UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS LETÍCIA KALLÁS OLIVEIRA OS DESAFIOS DA APLICABILIDADE DE TRATADOS INTERNACIONAIS TRIBUTÁRIOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO FRANCA 2023 1 LETÍCIA KALLÁS OLIVEIRA OS DESAFIOS DA APLICABILIDADE DE TRATADOS INTERNACIONAIS TRIBUTÁRIOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Linha de pesquisa: Cidadania Civil e Política e Sistemas Normativos Orientador: Prof. Dr. Daniel Campos de Carvalho. FRANCA 2023 2 LETÍCIA KALLÁS OLIVEIRA OS DESAFIOS DA APLICABILIDADE DE TRATADOS INTERNACIONAIS TRIBUTÁRIOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Linha de pesquisa: Cidadania Civil e Política e Sistemas Normativos Aprovado em 14 de setembro de 2023 BANCA EXAMINADORA __________________________________ Professor Doutor Daniel Campos de Carvalho (Orientador) Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” _________________________________ Professor Doutor Daniel Damásio Borges Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” _________________________________ Professora Doutora Marcia Brandão Carneiro Leão Universidade Presbiteriana Mackenzie O48d Oliveira, Letícia Kallás OS DESAFIOS DA APLICABILIDADE DE TRATADOS INTERNACIONAIS TRIBUTÁRIOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO / Letícia Kallás Oliveira. -- Franca, 2023 108 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientador: Daniel Campos de Carvalho 1. Direito internacional público. 2. Tratados. 3. Bitributação. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. 3 REGISTRO DE IMPACTO ESPERADO NA SOCIEDADE O impacto esperado na sociedade atinente a presente pesquisa possui relação direta com a necessidade de adequações legislativas relacionadas a recepção e aplicação dos tratados internacionais tributários no ordenamento jurídico brasileiro, bem como aos demais temas adjacentes, contribuindo com o princípio da segurança jurídica. Com a análise e crítica das diversas jurisprudências e do caso prático abordado na presente pesquisa demonstra-se uma clara necessidade de maior especialização, aprofundamento e uniformização das decisões dos órgãos brasileiros. Por fim, espera-se uma amplificação de estudos sobre o tema que contribuam diretamente com a integração econômica entre os países. REGISTRATION OF EXPECTED IMPACT ON SOCIETY The expected impact on society regarding this research is directly related to the need for legislative adjustments related to the reception and application of international tax treaties in the Brazilian legal system, as well as other adjacent topics, contributing to the principle of legal certainty. With the analysis and criticism of the various jurisprudence and the practical case addressed in this research, a clear need for greater specialization, deepening and standardization of the decisions of Brazilian bodies is demonstrated. Finally, an expansion of studies on the topic is expected to directly contribute to economic integration between countries. RÉCORD DE IMPACTO ESPERADO EN LA SOCIEDAD El impacto esperado en la sociedad en relación con esta investigación está directamente relacionado con la necesidad de ajustes legislativos relacionados con la recepción y aplicación de los tratados tributarios internacionales en el sistema jurídico brasileño, así como otros temas adyacentes, contribuyendo al principio de seguridad jurídica. Con el análisis y crítica de las diversas jurisprudencias y del caso práctico abordado en esta investigación, se demuestra una clara necesidad de mayor especialización, profundización y estandarización de las decisiones de los órganos brasileños. Finalmente, se espera que una ampliación de los estudios sobre el tema contribuya directamente a la integración económica entre países. 4 À minha família, Sandra e Lívia. Aos meus amigos, Kevin e Vitor. 5 AGRADECIMENTOS A concepção de uma dissertação de mestrado é um trabalho introvertido que impõe diversos desafios para quem a escreve, porém, esta conta com cooperação de indivíduos essenciais. Inicialmente, agradeço ao meu orientador Professor Doutor Daniel Campos de Carvalho, que me conduziu e guiou com maestria não só na presente pesquisa, mas durante todo o curso de mestrado. Agradeço aos Professores Doutores Daniel Damásio Borges e Marcia Brandão Carneiro Leão que estiveram presentes na banca de qualificação e contribuíram de forma decisiva no desenvolvimento deste trabalho. Agradeço a minha mãe, Sandra Esper Kallás, e a minha irmã, Livia Kallás Oliveira, que sempre me apoiaram e auxiliaram de forma absoluta e extraordinária. Agradeço aos meus amigos, Kevin Giratto Henrique e Vitor Miguel Mazzei, que contribuíram em meu desenvolvimento pessoal e profissional. Por fim, agradeço à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, bem como todos seus associados. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 6 “Talvez não tenha conseguido fazer o melhor, mas lutei para que o melhor fosse feito. Não sou o que deveria ser, mas Graças a Deus, não sou o que era antes”. Marthin Luther King 7 OLIVEIRA, Letícia Kallás. Os Desafios Da Aplicabilidade De Tratados Internacionais Tributários No Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2023. 108 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2023. RESUMO Uma das áreas de maior evolução no cenário da globalização econômica atual é, sem dúvidas, o Direito Tributário Internacional. Os tratados internacionais revelam-se, em um planeta globalizado e integrado regionalmente, essenciais fontes de deveres e direitos entre os Estados Nacionais. Já no campo do Direito Tributário, os tratados dispõem de diversos papeis importantes, como evitar a bitributação e estabelecer regras de cooperação fiscal. Nesse diapasão, diversos são os enigmas levantados sobre a recepção e aplicabilidade dos tratados internacionais em matéria tributária no ordenamento jurídico brasileiro. Os principais pontos desse embate foram objetos de estudo do presente trabalho, como as questões atinentes à recepção das normas internacionais pela ordem jurídica interna, teorias monista e dualista, bem como questões relacionadas ao status supralegal dos tratados, com estudo da legislação e dos entendimentos jurisprudenciais sobre o tema. Debateu-se sobre o histórico e sobre a metodologia de celebração dos tratados, com enfoque nos trinta e sete tratados atualmente existentes com o Brasil. Analisou-se a tributação de pessoas físicas e jurídicas, em especial sobre o imposto de renda, com a aplicação de métodos diversos para residentes e não residentes. Foi feita, ainda, uma abordagem sobre a aplicabilidade da lei de conformidade tributária de contas estrangeiras na ordem interna brasileira e, posteriormente, uma perquirição de questões atinentes a dupla tributação. Por fim, foi realizado um estudo empírico sobre as principais decisões do Caso Volvo, que serviu de base para o entendimento sobre as decisões dos Tribunais em casos análogos. O tratamento dos tratados internacionais tributários possui extrema relevância, uma vez que estes podem controlar a economia internacional e nacional de diversas formas, sendo um ponto chave na esfera do desenvolvimento mundial. O escopo do presente estudo é, portanto, adensar à reflexão acerca do princípio da segurança jurídica. Palavras-chave: Direito Tributário Internacional; Tratados Internacionais Tributários; Monismo e Dualismo; Dupla Tributação. 8 OLIVEIRA, Letícia Kallás. Os Desafios Da Aplicabilidade De Tratados Internacionais Tributários No Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2023. 108 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2023. ABSTRACT One of the areas of greatest evolution in the scenario of current economic globalization is, without a doubt, International Tax Law. International treaties prove to be, in a globalized and regionally integrated planet, essential sources of duties and rights between National States. In the field of Tax Law, treaties have several important roles, such as avoiding double taxation and establishing rules for tax cooperation. In this vein, there are several enigmas raised about the reception and applicability of international tax treaties in the Brazilian legal system. The main points of this clash were objects of study in the present work, such as questions related to the reception of international norms by the internal legal order, monist and dualist theories, as well as questions related to the supralegal status of treaties, with a study of legislation and jurisprudential understandings on the subject. There was a debate on the history and on the methodology for signing the treaties, with a focus on the thirty-seven treaties that currently exist with Brazil. The taxation of individuals and companies was analyzed, especially on income tax, with the application of different methods for residents and non-residents. An approach was also made to the applicability of the tax compliance law of foreign accounts in the Brazilian internal order and, subsequently, a survey of issues related to double taxation. Finally, an empirical study was carried out on the main decisions of the Volvo Case, which served as a basis for understanding the decisions of the Courts in similar cases. The treatment of international tax treaties is extremely relevant, since they can control the international and national economy in different ways, being a key point in the sphere of world development. The scope of this study is, therefore, to deepen the reflection on the principle of legal certainty. Key words: International Tax Law; International Tax Treaties; Monism and Dualism; Double taxation. 9 OLIVEIRA, Letícia Kallás. Os Desafios Da Aplicabilidade De Tratados Internacionais Tributários No Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2023. 108 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2023. RESUMEN Una de las áreas de mayor evolución en el escenario de globalización económica actual es, sin duda, el Derecho Fiscal Internacional. Los tratados internacionales resultan ser, en un planeta globalizado y regionalmente integrado, fuente esencial de deberes y derechos entre los Estados Nacionales. En el campo del Derecho Tributario, los tratados tienen varias funciones importantes, como evitar la doble tributación y establecer reglas para la cooperación tributaria. En esa línea, se plantean varios enigmas sobre la recepción y aplicabilidad de los tratados tributarios internacionales en el ordenamiento jurídico brasileño. Los principales puntos de este choque fueron objeto de estudio en el presente trabajo, tales como cuestiones relacionadas con la recepción de las normas internacionales por el ordenamiento jurídico interno, las teorías monistas y dualistas, así como cuestiones relacionadas con el estatuto suprajurídico de los tratados, con un estudio de la legislación y los entendimientos jurisprudenciales sobre el tema. Hubo un debate sobre la historia y sobre la metodología para la firma de los tratados, con foco en los treinta y siete tratados que existen actualmente con Brasil. Se analizó la tributación de personas físicas y jurídicas, especialmente en el IRPF, con la aplicación de distintos métodos para residentes y no residentes. También se hizo un acercamiento a la aplicabilidad de la ley de cumplimiento tributario de cuentas extranjeras en el orden interno brasileño y, posteriormente, un relevamiento de cuestiones relacionadas con la doble imposición. Finalmente, se realizó un estudio empírico sobre las principales decisiones del Caso Volvo, que sirvió de base para comprender las decisiones de los Tribunales en casos similares. El tratamiento de los tratados tributarios internacionales es de suma relevancia, ya que pueden controlar la economía internacional y nacional de diferentes formas, siendo un punto clave en la esfera del desarrollo mundial. El objetivo de este estudio es, por tanto, profundizar en la reflexión sobre el principio de seguridad jurídica. Palabras llave: Derecho Tributario Internacional; Tratados Fiscales Internacionales; monismo y dualismo; Doble imposición. