UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara – SP Aline Marcondes Miglioli Os impactos do programa habitacional “Minha Casa, Minha Vida”: uma análise dos casos de São Paulo e Recife. ARARAQUARA – SP 2016 ALINE MARCONDES MIGLIOLI Os impactos do programa habitacional “Minha Casa, Minha Vida”: uma análise dos casos de São Paulo e Recife. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Economia Orientador: Prof. Dr. Adilson Marques Gennari ALINE MARCONDES MIGLIOLI Os impactos do programa Habitacional “Minha Casa, Minha Vida”: uma análise dos casos de São Paulo e Recife. Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação, Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Economia Orientador: Prof. Dr. Adilson Marques Gennari BANCA EXAMINADORA Orientador Adilson Gennari Marques Banca: Prof. Dr. Humberto Miranda do Nascimento Banca: Prof. Dr. Sebastião Guedes UNESP ARARAQUARA Agradecimentos Ao meu orientador Adilson Gennari, agradeço por toda ajuda, empenho e paciência nestes dois últimos anos de trabalho. Além das orientações teóricas, sou grata por ter me guiado pelo único referencial teórico no qual seria possível abordar os problemas a que me proponho. Estendo o agradecimento aos colegas do GPHEC que acompanharam a realização desta pesquisa. Agradeço ao Prof. Humberto e ao pessoal do CEDE (UNICAMP) pela ajuda na referência bibliográfica e na obtenção dos dados trabalhados ao longo do trabalho. Aos amigos que contribuíram de alguma forma para a realização deste trabalho agradeço ao André Doca pela ajuda com os dados, bibliografias e afins, ao camarada Fábio Castro pelo estímulo intelectual e parceria, à Fran e ao Aldo pela recepção tão calorosa em Recife. Ao Edemilson da Metro Modular agradeço pela entrevista concedida. Ao longo deste trabalho tive muito tempo para repensar o papel da casa: o que ela representa para o urbano, o que ela representa para a economia etc. Durante esta jornada enquanto estive sozinha no frio do Chile, enquanto estive perdida nos conjuntos habitacionais no Recife ou enquanto vaguei de biblioteca em biblioteca buscando um canto para escrever, sempre me senti em casa mesmo estando longe dela. É por isso que concluído este trabalho e com toda a vida que transcorreu ao longo dele (separações, perdas, conquistas, mudanças) tive uma certeza: casa é onde o seu coração está. Por isso agradeço a todos os envolvidos por serem minha casa, meu porto seguro, meus. Aos meus pais, Jorge Lobo Miglioli e Marli Marcondes por todo apoio, suporte e envolvimento ao longo desta jornada. De vocês herdei a curiosidade pelo mundo e sem o suporte, incentivo e carinho de vocês, eu nunca o teria explorado: obrigada. Ao Gonçalo, pela sutil apresentação á problemática que orientou este trabalho: o Nordeste. Aos meus irmãos, meio irmãos, primos e tios que se envolveram e torceram por mim em todos os momentos: obrigada. Em memória da minha vó, que deu outro significado as minhas idas para Araraquara. Obrigada pelo amor de todos vocês. Aos meus amigos agradeço a minha amiga/irmã Luisa Battaglini por uma vida de companheirismo e quem sempre se disponibilizou a me ajudar. Ao Rafael Felipe e Fernando Esposito pela ajuda na pesquisa de campo e sem os quais esta árdua tarefa não teria sido tão maravilhosa. Ao Felipe Dalcin por trazer a amenidade tão necessária para a conclusão deste trabalho. Ao Guilherme Esmael pela apresentação á empresa Modular. Ao Felipe Perez pela companhia nos momentos de agonia. Aos companheiros da CEPAL, especialmente ao Jaime e Marta, companheiros intelectuais que guardarei para a vida toda. Um obrigado especial a minha fonoaudióloga Flávia Puccini que quase virou expert em políticas habitacionais. Ao Pietro, pelo estímulo tão forte quanto a onda que leva o barco até a areia. A todos meus amigos e amigas o agradeço muito mais que pela presença de vocês durante este processo, agradeço por vocês terem aceitado minha ausência, estando presente nos momentos que mais precisei. Por fim, agradeço a todos aqueles que perderam “dois minutinhos” (eventualmente, dez) para responderem ao questionário de campo, a todos que abriram a porta de suas casas para uma desconhecida com uma prancheta e muitas curiosidades e aos inúmeros porteiros, que foram tão gentis comigo. A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. (Manoel de Barros) A vós, borboletas. Resumo A partir de um referencial teórico marxista este trabalho analisa o programa habitacional Minha Casa Minha Vida dentro de seu contexto histórico observando as diferenças de aplicação em duas regiões com realidades socioeconômicas distintas: São Paulo e Recife. Através da observação sobre as características da produção habitacional em cada cidade, o tipo de empresa atuante e os impactos no espaço urbano, conclui-se que o programa se comporta diferentemente entre as duas regiões. Enquanto em São Paulo a produção para os segmentos mais altos de renda esteve associada a uma estratégia de incorporação do capital internacional no portfólio das maiores empresas, em Recife a produção esteve direcionada à valorização das propriedades rurais recém-incorporadas à malha urbana. Estes resultados refletem os diferentes interesses do capital em cada região do país e demonstram que, apesar de defenderem grupos diferentes, seus interesses estes estarão sempre sobrepostos ao interesse social proposto pelo programa e como consequência as habitações para a população mais pobre são deixadas em segundo plano. Essa conclusão está em consonância com o que se pode esperar de um programa com referencial neoclássico baseado na liberalização do mercado. Palavras-chave: política habitacional, Minha Casa, Minha Vida, desigualdade, construção civil, São Paulo, Recife. Abstract. Inspired by a marxist theoretical reference, this work aims to analyze the Brazilian housing program “Minha Casa, Minha Vida” in its historical context, stressing it differences in two regions of Brasil, which one with its own socioeconomics particularities: São Paulo and Recife. Supported by the observation of the housing production within the program, the type of company involved and its impacts on the urban transformation in each city, we intend to reveal how the program works on those realities. While in São Paulo the production seems to predominate on the highest extracts of income, strategy associated with the objective of incorporation of those companies on the worldwide capital markets, in Recife the production, seems to be oriented to increase the value of the land recent incorporated on the urban limit. Those results show the differences of capital interest in each region of the country and despite its dissemblance, they both seems to overlap the need for popular housing to valorize the gains of capital. This conclusion corroborates with similar results obtained by the mainstream paradigm, on which the base of the program relies on. Key-words: housing policy, Minha Casa, Minha Vida, inequality, construction sector, São Paulo, Recife. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1- População por faixa de renda (Censo de 2000) e abrangência do mercado residencial privado e déficit de moradias nas faixas de 0 a 5 e 0 a 3 salários mínimos. .............................. 38 Gráfico 2 - Produção do Minha Casa Minha Vida em São Paulo por ano ............................... 56 Gráfico 3 - Produção de unidades habitacionais em São Paulo por construtora ...................... 57 Gráfico 4 - Produção do PMCV em São Paulo por construtora - Faixa 1 ................................ 57 Gráfico 5 - Produção do PMCMV em São Paulo por construtora - Faixa 2 ............................ 58 Gráfico 6 - Produção do PMCMV em São Paulo por construtora - Faixa 3 ........................... 58 Gráfico 7 - Total da produção do PMCMV em São Paulo por Grupo Empresarial ................ 59 Gráfico 8 - Produção do PMCMV em São Paulo por Grupo Empresarial - Faixa 1 ................ 59 Gráfico 9 - Produção do PMCMV em São Paulo por Grupo Empresarial - Faixa 2 ............... 59 Gráfico 10 - Produção do PMCMV em São Paulo por Grupo Empresarial - Faixa 3 .............. 60 Gráfico 11 - Número de unidades habitacionais por ano em Recife e na RMR ........................ 87 Gráfico 12 - Produção de unidades habitacionais na RMR - Faixa 1 ........................................ 87 Gráfico 13 - Produção de unidades habitacionais na RMR - Faixa 2 ........................................ 88 Gráfico 14 - Produção de unidades habitacionais na RMR - Faixa 3 ........................................ 89 Gráfico 15 - Produção total de unidades habitacionais na RMR ............................................... 91 Gráfico 16 - Unidades habitacionais produzidas por faixa de renda nos municípios da RMR 104 Gráfico 17 - Localização dos empreendimentos na RMR - Faixa 1 ........................................ 104 Gráfico 18 - Localização dos empreendimentos na RMR - Faixa 2 ........................................ 105 Gráfico 19 - Localização dos empreendimentos na RMR - Faixa 3 ........................................ 106 Gráfico 20- Índice FipeZap para São Paulo ........................................................................... 116 Gráfico 21 - índice FipeZap para Recife ................................................................................. 117 LISTA DE MAPAS Mapa 1 – Localização dos empreendimentos verticais em São Paulo lançados pelas principais construtoras entre janeiro de 1992 e dezembro de 2006............................................................. 53 Mapa 2 - Participação regional da empresa B atuante no PMCMV em São Paulo (2014). ...... 62 Mapa 3 - Localização dos empreendimentos visitados do PMCMV em São Paulo ................. 66 Mapa 4 - Localização dos empreendimentos do PMCMV por faixa de renda. ........................ 70 Mapa 5 – Mapa da Vulnerabilidade Social – São Paulo, 2004.................................................. 73 Mapa 6 – Qualidade da infraestrutura urbana para a RMSP – 2010 ........................................ 75 Mapa 7 – Qualidade da mobilidade urbana para a RMSP – 2010 ............................................. 76 Mapa 8 – Condições habitacionais urbanas para a RMSP – 2010............................................. 76 Mapa 9 – Índice de Bem-Estar Urbano para a RMSP – 2010 ................................................... 77 Mapa 10 – Região Metropolitana de Recife ............................................................................. 85 Mapa 11 - Localização dos empreendimentos visitados do PMCMV na RMR ....................... 92 Mapa 12– A distribuição dos empreendimentos do PMCMV na cidade de Recife. ............... 101 Mapa 13 – Localização dos empreendimentos do PMCMV na RMR .................................... 103 Mapa 14 - Tipologias Sócio – Ocupacionais na Região Metropolitana de Recife – 2010. ..... 107 Mapa 15 - Índice de Bem-Estar Urbano (IBEU- Local) da RMR, 2010. ................................ 108 Mapa 16 - Índice de Mobilidade Urbana (IBEU- Local) da RMR, 2010. ............................... 109 Mapa 17 - Índice Condições Habitacionais Urbanas (IBEU- Local) da RMR, 2010 .............. 110 Mapa 18 - Índice de Infraestrutura Urbana (IBEU- Local) da RMR, 2010. ............................ 111 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Índice de Bem-Estar Urbano (IBEU) ....................................................................... 6 Quadro 2 - Relação entre os principais atores do processo de produção de moradias .............. 15 Quadro 3 - Estrutura de funcionamento do Banco Nacional de Habitação para o segmento popular ........................................................................................................................................ 24 Quadro 4 - Política Habitacional: responsabilidade de quem? .................................................. 