enfatiza-se a 6ª Aumentada, que prossegue à tônica menor e depois maior na segunda inversão, até a entrada, afinal, do tema principal com o andamento Allegro eroico. Figura 5: Versão para orquestra: final da Introdução (LISZT, 1875, p. 7-8). 25 Anteriormente mostrada na Figura 2. 44 2. Allegro eroico — o tema principal (c. 25 a 76) Em ambas as versões, aqui se apresenta a citação da canção Magasan repül a darú, szépen szól, em Fá maior, fortíssimo. Na versão