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11 1. AS QUESTÕES RELACIONADAS AOS TRATADOS INTERNACIONAIS NA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA ............................................................................................ 16 1.1. A PROBLEMÁTICA ENVOLVIDA SOBRE AS TEORIAS MONISTA E DUALISTA .............................................................................................................................. 23 1.2. A DINÂMICA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS TRIBUTÁRIOS FACE A LEGISLAÇÃO INTERNA BRASILEIRA .............................................................................. 32 2. CONJUNTURA CONTEMPORÂNEA DA TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL ..... 39 2.1. A TRIBUTAÇÃO DO RESIDENTE VERSUS A TRIBUTAÇÃO DO NÃO RESIDENTE ............................................................................................................................ 45 2.2. TRATADOS TRIBUTÁRIOS CELEBRADOS COM O BRASIL .......................... 52 2.3. ANÁLISE DA APLICABILIDADE DA LEI DE CONFORMIDADE TRIBUTÁRIA DE CONTAS ESTRANGEIRAS NA ORDEM INTERNA BRASILEIRA ........................... 61 2.4. OS DESAFIOS DA DUPLA TRIBUTAÇÃO .......................................................... 71 3. EXPLICITANDO OS DESAFIOS DA TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL ATUAL: O CASO VOLVO ................................................................................................................... 78 CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 87 REFERENCIAS BILBIOGRÁFICAS ................................................................................. 92 11 INTRODUÇÃO É incontestável o fato de que vivemos em uma constante evolução de integração dos espaços internacionais. Hoje, a vida é desenvolvida em um cenário onde os obstáculos geopolíticos já não são mais tão relevantes como antes; em outras palavras, podemos dizer que a vida é desenvolvida em uma sociedade global, tanto do ponto de vista social quanto econômico. Tratando-se de um fenômeno relativamente recente, a globalização ainda enfrenta divergências na delimitação de seu conceito. Nas palavras de Anthony Giddens1 a Globalização pode ser definida como: A intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa2. Podemos dizer que não apenas as relações sociais globalizadas, mas também suas repercussões econômicas, surgiram no final do século XX. Estamos falando de uma nova economia, baseada na modernização da tecnologia da informação e da comunicação, e cujas principais atividades estão estruturadas de maneira global, como o consumo e a produção, além de seus componentes. Os fluxos praticamente instantâneos de informações, comunicação e capital regulam toda a sociedade, com suas redes, em grande parte, afastadas de regulamentações nacionais3. Os céleres eventos de globalização e de integração regional econômica possuem diversos efeitos sendo um dos mais importantes à subjunção de diversos países às mesmas normas gerando um crescente aumento na celebração de acordos e tratados internacionais. Os tratados internacionais são umas das principais fontes do Direito Internacional Público, juntamente com outras fontes que podemos extrair do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (CIJ), tais como o costume, os princípios gerais do Direito, a jurisprudência e a doutrina. Contudo, o rol Estatuto não é exaustivo, de modo que subsistem demais fontes, tanto consuetudinárias ao Direito Interno como resultantes do exercício das relações internacionais. Podemos trazer, assim, as decisões das organizações internacionais, os atos unilaterais estatais, os princípios gerais do Direito Internacional, e o soft law. Apesar de 1 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 69-70. 2 Ibidem, p. 72. 3 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 199. 12 carecer de unanimidade doutrinária ressalta-se, também, a equidade, a analogia e o jus cogens, que possuem demasiada importância na sistematização das relações nas sociedades internacionais4. Contudo, o Estatuto da Corte Internacional de Justiça encontra uma problemática ao deixar de prever a posição hierárquica das mencionadas fontes, gerando, consequentemente, um palco chamativo para os embates doutrinários. Alguns autores defendem a prevalência dos tratados sobre as demais fontes de Direito Internacional devido ao seu caráter escrito e, em suas opiniões, mais preciso5. Entretanto, sobressai o argumento de inexistência hierárquica das fontes devido ao fato destas possuírem um vínculo forte entre si ao aplicarem uma norma. Esta segunda posição parece deter de uma maior aptidão e aceitação no campo jurídico6. Apesar de tal debate, é patente a relevância técnica dos tratados ao verificarmos a existência de diversos deles em tratativas e relações internacionais, seja pela sua característica democrática ou pela sua característica escrita. Dentre estes, importante ressaltar a existência dos tratados internacionais que versam sobre a matéria tributária e, principalmente, sobre sua aplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro, foco principal do presente trabalho. Sobre estes, assim dispõe Bernardo Ribeiro de Moraes7: Os tratados ou convenções internacionais interessam ao direito tributário, pois constituem instrumentos reguladores dos impostos sobre o comercio exterior (imposto sobre importação e imposto sobre exportação), atuando sensivelmente no combate às bitributações e sonegações internacionais, inclusive oferecendo favores fiscais. Pelo ordenamento brasileiro, será possível também, mediante tratado ou convenção internacional, estabelecer-se isenção tributária (federal, estadual ou municipal), se esse for o interessa da União. Pelo tratado internacional, v.g., evita-se bitributação em relação ao imposto de renda. Ainda, a própria Constituição Federal8, em seu art. 4º, parágrafo único9, coloca como um princípio fundamental a integração econômica, política, social e cultural dos países, e, apesar do artigo se referir especialmente a integração regional, a fomentação dos laços de forma 4 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 7ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2015, p. 71-72. 5 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito internacional público: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 28. 6 MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. v. 1. 12ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 298. 7 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1994, v.2, p. 28. 8 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em 20 nov. 2021. 9 Art. 4º, Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. 13 global não seria diferente, estando esta intrínseca na natureza do texto suscitado. Ao que tudo indica, em um mundo globalizado, é de interesse geral dos Estados alcançarem soluções unilaterais e bilaterais que preservem seus interesses arrecadatórios, de modo a facilitar cursos econômicos indispensáveis às suas economias. Para abordar o referido assunto, procuramos responder o problema de pesquisa que pergunta como se aplicam os tratados internacionais tributários no ordenamento jurídico brasileiro. Para este fim, adotamos como objetivo geral a função de pesquisar, compreender e relatar sobre a aplicação destes tratados internacionais tributários e a sua aplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro, com suas especificidades e desafios. Já como objetivos específicos, procuramos trazer os principais conceitos dos tratados internacionais tributários, suas respectivas importâncias e relações; verificar e detalhar acerca da recepção dos tratados internacionais tributários no ordenamento jurídico brasileiro; abordar sobre os posicionamentos das teorias monista e dualista, e qual delas seria adotada pelo Brasil; discorrer sobre os tratados internacionais tributários relevantes existentes, principalmente os relativos à bitributação e do “bis in idem”; analisar as legislações relevantes, principalmente o CTN, e a constitucionalidade e legalidade de seus dispositivos relativos aos tratados internacionais tributários; analisar os dispositivos pertinentes da Constituição Federal e suas respectivas importâncias e aplicabilidades; analisar a aplicabilidade da Lei de Conformidade Tributária de Contas Estrangeiras no ordenamento jurídico brasileiro e, por fim, trazer e analisar as particularidades da aplicação do tratado internacional entre o Brasil e o Japão no “Caso Volvo”. Assim, o presente trabalho fora dividido em 3 capítulos principais, sendo o primeiro dividido em dois subtópicos, o segundo em quatro subtópicos, e o terceiro capítulo somente com o capítulo principal, uma vez que este trata da abordagem de um caso e não possui subdivisões. Procuramos abordar, no capítulo 1, os tratados internacionais de maneira geral, trazendo alguns conceitos principais e explicando a maneira geral de elaboração dos tratados, bem como sua finalização. O subtópico 1.1 trabalhou a forma de recepção dos tratados no ordenamento jurídico interno pelas teorias monista e dualista, concluindo por uma análise jurisprudencial com uma maior tendencia à aplicação da teoria dualista no ordenamento jurídico brasileiro. Já o tópico 1.2 aborda especialmente sobre o embate dos tratados internacionais tributários com a legislação interna brasileira. A constitucionalidade do art. 98 do CTN gera palco para diversos debates, sendo esta discutida até os dias atuais. Assim, foram analisados as posições e embates existentes sobre este artigo e ressaltadas as posições já adotadas pelo STF e pelo STJ, bem como a adotada atualmente. O caráter hierárquico dos tratados internacionais tributários também foi palco para análise no trabalho. 