29 Quadro 5 - Como se calcula o déficit habitacional? .................................................................. 37 Quadro 6 - Quadro síntese dos circuitos de financiamento do PMCMV .................................. 40 Quadro 7 - O Programa Minha Casa Minha Vida: características do financiamento por faixa de renda. .......................................................................................................................................... 41 Quadro 8 - Alterações no PMCMV 2 ....................................................................................... 42 Quadro 9 - Agentes que compõem o sistema de produção das torres de escritório de São Paulo .................................................................................................................................................... 52 Quadro 10 - Dados compilados da pesquisa de campo realizada em 7 conjuntos habitacionais do PMCMV entre 16/01 - 24/01 (Amostra: 31 entrevistados) ........................................................ 66 Quadro 11 - Número de empreendimentos por construtora e município - RMR ..................... 91 LISTA DE TABELAS Tabela 1- Déficit habitacional por faixa de renda - Brasil .......................................................... 33 Tabela 2 – Distância e tempo de locomoção dos empreendimentos MCMV ao centro da cidade por modal de transporte. ............................................................................................................. 45 Tabela 3 - Distribuição da produção do MCMV por faixa de renda familiar ........................... 55 Tabela 4 - Status dos projetos de Conjuntos Habitacionais da Secretaria de Habitação do Estado de São Paulo ............................................................................................................................... 55 Tabela 5 - Porcentagem de participação no mercado das cinco maiores empresas atuantes do PMCMV em São Paulo .............................................................................................................. 60 Tabela 6 - Banco de terreno das duas principais empresas atuantes no PMCMV em São Paulo .................................................................................................................................................... 62 Tabela 7 - Concentração das unidades habitacionais por faixa de renda e zona geográfica - São Paulo ........................................................................................................................................... 71 Tabela 8 - Concentração do valor do empreendimento por faixa de renda e zona geográfica - São Paulo ........................................................................................................................................... 71 Tabela 9- Participação das faixas por região - São Paulo ........................................................... 72 Tabela 10 - Distribuição da produção do MCMV por faixa de renda familiar na Região Metropolitana de Recife ............................................................................................................. 86 Tabela 11 – Distribuição das unidades habitacionais contratadas na RMR direcionadas para a Faixa 1 até 2013 .......................................................................................................................... 88 Tabela 12 - Distribuição das unidades habitacionais .................................................................. 90 Tabela 13- Média de unidades habitacionais por conjunto nas cidades da RMR por faixa de renda .................................................................................................................................................... 94 Tabela 14- Média de unidades habitacionais por conjunto nas cidades da RMR por faixa de renda - dados ajustados ......................................................................................................................... 94 Tabela 15- Unidades Habitacionais por região em Recife ...................................................... 102 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Distribuição dos empreendimentos PMCMV por faixa de renda na Região Metropolitana do Rio de Janeiro ................................................................................................ 44 Figura 2 - A segregação em Recife: oposição entre os condomínios de luxo ao fundo e as moradias precárias localizadas nos baixios alagados (Favela Brasília Teimosa e o Bairro de Boa Viagem) ...................................................................................................................................... 82 Figura 3 - A verticalização na orla de Recife ............................................................................. 83 Figura 4 – Etapas da produção pré-moldada com módulos de plástico .................................... 138 LISTA DE ABREVIATURAS BNH Banco Nacional de Habitação CBIC Camera Brasileira da Industria e Construção Civil CDH Companhia de Desenvolvimento Habitacional CECAP Caixa Estadual de Casas para o Povo CEDE Centro de Estudos do Desenvolvimento CEF Caixa Economica Federal CNPJ Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica COHAB Companhia de Habitação Popular CRI Certificado de Recebíveis Imobiliários EUA Estados Unidos da América FAR Fundo de Arrendamento Residencial FAU Faculdade de Arquitetura e Urbanismo FCP Fundação Casa Popular FGTS Fundo Garantidor por Tempo de Serviço FGV Fundação Getúlio Vagas FMI Fundo Monetário Internacional HIS Habitação de Interesse Social IAP Instituto de Aposentadoria e Pensão IBEU ìndice de Bem-Estar Urbano IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IE Instituto de Economia IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano MST Movimento dos Sem Terra OGU Orçamento Geral da União ONG Organização Não Governamental PAC Programa de Aceleração do Crescimento PAEG Programa de Ação Economica do Governo PDDES Plano decenal de Desenvolvimento Economico e Social PIB Produto Interno Bruto PlanHab Plano Nacional de Habitação PlanSab PlanMob Plano Nacional de Saneamento Plano Nacional de Mobilidade PMCMV Programa Minha Casa Minha Vida PND Plano Nacional de Desenvolvimento PNDR Política Nacional de Desenvolvimento Regional PNDU Política Nacional de Desenvolvimento Urbano PNH Política Nacional de Habitação PNH Plano Nacional de Habitação PREZEIS Plano de Regulamentação das Zonas Especiais de Interesse Social PROFILURB Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados RMR Região Metropolitana de Recife RMSP Região Metropolitana de São Paulo SBPE Sociedade Brasileira de Poupança e Empréstimo SCI Sistema de Crédito Imobiliário SFH Sistema de Financiamento Habitacional SFI Sistema Financiero Imobiliário SPE Sociedade de Propósito Específico SUDAM Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia SUDENE Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste SUPURB Secretaria de Política Urbana UNICAMP Universidade Estadual de Campinas USP Univesidade de São Paulo ZEIS Zonas Especiais de Interesse Social SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................................. 1 Capítulo 1 – O programa Minha Casa, Minha Vida no contexto das políticas urbana ....... 9 1.1 Referencial teórico ..........................................................................................................................10 1.2 Históricos das políticas urbanas e habitacionais.............................................................................17 1.3 O Programa Habitacional Minha Casa, Minha Vida. ...................................................................... 36 1.3.1 O cenário urbano e econômico do lançamento do PMCMV ...............................................36 1.3.2 O PMCMV ............................................................................................................................39 Capítulo 2 - O Programa MCMV em São Paulo .................................................................. 48 2.1 O Mercado ......................................................................................................................................54 2.2 A mercadoria ...................................................................................................................................64 2.3 Cidade .............................................................................................................................................69 Capítulo 3 - O Programa MCMV em Recife ........................................................................ 73 3.1 O Mercado ......................................................................................................................................85 3.2 A mercadoria ...................................................................................................................................92 3.3 Cidade ...........................................................................................................................................100 Considerações finais ............................................................................................................. 114 Bibliografia ............................................................................................................................ 127 Anexo 1 – Questionário aplicado aos moradores do PMCMV ........................................ 131 Anexo 2 - Conjuntos habitacionais visitados em São Paulo e Recife ............................... 133 Anexo 3 – Sobre as inovações construtivas no PMCMV ................................................... 138 Apêndice – Tabelamento da pesquisa de campo: questões subjetivas ............................ 141 Acesse as imagens e mapas em melhor definição com o código a cima ou entre em http://alinemmiglioli.wix.com/pmcmv 1 Introdução A proposta de avaliar o desempenho de uma política habitacional brasileira significa em última instância inserir-se no debate sobre a condição de urbanização dos países periféricos. Julgamos que através da teoria dominante no pensamento econômico seria impossível captar as particularidades do processo urbano – e consequentemente da política habitacional - nestes países, pois os pressupostos que o constitui foram elaborados com base na urbanização ocorrida nos países centrais. Para construirmos uma análise crítica, consideramos importante reunir elementos de ordem extra econômica ou categorias anteriores ao próprio capitalismo sobrepostas a estruturas mais modernas, que estão excluídos do arcabouço dominante e neste aspecto, este trabalho se alinha àqueles que já vinham discutindo a urbanização na América Latina partindo do pressuposto que este processo, devido a condição peculiar de reprodução da força de trabalho assim como da forma como algumas relações se reproduzem, este processo aconteceu de maneira distinta do que nos países centrais. Julgamos que a teoria da urbanização no discurso marxista nos oferece um referencial melhor para avaliação dos processos que originam o tipo de ocupação urbana no Brasil, pois, associam-no às características de reprodução do capitalismo periférico. Por isso faremos uma breve retrospectiva de como a discussão sobre o urbanismo periférico chegou até a vertente sobre a qual nos apoiamos neste trabalho, nosso intuito não é esmiuçar o desenvolvimento teórico de cada autor que compõe este debate, é apenas levantar alguns elementos que consideramos essenciais para justificar nossa escolha teórica. Em primeiro lugar é importante ressalta que o próprio Karl Marx não se debruçou sobre a problemática do urbano, porém com sua teoria da renda da terra deixou pistas sob as quais outros intelectuais a desenvolveram. A discussão ficou por muito tempo restrita à condição dos países centrais e foi trazida para a América Latina por Manuel Castells (1983) que a inseriu no debate como uma extensão do problema da reprodução social