14 O capítulo 2 trata especialmente da tributação internacional. Apesar de existirem tratados para os mais diversos tributos a maior parte dos tratados internacionais tributários celebrados com o Brasil versam sobre o imposto sobre a renda e, por isso, foi realizado tal recorte. Foram, assim, explicados conceitos e termos iniciais relativos ao imposto sobre a renda, sobre a tributação de pessoas físicas e jurídicas, e abordados os elementos de conexão aplicados na tributação internacional. O subtópico 2.1 trata da diferença existente entre a tributação das pessoas residentes e das não residentes no Brasil, especialmente sobre aquelas que que auferem renda tanto no país como no estrangeiro. Em relação a tributação internacional no Brasil, até 1995 para pessoa física e até 1996 para pessoa jurídica, só havia a tributação dos rendimentos auferidos no país, de modo que os rendimentos auferidos no exterior não eram tributáveis, adotando o princípio da territorialidade. Hoje, em relação aos lucros auferidos no exterior, em regra deve-se pagar o imposto para o país de residência da pessoa física ou jurídica, aplicando-se o princípio da universalidade10 para os residentes. Já em relação aos não residentes, estes são tributados na fonte, adotando-se ainda o princípio da territorialidade. No subtópico 2.2 foram trazidos os 37 tratados celebrados com o Brasil em matéria tributária, com um apontamento sobre o histórico de celebração destes. Assim, deu-se enfoque sobre o desenvolvimento histórico da celebração de tratados internacionais tributários, bem como a posição brasileira neste cenário. No subtópico 2.3 tratamos sobre a FATCA, Lei de Conformidade Fiscal de Contas Estrangeiras, que determina uma obrigação para que as instituições financeiras e não financeiras de todo o mundo enviem relatórios mensais ao Serviço da Receita Federal dos Estados Unidos, contendo informações financeiras de cidadãos, empresas e corporações situadas fora dos Estados Unidos. Assim, fora abordada a sua relação com o Brasil, bem como os principais pontos adotados pela Receita Federal brasileira. O subtópico 2.4 trouxe uma matéria mais específica dos tratados internacionais tributários, tal seja a dupla tributação. Sobre esta matéria fora abordado alguns conceitos fundamentais, bem como suas ramificações e operações resultantes do planejamento tributário internacional. Por fim, no capítulo 3 foi relatado o “Caso Volvo”, Recurso Especial nº 457.228/PR julgado pelo STJ em 18/03/2004 e Recurso Extraordinário 450.239/PR julgado pelo STF em 22/06/2010, onde ocorreu um debate sobre a aplicação de tratado internacional em empresa 10 Realizar a tributação de rendimentos utilizando-se o princípio da universalidade objetiva diminuir desigualdades incertas que possam ocorrer com a aplicação do princípio da territorialidade. Isso se dá porque tributa-se tanto os rendimentos que situam no exterior, como por exemplo em paraísos fiscais, quanto os situados no território brasileiro. 15 localizada em país diverso aos membros do tratado. A análise do caso possuiu como objetivo trazer ao trabalho uma dimensão empírica para além da bibliográfica. Em relação a metodologia, quanto a sua abordagem, a presente pesquisa possui caráter qualitativo, uma vez que se preocupou-se com aspectos da realidade dos tratados internacionais tributários sem os quantificar de maneira evidente. Buscamos compreender, descrever, explicar, e relacionar sobre a aplicabilidade e a recepção dos tratados internacionais tributários no ordenamento jurídico brasileiro. Analisamos teorias, legislações, constituições, jurisprudências e doutrinas pertinentes ao tema. Para Minayo11 a pesquisa qualitativa trabalha com significados, crenças, motivos, atitudes, valores e aspirações, correspondendo a uma maior profundidade dos fenômenos não são capazes de serem reduzidos a simples variáveis. Foi realizada uma revisão bibliográfica consultando diversos materiais sobre o tema, como livros, monografias, trabalhos, constituições, legislações, sites especializados, artigos científicos, revistas e jornais. Ou seja, o material utilizado é acessível ao público em geral. De acordo com Fonseca12, cada documento deve ser cuidadosamente selecionado, de modo a evitar o comprometimento da qualidade da pesquisa. Com o desenvolver do presente estudo, tratamos das particularidades do “Caso Volvo”, o qual concedeu a aplicação de uma dimensão empírica ao trabalho. A metodologia aplicada foi dedutiva, partindo de situações gerais, como conceitos e legislações abordadas no tópico 1, para situações particulares tratadas nos tópicos 2 e 3, analisando a aplicabilidade e recepção dos tratados internacionais tributários, especialmente os relativos à bitributação, suas divergências e o caso concreto. Quanto aos seus objetivos estamos diante de uma pesquisa descritiva e, conforme Gerhardt e Silveira13, esta requer uma boa quantidade de informações acerca do que se pretende pesquisar. Assim, esta visa expor os fenômenos e os fatos de certa realidade, tal seja da problemática dos tratados internacionais tributários no ordenamento jurídico brasileiro, objetivando sua maior clareza. Por fim, em relação a sua natureza, trata-se de uma pesquisa básica a qual visa trazer conhecimentos que serão úteis para o avanço do Direito Internacional Público e do Direito Tributário. Desse modo, os dados abordados são tomados como elementos com veracidade documentada, sendo relevantes do ponto de vista universal. 11 MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Editora Petrópolis: Vozes, 2001, p. 14. 12 FONSECA, João José Saraiva da. Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UEC, 2002 p.32. 13 GERHARDT, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo. Métodos de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009, p.35. 16 1. AS QUESTÕES RELACIONADAS AOS TRATADOS INTERNACIONAIS NA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA A historicidade dos tratados possui ascendência nos tempos antigos, com suas formas preliminares esboçadas a mais de dez séculos antes de Cristo, sempre tomando como embasamento os costumes. Os direitos dos tratados, ou jus tractatuum, foi progressivamente construindo por mais de mil anos, de modo que seu estilo de finalização ainda detém de paridades vultosas com suas celebrações originárias. Podemos considerar como um dos primeiros tratados celebrados, de caráter bilateral, o acordo que suprimiu a batalha de Kedesh, firmado aproximadamente a 1280 antes de Cristo14. Embora os tratados subsistam desde os tempos antigos, estes sustentaram-se como fonte primordial do Direito Internacional somente após a Paz de Vestefália15, sucedendo gradualmente a posição anteriormente ocupada pelo costume16. Os tratados internacionais sempre foram aparados por importantes princípios como a boa-fé, o livre consentimento e o pacta sunt servanda17, mas somente com o avanço da globalização estes instrumentos começaram a alterar o quadro internacional, principalmente com a materialização dos tratados multilaterais e das efetivas organizações internacionais. Neste diapasão originou-se a inevitável precisão de codificação18 do Direito dos Tratados, que ajudasse principalmente no alcance aos objetivos das Nações Unidas, permeando a segurança e a paz no âmbito externo19. Tal disposição foi inclusive determinada no art. 13, §1, a, da carta da Organização das Nações Unidas, a qual dispôs que “A Assembleia Geral iniciará estudos e fará recomendações, destinados a promover cooperação internacional no terreno político e incentivar o 14 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito dos Tratados. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 37. 15 De acordo com Silvana Colombo (2007) “a Paz de Vestfália teve como marco histórico central o fim da Guerra dos Trinta Anos, em 1648. No entanto, as negociações de paz entre os Estados envolvidos começaram cinco anos antes, concretizando-se por meio de duas conferências: uma realizada em Münster, com a participação das potências protestantes, e outra em Osnabrück, de que participaram as potências católicas.” 16 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 7ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2015, p. 73. 17 De acordo com a autora Maria Helena Diniz (1993), este princípio traduz-se em uma obrigatoriedade pois "o contrato, uma vez concluído livremente, incorpora-se ao ordenamento jurídico, constituindo uma verdadeira norma de direito". 18 De acordo com Valerio de Oliveira Mazzuoli “No mundo jurídico se chama de código todo corpo escrito e sistematizado de normas relativas a um determinado ramo do direito. Num código deve-se encontrar o conjunto de regras e princípios basilares sobre um dado ramo do direito em especial, em contraposição à mera compilação normativa, que tem finalidade tão somente classificatória” 19 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito dos Tratados. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 38-39. 17 desenvolvimento progressivo do direito internacional e a sua codificação”20. Para atingir tal objetivo foi criada a Comissão de Direito Internacional da ONU em Genebra, que promoveu especial atenção na regulamentação do Direito dos Tratados por mais de 20 anos. Em 1968 foi convocada uma conferência em Viena para apresentação dos trabalhos desenvolvidos pela Comissão, originando-se assim a importante Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 196921, a qual passou a vigorar internacionalmente apenas em 1980 com a participação de trinta e cinco países22. Apesar de sua grande importância, a Convenção de Viena foi ratificada pelo Brasil somente vários anos depois, por meio do Decreto 7.030 de 14 de dezembro de 2009. Porém, mesmo antes da ratificação, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, ou Itamaraty, utilizava as normas da Convenção de Viena de 1969 para regular suas tratativas em uma eventual celebração de um tratado 23. Ou seja, a Convenção ainda não possuía força de tratado, mas já valia como um costume positivado. Neste sentido, importante se faz conceituar esta fonte tão importante do Direito Internacional Público, que são os tratados internacionais. Em sua obra “Direito internacional público: curso elementar”, José Francisco Rezek24 conceitua-os como: Tratado é todo acordo formal concluído entre pessoas jurídicas de direito internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos. Na afirmação clássica de Georges Scelle, o tratado internacional é em si mesmo um simples instrumento; identificamo- lo por seu processo de produção e pela forma final, não pelo conteúdo. Este — como o da lei ordinária numa ordem jurídica interna — é variável ao extremo. Pelo efeito compromissivo e cogente que visa a produzir, o tratado dá cobertura legal à sua própria substância. Mas essa substância tanto pode dizer respeito à ciência jurídica quanto à produção de cereais ou à pesquisa mineral. Desse modo, a matéria versada num tratado pode ela própria interessar de modo mais ou menos extenso ao direito das gentes (...). Ou seja, os tratados são celebrados entre pessoas jurídicas internacionais e definidos de acordo com seu modo de elaboração e pela sua forma, não pelo seu conteúdo, o qual pode ser 20 ______. Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas, da qual faz parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, por ocasião da Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm >. Acesso em: 12 out. 2021. 21 ______. Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm >. Acesso em: 10 out. 2021. 22 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito dos Tratados. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 40-45. 23 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. O poder de celebrar tratados: competência dos poderes constituídos para a celebração de tratados à luz do Direito Internacional, do Direito Comparado e do Direito Constitucional brasileiro. Porto Alegre: Fabris, 1995, P. 276. 24 REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 17. 18 extremamente variável. De acordo o autor, o texto usual de um tratado possui um preâmbulo, acompanhado da parte dispositiva, e casualmente é incorporado por anexos25. Ainda, encontramos um conceito expresso desta fonte no art. 2.1.a. da já mencionada Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, o qual dispõe que: 1. Para os fins da presente Convenção: a) “tratado” significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica; Tal definição exposta é, porém, objeto de diversos julgamentos doutrinários, uma vez que considera apenas requisitos formais em sua elaboração e limita a competência de celebração dos tratados por parte do Estado. Hoje essa disposição não encontra respaldo, uma vez que se admite a possibilidade de elaboração de tratados por parte das organizações internacionais26. Assim, encontramos uma maior assertividade no primeiro conceito, que considera tanto requisitos materiais como a natureza das deliberações contratuais. Desta última conceituação abordada, podemos extrair alguns elementos que se mostram fundamentais para a elaboração de um tratado internacional: 1. “Acordo internacional”: não existe norma que superior que vincule todos os Estados, pois estes se encontram em uma esfera de autonomia horizontal. As relações internacionais baseiam-se no princípio do livre convencimento, sendo essencial a confluência de vontades para a celebração de um acordo internacional plausível. Além disso, essa confluência de vontades deve se ordenar para elaborar um vínculo jurídico necessário entre as partes; 2. “Concluído por escrito”: os tratados devem ser escritos principalmente para viabilizar que os poderes Legislativos pertencentes a cada Estado realizem sua própria gestão democrática; 3. Concluído “entre Estados”: conforme já exposto, tal elemento já restou superado, uma vez que hoje as organizações internacionais também podem elaborar tratados; 4. “Regido pelo Direito Internacional”: as partes devem visar à elaboração de uma norma jurídica que esteja sujeita às disposições do Direito Internacional; 5. “Quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos”: ou seja, além de seu texto base, um tratado internacional pode conter outras normas que foram produzidas junto a ele ou mesmo depois; 6. “Qualquer que seja sua denominação específica”: não importa a intitulação que o tratado recebe, bastando apenas que este seja elaborado levando 25 Ibidem, p. 36. 26 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito internacional público. 5. ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2010, p. 169. 19 em consideração a congruência de vontades das partes para a criação de uma obrigação jurídica27. Diversos autores já dispuseram sobre as classificações dos tratados internacionais, mas nenhuma delas foi disposta expressamente pela Convenção de Viena. Contudo, importante mencionar algumas classificações existentes como o número de partes, a possibilidade de participação, o modo de sua entrada em vigor e a matéria regulada. Em relação ao número de partes, um tratado pode ser bilateral ao abranger apenas dois Estados participantes, ou multilateral ou plurilateral ao abranger uma quantidade maior de contratantes. Sobre a possibilidade de participação, o tratado pode ser aberto ao possibilitar livremente e amplamente a participação um Estado interessado em um Tratado Internacional, ou ainda pode ser fechado ao restringir a participação a apenas certos Estados determinados. De acordo com o modo de sua entrada em vigor, os tratados podem ser solenes ao necessitarem de uma formalidade maior para vigorarem dentro de um Estado, ou podem ser simplificados ao possuírem um tramite com maior acessibilidade como, por exemplo, ao dispensar a validação por seus parlamentares. Por último, são inúmeros os tipos de tratados existentes em relação a matéria regulada, uma vez que estes podem dispor de diversos assuntos como paz, comercio, tributos, consulta, extradição, entre outros28. No Brasil, é reservada ao Presidente da República a competência para celebrar tratados, conforme art. 84, inciso VIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 198829. Tal competência pode ser delegada, nos termos do parágrafo único do mesmo artigo30. O processo de elaboração de tratados possui duas fases, a primeira delas é composta pela negociação preliminar e assinatura, e a segunda por apreciação parlamentar, ratificação e promulgação. A primeira fase se inicia com as negociações preliminares, aonde ocorrerá a elaboração e a discussão do texto. Conforme preconiza Roberto Luiz Silva31, inexistem regras predefinidas ao se tratar de tratados bilaterais, sendo usual a ocorrência de convite, por uma das partes, por meio de nota diplomática; já em tratados multilaterais discute-se o seu objeto em congressos ou 27 Ibidem, p. 170-177. 28 SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2002, p. 61-64. 29 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional. 30 Parágrafo único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações. 31 SILVA, Roberto Luiz. Direito internacional público. 2.ed., revista atualizada e ampliada. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 58. 20 conferencias internacionais. Assim, elaborado o texto final do acordo, se finda a fase de negociação. Em conferências internacionais, nos termos do art. 9.2. da Convenção de Viena32, em regra o texto deve ser aprovado por dois terços dos Estados presentes e votantes, mas, a depender do conteúdo da matéria acordada, poderá ser necessária a uniformidade dos votos. Aprovado, o tratado será assinado pelas partes signatárias. De acordo com a prática do Ministério das Relações Exteriores, no Brasil qualquer autoridade que possua carta de plenos poderes poderá assinar um tratado. Ainda, de acordo com o direito constitucional, o direito internacional, a prática e a doutrina, o Ministro das Relações Exteriores e o chefe de missão diplomática, este último em atos referentes ao seu Estado, possuem competência para realizar a assinatura sem possuírem a carta de plenos poderes33. Após assinatura inicia-se a segunda fase do processo, aonde o Presidente da República enviará, juntamente com a exposição de motivos do Ministro de Estado das Relações Exteriores, o tratado ao Congresso Nacional, para que este examine e aprove o texto nos termos do art. 49, inciso I da Constituição Federal34. Este envio não é obrigatório, possuindo o chefe do Executivo autonomia para arquivar ou postergar o envio do acordo. Contudo, o Presidente não pode vincular definitivamente o país brasileiro aos termos do tratado sem antes submetê-lo à apreciação parlamentar. Assim, o presidente do Senado Federal promulgará Decreto Legislativo com aprovação ou rejeição do texto35. O próximo passo será a ratificação pelo Presidente da República no plano internacional, ato unilateral que vinculará definitivamente o Brasil aos termos do tratado. Desse modo o tratado começará sua vigência, para o Brasil, no âmbito internacional. De acordo com Rezek36, este ato é discricionário e irretratável. Após, ocorrerá a promulgação e publicação do tratado, que são atos de natureza interna. Por meio da promulgação, que é realizada por decreto do Presidente da República, o governo confirma a subsistência de um tratado, e determina sua execução. Considerando o princípio da 32 9.2. A adoção do texto de um tratado numa conferência internacional efetua-se pela maioria de dois terços dos Estados presentes e votantes, salvo se esses Estados, pela mesma maioria, decidirem aplicar uma regra diversa. 33 GABSCH, Rodrigo D’Araujo. Aprovação de tratados internacionais pelo Brasil: possíveis opções para acelerar o seu processo. Brasília: FUNAG, 2010, p. 45-46. 34 Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional; 35 OLIVEIRA, Diogo Pignataro de. Celebração e integração dos tratados internacionais no direito brasileiro. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 4, n. 01, 16 out. 2013, p.14. 36 REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 17. ed. São Paulo : Saraiva, 2018, p. 41-42. 21 publicidade da administração pública37, este decreto é publicado no Diário Oficial da União e, assim, se torna aplicável e exigível na esfera interna38. Neste diapasão, resta importante destacar o instituto das reservas39, o qual cresceu consideravelmente nos últimos anos por possibilitar a participação de um Estado a certo tratado, ainda que este se contraponha a determinado dispositivo. Apesar de existirem a tempos, as reservas obtiveram a condição de instituição apenas após as Convenções de Haia de 1899 e 1907, nas quais fora observada a vantagem do instituto ao facilitar e viabilizar a adoção de tratados multilaterais pelos diversos Estados, possibilitando a existência de uma regulamentação jurídica mais adepta internacionalmente. Inicialmente vigorava-se a regra da unanimidade, por meio da qual demandava-se a aceitação dos demais Estados membros para a liberação de uma reserva, entretanto nos últimos anos os tratados internacionais, por si só, ostentaram de dispositivos que admitiram ou não o instituto da reserva, além de regulamentarem seu alcance40. Cumpre ressaltar, ainda, que existem diversas maneiras de findar um acordo internacional e há uma clara diferença entre a extinção, por meio da qual encerra-se definitivamente as disposições do tratado não sendo este mais aplicado na ordem jurídica interna e externa, e a suspensão, que se trata de uma simples interrupção momentânea dos efeitos do tratado internacional41. A extinção pode ocorrer principalmente pela disposição das partes ou ainda pela modificação do contexto que acarretou na sua celebração42. Importante destacar, assim, algumas destas formas abordadas pelo autor Celso Duvivier de Albuquerque Mello43, tais como: a) Execução integral do contrato, que ocorre quando as partes cumprem o que inicialmente determinado; b) Consentimento mútuo, pois o mesmo consentimento que deu 37 Encontramos previsão deste princípio especialmente no art. 5,inciso XXXIII, e art. 37, ambos da Constituição Federal. De acordo com Meireles “A publicidade, como princípio da administração pública, abrange toda atuação estatal, não só sob o aspecto de divulgação oficial de seus atos como, também, de propiciação de conhecimento da conduta interna de seus agentes”. 38 GABSCH, Rodrigo D’Araujo. Aprovação de tratados internacionais pelo Brasil: possíveis opções para acelerar o seu processo. Brasília: FUNAG, 2010, p. 53-54. 39 O art. 2, § 1, d da Convenção de Viena conceitua reserva como “uma declaração unilateral, qualquer que seja a sua redação ou denominação, feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado” 40 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito dos Tratados. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 196-198. 41 GODINHO, Thiago José Zanini. Elementos de direito internacional público e privado. São Paulo: Atlas, 2010, p. 50. 42 De acordo com Celso D. A. Mello, esta disposição trata-se da cláusula “omnis conventio intelligitur rebus sic stantibus”, que admite que os tratados com prazo muito longos ou indeterminados possuam um subentendimento de termino ou modificação se suas circunstancias originarias forem ocasionalmente alteradas. 43 MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. v. 1. 12ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 244-246 22 origem ao tratado pode colocar fim a ele. Tal consentimento pode ser expresso e ocorrer, por exemplo, por meio de uma declaração, ou pode ser tácito ao firmar-se outro tratado com as mesmas partes e objeto; c) Termo, quando o tratado possui um prazo de validade e este é atingido; d) Condição resolutória, que ocorre quando as partes estipulam uma condição afirmativa ou negativa para seu término; e) Renúncia do beneficiário, ocorrendo nos tratados que concedem apenas benefícios para uma parte e deveres para a outra, podendo assim o beneficiário manifestar sua vontade de findá-lo sem acarretar em prejuízos a parte contrária; f) Caducidade, ocorrendo quando o tratado não é aplicado por um amplo período ou quando o costume se torna contrário a ele; g) Em situações de guerra, findando-se o tratado bilateral entre os litigantes, com exceções especificas; h) Fato de terceiro, por meio do qual um terceiro possui a capacidade para findar um tratado celebrado entre os Estados; i)Impossibilidade de execução, surgindo-se uma inviabilidade física ou jurídica para a sua consecução; j) Ruptura de relações diplomáticas e consulares, se estas forem essenciais; k) Inexecução do contrato por uma das partes, concedendo a outra parte o direito de suspensão ou término do tratado a seu critério; l) Denúncia, por meio da qual um Estado comunica ao outro sobre sua vontade de findar ou de se retirar do tratado. Relevante se faz abordar o instituto da denúncia que ocorre unilateralmente e, normalmente, com maior frequência. Tal matéria, assim como algumas outras modalidades de extinção e suspensão, é orientada pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969. Rezek44 ressalta que tal ato deve ser escrito e pode ser retratável, conceituando-o como: A denúncia é um ato unilateral (...) pela denúncia, manifesta o Estado sua vontade de deixar de ser parte no acordo internacional. Só a comodidade didática determina o estudo da denúncia na seção pertinente à extinção dos tratados, visto que esse ato unilateral, embora hábil, por razão óbvia, para extinguir o tratado vigente entre duas partes apenas, é inofensivo à continuidade da vigência dos tratados multilaterais. No caso destes, tudo quanto se extingue pela denúncia é a participação do Estado que a formula. Ou seja, a modalidade da denúncia é efetiva apenas em contratos bilaterais, uma vez que os contratos plurilaterais não possuirão sua vigência afetada em razão da retirada de um membro. A Convenção de Viena de 1969 reconhece a viabilidade da denúncia ao ser esta subentendida na natureza do contrato ou se esta for demonstrado a intenção prévia das partes em admiti-la., sob pena de denúncia ilegal e responsabilização internacional do país. Além disso, a Convenção dispõe que os efeitos da denúncia vigerão apenas doze meses após sua 44 REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 17. ed. São Paulo : Saraiva, 2018, p. 90-91. 23 apresentação. No Brasil a denúncia dispensa validação pelo Legislativo, característica que evidencia a divergência entre os tratados e as leis nacionais45. 1.1. A PROBLEMÁTICA ENVOLVIDA SOBRE AS TEORIAS MONISTA E DUALISTA A subsistência das ordens jurídicas internas e externas gera demasiadas complicações, tanto práticas quanto doutrinárias e jurisprudenciais, uma vez que as disposições constantes em um tratado internacional podem, muitas vezes, se conflitar com o teor das legislações nacionais do Estado-membro. Deste modo, existem discussões teóricas que buscam compreender a natureza mandamental dessas referidas normas e a maneira como se dá a incorporação metafísica junto ao ordenamento jurídico de determinado Estado, tendo em vista o evidente caráter distinto de concepção das leis internacionais e de direito interno, seja em decorrência da forma, dos sujeitos envolvidos e propriamente das fontes. Quanto ao tema, pode-se dizer que O Direito Internacional, em particular, é concebido como algo substancialmente diferente daquele conjunto de normas jurídicas que o juiz, por sua função, é chamado moralmente a aplicar. Retirada essa contraposição e, ao contrário, sendo admitido que os dois direitos possam se compenetrar e se substituir mutuamente nas matérias comuns, o problema necessariamente perde o seu caráter geral e, com isso, o seu peculiar significado. Transforma-se em uma série de questões particulares: tratar-se- á, de fato, de ver se determinadas partes do Direito Internacional podem ser objeto de aplicação pelos tribunais de cada Estado e com quais limites e condição.46 Por meio da compreensão da estrutura do processo legislativo internacional e de direito interno de determinado Estado, compreender-se-á a posição e o caráter de cada uma dessas normas, seu processo de internalização e posteriormente a sua eventual submissão ao controle de constitucionalidade do Poder Judiciário, ponto necessário e essencial para elidir discussões acerca do confronto entre leis de caráter internacional e de direito interno, o que não raramente ocorre em detrimento do mencionado caráter distinto de concepção de ambas as normas. Não se trata, pois, de uma análise simplória acerca dos preceitos e teores das normas firmadas em âmbito internacional, mas sim da compreensão acerca da forma como se dá o complexo processo de absorção de tais disposições à lei interna e obviamente quais são as consequências de todas as demais discussões. 45 MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. v. 1. 12ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 246-247. 46 ANZILOTTI. Dionísio. O Direito Internacional nos Julgamentos Internos. Trad. Arno Dal Ri Jr. Ed. Unijuí. Ijuí: 2021, p. 41-42. 24 Os debates doutrinários e jurisprudenciais que versam sobre a temática têm identificado dois rótulos, com fito de esclarecer como se dá a interiorização das normas internacionais e sua supremacia à legislação brasileira, tais sejam a teoria monista e a teoria dualista. A imensa maioria dos autores nacionais como Carlos Husek, Mirtô Fraga, Mariângela Ariosi, Patrícia Henriques Ribeiro, George Rodrigo Bandeira Galindo, Bruno Pereira, Hee Moon Jo, Celso A. Mello, Pagliarini, Roberto Silva, Luís Roberto Barroso e Valério Mazzuoli formaram seus posicionamentos ontológicos, sejam eles pendentes para a teoria monista ou para a teoria dualista, com supedâneo quase que exclusivamente nos ensinamentos de autores clássicos, quais sejam: Hans Kelsen e Heinrich Triepel47. Por certo, essa discussão surgiu em decorrência da ausência de valorização expressa no texto constitucional sobre as disposições tributárias que porventura viessem a ser tratadas ou acordadas com os demais Estados. Essa omissão legislativa, além de implicar em discussões sobre a forma e o momento em que se dá o controle constitucional do teor dos acordos internacionais, acaba por possibilitar entendimentos diversos sobre o modo adequado de agir diante da subsistência entre ambas as normas no cenário jurídico, ainda mais quando tais disposições possuírem teores conflitantes entre si. Neste sentido, há que se apontar que: As teorias clássicas referenciadas acerca das relações entre direito interno e internacional surgiram em um contexto histórico, político e científico específico que remonta ao final do século XIX e muito diferem do contexto constitucional brasileiro atual. O monismo e o dualismo germânicos são frutos de uma época em que o direito buscava se firmar como uma ciência autônoma, seguindo o desenvolvimento das demais ciências, iniciado no início do século XIX, ou seja, são reflexos do positivismo científico e da necessidade de firmar o direito como uma categoria apreensível pela metodologia científica das ciências naturais.48 No entanto, em que pese haver primordialmente duas correntes distintas, as relações internacionais passaram a apresentar tamanha complexidade que essas próprias teorias base discorridas pelos estudiosos parecem não mais se enquadrar perfeitamente à realidade jurídica. A forma como cada Estado trata a natureza da norma internacional depende diretamente de como a sua legislação valora esses acordos firmados com outros pares, vez que a depender do tratamento concedido à tais normas, determinado Estado estará ou não a reconhecendo como parte imediatamente integrante de seu ordenamento interno. 47 MAGALHÃES, Breno Baía. O sincretismo teórico na apropriação das teorias monista e dualista e sua questionável utilidade como critério para a classificação do modelo brasileiro de incorporação de normas internacionais. Brasília: Revista de Direito Internacional, v. 12, n. 2, 2015, p. 77-96, doi: 10.5102/rdi.v12i2.3604. Disponível em: < https://biblioteca.corteidh.or.cr/tablas/r36599.pdf>. Acesso em: 09 fev. 2023. 48 Ibidem, p. 82. 25 E é por tal razão que, ao longo da história, as situações fáticas que versavam sobre a recepção dos tratados internacionais tributários representaram tamanha complexidade que tais teorias acabaram por ser, muitas vezes, relativizadas por alguns doutrinadores e pela própria jurisprudência. Essas adequações ocasionaram no nascimento de expressões diversas e flexíveis como “monismo moderado” ou “dualismo radical”, com fito de adequar os conceitos técnicos das teorias já delineadas à necessidade de internalização específica de determinado tratado49. Neste sentido, vale pontuar que: O aprofundamento da análise revela, porém, um conjunto tão variado de situações práticas e soluções jurídicas em cada Estado que mesmo essas modalizações parecem tornar-se pouco úteis, pois elas simplificam excessivamente o problema. Esta é razão de muitos para condenar ao ostracismo tais expressões, preferindo abordar o tema de modo mais pragmático. Não obstante, elas permanecem no repertório linguístico dos jusinternacionalistas e, com isso, compõem a sua forma de compreender a realidade normativa que lhes incumbe descrever e sistematizar.50 Frisa-se que as considerações acerca das correntes monistas e dualistas são tantas que não há sequer consenso sobre como se dá a constatação do modelo adotado por determinado Estado. Se por um lado parece lógico entender a valoração concedida aos acordos internacionais (e seu enquadramento nos ditames da teoria monista ou dualista) para posteriormente compreender a necessidade, a forma de incorporação e o controle de constitucionalidade dessas normas ao ordenamento jurídico interno, autores como John Jackson partem da lógica inversa: o modelo de incorporação adotado por determinado Estado é que poderá servir ou indicar como fator determinantemente para definir se a nação persegue a teoria monista ou dualista.51 Importante ressaltar, ainda, que de um ponto de vista contemporâneo, existe uma grande problemática com a classificação das teorias, não aparentando serem estas suficientes para abranger de forma suficiente a relação entre o direito interno e o direito externo. Neste sentido explicita o Professor Doutor Daniel Campos de Carvalho52: A complexidade do fenômeno jurídico atual não consegue ser suficientemente explicada por uma abordagem exclusivamente monista ou dualista, fato que pode ser comprovado com uma rápida reflexão a respeito da dinâmica de tratados e costumes 49 LUPI. André Lipp Pinto Basto. O Brasil é dualista? Anotações sobre a vigência de normas internacionais no ordenamento brasileiro. n. 184. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 2009, p. 29-30. Disponível em: . Acesso em: 08 fev. 2023. 50Ibidem, p. 30. 51 JACKSON, John. Status of Treaties in Domestic Legal Systems: A Policy Analysis. American Journal of International Law, Washington, v. 86, n. 2, p. 310-340, abr. 1992. 52 CARVALHO, Daniel Campos de. O problema da autonomia do Direito da União Europeia em face aos ordenamentos nacionais e ao Direito Internacional Público. Revista de Direito Constitucional e Internacional – RDCI, São Paulo, v. 21, n. 83, p. 287-334, abr./jun. 2013. 26 internacionais. A transposição do aparato conceitual de décadas atrás para elucidar as características do cenário contemporâneo mostra-se insatisfatória, já que um vocabulário estado-cêntrico não consegue expressar a contento, por exemplo, o idioma das integrações regionais. Mesmo a remissão a Kelsen mostra-se problemática, seja pelo fato de a reflexão do autor promover um repertório conceitual construído sob a observação de uma realidade não mais existente, seja pela imprecisão causada graças à pluralidade de sentidos e de interpretações calcadas na obra kelseniana. Dessa forma, “where monism lapses into dualism, and dualism lapses into monism, something is needed as a substitute”. Tal substituto, na compreensão deste artigo, corresponde a um entendimento pluralista sistêmico da relação entre as ordens jurídicas. Independente de tal crítica contemporânea, tais teorias possuem grande validade teórica no Direito Internacional. Apesar das teorias aparentarem insuficientes para explicar, de forma ampla, as relações de direito interno e externo, estas talvez sejam válidas para explicar o modo de funcionamento e algumas fontes de Direito Internacional, como no caso dos tratados. A teoria monista é amparada por Hans Kelsen53, o qual sustenta que a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional não podem ser simultaneamente válidas, devendo somente haver uma única identidade jurídica. Por essa razão, a corrente doutrinária advoga a chamada unidade dos ordenamentos jurídicos de natureza nacional e internacional, pregando a eficácia direta e momentânea das normas presentes em qualquer tratado ou acordo internacional que vier a ser ratificado por determinado Estado diante das situações ocorridas internamente aos acordantes, não necessitando de qualquer formalidade para sua incorporação ao ordenamento jurídico interno. Como exemplo podemos mencionar a ausência de necessidade de conversão dessas normas em lei ordinária nacional54. Nas palavras de Magalhães55 a teoria monista se caracteriza por: 1) todas as normas jurídicas estarem subordinadas entre si, dispostas hierarquicamente; 2) os ordenamentos jurídicos não serem autônomos; 3) inexistir conflito entre normas porque o ordenamento é unificado e unitário, portanto, sempre prevaleceria a norma superior hierarquicamente e 4) não ser necessária a transformação do ato internacional em normas internas. Hans Kelsen procurou estabelecer parâmetros científicos para disciplinar a ciência do direito, partindo de uma ordem normativa que pressupõe uma identidade científica e busca uma validade do Direito a partir de uma técnica universal, aplicável a todas as situações e todos as nações. Nesta concepção Kelsiana, haveria uma norma supralegal, com importância mais 53 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução: J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 148. 54 MAGALHÃES, Breno Baía. O sincretismo teórico na apropriação das teorias monista e dualista e sua questionável utilidade como critério para a classificação do modelo brasileiro de incorporação de normas internacionais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 12, n. 2, 2015, p. 77-96, doi: 10.5102/rdi.v12i2.3604. Disponível em: < https://biblioteca.corteidh.or.cr/tablas/r36599.pdf>. Acesso em: 09 fev. 2023. 55 Ibidem, p. 81. 27 elevada, que justificaria a necessidade e a própria validade de todas as demais normas criadas nos ordenamentos jurídicos existentes intitulada de “norma hipotética fundamental56. Neste sentido, em âmbito internacional, a norma hipotética fundamental seria o costume dos Estados. O costume seria o do pacta sunt servanda, a própria vontade de contratar, observando-se a boa-fé dos Estados acordantes, o que lhes imporia a condição de compartilhar do mesmo critério de validade dessas normas, tornando-se uníssonos, atrelados entre si.57 Subsistindo eventual divergência entre o texto normativo do tratado internacional e o texto normativo de lei de direito interno, os monistas subdividem-se acerca da forma como o judiciário deveria elidir esse conflito de normas, tendo em vista a existência de duas subcorrentes: monismo internacionalista (dividida, ainda, por alguns doutrinadores nas vertentes “moderada” e “radical”) e monismo nacionalista. Para os adeptos à primeira subdivisão, em eventual conflito, a norma internacional deverá se sobrepor às disposições presentes em âmbito interno, pois decorrem da primazia do direito internacional que permite seu desenvolvimento. Frisa-se que dentre os adeptos à tal ramificação está o próprio Professor Alberto Xavier, que fundamenta seu posicionamento no conteúdo do art. 5º, §2º, da Constituição Federal da República58, o qual expressamente determina que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. No mesmo sentido, a tese monista com a prevalência do direito internacional é dominante e amplamente aceita pelas Cortes internacionais, tendo sido disposta inclusive no art. 2759 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados que dispõe que nenhum Estado poderá suscitar o direito interno para se contrapor às obrigações assumidas em decorrência da assinatura de determinado tratado.60 56 GONÇALVES. Alex Silva; QUIRINO. Regio Hermilton Ribeiro. A Norma Hipotética Fundamental de Hans Kelsen e a Regra de Reconhecimento de Herbert Hart: semelhanças e diferenças entre os critérios de validade do Sistema Jurídico. Florianópolis: Biblioteca Científica eletrônica em Linha, n. 78, p. 91-118, abr. 2018. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/seq/a/PntQZ9PRnnZPS6v7mFT7wvR/?lang=pt&format=pdf#:~:text= A%20norma%20hipot%C3%A9tica%20fundamental%20baseia,%E2%80%9Cdevemos%20obedecer%20aos%2 0costumes%E2%80%9D.>. Acesso em: 08 fev. 2023. 57 MAGALHÃES, Breno Baía. O sincretismo teórico na apropriação das teorias monista e dualista e sua questionável utilidade como critério para a classificação do modelo brasileiro de incorporação de normas internacionais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 12, n. 2, 2015, p. 77-96, doi: 10.5102/rdi.v12i2.3604. Disponível em: < https://biblioteca.corteidh.or.cr/tablas/r36599.pdf>. Acesso em: 09 fev. 2023. 58 REBOUÇAS. Osvaldo José. A validade no Brasil dos tratados internacionais em matéria tributária. Ed. Appris, 1. Ed. Curitiba: 2021, p. 189. 59 Artigo 27. Direito Interno e Observância de Tratados. Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. Esta regra não prejudica o artigo 46. 60 ROCHA. Sérgio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Bitributação da Renda. Editora Quartier Latin. São Paulo: 2013, p. 49. 28 Os monistas adeptos à segunda subdivisão defendem a supremacia do direito nacional, tendo em vista que os tratados e convenções internacionais decorrem somente de compromissos discricionários de Estados soberanos61. Nesta linha, reforçando os argumentos traçados, pode- se dizer que a premissa adotada pelos defensores dessa corrente: é aquela que aponta a prevalência das normas internas editadas com fundamento na soberania estatal, sobrepondo-se à ordem internacional, na hipótese de conflito entre os comandos por elas veiculados, prevalecendo, na solução do impasse, a hierarquia normativa local sobre a externa. Por esse ângulo, os acordos internacionais firmados pelo Estado com nações estrangeiras gozam de vigência e eficácia na ordem interna e disciplinam relações, criando direitos e obrigações, desde que incidam sobre fatos que não se encontram regrados por comandos locais, sujeitando-se por inteiro ao regramento externo. Caso haja disciplinamento em contrário, afasta-se o tratado para aplicar a norma interna, independentemente dos efeitos nefastos e das consequências que tal prática irradia no plano externo para a nação brasileira.62 De maneira contraposta, para a teoria dualista, defendida e anunciada por Dionísio Anzilotti na Itália, e Carl Heinrich Triepel na Alemanha, as ordens jurídicas externas e internas convivem de maneira independente, de forma que não estão sujeitas a quaisquer embates entre si. Deste modo, não seria sequer possível existir, a prima facie, qualquer conflito de normas entre o direito internacional e a ordem jurídica interna de determinado país, tendo em vista que se tratam de dois ordenamentos distintos, como se representassem dois círculos fechados que não se sobrepõem, não mantendo qualquer contato e não estabelecendo qualquer concorrência, impossibilitando que tais normas acabem por gerar algum conflito entre si.63 Para a teoria dualista, é preciso que ocorra um processo de recepção para validar determinada norma internacional no campo interno, convertendo-a em regra dentro do ordenamento jurídico de determinado Estado64. Neste sentido, Sérgio André Rocha explica que: Aspecto relevante do dualismo jurídico é a impossibilidade de aplicação direta dos tratados internacionais na ordem interna, a qual seria sempre dependente da “internalização” da regra pactícia mediante a edição de norma interna, configurando a “teoria da incorporação” do direito internacional. (...) Com efeito, se a aplicação do tratado na esfera interna depende da edição de norma doméstica de incorporação do tratado, temos que na verdade o intérprete aplicador do tratado, temos que na verdade o intérprete aplicador do tratado estará sempre interpretando e aplicando seu direito 61 GONÇALVES. Maria Beatriz Ribeiro. Direito Internacional Público e Privado. Salvador: Editora Juspodivm, 4ª ed., revista, atualizada e ampliada, vol. 25, 2017. 62 REBOUÇAS. Osvaldo José. A validade no Brasil dos tratados internacionais em matéria tributária. Ed. Appris, 1. Ed. Curitiba: 2021, p. 188. 63 ROCHA. Sérgio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Bitributação da Renda. Editora Quartier Latin. São Paulo: 2013, p. 47. 64 MATOS, Lenisa Prado de. A recepção dos tratados internacionais no ordenamento brasileiro e o art. 98 do Código Tributário Nacional. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. v. 21. n. 12/1. 2010, p. 62-63. Disponível em: < https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/35004>. Acesso em: 15 out. 2021. 