da força de trabalho. Ao comparar o tipo de urbanização nas nossas cidades com aquela dos países centrais Castells percebeu que naqueles a urbanização acelerada e concentrada não corresponde a uma base produtiva equivalente, o que resulta na sua incapacidade de absorver os trabalhadores, gerando um descompasso entre a urbanização e a proletarização. Essa “massa” não-proletarizada é enxergada como uma nova categoria, os marginalizados, 2 capazes de gerar uma própria cultura e se reproduzirem em condições distintas do setor formal. É sobre a discussão do marginal que a problemática do urbano se desenvolverá na tradição marxista. No Brasil a crítica à Castells desemboca em três vertentes analíticas principais segundo Arantes (2009): Paul Singer (1973) ao avaliar as preposições de Castells critica a oposição entre o marginal e o moderno, pois para ele a expansão do setor monopolista dependeria em última instância do excedente gerado no próprio setor arcaico, e portanto a dualidade se expressaria então sobre a forma de complementariedade. Francisco de Oliveira (1982) também fornece sua crítica na mesma perspectiva, para o autor a industrialização no Brasil foi feita a partir da garantia de existência de uma mão-de-obra barata, pautada na pauperização da condição de vida dos trabalhadores, resultado da negação do Estado em assumir parcela do custo de reprodução deste trabalhador em função de repassar o excedente para a classe média concluir seu processo modernizador. Como consequência, a reprodução desta classe trabalhadora é feita através de uma economia de subsistência que resulta no tipo de habitação precária a qual ela deve recorrer. Por fim, uma terceira via crítica foi feita por um conjunto de pesquisadores de São Paulo dentre os quais se sobressai a participação de Lúcio Kowaric. Para o grupo, o crescimento econômico e a pobreza são dois elementos inerentes ao capitalismo subdesenvolvido e não marginais a ele e, portanto, a desigualdade urbana é vista como um reflexo da distribuição desigual entre as diversas classes da riqueza socialmente criada. Neste prisma, a solução ao problema estaria unicamente na organização e reivindicação popular e não poderia, portanto, ser resolvido através do mercado. Lúcio Kowaric (1980) traz à discussão o conceito de espoliação urbana, que é o processo violento pelo qual a população pobre é submetida para que se realizem. os ganhos de capitais A inovação de sua interpretação foi considerar a espoliação urbana como inerente à forma periférica e a partir desta constatação se conclui que as formas de consumo coletivo características de um Estado de Bem-Estar Social e aplicadas por exemplo na Europa, são impossíveis na nossa estrutura de capitalismo. Sob este prisma a presença e principalmente a ausência oportuna do Estado representa papel fundamental para garantir a reprodução dessas condições. Apesar de críticos à Castells, todos os três pensadores acabam compartilhando da percepção de cidade como um reflexo espacial das estruturas sociais e econômicas, ou seja, ela é vista como essencial ao capitalismo apenas no sentido que contém os elementos de consumo necessário para a reprodução do trabalhador. A interpretação da cidade como um 3 objeto ativo para conformação da forma de expansão capitalista será introduzida ao debate pelos pesquisadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAUUSP). Segundo essa vertente a produção da cidade cria as condições da perpetuação das formas de extração de mais-valia características do capitalismo periférico (ARANTES, 2009). A discussão transpassa, portanto, a dualidade entre marginalidade e modernização e atribuí à marginalidade o papel de recriar as condições de reprodução da acumulação na periferia. Destaca-se nesta análise a importância que a extração da renda fundiária exerce sobre o processo de urbanismo, afirmando-se que o crescimento urbano é pautado muito mais pela renda fundiária do que pela possibilidade de lucros com a incorporação imobiliária. Dentre os teóricos que se especializaram nesta chave interpretativa, ressaltamos a contribuição de Gabriel Bolaffi (1976), autor que se debruça sobre a produção habitacional do BNH e através dela comprova como a expansão da mancha urbana está articulada com a perspectiva de extração de renda da terra. Neste aspecto a produção habitacional nas periferias da cidade e com baixa qualidade construtiva não representam uma exceção, ao contrário, seguem um padrão batizado por ele de “padrão periférico de crescimento da metrópole”, cujo objetivo último é o rentismo. Esse processo encontraria seu limite no momento em que as deseconomias sociais resultantes deste padrão começassem a anular os ganhos privados, então o Estado retornaria como planejador, redirecionando o processo para outras áreas. O interessante desta perspectiva é que a habitação deixa de ser um problema relacionado ao setor da construção civil e desloca-se para um problema fundiário, de acesso à terra (BOLAFFI, 1976). Apesar das perspectivas divergentes é neste debate que surge o olhar crítico à cidade marginal, além disso ressalta-se a importância para este trabalho de considerar a produção da cidade como elemento central para garantir a reprodução do capitalismo no Brasil. Por isso, ao longo de nossa análise para além de abordarmos o PMCMV através do consumo da cidade que ele proporciona, procuraremos posicioná-lo como estratégia de construção da própria cidade assumindo que ele opera conforme um modelo que há muito já foi exposto, com o agravante da recente financeirazação do setor, o que liga a produção urbana a uma esfera ainda mais importante: a do capital financeiro. Essa primeira aproximação ao referencial teórico do trabalho não é suficiente para abordar todos os temas sobre os quais precisaremos nos debruçar ao longo da pesquisa, portanto, o primeiro capítulo agregará todas as questões teóricas sobre as quais se apoiará a 4 crítica ao programa. Nele, por exemplo, discutiremos os condicionantes do preço das moradias, os agentes envolvidos neste setor e o processo de realização desta mercadoria especial que é a habitação. Feitas essas considerações, a segunda parte do capítulo cumprirá a função de inserir historicamente este trabalho, para isso, apresento um pequeno histórico das políticas habitacionais no Brasil com o intuito de diferenciar quais elementos do programa atual são de fato novidades e quais são continuidades de antigos processos. No segundo capítulo apresentaremos a aplicação do programa na cidade de São Paulo e no terceiro na de Recife. Cada caso será avaliado em três esferas: o comportamento da oferta, a qualidade da mercadoria – tanto da habitação como do condomínio – e, a inserção da mercadoria na cidade. É importante introduzir aqui qual será a metodologia utilizada para a avaliação de cada caso e ntes de apresenta-la é importante ressaltar que a principal fonte de dados sobre a qual se baseia este trabalho é o banco de dados cedido pelo Ministério das Cidades ao CEDE (IE-UNICAMP) como parte de uma pesquisa promovida pelo próprio Ministério e que foi cordialmente cedida à esta pesquisa com a condicionalidade de que se preservasse as informações referentes às empresas. Por este motivo não identificaremos as empresas envolvidas no PMCMV e nos referiremos a elas de maneira genérica e acreditamos que a supressão dos nomes das companhias não altere a qualidade da análise. A avaliação dos resultados do programa será feita levando em consideração três esferas sobre as quais o PMCMV exerceu influência: a) O mercado: A partir da base de dados disponível foi possível identificar a participação das empresas por faixa de renda e por valor do empreendimento. Tratamos os dados agrupando as empresas participantes do mesmo grupo empresarial, e neste processo o grande problema encontrado foi a identificação dos grupos proprietários das Sociedades de Propósito Específico (SPE). A SPE é um modelo de gestão, autorizado no Brasil em 1995, que consiste em criar uma nova empresa limitada ou uma sociedade anônima - mais conhecida no meio empresarial como joint venture - voltada para a realização de um único projeto, nesse caso um único empreendimento imobiliário. A vantagem de se criar uma SPE é o de reduzir o risco financeiro do empreendimento tanto para o comprador final como para o investidor, principalmente no caso do mercado imobiliário, pois a SPE está desvinculada financeiramente da empresa e com isso, em caso de falência desta, a segunda não vem a ser 5 afetada, ou seja, isola-se a empresa do risco financeiro inerente à obra (CASTRO, 2009). Para encontrarmos as empresas responsáveis pelas diferentes SPE buscamos na base de dados da receita federal, no site das construtoras e em alguns casos mais difíceis através do endereço cadastrado junto ao CNPJ. As outras informações apresentadas para a descrição das empresas foram encontradas no próprio sítio das construtoras ou nos seus balanços patrimoniais, como por exemplo, a abertura ou não no mercado de capitais, os principais acionistas, a existência de banklands etc. b) A mercadoria: Nesta seção vamos avaliar que tipo de moradia é oferecida pelo programa para observar se há diferenças substanciais entre as faixas de renda, a localização na cidade e entre as próprias cidades. A importância em observar a qualidade dessas habitações é que este fator compromete e eficiência do programa a longo prazo, pois se sujeitos a habitações precárias, os moradores em pouco tempo sentirão necessidade de trocar de morada, resultando na ineficiência do PMCMV como combate ao déficit habitacional. Para obtermos as informações necessárias aplicamos um questionário aos beneficiários das duas cidades estudadas. O questionário encontra-se em anexo (ANEXO 1) e foi aplicado para moradores de habitações de todas as faixas de renda em diversas localizações nas cidades. A relação de conjuntos visitados esta sistematizada no anexo 2. No questionário incluímos também perguntas sobre a adequabilidade do programa à renda das famílias com o intuito de nos aproximarmos do perfil socioeconômico dos beneficiários. Ressaltamos que nosso objetivo não é ter uma amostra representativa ao programa em termos estatísticos, mas sim colher impressões e informações sobre o padrão de moradores desses conjuntos. c) A cidade: Para avaliar os resultados territoriais do PMCMV realizamos o mapeamento das unidades habitacionais por faixa do programa, através do endereço dos conjuntos disponibilizados na base de dados. Apenas com essa informação não se pode inferir se o empreendimento está bem localizado ou não em termos de acesso a transportes e serviços e, para contornar essa insuficiência, utilizamo-nos do mapeamento já existente do Índice de 6 Bem-Estar Urbano, produzido pelo Observatório das Metrópoles, para em última instância, avaliar se a distribuição territorial das habitações segue a distribuição espacial da pobreza. Quadro 1 - Índice de Bem-Estar Urbano (IBEU) O IBEU é um indicador elaborado pelo Observatório das Metrópoles para avaliar a dimensão urbana do bem-estar dos cidadãos promovido tanto pelo mercado como pelo Estado. O objetivo do estudo é através do IBEU-Global oferecer comparações entre as Regiões Metropolitanas ou entre os municípios de cada região metropolitana, através do IBEU-Local. Para o cálculo do índice é feita uma média entre cinco dimensões, cada uma com o mesmo peso e que são compostas por diferentes indicadores com pesos equivalentes. As informações são obtidas no Censo Demográfico do IBGE ou nas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicilio, dependendo da disponibilidade dos dados. As dimensões e seus respectivos itens constitutivos estão listados abaixo: 1) Mobilidade urbana: calculado através da distância casa-trabalho como proxy do que seria uma boa condição de deslocamento. A dimensão é calculada através da proporção de pessoas por família que demora até uma hora no trajeto casa- trabalho, pois considera-se adequado tardar até uma hora nesse tipo de deslocamento; 2) Condições ambientais urbanas são mensuradas através da existência dos seguintes itens no entorno do domicílio: - Arborização; - Esgoto à céu aberto; - Lixo acumulado; 3) Condições habitacionais urbanas através da avaliação dos seguintes itens: - Existência de habitações em aglomerados subnormais; - Densidade domiciliar, sendo que é considerado adequado até duas pessoas por dormitório; - Densidade morador por banheiro, sendo que é considerado adequado até quatro moradores por banheiro; - Material das paredes, sendo que é considerado adequado paredes de alvenaria com revestimento ou madeira; 7 - Espécie de domicílio, sendo que é considerado inadequadas as casas de cômodo, tendas ou barracas, habitação dentro de estabelecimentos ou em vagões, trailers etc. 4) Atendimento aos serviços coletivos urbanos, os quais são: - Água; -Esgoto; - Energia; - Lixo 5) Infraestrutura urbana, ou seja, a existência de: - Iluminação pública; - Pavimentação das ruas no entorno; - Calçada; - Meio fio/ Guia - Rampa para cadeirantes; - Identificação do logradouro Os valores de cada uma das dimensões são calculados de forma padronizada, segundo a formula abaixo, e definidos no intervalo de zero a um, sendo que quanto mais próximo de um melhor a sua condição. Dind = valor observado – pior valor Melhor valor – pior valor Fonte: RIBEIRO; RIBEIRO (2013). 8 “Quem constrói a casa não é quem a ergueu mas quem nela mora (Mia Couto, Terra Sonambula)”. 9 Capítulo 1 – O programa Minha Casa, Minha Vida no contexto das políticas urbanas. O objetivo geral deste capítulo é introduzir o cenário no qual foi criado o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) a partir do seu referencial histórico e teórico, pois consideramos que a compreensão de alguns aspectos do programa só pode ser feita à luz da trajetória da evolução das políticas urbanas brasileiras, especialmente no que tange aos antigos programas habitacionais. Nosso principal objetivo é ao final do capítulo distinguir quais foram as continuidades e as rupturas entre as políticas retratadas e o PMCMV. Ao longo da descrição histórica será possível perceber que as políticas urbanas brasileiras são determinadas por dois elementos: em primeiro lugar está a evolução do campo teórico do planejamento urbano, geralmente trazido dos países europeus e o tipo de intervenção implementado no Brasil –assim como em outros países da América Latina- com certa defasagem temporal e adaptado às condições políticas e econômicas do país. Um segundo fator determinante é o próprio cenário econômico, pois veremos que, por exemplo, em momentos de expansão do gasto público se formulou um determinado modelo intervencionista de política urbana para estimular a industrialização. Por outro lado, no momento de instabilidade financeira, marcados pela forte inflação e crise fiscal, a política urbana é desestruturada e o governo passa a atuar somente de maneira pontual na resolução dos problemas urbanos. A discussão sobre o PMCMV assim como sobre o problema habitacional que o permeia pode ser feita sob diversas esferas ( pela política de crédito ou urbana, pela evolução institucional etc.) e diversas chaves interpretativas. A nossa preocupação recai principalmente sobre as relações que ele reproduz e as classes que privilegia, portanto o referencial teórico que julgamos dar conta deste processo é o marxista, o qual será apresentado de forma que se possa delimitar de que se trata o problema habitacional, os principais atores e as principais consequências. Para tratar de todos esses assuntos dividiremos este capítulo em três seções, além desta pequena introdução. Em primeiro lugar faremos uma discussão sucinta sobre a problemática urbana apresentando os marcos teóricos sobre os quais se apoia este trabalho. Feito isso, partiremos para uma retrospectiva histórica das políticas urbanas e habitacionais 10 nos últimos 80 anos e na terceira e última seção apresentaremos o cenário de criação do PMCMV para em seguida descrever o funcionamento do próprio o programa. 1.1 Referencial teórico Ao estudarmos o PMCMV estamos introduzindo a problemática sobre a qual ele foi criado: a existência de um déficit habitacional. Entretanto, o que significa o déficit habitacional? Teoricamente esse indicador representa o número de moradias que se precisa construir para que a demanda por habitações seja atendida, ou seja, pressupõe-se que haja maior demanda do que oferta de moradias. O conceito de déficit habitacional reflete o número de pessoas que não possui moradia ou possui moradia inadequada e esta definição não abrange o problema dos inúmeros imóveis vazios já construídos1 Pela teoria tradicional o problema habitacional reflete um desajuste do mercado de moradias o qual é atribuído à complexidade da produção da moradia: primeiro porque seu tempo de produção e consumo é considerado longo, o que diminui a sua velocidade de reprodução, segundo porque ela é um bem é imóvel, ou seja, deve ser produzida e consumida no mesmo espaço. Essas duas características impõem a necessidade da existência de outros setores complementares para que o mercado possa funcionar automaticamente, como por exemplo o mercado de crédito. A partir dessa abordagem a falha em promover a condição para o bom funcionamento do mercado é o responsável pelo problema da moradia. Ele é portanto um problema de ajuste conjuntural. Entretanto, para nós a existência de uma parcela da população sem moradias envolve mais do que um problema produtivo; fosse a habitação apenas um direito, a responsabilidade e as medidas para provê-la poderiam ser solucionadas apenas com a intervenção estatal, entretanto fosse ela somente uma mercadoria, o setor privado daria conta de atender a demanda existente apenas através do mercado (VILLAÇA, 1986). O grande problema é que ela é tratada como mercadoria enquanto é um direito essencial a sobrevivência do trabalhador. Além da complexidade da produção desta mercadoria especial, a provisão da habitação envolve outras questões caras ao pensamento hegemônico. Em primeiro lugar, é necessário garantir o acesso do trabalhador à essa moradia ao menor custo possível de forma a rebaixar custo de reprodução do trabalhador sem, no entanto, deixar de garantir a extração de mais- 1 A descrição do cálculo do déficit habitacional encontra-se na página 37. 11 valia ao capitalista. A partir desta lógica, a invasão de terrenos públicos e a construção de favelas corroboraria com a intenção dos capitalistas ao reduzir o custo de reprodução do trabalhador. Entretanto, essa solução é contraditória à ambição dos próprios capitalistas envolvidos na produção imobiliária e principalmente contra a instituição da propriedade privada, essencial para a manutenção do sistema capitalista. Para solucionar este empasse é preciso envolver o Estado, que é o responsável por garantir que a parcela excluída do mercado de moradias tenha acesso a ele de forma a não comprometer a mais-valia ele pode intervir de duas formas: ou através de políticas de subsídio, ou seja, transformando o dinheiro dos contribuintes em capital produtivo, ou atuando apenas na regulamentação do mercado habitacional, de maneira a tentar incluir via mercado (ou excluir de vez) aqueles que não conseguem ascender a uma moradia. Veremos na segunda parte deste capítulo que ao longo da história do Brasil, a solução preferível foi a segunda, pois mesmo reconhecendo que o mercado habitacional não consegue resolver o déficit habitacional, a burguesia evitou comprometer os gastos estatais, criando artifícios para regulamentar o mercado. No entanto, se o baixo custo da moradia é fundamental ao capitalismo porque habitação é uma mercadoria com um preço tão elevado? A questão sobre a determinação do preço da moradia resvala sobre os elementos que compõem o preço da mercadoria, o mais importante deles é a localização da moradia na cidade, pois resulta de sua localização o acesso à infraestrutura urbana (saneamento, luz, energia) e principalmente à mobilidade para acessar os serviços, locais de trabalho etc. O que determina a localização da habitação é o resultado de uma teia de interesses sobre a cidade. A discussão do problema habitacional deve, portanto, começar abrangendo o tema das cidades, o que em última instância é fundamental para a compreensão do capitalismo, uma vez que a cidade capitalista e, consequentemente, a divisão do espaço sob o domínio do modo de produção capitalista implicam em uma organização específica do espaço para cada um dos elementos do processo de circulação de capital (LEVEBVRE, 1972). Neste aspecto o conflito de classes se reflete nos conflitos por espaço, pois as diferentes frações do capital e da força de trabalho têm interesses opostos dentro do mesmo território. A importância da cidade capitalista é dupla: por um lado ela representa a projeção da sociedade global sobre o terreno e, por isso, nela contêm-se as contradições do sistema e conflitos de classes como nos mostra a disputa pela terra e os movimentos por habitação. Por outro lado, a cidade é essencial para permitir a industrialização, pois somente a partir da concentração de meios de produção, de um exército industrial de reserva e do excedente 12 garante-se a condição para a reprodução do capital (LEFEBVRE, 1972). Neste aspecto a cidade pode estabilizar um modo de produção particular, assim como ser também o lugar das contradições acumuladas e, portanto, o berço para o surgimento de um novo modo de produção que supere o capitalismo (HARVEY, 1973). Ainda para Harvey (1973) é a concentração do excedente que dita a forma de organização social e econômica e sobre a qual se sobrepõe a organização do urbano. O urbano, portanto, é indispensável para a reprodução do capitalismo, pois é através dele que se promove uma acumulação primitiva permanente, a qual Harvey denomina de “acumulação por espoliação”, e que consiste na incessante reconstrução do meio urbano como estratégia de valorização do capital, envolvendo processos de desapropriação ou expulsão principalmente sobre a população mais pobre. A complexidade do processo que determina a localização das moradias pode ser melhor entendida se passarmos pelo tema da renda da terra. Teremos que fazê-lo de maneira superficial, visto que esta é uma problemática que vem sendo debatida desde os economistas clássicos, como David Ricardo, e persiste até a atualidade como tópico de discussão entre os teóricos da área. A apresentação desse extenso debate requerer um aprofundamento muito maior do que com o qual podemos chegar neste trabalho, por isso sobre a teoria da renda da terra abordaremos somente os fatores que contribuem com este trabalho. A importância da renda da terra para o estudo do urbano é que ela é fruto da relação entre capitalistas e proprietários de terras, sendo essa última categoria uma categoria muito especial, porque foi herdada de fases anteriores do capitalismo. A acumulação primitiva que deu ensejo ao sistema capitalista fez-se a partir dos cercamentos na Europa que garantiram a concentração da renda da terra, desde então a expropriação tem sido uma das formas de garantir a acumulação de capital e é a permanência deste mecanismo através das diferentes fases do capitalismo o que se coloca como questão a ser estudada. A renda da terra foi definida por Marx (1968) como renda absoluta e diferencial. Na sua teoria sobre a renda diferencial, derivada dos avanços feitos por David Ricardo, se entende que esta seja determinada pela diferença entre o preço de produção na terra mais produtiva e na menos produtiva, pois, uma vez que os preços agrícolas são determinados como preços oligopolistas - dados pela produtividade média do setor - a renda da terra é determinada pelos diferenciais de custos das terras agrícolas com pior produtividade. Marx não nega, no entanto, o papel fundamental da renda absoluta para a compreensão do sistema capitalista. Segundo ele, ainda na terra menos fértil é possível identificar a existência de uma renda, a 13 qual seria a absoluta. Ela é condicionada pela diferença entre o preço da mercadoria e seu valor, sendo este determinado pelo trabalho incorporado e aquele pela concorrência, originando um preço médio. A diferença entre o valor e o preço médio se dá na forma de um excedente que além da mais-valia remunera também os proprietários de terra. Sendo assim, o condicionante último da renda absoluta é a propriedade privada da terra que, por disputar o excedente com a mais-valia, é um problema aos interesses da burguesia. Entretanto, com o avanço do capitalismo, a renda da terra não pôde mais ser identificada somente como a produção agrícola e a mesma problemática deve ser analisada a partir da lógica da cidade. Nas cidades encontram-se dois tipos de interesse privado que recaem sobre o espaço urbano - em primeira estância por aqueles que o buscam como o objeto do seu lucro, por exemplo os proprietários de terra -e depois por aqueles que o utilizam como o marco do lucro, ou seja, ambicionam determinado espaço por conta de suas características específicas (como aglomerações populacionais, rede de transportes etc.) que geram externalidades positivas, resultando em maiores taxas de lucro para aqueles que ali se localizem. Por essas razões, podemos dizer que o valor de uso da cidade assume características complexas, uma vez que é composto por elementos como a proximidade com os mercados consumidores, a facilidade de transporte e outros elementos que poderiam gerar essas externalidades, e que não podem ser produzidos pelo homem como as outras mercadorias. Ou seja, através da cidade e seus valores de uso complexos, é possível aumentar a produtividade do capital e diminuir o tempo de rotação do mesmo, no entanto, esses valores de uso não estão distribuídos de forma homogênea pelo espaço e é o acesso diferenciado a essas localizações que permitem o surgimento do lucro extraordinário. De maneira sucinta, portanto: o preço da terra é a transformação socioeconômica do sobre lucro da localização e é a partir deste lucro suplementar que se obtém a renda relativa, ou seja, a renda não tem como fonte a propriedade privada da terra; a propriedade da terra é uma condição para apropriação de parte da mais-valia sobre forma de renda. Além da localização há mais duas características envolvendo o processo produtivo que diferenciam a habitação como mercadoria e que impedem com que se possa produzir habitações a baixo custo. O fato da construção encontrar-se descontínua no tempo e no espaço invalida a produção em larga escala, com isso a probabilidade de inovações se reduz, o que somado com a dispersão dos capitais e com as próprias características do processo de trabalho impedem a produção a custos menores. Podemos demonstrar esses problemas 14 utilizando-nos do esquema de reprodução de Marx empregado para todas as mercadorias (D – M – M’- D’), eles encontram-se em dois momentos: o primeiro – da descontinuidade da produção- traduz-se na transformação do capital inicial em mercadoria, o que Ribeiro (1997) chamou de problema fundiário, e que nada mais é do que o impedimento de expansão do mercado de habitações frente o entrave que representa a propriedade privada. O segundo problema ocorre no momento de realização da mercadoria, uma vez que pelos impedimentos técnicos as habitações apresentam um alto valor relativo quando comparadas com o poder de compra da população. É para solucionar o problema da descontinuidade no tempo e espaço que surge um novo ator central na nossa discussão: o incorporador imobiliário, cuja função prática é de assumir as responsabilidades pela comercialização dessas habitações. É o incorporador que concentra os capitais, inicia e organiza o processo de produção da moradia, tornando a produção viável nos cenários em que o construtor sozinho não conseguiria. Entre suas tarefas encontra-se a de conceber o projeto e estruturação do empreendimento, analisar a situação do mercado, escolher e comprar o terreno, mobilizar capital para efetivar o empreendimento, contratar o engenheiro, o arquiteto, a empresa construtora e a urbanização (se o terreno não for ainda urbanizado), promover e vender as unidades habitacionais, fiscalizar os serviços, entregar as unidades entre outras. De maneira sistemática, podemos dizer que o processo de produção se organiza da seguinte maneira entre os atores que o compõem (RIBEIRO, 1997):  Incorporador: Direção do processo e manutenção do empreendimento  Empresa construtora: Coordenação do processo de trabalho  Força de trabalho: Transformação de fatores produtivos em mercadoria Dentre as funções do incorporador, está também a coleta de rendimentos, a alocação de capital e gestão desse capital, sendo essa a mais importante das suas atribuições, porque permite que as decisões chave da produção não sejam tomadas pelo “capital produtivo” diferentemente do que acontece nos outros ramos de atividades. Para que possa realizar essas funções, o incorporador pode associar-se a um agente financeiro e, portanto, a eficácia de suas ações está relacionada com a profundidade em que está inserido no sistema de financiamento. A relação do incorporador com os outros atores não é unilateral, quando se relaciona com o proprietário fundiário atua como um capitalista comercial interessado nos fatores de 15 comercialização e localização. Ao adquirir o terreno o incorporador passa a ter controle sobre uma condição que permite o surgimento de um sobrelucro de localização: a transformação do uso do solo, ou seja, extrai uma parte da renda da terra não paga ao proprietário. A relação do incorporador com o construtor também é dupla. Enquanto dono do terreno exerce a relação de proprietário fundiário frente a um capitalista industrial, porém a partir do momento que é responsável pela realização da mercadoria no momento seguinte da reprodução, age como um capitalista comercial frente ao capitalista industrial. Nesse tipo de relação se torna possível extrair sobrelucro através da concorrência entre os construtores, sugando deste a sua mais-valia. Essas relações estão expressas sistematicamente no Quadro 2. Quadro 2 - Relação entre os principais atores do processo de produção de moradias Fonte: RIBEIRO, 1997. No esquema de reprodução de Marx essas relações ficariam organizadas da seguinte maneira: o capital fundiário entra no circuito através da concentração de capitais que permite a compra dos terrenos, a construção acontece no momento seguinte e é protagonizada pelas construtoras e trabalhadores do setor. No momento da realização da mercadoria, novamente entra o papel do incorporador na promoção dessas moradias. D ---- M ----- M’---- D’ Incorporador Construtor + trabalhadores Construção Venda Capital financeiro 16 Surgem também outras duas esferas importantes nesse processo: o capital de empréstimo que se rentabiliza pelos juros que obtém ao financiamento da comercialização; e o capital imobiliário que obtém lucros tanto sobre o capital empregado como pela revalorização do imóvel e exercem pressão pelas transformações do espaço urbano. O problema desse sistema de acumulação é que muitas vezes os ganhos com a renda fundiária são maiores do que a mais-valia recebida com a construção, de maneira que o incorporador acaba comprando terras para revende-las depois, agindo frente ao proprietário fundiário como um proprietário fundiário futuro, sem pretensões de utilizar o terreno para construção, se não somente para captação da renda fundiária extraída do entorno do terreno, gerando então o problema da especulação fundiária, o que encarece ainda mais o preço da moradia. Nesse circuito o Estado aparece com a justificativa de que o mercado não consegue auferir lucratividade no setor, ou então que não consegue produzir a baixos custos, o que gera o enorme déficit habitacional. O Estado então adota medidas para promover a acumulação do setor frente ao problema fundiário sem, no entanto, resolvê-lo. A consequência é que se agrava assim o problema da segregação e expropriação ao se institucionalizar a lógica privada no setor enquanto se mantém o problema da contradição entre a propriedade privada e a socialização do capital (SCHMIDT. FARRET 1986). A apresentação desta pequena introdução teórica teve como intuito demonstrar a complexidade que envolve a determinação do preço da moradia. Começamos com a análise mais simples pautada na dificuldade produtiva e fomos introduzindo elementos que trazem outros condicionantes ao preço; eles envolvem tanto o mercado de crédito e financeiro como a predominância de categorias pré-capitalistas no mercado habitacional. A inter-relação entre eles cria uma rede de interesses sobre a cidade, os quais se realizam a depender dos interesses de cada grupo, as características das sociedades etc. No entanto, dentre todos estes fatores, é possível traçar perceber uma semelhança: a de afastar o trabalhador da possibilidade de uma moradia. 17 1.2 Históricos das políticas urbanas e habitacionais Nesta seção pretende-se analisar as políticas urbanas brasileiras mais importantes, começando pelas primeiras iniciativas no Estado Novo até o período correspondente ao último mandato do presidente Lula (2010), quando foi criado o PMCMV, tentando demostrar como ao longo desse período o Estado contornou o problema da contradição entre a produção habitacional e a propriedade fundiária, se eximindo de enfrentar o real problema. No período em que iniciamos nossa análise a problemática sobre a cidade era muito incipiente, pois o processo de urbanização recente e seus problemas ainda não se configuravam na agenda política nacional. A urbanização e a falta de moradias passam a ocupar papel central nos planos de governo a partir do primeiro governo de Getúlio, período em que se inicia o projeto de industrialização do país, o que colocou o trabalhador no centro das políticas públicas, também influenciado pela ameaça socialista no país. A garantia dos direitos trabalhistas trouxe como novidade os fundos de poupança para os trabalhadores, que se reverteram em instrumentos de financiamento da habitação. Apesar desses avanços durante o período chamado populista, a política urbana só vai se consolidar durante o período militar me 1964, quando se criou o Banco Nacional de Habitação e um sistema complexo para tratar do problema da falta de moradias. Ao mesmo tempo, se criou também uma política urbana elaborada para dar conta do crescimento e dinamização das cidades brasileiras no pós industrialização. Entretanto, no final de década de 1980, a recessão econômica e a necessidade de estabilização da inflação colocaram a problemática urbana em segundo plano, extinguindo as instituições existentes, até que na década de 1990, a partir da adoção das políticas fiscais contracionistas, a questão das cidades passa a ser vista através da perspectiva de não intervenção estatal, tema que abordaremos mais à frente. É neste cenário de vazio de políticas que surgem novas iniciativas para repensar o urbano, como por exemplo o Ministério das Cidades e o Planejamento Habitacional que fazem parte do cenário de criação do PMCMV. A apresentação de todas essas fases será feita ao longo desta seção, sem o objetivo de esgotar a temática, no entanto, elencando os fatores relevantes para a compreensão do PMCMV. O momento que antecede a nossa análise é o período chamado de República Velha, que é marcado pela dominância de um estado liberal ( com baixa intervenção na economia) e 18 quando até os serviços mínimos de saneamento, luz e energia eram atribuídos ao mercado e pela debilidade do mercado brasileiro eram executados por companhias estrangeiras; o enfoque das intervenções na época era pautada pelas reformas do tipo arrasa-quarteirão, cujo objetivo era promover uma limpeza e embelezamento das cidades para garantir um ambiente adequado à vida humana. Esse movimento chamado de “higienista” considerava que as condições de circulação do ar e da água, ou seja, a salubridade, eram necessárias para evitar a proliferação de doenças e para garantir a produtividade (e até moral) do trabalhador. No Brasil, o discurso higienista trazido da Europa foi apropriado pelos empresários com a prerrogativa de tirar a população dos centros das cidades e começar ali o processo de modernização e verticalização. Nesse aspecto cortiços, pensões e casas multifamiliares estavam aquém das necessidades mínimas. O surgimento desse tipo de habitação aconteceu no momento de mudança da economia primário exportadora para a capitalista industrial, acompanhada por uma enorme migração do campo para a cidade, principalmente para o Rio de Janeiro que como capital do país agora atraía mão de obra e capital. No entanto, pelo baixo desenvolvimento do setor imobiliário e pela omissão estatal, o incremento da população não foi acompanhado por um incremento na mesma proporção de unidades habitacionais e como consequência os novos habitantes foram obrigados a procurar outros meios de sobreviver nas cidades, dentre essas novas formas de moradia a mais conhecida é a dos cortiços (ABREU; VAZ, 1991). Em 1855 por pressão da classe de médicos higienistas proibiu-se a construção de cortiços cujo projeto não tivesse sido aprovado pela Câmara, pois se pretendia assim eliminar esse tipo de habitação do centro das grandes cidades. Entretanto, a falta de alternativas viáveis de habitação fez com que a moradia informal se proliferasse na clandestinidade como alternativa à falta de habitações formando as primeiras favelas. A origem da favela é datada pelo mandato de Pereira Passos como prefeito do Rio de Janeiro com a ambição de modernizar a capital do país e que para isso inaugurou uma política de higienização e embelezamento da capital. Dentre as medidas adotadas por ele estavam a demolição dos cortiços e habitações precárias e ao mesmo tempo a regulamentação técnica para a construção ou reconstrução, que resultou em custos ainda mais altos para a construção de moradias. A oferta de empregos, resultado das reformas de embelezamento, acabou atraindo para o centro a população mais pobre que até então ocupava o subúrbio pela possibilidade de livre construção; e não encontrando moradias à preços acessíveis, passaram a ocupar os morros ao redor da cidade do Rio de Janeiro, seguindo o exemplo dos soldados recém- 19 chegados de Canudos e cujo problema da moradia ainda não havia sido resolvido pelo exército. Nas outras capitais e cidades brasileiras o processo foi muito parecido guardadas algumas especificidades. Os planos higienistas foram transportados do Rio de Janeiro para a capital estadual de São Paulo e depois para o interior do estado e aos poucos foram sendo absorvidos pelas outras cidades do país. O padrão empregado foi o mesmo da capital: os centros econômicos ou as áreas nobres ficaram reservados para uma certa elite e os terrenos impróprios (morros no Rio de Janeiro, mangues em Recife, encostas em São Paulo) ocupados pela população mais pobre de forma precária. Outra forma de enfrentar a falta de habitações para os trabalhadores recém-chegados às cidades foram as vilas operárias. Construções geralmente de propriedade das próprias indústrias empregadoras. Esse tipo de empreendimento foi muito popular na Europa, porém no Brasil não se desenvolveu muito, tanto pela estreiteza econômica como pelo alto custo de manutenção desse tipo de investimento, os casos mais populares localizam-se em São Paulo. A mudança no perfil de intervenção estatal frente a carência de moradias aconteceu com o governo de Vargas a partir de 1930. A proposta de Vargas para o desenvolvimento industrial pressupunha a existência de uma classe trabalhadora acessível, por isso preocupava-se com a criação de um exército industrial de reserva, o que tornou a cidade fundamental para a reprodução do capitalismo e, portanto, passou a configurar a preocupação das políticas públicas, ainda que de maneira muito secundária (SCHMIDT; FARRET, 1986). Dentre as reformas realizadas pelo presidente encontra-se a criação de políticas para garantir os direitos dos trabalhadores, que incluíram a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs). Outro fator tido como essencial para garantir o projeto de nação foi a promoção da integração nacional: para isso estimulou-se a marcha para o Oeste, com a expansão das fronteiras agrícolas para o Centro-Oeste e Goiás, como também para o Maranhão. A preocupação com as secas no Nordeste também inseriu a questão das desigualdades regionais no contexto das políticas públicas. Para reverter a concentração industrial no Sudeste foram criadas as superintendências SUDAM e SUDENE com o intuito de gerar polos de desenvolvimento na Amazônia e no Nordeste, os quais viriam acompanhados de aglomerações urbanas, e que portanto, justificaram os investimentos feitos em infraestrutura nessa região. 20 O incentivo à criação de novas cidades, o estímulo à proletarização e o consequente êxodo rural revelaram outro problema: o habitacional. Os trabalhadores rurais que vinham do campo não conseguiam encontrar onde morar a não ser nos cortiços, que eram então proibidos. A primeira medida para contornar a situação pelo governo foi a doação de terrenos públicos e a isenção fiscal para materiais de construção com o objetivo de estimular o setor privado a construir novas casas a preços acessíveis. Entretanto o incentivo não foi suficiente para erradicar o problema (CYMBALISTA; MOREIRA, 2006). O contexto político da posse de Getúlio Vargas em 1930 exige uma inflexão no tratamento das políticas públicas. Por um lado, a crise de 1929 e o desenvolvimento da teoria keynesiana haviam alertado sobre a necessidade de intervenção estatal para garantir o desenvolvimento econômico, que somado às pressões populares por serviços urbanos colocavam em evidência a lacuna de instrumentos urbanos e de bem-estar. Preocupado com o controle dos trabalhadores populares e comprometido com o desenvolvimento econômico do país Getúlio Vargas criou os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs), mecanismo de arrecadação de fundos que contava com a contribuição do trabalhador, do empregador e das transferências diretas do Estado e até 1930 os IAPs já contavam com 140 mil associados. Devido à quantidade de recursos acumulada, os IAPs então passaram a financiar as habitações populares. Entretanto como os institutos eram divididos por categorias (por exemplo, bancários, industriais etc.) não havia uniformidade na aplicação dos recursos entre eles. De maneira geral os financiamentos poderiam funcionar através de três frentes: a locação e venda de unidades habitacionais construídas pelo próprio instituto, o financiamento para aquisição de terreno próprio e empréstimos hipotecários ou outras operações imobiliárias para arrecadação de fundos (TRIANA, 2006). Os bons resultados do sistema de financiamento de habitações através dos IAPs fizeram com que o governo Dutra em 1946 aprovasse a unificação dos institutos e lançasse a Fundação Casa Popular (FCP). A pretensão inicial deste projeto era além de financiar casas populares, estimular a indústria de materiais de construção civil, aprimorar os serviços urbanos e oferecer capacitação técnica de pessoal da área. O plano ambicioso, entretanto, viu-se capacitado a atuar apenas em seu objetivo principal: construção de casas populares. Para atingir-se esses objetivos usou-se os recursos do Instituto de Aposentadoria e Pensão arrecadados pelo depósito compulsório no valor de 0,5% de todas as transações imobiliárias acima de Cr$200.000 ou de edificações com mais de 200m², medidas tidas como impopulares para a época. O sistema praticado pela FCP contava com a doação de terrenos 21 pela prefeitura e com empréstimos facilitados, cuja a taxa de juros aplicada era de 5%. O único pré-requisito em termo de valor era que as parcelas deveriam representar no máximo 15% do salário mínimo. O resultado quantitativo do programa foi a produção de 17 mil unidades dentre as quais 25,6% no Rio de Janeiro, 25% em Minas Gerais, 14,4% em São Paulo, 13,6% no Nordeste, 9% em Brasília, 5,6% nos estados do Sul, 1,7% no Espírito Santo, 1,1% em Goiás e 1% em Minas Gerais. Essa concentração das habitações em estados mais ricos é uma das críticas feitas ao programa na época, assim como a grande dívida deixada pela fundação e a exclusão dos mais pobres ao acesso à moradia através do estabelecimento de pré-requisitos não condizentes com essa faixa de renda, como por exemplo, ter estabilidade no emprego e na moradia atual por mais de cinco anos. Os problemas que levaram à desarticulação dos IAPs foram a falsificação do valor das transações imobiliárias para contornar a arrecadação do imposto; a negação dos próprios estados em transferir os recursos aos IAPs; a competição dentro do Estado pela utilização dos recursos do fundo, uma vez que ele também deveria financiar outros setores; a contenção do crédito durante o período para segurar a inflação e por fim, a não indexação das parcelas, que sendo fixas independentemente da correção do salário mínimo foram corrompidas pelo processo inflacionário da época. No mandato de Juscelino Kubitschek a transferência da capital para Brasília, o Plano de Metas e a desconcentração regional configuraram como elementos centrais do seu plano de governo e a questão habitacional permaneceu em segundo plano, resultando no fortalecimento do setor de infraestrutura da construção civil, enquanto o de edificações permanecia concentrado na órbita privada e direcionada para as elites. Apenas com a posse de Jânio Quadros e a sucessão de João Goulart é que a questão habitacional assumiu um caráter quase principal no plano de governo. Elaborou-se um Plano de Assistência Habitacional a ser financiado pelo Fundo Fiduciário para o Progresso Social e composto por duas etapas: primeiro a construção de 100.000 moradias em dezoito meses e depois a transformação da Fundação Caixa Popular no Banco Brasileiro de Habitação. Com a intervenção militar e o Golpe de 64 o projeto não saiu do papel; entretanto, a estrutura do Banco Brasileiro de Habitação acabou influenciando a configuração do Banco Nacional de Habitação (BNH) elaborado posteriormente pelo próximo governo (TRIANA, 2006). Neste primeiro período das políticas habitacionais a problemática da falta de moradias foi encarada somente como um problema da centralização de capitais para garantir a possibilidade de acumulação no setor, por isso elegeu-se a poupança como principal fundo 22 de financiamento por apresentar segurança e rentabilidade. Essa escolha durará até os dias atuais, quase não tendo havido intervenção direta do Estado via subsídios. O momento seguinte da história brasileira é marcado pela ditadura militar, período em que o golpe de centralização de poder, reforma tributária e reforma financeira, alteraram o modelo de gestão das políticas públicas. O objetivo seguido pelos diferentes governantes foi o de industrializar a economia brasileira e nessa perspectiva o crescimento urbano não ordenado poderia tornar-se um entrave a esse projeto político, no sentido em que é nas cidades que se concentrariam as contestações ao regime militar. Foi nesta perspectiva que as políticas urbanas, principalmente a habitacional, assumiram caráter fundamental como legitimadores desse novo “sistema” de governo. Lançado em 1967 o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) reconhecia a existência de um enorme déficit habitacional, atribuída à especulação imobiliária nos grandes centros e à infraestrutura inadequada para absorver a nova massa urbana das cidades médias e pequenas. Nos documentos que compõem o programa, aponta-se que resolução do problema habitacional passaria pela questão do financiamento à habitação, entretanto, não se desenvolve nenhum arcabouço institucional para solucionar-lo, restringe-se apenas à indicação de diretrizes. No mesmo ano é lançado também o Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social (PDDES) elaborado pelo Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica, que também trouxe só diretrizes gerais para a formulação de uma política de desenvolvimento urbano e regional. No plano a política regional foi articulada utilizando- se das superintendências instituídas no período anterior e baseava-se em tornar as regiões menos desenvolvidas em autônomas através da exploração das vantagens comparativas da região e do investimento em promoção da aglomeração de trabalhadores e investidores naquelas regiões. (MOYSES et al. 2003). Na elaboração do II PND, ao final da década de 70, a política urbana apresentou singular importância, pois propunha-se a continuação do processo de industrialização da economia através do incentivo de alguns setores econômicos estratégicos e neste contexto elaborou- se a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) representando uma inflexão na maneira de encarar a questão habitacional como parte de um problema urbano, iniciando de fato o que se poderia chamar de uma política habitacional. Durante a elaboração do plano constatou-se a existência de uma crise urbana, que só poderia ser resolvida através do planejamento integrado com outras esferas, como a econômica e social. Entretanto, na 23 elaboração da política o urbano foi novamente tratado a partir de uma visão segmentada, ou seja, abordada segundo o somatório dos diversos setores que o compõe: políticas de habitação, transporte, saneamento básico e financeiro (SOUZA, 1999). Dentro dos setores abordados pelo PNDU, aquele que logrou maior sucesso foi o habitacional, através da criação do Banco Nacional de Habitação. Concomitante à criação do banco, outras quatro instituições foram criadas com o objetivo de auxiliar na execução da política habitacional. O Serviço Federal de Habitação e Urbanismo foi responsável pela administração geral do banco, enquanto o Sistema Financeiro de Habitação pela administração das operações financeiras. O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) foram fundos criados com a contribuição dos trabalhadores para financiar as operações do banco. O BNH funcionava, portanto, como uma espécie de funil, que concentrava os recursos advindo de diferentes fontes (todas relacionadas com fundos de aposentadoria) e os direcionava para o setor privado, resolvendo novamente o problema da acumulação de capital. A atuação do BNH foi articulada por três programas principais; o Mercado Popular era destinado para a população que recebia até três salários mínimos e era voltado à produção de conjuntos habitacionais através das Companhias de Habitação Popular (COHABS), que forneciam os terrenos e articulavam-se com construtoras privadas através de licitações, como sintetizado no quadro 3; o Mercado Econômico era destinado à população que recebia de três até seis salários mínimos e operacionalizado através das cooperativas habitacionais; por fim, o Mercado Médio correspondia ao programa para mais do que seis salários mínimos, cujos recursos eram obtidos através do SBPE, do SCI e da Caixa Econômica Federal (LANNOY, 2006). Neste caso a decisão da compra dos terrenos e da provisão de infraestrutura era responsabilidade da iniciativa privada e, portanto, é nesse momento que se consolida a função do incorporador, autorizado pela legislação brasileira em 1964. 24 Quadro 3 - Estrutura de funcionamento do Banco Nacional de Habitação para o segmento popular Para complementar a atuação do BNH, lançou-se em 1973 o Plano de Habitação Popular voltado para o enfrentamento do problema do déficit habitacional. A meta almejada pelo sistema era a construção de um milhão de moradias em dez anos, entretanto a falta de recursos próprios e o crescimento do preço dos terrenos acima do crescimento do salário mínimo inviabilizaram a conquista da meta (LENNOY, 2006). Nos anos 1970 a inflação já se configurava como um grande problema para a continuidade das políticas habitacionais porque o arrocho salarial como estratégia para combate-la deixou as prestações mais pesadas para o orçamento das famílias de menor renda, o que gerou um aumento da inadimplência. Para evitar a quebra do banco havia duas possibilidades: a reestruturação institucional ou o aumento da participação da classe média no programa, que agora estava interessada nesse tipo de habitação popular devido à alta dos preços das moradias e dos aluguéis resultado da instabilidade financeira e da especulação imobiliária. Porém, após o reajuste das parcelas e inclusão da classe média houve uma inflexão do salário mínimo e as prestações passaram a ser corrigidas abaixo da correção salarial, gerando um diferencial entre as taxas de juros dos empréstimos e das renumerações, o que resultou em uma grande dívida no Fundo de Compensações. Como a classe média alta era beneficiada pelo SBPE e não houve nenhum reajuste, ela foi prejudicada pela corrosão de seu salário frente às altas parcelas do financiamento habitacional. A pressão política exercida por ela resultou na adoção de um abono de emergência e uma indexação favorável para as parcelas mais altas, resultando em um déficit ainda maior para o SFH. A redução do Agente local da COHAB Empreiteiras BNH FGTS Promoção Comercialização Produção Licitação 25 pagamento dos mutuários, a queda da arrecadação do FGTS pela suspensão dos depósitos ou pelo aumento dos saques - ambos resultantes do desemprego - e o aumento dos saques frente aos depósitos somados aos problemas iniciais resultaram no declínio do SFH. Apesar dos avanços em números de moradia alcançados pelo BNH, os resultados não são todos positivos. O problema principal é que a política habitacional estava baseada em três pilares: oferecimento da casa própria através do alargamento do mercado para o segmento de baixa renda promovido pela iniciativa privada. Como parte da lógica da iniciativa privada a resolução para esse problema seria através do oferecimento de habitação a baixo custo, objetivo este que foi alcançado tanto através da aquisição de terras mais baratas (localizadas nas periferias) como da migração de mão de obra. Essa mão-de-obra migrante vinha de outras regiões do Brasil e com os baixíssimos salários que recebiam na construção civil não podiam arcar com os custos de suas próprias habitações, reforçando o problema do déficit habitacional. Além disso, ao colocar como padrão de política a aquisição da casa própria, cria-se no Brasil uma espécie de “mito da casa própria”, uma sobrevalorização da propriedade privada que será responsável por minar qualquer outro tipo de política de habitação não lastreado na posse da habitação. Ao mesmo tempo que apresentava esses problemas internos, alguns elementos próprios ao seu funcionamento eram contraditórios com outras diretrizes do plano de governo. Em primeiro lugar, o BNH era contraditório com a própria PNDU, pois pretendia atingir as camadas mais baixas da população, sem acesso à moradia, mas acabou beneficiando a classe média, que recebeu 33,6% das unidades habitacionais construídas, enquanto a faixa de renda de 1 há 3 salários mínimos recebeu apenas 6%. Ao mesmo tempo, enquanto a PNDU previa acesso aos serviços urbanos para todos (tais como saneamento, água e luz), a produção em terrenos periféricos dificultou e encareceu a provisão desses bens. Foi controversa em relação a política econômica, pois esta estava pautada na concentração de renda, o que não condizia com a tentativa de focalização elaborada pelo banco. A partir da metade da década de 1980 o cenário político e econômico sofreu uma reviravolta: as políticas públicas até então eram financiadas com capital estrangeiro, porém, com a crise que atingiu a economia norte-americana nos anos 70, este país lançou uma política de atração de capitais, o que limitou a quantidade de capital internacional disponível e atraído pelos investimentos no Brasil. No cenário de reorganização do capital, a crise norte americana representa de maneira mais ampla o fim do padrão de acumulação fordista e a 26 passagem para a acumulação flexível, que é marcado pelo abandono das políticas de prática keynesianas e substituição para o ideário neoliberal. Nosso objetivo neste trabalho não é aprofundarmos nesses elementos teóricos, porém consideramos que a compreensão da mudança no campo da teoria repercute de maneira direta no modo de pensar a economia e o urbano e, portanto, no padrão das políticas públicas (MELO, 1995). Voltando-nos para o cenário interno, a escassez de crédito no mercado internacional e a incapacidade do governo brasileiro de pagar suas obrigações, somado à forte pressão inflacionária do período, resultaram na crise da dívida dos anos 80. A solução encontrada pelo governo brasileiro, apoiada pelas agências multilaterais, foi um choque contracionista reduzindo os gastos do governo em primeira instância. O impacto imediato dessa política foi a contração econômica que gerou instabilidade e desemprego, desarticulando a política habitacional que era centrada justamente na poupança dos trabalhadores, a consequente diminuição do crescimento urbano concomitantemente ao aumento do número de cidades e habitantes. Além disso, São Paulo voltou a exercer o papel de grande receptora de migrantes, revertendo o projeto anterior de desconcentração regional. Politicamente foi nessa mesma década que o regime da ditadura militar esgotou-se e devido às pressões populares iniciou-se um processo de redemocratização política e consequentemente desarticulação dos instrumentos criados pelos militares. O aumento do número de desempregados e a desarticulação das políticas de caráter mais assistencialista trouxeram para as cidades pequenas e médias brasileiras os problemas de “cidades grandes”, tais como a periferização, favelização e aumento da violência urbana. É nesse segundo momento de crise urbana que as favelas experimentam outro ciclo de expansão. O aumento do número de favelas neste período esteve muito relacionado ao padrão das políticas urbanas e habitacionais implementadas durante os períodos militares e à enorme desigualdade de renda, resultado do modelo de crescimento conservador. Entretanto, como nos conta Mike Davis, o crescimento desse tipo de ocupação foi significativo em todos os países do Terceiro Mundo (América Latina, Ásia e África), explicado pelo padrão de política sugerido pelas entidades internacionais em tempos de crises fiscais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, (DAVIS, 2006). Para obterem ajuda financeira frente a um cenário de escassez de capital, os países se submeteram aos planos de ajuste estrutural, elaborados por essas instituições para obterem uma contrapartida em crédito e uma série de subsídios precisaram ser cortados. O desaparecimento das políticas habitacionais, como também a extinção de programas de subsídio voltados para pequenos 27 produtores rurais, trouxe uma massa de desempregados para as cidades grandes procurando por empregos, que não tendo condições de pagar por uma moradia do mercado privado passaram a habitar as favelas. Assim se explica porque atualmente nos países do Terceiro Mundo o estoque de residências privadas corresponde à cerca de 20% da demanda total por habitações, o que justifica que o crescimento populacional nas favelas seja maior do que a taxa de crescimento urbano. Em São Paulo, por exemplo a taxa de crescimento das favelas ultrapassou em 16% o crescimento urbano médio na década de 1990 (DAVIS, 2006). A partir do momento em que os Estados do Terceiro Mundo abdicam da elaboração de políticas contra a informalidade das habitações, o FMI e o Banco Mundial passaram a desempenhar papel importante na determinação das diretrizes da política habitacional urbana através do estímulo à promoção de ofertas de lotes urbanizados ou urbanização de favelas, através da articulação entre ONGs locais, investidores ou grandes grupos internacionais e os Estados Nacionais. A ideia por trás desse modelo era de o Estado aliciar doadores internacionais a ONGs locais, tornando os seus moradores em agentes capacitados a resolver seu próprio problema habitacional. O Estado deveria promover lotes urbanizados, ou então oferecer soluções micro empresariais para a pobreza urbana, ou seja, em última instância promover a pobreza urbana como uma oportunidade lucrativa de negócio. Esse sistema de coordenação e financiamento através de ONGs locais articuladas com ONGs e grandes instituições internacionais recebeu o nome de empowerment e para nós ficou reconhecido como “governança participativa”, que será explicado mais à frente. Ao mesmo tempo, no campo político, para eximir-se da responsabilidade de oferecer habitações de qualidade, os Estados passaram a assumir um discurso em que as favelas pararam de ser consideradas como problemas para serem a solução e, nesse aspecto, a autoconstrução começou a ser encarada como um modelo de urbanização flexível frente às possibilidades e especificidades existentes, tornando-a um tipo de aglomeração orgânica e natural. Esse arranjo gera um tipo de imperialismo de políticas, pois ao articular as ONGs com os grandes grupos internacionais, reina o interesse destes, cabendo às ONGs a função de desmobilizar e alienar o morador desses aglomerados, afastando-o da luta de classes a partir da prática baseada na solidariedade e do humanitarismo dessas instituições ao invés de conscientizá-los de seus direitos. Portanto, como consequência desse movimento internacional, não só se agravou o problema das favelas como também se eliminou os mecanismos de resistência através da desarticulação dos moradores. O resultado é que frente à investida do capital imobiliário 28 para as favelas, as populações ali residentes encontram-se desprovidas dos meios para garantir seus direitos e com isso são expulsas de suas moradias em prol das necessidades de valorização desse capital imobiliário, podemos citar como exemplo as remoções que aconteceram no Brasil durante a copa de 2014, que desalojaram e desarticularam diversas comunidades para a construção dos estádios e outras obras de infraestrutura do mundial. (DAVIS, 2006). Retornaremos agora para a transformação ocorrida no campo teórico do urbanismo na década de 1980, cuja compreensão é essencial para entender a nova política adotada, a chamada governança coorporativa. No modo de acumulação flexível a nova lógica é a da dispersão das multinacionais, fragmentação de suas cadeias internacionalmente, intensificação das trocas comerciais entre os países e integração aos mercados de capitais. Portanto, as atividades de comando, inovação e controle passam a concentrar-se e depender da “atitude” das grandes cidades. Na nova divisão de trabalho as grandes cidades têm função fundamental de atrair e garantir a reprodução do capital, e passam a serem tratadas como empresas, cuja função principal é promover riqueza; e os políticos, portanto, assumem o papel de administradores, responsáveis por criar respostas competitivas frente à globalização (COPANS, 2005; ARANTES, 2006). O discurso em prol da descentralização foi aos poucos entrando no Brasil. No primeiro momento ele ganhou suporte por representar a antítese do que havia sido praticado até então pelos governos militares. A perspectiva de descentralização das decisões ganhou muitos adeptos, que estavam descontentes com a ideologia dos planos de abrangência nacional. Nesse contexto, a constituição de 1988 ratifica a descentralização. A esfera da política habitacional foi a primeira a sentir o impacto desse novo arranjo institucional. Ao término do período militar, cuidou-se para que o BNH fosse logo extinto, tanto em razão da perda de capacidade do Estado de manter-se financiando a instituição, como por outro lado, pela crítica à corrupção praticada pelo banco. Além disso, o BNH era um dos principais signos do regime militar, a sua extinção representava também o encerramento desse período na história política do país. As funções exercidas pelo banco foram repassadas para o Banco Central do Brasil, ao Conselho Monetário Nacional e à Caixa Econômica Federal, porém com essa transição perdeu-se muito em termos de capacitação técnica e instrumental de operação. 29 O final da década de 1980 e começo da década de 1990 foram marcados por essas reestruturações políticas, tratava-se de destruir instituições anteriores e reconstituí-las com outra perspectiva ideológica: a da não intervenção estatal. Um exemplo disso pode ser visto no Quadro 4, que mostra o número de Ministérios responsáveis pela política habitacional desde 1985 até 2003: em vinte anos a gestão da política habitacional passou por sete ministérios diferentes. Porém, além da instabilidade institucional, outro elemento é responsável pelo pífio desenvolvimento das políticas urbanas (e habitacionais) no período. A constituição de 1988 não especifica qual esfera de governo é a responsável direta pelo problema habitacional. Ao colocar as três esferas (municípios, estado e federação) como possíveis atuantes, elimina-se o senso de responsabilidade de cada uma delas pela problemática da habitação. Quadro 4 - Política Habitacional: responsabilidade de quem? A instabilidade política pode ser sentida quando analisamos a transferência da responsabilidade da política habitacional. O número de ministérios criados em menos de vinte anos revela a impossibilidade de pensar-se em um planejamento de longo prazo durante este período. 1985: Ministério do Desenvolvimento Urbano 1987: Ministério da Habitação, Urbanismo e Desenvolvimento Urbano 1988: Ministério da Habitação e do Bem-Estar Social 1989: Ministério do Interior 1990: Ministério da Ação Popular transformado no mesmo ano em Ministério do Bem-Estar 1994: Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano 2003: Ministério das Cidades Fonte: CYMBALISTA; MOREIRA, 2006. A baixa capacidade de articulação municipal ou estadual fez com que as políticas criadas nesse contexto fossem pouco expressivas. O estudo feito por Arretche (2011) mostra a baixa participação das municipalidades nos projetos habitacionais e de saneamento, tanto pela falta de experiência das gestões municipais como também pelos altos custos da provisão desses serviços. Por exemplo, no setor de saneamento as condições oligopolistas (como a indivisibilidade do serviço) estabelecem uma concorrência desleal entre fornecedoras estaduais e municipais, inviabilizando a existência das últimas pela diferença de custos que representa frente a primeira. 30 Para dar conta do problema habitacional sem comprometer seu objetivo com as políticas de austeridade fiscal e alinhado com a governança coorporativa, o governo Sarney (primeiro governo democrático do período pós-militar) criou a Secretaria Especial de Ação Comunitária, cuja prioridade era o atendimento da população de baixa renda através de um sistema alternativo de produção, o multirão. O sistema de multirão consiste na reunião de moradores locais para a autoconstrução de moradias. Além do trabalho voluntário não gerar emprego, a construção por multirão não garante a adequabilidade técnica da obra e transfere para o morador, trabalhador e voluntário a responsabilidade total pela sua moradia (LANNOY, 2006). No Governo Collor foi criado o Plano de Ação Imediata para a Habitação com o objetivo de atender em 180 dias 245 mil famílias com renda menor do que cinco salários mínimos. Esse plano era composto por três programas: o Programa Moradias Populares, o Programa Lotes Urbanizados e Cesta Básica e o Programa Municipal para a Habitação Popular. Para os três projetos o enfoque era incentivar a responsabilidade fiscal, por isso aqueles com maior déficit contariam com melhores condições de juros. Apesar de pouco tempo de governo, os problemas deste modelo de gestão foram aparentes. Em primeiro lugar, ao financiar estados com maior déficit está se financiando os estados mais populosos e, portanto, mais ricos, agravando ainda mais o problema. Em segundo lugar está a aprovação de uma quantidade insustentável de financiamentos com recursos do FGTS sobre a justificativa de maximização de contratações antes da virada do ano. Esse acontecimento apelidado de “dezembrada” promovido em 1989 pelo presidente comprometeu os fundos até 1995. A má gestão do fundo paralisou as obras nos anos seguintes e o custo de recuperação dessas obras inacabadas tornou-se mais alto do que o preço no mercado de habitações, gerando um problema de continuidade do projeto. O início da década de 1990 é marcado pela retomada da estabilidade econômica e pelo estabelecimento de políticas de orientação mais neoliberal, dentre elas estão as medidas de privatização, descentralização e o esvaziamento do papel do Estado. Apesar de o período ser reconhecido pela redução da interferência estatal, nos mandatos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso foram criadas propostas e programas na área habitacional. O programa, o Habitar Brasil, foi implementado por Itamar Franco e executado em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o qual fornecia o empréstimo em contrapartida à adoção de algumas reformas “pró-mercado”, ou seja, que promovessem o ajuste estrutural das cidades. O objetivo do programa era a reforma no sistema de 31 financiamento habitacional e o fortalecimento da manutenção da infraestrutura urbana através da aplicação de conceitos de gestão coorporativa à gestão urbana, que implicavam em estabelecer mecanismos financeiros para captação de recursos e o estímulo do setor imobiliário privado. O governo de Fernando Henrique Cardoso, em seu turno, empreendeu reformas mais profundas no setor, sua primeira medida foi a criação da Secretaria de Política Urbana (SUPURB) vinculada ao Ministério de Planejamento e Orçamento e o estabelecimento de um sistema de financiamento do FGTS descentralizado e com base na autonomia dos estados. Esse modelo, entretanto, não deu certo, pois o aporte necessário para qualquer intervenção precisaria de muitos recursos, fora do alcance das arrecadações locais. Em resposta ao fracasso inicial criou-se três projetos, o Pró-Moradia, o Habitar Brasil e a Carta de Crédito. O Pró-Moradia tinha o objetivo de urbanizar áreas degradadas para fins habitacionais, promover a regulamentação fundiária e apoiar o enorme conjunto de famílias de baixa renda que auto empreendia a própria casa e funcionava a partir de projetos apresentados pelos estados e municípios ao governo federal. O público alvo desse programa foram famílias com renda máxima de dois salários mínimos, os financiamentos foram operacionalizados com recursos do FGTS tanto para urbanização de assentamentos precários, como para a criação de conjuntos habitacionais e promoção do desenvolvimento institucional. A Carta de Crédito, por sua vez, deveria atender à mesma faixa de renda para promover novas construções, aquisição de material de construção e aquisição de imóveis alugados (LANNOY, 2006). A grande contribuição do governo de FHC no que tange às políticas habitacionais é a aproximação entre o mercado habitacional e o mercado de crédito. Desde a desarticulação do BNH se discutia no Brasil como recriar o sistema de crédito imobiliário de maneira mais sustentável. Como desdobramento do discurso neoliberal em voga no Brasil, pensou-se em uma reestruturação baseada na evolução do mercado de crédito nos EUA. Assim a reconstrução do sistema foi feita com influência tanto do Banco Mundial como das companhias federais Fannie Mae e Fredie Mac (respectivamente Federal Nacional Mortage Association e Federal Home Loan Corporation) que atuavam no mercado norte americano promovendo empréstimos e garantias imobiliárias, hipotecas e securitização das hipotecas. Somada à pressão pela liberalizaç