29 doméstico e não um tratado internacional, sempre que seu foco forem os efeitos internos da regra pactícia.65 Ao discorrer sobre a teoria do dualismo, Heirinch Triepel, o principal doutrinador da temática, busca simplificar a diferenciação entre as normas de caráter internacional e direito interno com base nas diferenças das relações estabelecidas. Por um lado, a norma de direito interno busca coordenar a relação entre o Estado e seus cidadãos, enquanto a norma internacional possui como finalidade dispor a cooperação interestatal. Sendo diferentes os âmbitos de atuação, o conteúdo e sua finalidade, as normas não poderiam resultar em uma unicidade jurídica66. Para a teoria dualista, a distinção entre as normas jurídicas de caráter interno e de natureza internacional necessitam de evidente diferenciação, uma vez que implicam na instituição direta de dois sistemas jurídicos distintos e incomunicáveis, com assento nos seguintes aspectos: a) distinção de sujeitos, representada no Direito Internacional por dois (em caso de acordos bilaterais) ou por diversos Estados (em caso de acordos plurilaterais), e noutro pela relação direta entre os Estados e todos os indivíduos que permanecem sob o manto de sua jurisdição; b) distinção de fontes legais de sua fundamentação, representada no Direito Internacional pela observância às normas mandamentais de caráter internacional e noutro pela observância às leis e os costumes do Direito Interno de determinado Estado, e; c) distinção de relações, representada no Direito Internacional pela observância às relações entre dois ou mais Estados e noutro pela relação entre o ente federativo e seus respectivos cidadãos67. Em decisão bastante esclarecedora, o Supremo Tribunal Federal há muito tempo já explicitou seu posicionamento quanto a necessidade de observância à Constituição Federal da República para se constatar a exata definição procedimental necessária para internalização da norma de caráter internacional no Direito interno. Cita-se um trecho do da decisão do Relator Min. Celso de Mello em Agravo Regimental em Carta Rogatória nº 8.279-468: 65 ROCHA. Sérgio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Bitributação da Renda. Editora Quartier Latin. São Paulo: 2013, p. 48. 66 MAGALHÃES, Breno Baía. O sincretismo teórico na apropriação das teorias monista e dualista e sua questionável utilidade como critério para a classificação do modelo brasileiro de incorporação de normas internacionais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 12, n. 2, 2015, p. 77-96, p. 84, doi: 10.5102/rdi.v12i2.3604. Disponível em . Acesso em: 09 fev. 2023. 67 LUPI. André Lipp Pinto Basto. O Brasil é dualista? Anotações sobre a vigência de normas internacionais no ordenamento brasileiro. n. 184. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 2009, p. 31-32. Disponível em: . Acesso em: 08 fev. 2023. 68 ______. Supremo Tribunal Federal. Carta Rogatória nº 8.279-4. Rel. Min. Celso de Mello. j. 17/6/1998, DJ 10/8/2000 PP-6. Ementário nº 1999-1- PP- 00042 Tribunal Pleno. Disponível em: . Acesso em: 12 fev. 2023. 30 Não obstante tais considerações, impende destacar que o tema concernente à definição do momento a partir do qual as normas internacionais tornam-se vinculantes no plano interno excede, em nosso sistema jurídico, à mera discussão acadêmica em torno dos princípios que regem o monismo e o dualismo, pois cabe à Constituição da República – e a esta, somente – disciplinar a questão pertinente à vigência doméstica dos tratados internacionais. Sob tal perspectiva, o sistema constitucional brasileiro – que não exige a edição de lei para efeito de incorporação do ato internacional ao direito interno (visão dualista extremada) – satisfaz-se, para efeito de executoriedade doméstica dos tratados internacionais, com a adoção inter procedimental que compreende a aprovação congressional e a promulgação executiva do texto convencional (visão dualista moderada). Uma coisa, porém, é absolutamente inquestionável sob o nosso modelo constitucional: a ratificação – que se qualifica como típico ato de direito internacional público – não basta, por si só, para promover a automática incorporação do tratado ao sistema de direito positivo interno. É que, para esse específico efeito, impõe-se a coalescência das vontades autônomas do Congresso Nacional e do Presidente da República, cujas deliberações individuais – embora necessárias – não se revestem suficientes para, isoladamente, gerarem a integração do texto convencional à ordem interna, tal como adverte José Francisco Resek (“Direito Internacional Público”, p.69, item nº 34, 5ª ed.,1995, Saraiva). No mesmo sentido explicitou o Supremo Tribunal Federal ao julgar a medida cautelar nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.480/DF69, reafirmando o posicionamento quanto à necessidade de submissão dos dispositivos dos tratados e acordos nacionais à procedimento legislativo próprio para sua incorporação dentro do ordenamento jurídico brasileiro, não bastando tão somente a adesão por meio de ratificação. Percebe-se que o entendimento jurisprudencial encampado pelo Supremo Tribunal Federal demonstra a necessidade obrigatória de submissão dos tratados ou acordos internacionais à submissão do procedimento legislativo representado pela aprovação do Congresso Nacional, acompanhada da ratificação do teor da lei pelo Poder Executivo. Assim dispõe determinado trecho da decisão: É corolário da teoria dualista a necessidade de, através de alguma formalidade, transportar o conteúdo normativo dos tratados para o Direito Interno, para que estes, embora já existentes no plano internacional, possam ter validade e executoriedade no território nacional.70 E é por tal razão que são premissas básicas da teoria dualista pregam a diferenciação e autonomia entre o marco temporal referente ao início da vigência da norma internacional e sua consequente incorporação no ordenamento jurídico interno, o distanciamento entre os efeitos da norma internalizada e quaisquer fatos já transcorridos entre as partes acordantes, a expressa 69 ______. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar nos autos da ADI 1.480/DF. Rel. Ministro Celso de Mello, julgada em 04 de set. de 1997. Disponível em: . Acesso em: 12 fev. 2023. 70 Ibidem, p. 17. 31 valorização da norma internacional no plano criado pelo próprio ordenamento jurídico interno do Estado, e por fim, que eventuais incompatibilidades entre normas jurídicas internas de hierarquia superior e normas internacionais de hierarquia inferior não geram conflitos no ordenamento jurídico interno.71 Ambas as teorias encontram defensores com suas respectivas motivações particulares, não havendo consenso entre o modelo adotado pelo Brasil, sequer como a forma de constatação de tal vertente teórica. Se por um lado a corrente monista compreende que as normas de natureza internacional são imediatamente aplicáveis em território nacional mediante a ausência de qualquer formalidade, bastando tão somente a própria adesão ou ratificação ao tratado, a teoria dualista compreende que tais normas seriam autônomas possuindo, portanto, campos próprios de vigência e atuação, e que estas necessitariam de submissão ao procedimento legislativo para que possam produzir efeitos dentro do ordenamento jurídico próprio. Para a teoria dualista, por meio da realização de tal processo, há a possibilidade de haver um embate entre as normas internas, devendo este ser solucionado com fulcro no instrumento “lex posterior derogat priori”72 expressamente disposto no art. §1º do art. 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro73. Alguns doutrinadores sustentam que o sistema jurídico brasileiro seria adepto ao dualismo, tendo em vista que a introdução dos tratados exige necessariamente a submissão a análise do legislativo, bem como à edição do decreto pelo chefe do poder executivo. Noutro turno, alguns estudiosos defendem a tese de que o sistema adotado pelo Brasil seria uma espécie de teoria monista moderada, tendo em vista que o ato legislativo apenas autoriza a celebração do tratado, enquanto o decreto presidencial presta-se tão somente a conceder-lhe publicidade, sem que haja qualquer diferenciação entre o direito internacional e a ordem jurídica interna.74 Deste modo, em que pese não haver consenso doutrinário e jurisprudencial, a teoria dualista parece se adequar mais ao modelo imposto pela ordem jurídica brasileira, em especial se levar em consideração, por analogia expansiva, as disposições constitucionais inseridas pela 71 LUPI. André Lipp Pinto Basto. O Brasil é dualista? Anotações sobre a vigência de normas internacionais no ordenamento brasileiro. a. 46 n. 184. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 2009, p. 34-35. Disponível em: . Acesso em: 08 fev. 2023. 72 MATOS, Lenisa Prado de. A recepção dos tratados internacionais no ordenamento brasileiro e o art. 98 do Código Tributário Nacional. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. v. 21. n. 12/1. 2010, p. 62-63. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2021. 73 Art. 1º (...) §1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. 74 ROCHA. Sérgio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Bitributação da Renda. Editora Quartier Latin. São Paulo: 2013, p. 51. 32 Emenda Constitucional n° 45/2004 que versam sobre os tratados ou acordos internacionais de Direitos Humanos ou mesmo o posicionamento encampado pelo Supremo Tribunal Federal acerca da necessidade de formalidade para incorporação dessas normas (e aqui, em sentido lato senso, sem qualquer discriminação acerca da natureza do tratado) junto ao ordenamento jurídico interno. Tal fato se dá pela implícita diferenciação entre a natureza mandamental de tais normas em relação aos sujeitos, fundamentação e própria finalidade, o que exige a submissão ao processo legislativo próprio para sua incorporação junto ao ordenamento jurídico pátrio. 1.2. A DINÂMICA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS TRIBUTÁRIOS FACE A LEGISLAÇÃO INTERNA BRASILEIRA Como já mencionado no tópico anterior, a Constituição Federal da República deixou de disciplinar acerca da valoração dos tratados internacionais que versem sobre matéria tributária. A ausência de previsão legal quanto à hierarquia expressa dos acordos que versem sobre esta matéria torna-se palco para sérios debates doutrinários e jurisprudenciais acerca das hipóteses de solução de antinomias em determinados casos práticos. Seguindo a linha da corrente positivista criada por Hans Kelsen, seria possível identificar três possíveis critérios constitucionais para elidir determinadas controversas legislativas, quais sejam: a) o direito interno será sempre aplicado em detrimento de qualquer norma internacional; b) eventuais conflitos entre normas serão dirimidos por meio do princípio lex posterior derogat prior, e; c) o direito internacional sempre será superior às leis internas, cabendo, inclusive, aos tribunais declará-las nulas em decorrência de eventuais violações.75 Independente do critério adotado, seja ele um dos elencados pela corrente positivista ou mesmo por qualquer outra corrente ou doutrinador, conceder a devida valoração aos acordos de natureza internacional mostra-se extremamente necessário para que os operadores de direito saibam eleger a norma correta a ser aplicada em cada caso concreto. E é por tal razão que a discussão acerca da temática apresenta diversas discussões e posicionamentos, tantos quanto às próprias discussões acerca do monismo e dualismo, que servem indicar o caminho a ser seguido. Neste sentido, especificamente quanto aos tratados de direito internacional que versam sobre matéria tributária, em que pese não haver disposição constitucional acerca da valoração 75 MAGALHÃES, Breno Baía. O sincretismo teórico na apropriação das teorias monista e dualista e sua questionável utilidade como critério para a classificação do modelo brasileiro de incorporação de normas internacionais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 12, n. 2, 2015, p. 77-96, doi: 10.5102/rdi.v12i2.3604. Disponível em: < https://biblioteca.corteidh.or.cr/tablas/r36599.pdf>. Acesso em: 09 fev. 2023. 33 dessas normas, a própria legislação infraconstitucional acaba suprindo essa lacuna legislativa e serve como norteadora para as discussões travadas neste sentido. O Código Tributário Nacional76 preceitua sobre os tratados tributários em seu art. 9877, de modo que a constitucionalidade, o alcance e o significado deste é palco para várias discussões, pois nele os tratados são considerados hierarquicamente superiores às leis ordinárias. O CTN foi recepcionado como lei complementar pelo art. 146 da Constituição Federal78, devido ao fato de abordar sobre normas gerais em matéria tributária. Trata-se de uma legislação infraconstitucional dispondo, em seu art. 98, sobre hierarquia de normas, o que gera diversas controvérsias. O autor Luciano Amaro79 sustenta a inconstitucionalidade do dispositivo acima, uma vez que não há menção no art. 146 da CF sobre a hierarquia normativa ou a limitação ao legislativo, ao dispor sobre legislação complementar, defendendo que somente a Constituição poderia tratar de tais assuntos. Já Roque Antônio Carrazza80 mudou seu entendimento sobre o assunto; o autor que inicialmente defendia a inconstitucionalidade do art. 98 do CTN hoje em dia sustenta sua constitucionalidade, baseando-se no argumento de que o tratado é fonte primária de direito tributário, no art. 4º, IX81 e parágrafo único82, e art. 5º, § 2º83, da CF. Analisando o artigo 98, podemos auferir que um dos objetivos do CTN foi o de defender as normas oriundas de tratados internacionais, ainda que incompatíveis com as normas tributárias internas. Neste diapasão, um dos autores que participou na elaboração deste código, Gilberto U. Canto84, dispôs que o art. 98 não visou introduzir novidades na legislação brasileira, mas sim concretizar a jurisprudência que sobressaía na época, que trazia o entendimento da primazia dos tratados internacionais. 76 ______. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1996. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: . Acesso em: 05 dez. 2021. 77 Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha. 78 Art. 146: Cabe à lei complementar: I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária (...) 79 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 208. 80 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 233. 81 Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (...) 82 Art. 4º, Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. 83 Art. 5º, § 2º, CF: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 84 ULHÔA CANTO, Gilberto de. Legislação tributária, sua vigência, sua eficácia, sua aplicação, interpretação e integração. Revista Forense, Rio de Janeiro, vol. 267, jul./ago./set. 1979, p. 27. 34 O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, mudou tal entendimento em 1977 ao decidir sobre o Recurso Extraordinário n° 80.004/SE85, retirando o domínio do direito internacional perante o direito interno e equiparando o tratado à lei ordinária, além de defender a necessidade de concordância das normas internacionais com a Constituição86. Conclui-se que a Constituição Federal sempre predominará face aos tratados internacionais tributários pois lex superior derogat legi inferiori, mesmo que estes tratem de normas especiais87. Com o precedente proferido no RE 80.004/SE, o Supremo Tribunal Federal passou a considerar que os tratados incorporados ao ordenamento jurídico interno possuem o mesmo status de lei federal, com exceção aos tratados que versem sobre Direitos Humanos, os quais possuem expressa equivalência às emendas constitucionais, em decorrência da promulgação da Emenda Constitucional n° 45/2004. Na decisão proferida foram utilizadas as seguintes justificativas: a) o Congresso Nacional poderá realizar atividade legislativa contrária às disposições presentes no tratado internalizado; b) o tratado será aplicado sem conversão legislativa, sendo exigida apenas ordem de execução; c) não se mostra problemática eventual conflitos em âmbito judicial, tendo em vista que a internalização dos tratados incorpora-o ao ordenamento jurídico interno, de modo que a vinculação judicial trata-se somente de produto do legislativo; d) as disposições do art. 98 do Código Tributário Nacional abarcam somente os tratados aqueles tratados que podem eventualmente criar direitos subjetivos, de inviável revogação legislativa interna, e; e) apenas e tão somente a Constituição Federal da República poderia discriminar a hierarquia entre os tratados, formas de dirimir conflitos e sua consequente revogação. Tal entendimento foi tomada sob a égide da Constituição de 1967 e, com o surgimento da Constituição Federal de 1988 outorgou-se ao Supremo Tribunal Federal, por meio de 85 Convenção de Genebra, Lei Uniforme Sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias - Aval Aposto a Nota Promissória Não Registrada no Prazo Legal - Impossibilidade de ser o Avalista Acionado, Mesmo Pelas Vias Ordinárias. Validade do Decreto-Lei Nº 427, de 22.01.1969. Embora a Convenção de Genebra que Previu uma Lei Uniforme Sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias Tenha Aplicabilidade no Direito Interno Brasileiro, Não se Sobrepõe Ela às Leis do País, Disso Decorrendo a Constitucionalidade e Consequente Validade do Dec- Lei Nº 427/69, Que Institui o Registro Obrigatório da Nota Promissória em Repartição Fazendária, Sob Pena de Nulidade do Título. Sendo o Aval um Instituto do Direito Cambiário, Inexistente Será Ele se Reconhecida a Nulidade do Título Cambial a que Foi Aposto. Recurso Extraordinário Conhecido e Provido. (STF - RE: 80004 SE, Relator: Min. Xavier de Albuquerque, Data de Julgamento: 01/06/1977, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 29-12-1977). 86 ALVES, Jaime Leônidas Miranda. A hierarquia dos Tratados Internacionais em matéria tributária na ordem constitucional. Revista Tributária e de Finanças Públicas. v. 130. Editora Revista Dos Tribunais Ltda., 2016, p. 640. Disponível em: < http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/ bibli_boletim/bibli_bol_2006 >. Acesso em: 09 out. 2021. 87 SANTHIAS, Tânia Maria Françosi. Implicações dos tratados internacionais tributários no contrato de federalização. Florianópolis: Insular, 2005, p. 106. 35 Recurso Extraordinário, a função de julgar causas em que a decisão declare “a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”. A alteração constitucional trouxe ao debate, depois de quase 20 (vinte) anos, uma alteração significativa no entendimento jurisprudencial até então consolidado. Necessariamente ao julgar o HC 72.131/RJ88, o Supremo Tribunal Federal voltou a se debruçar sobre a temática e apresentou novos argumentos sobre o conflito de normas, ao analisar, pela primeira vez, a Convenção de São José da Costa Rica, por meio de seu art. 7º, inciso VII. No voto os Ministros debateram sobre a possibilidade de prisão civil dos depositários infiéis por dívida e, ao longo da decisão, o até então Ministro Moreira Alves ratificou o entendimento quanto à hierarquia dos tratados internacionais. Vejamos: Com efeito, é pacífico na jurisprudência desta Corte que os tratados internacionais ingressam em nosso ordenamento jurídico tão somente com força de lei ordinária (o que ficou ainda mais evidente em face de o artigo 105, III, da Constituição que capitula, como caso de recurso especial a ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça como ocorre com relação à lei infraconstitucional, a negativa de vigência de tratado ou a contrariedade a ele), não se lhes aplicando, quando tendo eles integrado nessa ordem jurídica posteriormente à Constituição de 1988, o disposto no art. 5º, §2º, pela singela razão de que não se admite emenda constitucional realizada por meio de ratificação de tratado. Ocorre que, naquela ocasião, além de reafirmar o entendimento jurisprudencial acerca da posição hierárquica dos tratados que ingressam no ordenamento jurídico interno, ao declararem que a Convenção de São José de Costa Rica não revogou o Decreto-Lei 911/196989, que se trata de lei especial, o julgamento do HC 72.131/RJ trouxe ao debate uma particularidade extra para dirimir casos de conflitos, qual seja, o princípio da especialidade “lex specialis derrogar legi generali”. O posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal praticamente se mantém até os dias atuais, com exceção tão somente aos tratados que versem sobre Direitos Humanos, os quais passaram a ter força de emenda constitucional por meio da disposição decorrente da Emenda Constitucional n° 45/2004, desde que observado obviamente o rito procedimental 88 ______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 72.131-1/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 23 de nov. de 1995. Disponível em < https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=73573>. Acesso em 11 de nov. de 2022. 89 ______. Decreto-lei nº 911, de 1 de outubro de 1969. Altera a redação do art. 66, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, estabelece normas de processo sôbre alienação fiduciária e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/del0911.htm>. Acesso em: 19 fev. 2023. 36 qualificado para sua consequente aprovação perante ao Congresso Nacional. Como exemplo, podemos citar algumas decisões, tais sejam: HC 87.585/TO90 e RE 349.703/RS91. Além disso, analisando os posicionamentos atuais, vemos que resta inviável a possibilidade de um tratado ou convenção internacional revogar a legislação tributária interna, existindo uma irregularidade formal no texto do art. 98 do CTN. Sobre o ato de revogar o art. 2º, § 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro92 dispõe que este pode ser expresso, quando a nova norma expressamente determina sobre isso em seu texto, ou tácito, quando a nova norma apenas aborda sobre a mesma matéria já tratada. Ainda, o §2º determina que “a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”, se aplicando com frequência aos tratados internacionais tributários, uma vez que estes usualmente tratam de normas especiais relativas a leis brasileiras já em vigor. Neste diapasão alguns autores, como Hugo de Brito Machado, sustentam que não há revogação de lei interna por incompatibilidade com tratado internacional tributário, e sim 90 DEPOSITÁRIO INFIEL - PRISÃO. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel. (STF - HC: 87585 TO, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 03/12/2008, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-118 DIVULG 25-06-2009 PUBLIC 26-06-2009 EMENT VOL-02366-02 PP-00237) 91 PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei nº 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002). ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI Nº 911/69. EQUIPAÇÃO DO DEVEDOR- FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR-FIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei nº 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão "depositário infiel" insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma,