André Valner Ruis Sistemas de Numeração e Grandezas Incomensuráveis São José do Rio Preto 2014 ANDRÉ VALNER RUIS Sistemas de Numeração e Grandezas Incomensuráveis Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Orientador: Prof. Dr. Paulo Ricardo da Silva São José do Rio Preto 2014 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto Ruis, André Valner. Sistemas de numeração e grandezas incomensuráveis / André Valner Ruis. -- São José do Rio Preto, 2014 122 f. : il. Orientador: Paulo Ricardo da Silva Dissertação (mestrado profissional) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Matemática (Ensino médio) - Estudo e ensino. 2. Aritmética - Estudo e ensino. 3. Números reais. 4. Números transcendentes. 5. Matemática - Metodologia. I. Silva, Paulo Ricardo da. II. Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título. CDU – 511(07) ANDRÉ VALNER RUIS Sistemas de Numeração e Grandezas Incomensuráveis Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. COMISSÃO EXAMINADORA Prof. Dr. Paulo Ricardo da Silva UNESP – São José do Rio Preto Orientador Profa. Dra. Mariana Rodrigues da Silveira UFABC – Santo André Prof. Dr. Jéfferson Luiz Rocha Bastos UNESP - São José do Rio Preto São José do Rio Preto 28 de Novembro de 2014 javascript:xajax_exibeMenu(259,%201881);%20defineHash('259,1881'); Dedico primeiramente aos meus amados pais Hélio e Rosa, a meus irmãos Melina e Eduardo, demais familiares e a todos que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho. Louvado seja nosso Senhor Deus que ilumina meus caminhos. AGRADECIMENTOS Agradeço imensamente à Deus a quem devo tudo o que tenho em minha vida, sobretudo por ter proporcionado-me saúde, sabedoria, persistência, força e capacidade, além de ter preparado-me para receber esta graça no momento certo e concluir este trabalho. Agradeço com imenso amor fraternal a meus pais Hélio e Rosa que durante toda minha vida ofereceram carinho, educação, respeito e todo suporte a mim e a meus irmãos para que tivéssemos uma formação de caráter digna, honesta e honrada incentivando e apoiando a busca por um caminho que conduzisse a boa formação profissional e felicidade. Sempre foram espelhos em minha vida, exemplos de conduta. Agradeço aos meus irmãos Melina (Me) e Eduardo (Dú), por quem tenho também imenso amor fraternal e torço muito para que tenham muitas conquistas e realizações. Agradeço a todos meus familiares e a todos que fazem parte da família. Um agradecimento especial com extrema gratidão ao meu orientador Prof. Dr. Paulo Ricardo da Silva, a quem devo externar o quanto foi importante nas orientações. Tive um aprendizado efetivo e ensinamentos extremamente relevantes, que contribuíram extensivamente para que realizasse um bom trabalho, além dos bons conselhos e diretrizes de norteamento do trabalho. Agradeço também com extremo carinho a minha linda namorada Joice, que entrou em minha vida no decorrer do curso e durante todo esse período concedeu-me sempre apoio incondicional, paciência (e como foi paciente), respeito, compreensão, bons conselhos e é claro amor, acolhendo-me e fortalecendo-me. Agradeço a todos os colegas de turma do PROFMAT, em especial aos companheiros de almoço e conversas durante o curso, os amigos Fábio e Fernando. Agradeço muito também aos colegas Gilberto, Emerson, Everaldo e principalmente a Flávia da turma anterior, pela disponibilização de material, que foi de grande ajuda no decorrer do curso. Um agradecimento especial à amiga Cynthia pelo companheirismo e companhia nas viagens, além dos bons conselhos. Durante os estudos, sempre com dedicação, disponibilidade para estudar e boas discussões na resolução de exercícios do curso. Agradeço também a todos os meus amigos de Olímpia, sempre compreenderam, incentivaram e apoiaram a busca pela conclusão desse trabalho. Ao pessoal da ETEC de Olímpia pelo incentivo e boas conversas sobre a atual realidade da educação no estado. Agradeço também e dedico a todos os meus alunos, tive motivação suficiente para persistir, mesmo com um número elevado de aulas por semana (40 em média) conclui o curso e hoje posso dizer-lhes que estou muito mais preparado e pronto para atendê-los de forma efetiva na busca por conhecimento. Agradeço aos professores do IBILCE do Departamento de Matemática, especialmente aos professores do PROFMAT pela sólida formação acadêmica que nos proporcionaram. Agradeço por fim também à Capes pelo apoio financeiro, e aos professores do IMPA que idealizaram um programa de pós-graduação de qualidade, dando oportunidade ao aperfeiçoamento e formação do professor. “Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes.” (Paulo Freire) LISTA DE FIGURAS Figura 1.1 – Primeiros Sistemas de numeração........................................................................15 Figura 3.1 – Números irracionais>...........................................................................................43 Figura 3.2 – Soma i)..................................................................................................................47 Figura 3.3 – Soma ii).................................................................................................................47 Figura 3.4 – Soma iii)......................................................................................................................47 Figura 3.5 – Soma iv)................................................................................................................48 Figura 3.6 – Multiplicação de números reais............................................................................49 Figura 4.1 – Conjunto de Cantor...............................................................................................64 Figuras 5.1 – Catenária – A corrente suspensa.........................................................................73 Figuras 6.1 – Método de Arquimedes.......................................................................................90 Figura 6.2 – Rede de pontos......................................................................................................93 Figura 6.3 – Método egípcio dos discos metálicos.................................................................. 99 Figura 7.1 – Razão áurea.........................................................................................................111 RESUMO Neste trabalho apresentamos a evolução histórica do conceito de número real. Partindo de noções preliminares para quantificações e representações numéricas, introduzimos sistemas de numeração, com enfoque especial aos sistemas de numeração decimal e também sistema de numeração ternário. A partir do problema de medição, abordamos o conceito de grandezas comensuráveis e grandezas incomensuráveis. Especial ênfase é dada aos números irracionais e e π, evidenciando conceitos, propriedades e particularidades desses números. Além disso, discutimos como abordar o estudo de números irracionais no ensino médio, finalizando com propostas de atividades pertinentes aos temas apresentados. Palavras-chave: Sistemas de Numeração. Números Reais. Números Algébricos. Números Transcendentes. ABSTRACT In this work, we present the historical evolution of the concept of real number. From the preliminary sense of quantifications we introduce numerical systems, specially the decimal one and the ternary one. From the measure problem we introduce the concept of commensurable and incommensurable magnitudes. It is given special emphasis to the irrational numbers e and π, for which we discuss the concepts, properties and some particularities. Moreover, we discuss how to introduce the study of irrational numbers at high school and we propose some activities connected to the presented themes. Keywords: Numeration Systems. Real Numbers. Algebraic Numbers. Transcendental Numbers. 11 Introdução Desde o ińıcio da história da humanidade, há registros da presença dos números na vida do homem e atualmente é incostestável em quase tudo o que realizamos no dia-a-dia a prática relacionada diretamente à numeros, seja em quantificações, medições, estimativas e também em levantamento de dados, ou seja, podemos afirmar inevitavelmente que, em tudo o que concerne as práticas cotidianas diárias do homem, estarão presentes os números e consequentemente as operações aritméticas numéricas. A estrutura proposta neste trabalho tem como principio proporcionar a alunos e também a professores do ensino médio uma contextualização histórica do surgimento dos números, evidenciando sua inegável presença na vida do homem, evolução dos métodos de contagem e também o desenvolvimento de alguns sistemas de numeração concebidos por diferentes civilizações em diferentes épocas ao longo da história e suas funcionalida- des como dispositivo para organização dos métodos de contagem. Abordamos também, o fato de que quando efetuamos medições, estamos efetivamente lidando com grandezas, e as grandezas medidas podem ser definidas como grandezas comensuráveis ou incomen- suráveis, enfatizando o fato que ambas grandezas, quando falamos de sua representação numérica, estão dispostas numa estrutura de conjuntos numéricos, desde o mais elemen- tar, que é o conjunto dos números naturais, até o mais amplo (no campo extensivo deste trabalho) que é o conjunto dos números reais. Exploramos inclusive algumas grandezas incomensuráveis de grande destaque e evidência no universo dos números reais. No caṕıtulo 1 discorremos exatamente sobre tópicos elencados anteriormente, no ińıcio do segundo parágrafo, explorando essencialmente o sistema de numeração indo- arábico, que é um sistema de numeração posicional de base 10 e que até hoje é o sistema de numeração adotado. Nesse caṕıtulo, procuramos utilizar uma linguagem técnica bastante acesśıvel, levando à compreensão da estrutura de escrita dos números naturais em base decimal. No caṕıtulo 2 abordamos a questão de que as práticas diárias com a evolução da hu- manidade, conduziram o homem também a uma evolução dos elementos para representar tais situações, e os números naturais já não eram suficientes para expressar tudo o que 12 o homem vivia. Vieram então os números inteiros e a questão da comensurabilidade e incomensurabilidade das grandezas. Evidenciamos os números inteiros e racionais, defi- nindo a representação de números racionais finitos escritos em base decimal e também as operações aritméticas elementares entre esses números, exemplificando cada uma de- las. Explanamos também sobre as d́ızimas periódicas e suas respectivas representações decimais. A construção do conceito de número desde sua representatividade em um sistema de numeração, estruturação em conjuntos numéricos e desenvolvimento de uma aritmética operatória é comprovadamente uma sequência lógica, e portanto no caṕıtulo 3, nada mais elementar do que abordar a incomensurabilidade de grandezas, que deram origem ao conjunto dos números irracionais e posteriormente ao conjunto dos números reais, ca- racterizados pela correspondência biuńıvoca entre um número real e um ponto de uma reta. Novamente, procuramos estruturar os números reais como conjunto, determinando o conceito de corpo ordenado completo, como propôs Cantor, além de definir as operações aritméticas elementares. É importante distinguir a diferença entre grandezas comen- suráveis (representadas por números racionais) e grandezas incomensuráveis (represen- tadas por números irracionais), e dessa forma, discorremos também sobre métodos para constatar tal fato, e ainda, finalizamos com os conceitos de números algébricos e trans- cendentes. Já no caṕıtulo 4, trabalhamos com o sistema de numeração posicional de base 3, con- duzindo à curiosidades e interessantes propriedades inerentes a este sistema. Este caṕıtulo possui uma conexão com o caṕıtulo 1, quando definimos a escrita de um número em uma base numérica qualquer. Destacamos a escrita de números em base 3 e descrevemos as operações de adição e multiplicação neste sistema, além de exibir a relação direta entre o sistema de numeração ternário e o conjunto de Cantor. Para o caṕıtulo 5 tratamos essencialmente uma das mais importantes grandezas in- comensuráveis: o número e. Sintetizamos desde fatos históricos, origem, representação e definição do número e, até importantes fatos e curiosidades relacionados ao mais ilustre número irracional. Descrevemos também problemas e questões alusivas ao número e e com devido rigor matemático, expressamos a demonstração da irracionalidade do número 13 e. Nas seções do caṕıtulo inserimos também curiosidades e problemas de aplicação, ex- pondo inevitavelmente sua ampla utilização em equações diferencias ordinárias, que é uma importante área da análise em Matemática. No caṕıtulo 6 exploramos outra importante grandeza incomensurável: o número π. Historicamente talvez tenha sido um dois mais antigos problemas que durante muito tempo causou indagação ao homem, pois o simples fato constatado geometricamente de forma preliminar por Arquimedes, de que a razão entre a medida do comprimento de uma circunferência pela medida de seu diâmetro é constante, estendeu-se cronologicamente até os dias de hoje. Por isso, descrevemos nesse caṕıtulo toda a cronologia do número π, além é claro de defińı-lo e determinar cálculos e aproximações que o determinam. Destacamos alguns calculadores do número π e descrevemos alguns métodos utilizados para encontrá-lo, até chegarmos a era computacional, funcionalmente relacionada aos cálculos computacionais de π. Finalizamos o trabalho com o caṕıtulo 7 que apresenta propostas de atividades relaci- onadas aos caṕıtulos apresentados, essencialmente voltadas ao público discente do ensino médio como via de contextualizar tudo o que foi explorado nesse trabalho com a prática diária do professor em sala de aula. Sumário 1 Sistemas de Numeração 16 1.1 Fatos históricos - origem dos sistemas de numeração . . . . . . . . . . . . . 16 1.1.1 Primeiros sistemas de numeração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 1.1.2 Sistema de numeração indo-arábico . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 1.2 Números naturais e base 10 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 2 Números Racionais 30 2.1 Números inteiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 2.2 Racionais com representação decimal finita . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 2.2.1 Operações elementares no sistema de numeração posicional de base 10 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 2.3 Dı́zimas e expressões decimais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 2.3.1 Geratriz de uma d́ızima periódica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 3 Números Reais 48 3.1 Números reais e a reta real . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 3.2 Operações em R . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 3.3 Desigualdades no conjunto R . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 3.4 Identificando números irracionais via polinômios . . . . . . . . . . . . . . . 59 4 Base 3 e Conjunto de Cantor 64 4.1 Adição e multiplicação no sistema de base 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 4.2 Base 3 e o conjunto de Cantor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 14 15 5 O número e 73 5.1 Algumas aplicações do número e . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 5.1.1 Questões financeiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 5.1.2 O problema da catenária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78 5.2 Uma série convergente para definir o número e . . . . . . . . . . . . . . . . 82 5.3 Irracionalidade do número e . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 5.4 Curiosidades sobre o número e . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 5.4.1 Alguns números curiosos relacionados com o número e . . . . . . . 85 5.4.2 A mais famosa das fórmulas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 5.4.3 Derivada da função y = ex . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 5.5 Aplicações do número e . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 6 O número π 96 6.1 Definição de π e descrição do método de Arquimedes para calcular π . . . 96 6.2 Método de Gauss para o cálculo de π . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 6.3 Euler e uma igualdade envolvendo π . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102 6.4 Cronologia do número π . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104 6.5 Curiosidades sobre o número π . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 7 Problemas e propostas de atividades 115 7.1 Descrição da metodologia e objetivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115 7.2 Propostas de atividades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 Caṕıtulo 1 Sistemas de Numeração 1.1 Fatos históricos - origem dos sistemas de numeração A história do surgimento dos números confunde-se com a própria história do ińıcio da humanidade. Nos primórdios peŕıodos remotos tais como o do ińıcio da Idade da Pedra e o Paleoĺıtico, o homem vivia em cavernas, em condições bastante semelhantes as dos animais, e seu meio de vida e caracteŕıstica pertinentes à época permitiam-lhe apenas organizar-se precariamente, confeccionando ferramentas primárias para a caça, tais como lanças e bastões, para subsidiar a busca pelo alimento que garantiria seu sustento. Desen- volveu formas primitivas para comunicação, e a noção de número conduzia-lhe apenas a uma distinção entre “um”e muitos. O homem tinha uma lança, ou muitas lanças, matava um lagarto ou muitos lagartos, noção essa que estendeu-se a quantificação de dois objetos ou animais abatidos posteriormente. Fato é que, desde o ińıcio o homem se viu compelido a quantificar objetos e consequen- temente efetuar medidas, comparar distâncias e determinar dimensões dos corpos que o rodeavam. Para isso começou a criar śımbolos, de modo que os dados coletados não se perdessem. Tais registros eram feitos através de cunhamentos e ranhuras em pedaços de ossos ou bastões. Destacamos a seguir um trecho de [2]: “Poucos desses registros existem hoje, mas na Checoslováquia, foi achado um osso de 16 17 lobo com profundas incisões, em número de cinquenta e cinco; estavam dispostas em duas séries, com vinte e cinco numa e trinta na outra, com os riscos em cada série dispostos em grupos de cinco. Tais descobertas arqueológicas fornecem provas de que a ideia de número é muito mais antiga do que progressos tecnológicos como o uso de metais ou de véıculos de rodas. Precede a civilização e a escrita, no sentido usual da palavra, pois artefatos com significado numérico, tais como o osso acima descrito, vêm de um peŕıodo de cerca de trinta mil anos atrás”. Perdurou secularmente a ideia de que a Matemática é a ciência dos números, grande- zas e formas e que de forma extensiva desenvolveu-se ao longo dos séculos, possibilitando ao homem justificar de forma concreta a realidade que o retrata como produto da natureza. “A prinćıpio, as noções de número, grandeza e forma podiam estar relacionadas com contrastes mais do que com semelhanças,” conforme [2]. Sujeito as percepções impos- tas pela natureza, e ao decurso natural a um avanço gradativo da maneira de viver, relacionar-se e compreender o mundo, a existência dos números provém como percepção de uma propriedade abstrata que certos grupos tem em comum, como observa ainda o autor [2] em sua obra História da Matemática. Este autor observa também que “é improvável que isso tenha sido descoberta de um indiv́ıduo ou de uma dada tribo; é mais provável que a percepção tenha sido gradual, de- senvolvida tão cedo no desenvolvimento cultural do homem quanto o uso do fogo, talvez há 300.000 anos”. A matemática é retratada como a única ciência que desenvolveu-se apenas com extensões, embasada em sistemas dedutivo-axiomático que sustentaram e permitiram todos os avanços alcançados ao longo dos séculos. O homem primitivo da ind́ıcios que o primeiro sistema de contagem era feito usando pedras 1. 1Calculus em latim tinha o significado de pedra, pedrinha, daquelas que, em dado momento na anti- guidade, passaram a ser usadas para contar. A palavra calculus deu origem à palavra cálculo. 18 “É provável que a maneira mais antiga de contar se baseasse em algum método de registo simples, empregando o prinćıpio da correspondência biuńıvoca” como observa [4]. “Os agrupamentos dessas pedras (calculus) eram feitos amontoando-se em grupos de cinco, pois os qúıntuplos lhe eram familiares por observação das mãos e pés humanos” destacado por [4]. Estava então resolvida uma questão prática e útil à vida do camponês, que é necessi- dade de dominar e manter criações, para seu sustento e desenvolvimento campestre. Por vezes, devido a disfunção prática em armazenar informações em amontoados de pedras, o homem registrava um número fazendo entalhes em pedaços de ossos e bastões. Conforme [3] “Estamos tão habituados a encarar os sistemas modernos de escrita como reflexões da ĺıngua falada, que pode ser salutar lembrarmo-nos que no começo isso não se passou as- sim. Para que uma sociedade desenvolva uma matemática que vá para além do simples cálculo, é necessário um suporte material de uma espécie ou outra. Sem escrita, as li- mitações da memória humana restringem o grau de sofisticação numérica que pode ser atingido”. A maneira como passou a organizar e expressar a quantificação de objetos e animais é pertinente a praticamente todas as civilizações antigas dentre as quais destacamos, os povos eǵıpcios, babilônios/sumérios, gregos, chineses e hindus, cada qual criando seu sistema de numeração com caracteŕısticas peculiares comumente tratadas a cada época, localização (continentes europeu,oriente e médio oriente) e influências dos meios de vida de cada civilização. Mesmos os Maias, civilização mais recente localizada na América Central, também desenvolveram um sistema de numeração próprio, caracterizado por uma simbologia e operação particulares, já que não houve trocas de experiências com ci- vilizações européias e asiáticas até então. Atualmente, o sistema de numeração posicional 19 de base 10, ou simplesmente sistema decimal é universalmente aceito e utilizado e como destaca [2] em sua obra: “Aristóteles observou que o sistema decimal é apenas o resultado anatômico de que quase todos nós nascemos com dez dedos nas mãos e nos pés”. 1.1.1 Primeiros sistemas de numeração Ao longo do tempo acredita-se que a Matemática surgiu e prosperou vistas as neces- sidades práticas do homem em desenvolver-se e deixar assim um legado concreto para perpetuação construtiva e evolutiva de sua espécie. O advento dos números e de um sistema de numeração coerente, simplista, com praticidade operatória e que permitisse uma representação clara dos problemas que se pretendia resolver era um grande desafio às antigas civilizações. Sabidamente, o homem desde o prinćıpio, mesmo que de forma intuitiva, já preocupava-se em organizar e quantificar objetos e animais campestres para sua subsistência. Mas sabemos que os números e o atual sistema de numeração posicional de base 10 não surgiram desde o ińıcio. O homem primitivo fazia sim uso de métodos arcaicos para enumerar elementos, mas de modo bastante abstrato, já que era demasiada- mente primário o modo como vivia e se relacionava na antiguidade. Há registros de que os primeiros sistemas de escrita que se conhecem, são os dos eǵıpcios e os dos sumérios, surgidos por volta de 3500 a. C., segundo [2]: “Foi sugerido que a arte de contar surgiu em conexão com rituais religiosos primitivos e que o aspecto ordinal precedeu o conceito quantitativo.” A linguagem assume um aspecto singular que a coloca num viés que vai do real, con- creto, para o abstrato, isto é, primeiramente há objetos a se contar ou medir, e posterior- mente, embasado em algum sistema lógico-dedutivo, coexiste o instrumentos para fazê-los. O primeiro instrumento de contagem utilizado pelo homem foi indubitavelmente os dedos, prática esta que nos conduziu a um sistema de numeração sistematizado por agru- 20 pamentos de cinco e dez. Explanaremos a seguir alguns sistemas de numeração e suas respectivas bases utilizados por civilizações antigas ao longo da história. Para tanto, segue um conceito subjetivo para base descrito por [6]: “Em termos não muito formais, mas suficientemente descritivos, diremos que “base”é o número de unidades que se convenciona tomar para com elas construir uma unidade maior, de ordem imediatamente superior, num processo que, em prinćıpio, se pode repetir até ao infinito.” O sistema quinário ou sistema de numeração de base cinco, foi o primeiro a ser usado extensivamente, como observa [4]. A base quinária é portanto mais antiga que a base de- cimal, mas esta devido a difusão, aceitação e praticidade simbólica e operatória é a base que prevaleceu. Os babilônios, antiga civilização localizada na região da Mesopotâmia abrangendo também a Acádia e a Suméria, utilizavam um sistema de numeração posi- cional único, cuja base era 60, sistema esse denominado sexagesimal. Este sistema era empregado pela utilização de śımbolos numéricos que eram esculpidos em pequenas placas de argila, que serviam de base de “impressão”da escrita cuneiforme, como cita [1] em sua obra. A contagem dos babilônios era feita portanto em agrupamentos de 60 e a razão disso parece estar ligada a geometria e à preocupação de medir o tempo. Os babilônios sa- biam por exemplo que o raio de um ćırculo determina uma corda (atual arco), que era aproximadamente o sextante do ćırculo, e ainda o peŕıodo de um ano constava de 360 dias. Outro fator que merece destaque é que o sistema de base 60 possui outras vir- tudes, tais como possuir um número razoável de divisores. Observe que 60 é diviśıvel por: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 10, 12, 15, 20, 30 e 60, conduzindo assim a um número maior de resulta- dos exatos para problemas resolvidos no sistema de base 60. Tal sistema permitiu ainda descobertas na astronomia, e solução de problemas de astronomia por volta de 1700 a. C.. Outro sistema de numeração que merece destaque na história é o sistema utilizado 21 pelos gregos. “Os gregos recorreram a dois sistemas de numeração distintos, um mais antigo, o Ático, no qual arranjavam os números por ordem e os agrupavam tal como no sistema romano, e um posterior, mais erudito, o Jônico, sistema de numeração alfabético que apareceu pela primeira vez no séc. V a.C.”, conforme destaca [1]. Outro fato relevante que devemos tratar é que o sistema de numeração grego não era posicional, ao contrário do sistema de numeração babilônico. Observamos também que eǵıpcios e feńıcios também utilizavam um sistema de numeração decimal, contudo com śımbolos diferentes do sistema grego, apesar da proximidade territorial de tais povos. Já os romanos, dotavam-se de um sistema de numeração não posicional, edificado também em agrupamentos simples de base 10. Tal sistema de numeração, é formado por apenas 7 śımbolos: Śımbolo Valor I 1 V 5 X 10 L 50 C 100 D 500 M 1000 Na América Central destacamos o sistema de numeração utilizado pela tribo dos Mayas de Yucatan, cuja a base primária era vinte, e tinha a base cinco como base auxiliar. É fato que sinais e śımbolos para exprimir os números certamente precederam as palavras para designá-los, pois a escrita cuneiforme e o processo de fazer incisões em pedaços de ossos ou bastões eram bem mais razoáveis e fáceis do que estabelecer frases. No quadro apresentado na figura (1.1), podemos observar os sistemas de numeração destacados, e suas respectivas simbologias representativas. 22 Figura 1.1: Primeiros sistemas de numeração. 1.1.2 Sistema de numeração indo-arábico O Sistema de Numeração Indo-Arábico ou Sistema de Numeração Posicional de Base 10 é atualmente, e desde um bom tempo, o sistema de numeração com o qual lidamos com todas as situações práticas que envolvam números nas ciências matemáticas e áreas afins. Vamos retratar alguns fatos históricos que elucidam o porque até hoje utilizamos tal sistema. “O sistema de numeração Indo-Arábico, surgiu no norte da Índia por volta do séc. V d.C., contudo, não há um consenso unânime na literatura sobre tal fato”. “Alguns estudiosos desta questão chegaram a defender que os hindus teriam ido buscar os prinćıpios do sistema de numeração aos gregos, segundo Cousquer (1994), quando no século IV a.C., a parte noroeste do páıs foi conquistada por Alexandre Magno”, destacado por [1] em sua tese de mestrado. Todavia, é reconhecidamente veŕıdica a atribuição histórica dada aos hindús pelo nosso sistema de numeração. As razões pelas quais tal sistema tão antigo prevalece até hoje, podem ser compreendidas por alguns fatores asseverativos quando comparado a outros sistemas de numeração antecedentes a este. Note esta observação proposta por [5]: 23 “Para que uma notação numérica seja perfeitamente adaptada à prática das operações escritas é necessário, não somente que ela repouse sobre o prinćıpio de posição, mas que possua também śımbolos significativos distintos (. . . ) Outra condição fundamental para que um sistema de numeração seja tão perfeito e eficaz é possuir o zero. Enquanto outros povos usaram numerações não posicionais, a necessidade desse conceito não se fez sentir.” O Sistema de Numeração Indo-Arábico dota-se de todos os śımbolos precursores do atual sistema de numeração e firma-se com a caracterização de valor posicional para cada algarismo. Em trechos da obra de Aryabhata, entitulada Aryabhatya (449 d. C.), apa- rece o trecho: “de lugar para lugar, cada um vale dez vezes o precedente. A disseminação desse sistema de numeração iniciou-se pelas regiões vizinhas, talvez pelo contato direto entre sábios (povos islâmicos já o conheciam), isso por volta do séc. VIII. As primeiras constatações sobre o uso desse sistema na Europa são devidas a uma tradução latina do tratado de Al-Khowârizmı̂, feita no século XII, e posteriores trabalhos europeus fei- tos sobre o assunto. Ainda na Europa, um primeiro divulgador de seu uso foi Gerbert (950 − 1003). Nascido em Auvugne, França, foi um dos primeiros cristãos a estudar nas escolas muçulmanas da Espanha, e ao retornar de seus estudos, tentou introduzir na Europa cristã os numerais indo-arábicos (sem o zero). Mais tarde também, Leonardo de Pisa já utilizava a notação indo-arábica em seus trabalhos, propiciando assim ampla divulgação e uso de tal sistema, colaborando efetivamente para sua introdução na Europa. No século XVI houve a padronização dos cálculos utilizando os numerais indo-arábicos. Praticamente tudo que fazia parte da realidade do homem, como astronomia, ciências, engenharia, comércio e até mesmo as guerras, avançaram de forma significativa, devido à praticidade operatória e representativa proporcionada pelos cálculos com o sistema indo- arábico. Façamos agora breves distinções para as definições de número, numeral e alga- rismo, para um melhor compreendimento do texto. 24 Número é um objeto da matemática usado para descrever quantidade, ordem ou me- dida. O conceito de número provavelmente foi um dos primeiros conceitos matemáticos assimilados pela humanidade no processo de contagem. Numeral é a palavra que indica os seres em termos numéricos, isto é, que atribui quantidade aos seres ou os situa em determinada sequência. Os númerais são por exemplo: um, dois, cinco, treze, metade, etc. Algarismo ou d́ıgito é um tipo de representação (um śımbolo numérico, como “2”ou “5”) usado em combinações (como “25”) para representar números (como o número 25) em sistemas de numeração posicionais. O nome ”d́ıgito”vem do fato de os 10 d́ıgitos (do latim digitum, “dedo”) das mãos corresponderem aos 10 śımbolos do sistema de nu- meração comum de base 10, isto é, o decimal (adjetivo do latim antigo dec. que significa dez) d́ıgitos. 1.2 Números naturais e base 10 Os fatos históricos relatados permitiram-nos concluir que mesmo empiricamente, o homem primitivo estava sujeito a advir um método de contagem que lhe permitisse organizar e controlar situações ao seu redor, como estimar a quantidade de cordeiros de seu rebanho ou a quantidade de ráızes que lhe possibilitaria sua subsistência. Vimos também que o instrumento mais primitivo de contagem utilizado para relacionar quantidade com obje- tos foram os dedos e posteriormente os agrupamentos de pedras(calculus), incisões em ossos e bastões, nós em cordas, e o surgimento do ábaco (por volta de 5500 anos atrás) considerado a primeira calculadora do homem, e certamente uma extensão natural do ato de se contar nos dedos. O primeiro conjunto numérico com o qual nos deparamos é o conjunto dos números naturais, constrúıdo a partir da śıntese proposta pelo matemático italiano Giuseppe Peano (1858 − 1932), que formalizou o estudo axiomático dos números naturais, estabe- lecendo noções primitivas e entes não definidos que permitiram extensões na Teoria dos Conjuntos. Apresentamos a seguir as afirmações que são conhecidas como axiomas de Peano: 25 i) Todo número natural tem um único sucessor, que também é um número natural; ii) Números naturais diferentes têm sucessores diferentes; iii) Existe um único número natural, chamado zero2 e representado pelo śımbolo 0, que não é sucessor de nenhum outro; iv) Seja X um conjunto de números naturais (isto é, X ⊂ IN). Se 0 ∈ X e se, além disso, o sucessor de todo elemento X ainda pertence a X, então X = IN . O conjunto N é denotado por: N = {0, 1, 2, 3, 4, 5, . . .}, que viria representar as noções mais primitivas que o homem tinha para poder quantificar elementos. Tal conjunto já era munido das operações de adição e multiplicação, alavan- cando bases para os estudos posteriores de divisibilidade e congruência. Não há uma data espećıfica que assinale o aparecimento do número natural, fato é que estes números são a base de nosso sistema de numeração. O sistema de numeração posicional decimal indo-arábico, ou simplesmente sistema de numeração de base 10 é composto de 10 śımbolos ou d́ıgitos, que são os algarismos. São eles: 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9. Cada d́ıgito, tem um valor denominado valor próprio. Assim, o algarismo 5 tem o valor próprio 5, isto é, ele representa a ideia comum (número) que existe ao compararmos todas as qúıntuplas de objetos deste mundo. Mas no número 2537, o algarismo 5 tem o denominado valor posicional, e nessa posição ele representa a ideia que temos do número quinhentos. Como os números são infinitos, podemos usar quantos algarismos (d́ıgitos) quanto queiramos para escrevê-los. Os valores posicionais da cada algarismo, representam produtos por potências consecutivas de base 10, a partir do primeiro algarismo lido da direita para esquerda, assim: • o primeiro algarismo é multiplicado por 100 = 1; • o segundo algarismo é multiplicado por 101 = 10; 2Na axiomatização original começa com 1 no lugar do 0. 26 • o terceiro algarismo é multiplicado por 102 = 100; • o quarto algarismo é multiplicado por 103 = 1000 . . .; • o n-ésimo algarismo é multiplicado por 10n = 1 00 . . . 0 ︸ ︷︷ ︸ n zeros . e assim sucessivamente. O número 12538 significa: 12538 = 1 · 104 + 2 · 103 + 5 · 102 + 3 · 101 + 8 · 100. Logo o valor posicional do algarismo representa diferentes quantidades conforme sua posição no número. Para facilitar a leitura de um número escrito na base 10 os algarismos são separados em agrupamentos ternários constituindo assim, os chamados peŕıodos ou classes. A primeira classe é denominada unidade simples, a segunda classe é a classe dos milhares, a terceira classe é a classe dos milhões, a quarta classe é a classe dos bilhões, e assim por diante. Cada classe é dividida em três ordens também da direita para esquerda: unidade, dezena e centena. No número 12538 por exemplo temos: • 8 unidades simples; • 3 dezenas; • 5 centenas; • 2 unidades de milhar; • 1 dezena de milhar; Como vimos, é imensurável o dimensionamento da importância desse sistema de nu- meração ao longo do tempo, todos os avanços e resultados alcançados graças a esta in- venção milenar do homem, um sistema fundamentalmente simples, provavelmente origi- nado de uma observação anatômica como destacou Aristóteles. 27 Considere então um número natural p, escrito sob a forma p = AnAn−1An−2...A2A1A0, onde Ai ∈ {0, 1, . . . , 9} e An 6= 0, que no sistema de numeração posicional decimal repre- senta o número: p = An · 10n + An−1 · 10n−1 + An−2 · 10n−2 + . . .+ A2 · 102 + A1 · 101 + A0 De um modo geral, um número natural p qualquer pode ser escrito numa base numérica b ∈ IN qualquer, logo p pode ser escrito sob a forma: p = An · bn + An−1 · bn−1 + An−2 · bn−2 + . . .+ A2 · b2 + A1 · b1 + A0 com n ≥ 0, An 6= 0 e para cada ı́ndice i ∈ {0, 1, ..., n} tem-se que Ai ∈ {0, 1, .., b− 1}. Mostremos agora que p pode ser escrito na forma dessa expressão, e portanto, ser escrito numa base numérica b qualquer. Pelo algoritmo da divisão de Euclides temos que: p = bq0 + A0. O número q0 é chamado de quociente e A0 é chamado resto da divisão, A0 ∈ {0, 1, ..., b− 1} e q0 < p. Dividindo q0 por b, da mesma forma como foi feito acima, obtemos A1 e q1 e q0 pode ser escrito como q0 = bq1 + A1, com A1 ∈ {0, 1, ..., b − 1} e q1 < q0. Prosseguindo enquanto for posśıvel, e observando que o quociente não pode ser negativo, chegará um momento em que ele será nulo. Supondo que quando tivermos o quociente nulo o resto será An, teremos: p = bq0 + A0, A0 ∈ {0, 1, ..., b− 1} qi = bqi+1 + Ai+1, Ai+1 ∈ {0, 1, ..., b− 1}, i = 0, 1.., n− 1. Substituindo o valor de q0 na primeira expressão e depois o valor de q1 na segunda, e assim sucessivamente, teremos: p = bq0 + A0 = b(bq1 + A1) + A0 = b2q1 + bA1 + A0 = b2(bq2 + A2) + bA1 + A0 = b3q2 + b2A2 + bA1 +A0 = . . . = bn−1(bqn−1 +An−1) + bn−2An−2 + . . .+ b2A2 + bA1 +A0 = 28 Anb n + An−1b n−1 + An−2b n−2 + . . .+ A1b+ A0. Fica evidente que cada um dos quocientes é também uma soma de produtos por potências de base b, assim podemos destacar que onde q0 = An · bn−1 + An−1 · bn−2 + An−2 · bn−3 + . . .+ A2 · b+ A1. Com este resultado fica demonstrado que o número inteiro positivo p pode ser escrito em qualquer base numérica b. Basta provar agora a unicidade de escrita do número p na base b, para tanto, vamos supor que o número p assuma as seguintes formas: p = AnAn−1An−2...A2A1A0, p = CmCm−1Cm−2...C2C1C0. Suponhamos que n ≤ m e An 6= 0. Então: p = Anb n + An−1b n−1 + . . .+ A1b+ A0 = Cmb m + Cm−1b m−1 + . . .+ C1b+ C0; com b 6= 0 e {n,m} ∈ IN. Note que A0 e C0 são os restos da divisão de p por b e Anb n−1 + An−1b n−2 + . . .+ A1 e Cmb m−1 +Cm−1b m−2 + . . .+C1 são os respectivos quocientes. Então, pela unicidade do quociente e do resto temos que: A0 = C0 e Anb n−1 + An−1b n−2 + . . .+ A1 = Cmb m−1 + Cm−1b m−2 + . . .+ C1. Portanto, temos que A1 = C1, e de maneira análoga, podemos notar que A2 = C2, . . . , An = Cm e n = m. Conclúımos então que a expressão de um número natural p numa determinada base numérica b é única. Visto que qualquer número natural p pode ser escrito de forma única em qualquer base que seja conveniente, é notável a significância desse resultado e as possibilidades de extensões usando tal prinćıpio. Ora, então qualquer número racional do tipo p q , p ∈ Z, q ∈ 29 Z∗, finito ou infinito (periódico) pode também ser escrito usando potências na base 10, ou seja todo número fracionário possui também uma representação decimal. Por exemplo, qual seria a representação do número 0, 2437 escrito como potência de 10? Caṕıtulo 2 Números Racionais 2.1 Números inteiros Antes de respondermos a questão proposta no final da seção 1.2, é conveniente apresen- tarmos um outro conjunto numérico que emergiu como extensão dos números naturais, já que estes já não eram suficientes para expressar as situações vividas pelo homem. Com o ińıcio do Renascimento e a expansão comercial, e consequente aumento de circulação do dinheiro, o homem se viu posto em situações concretas que envolviam lucros e prejúızos nas negociações. Para tanto, convencionou-se utilizar os sinais “+”a frente dos números para representar os lucros e “−”a frente de números que deseja-se representar os prejúızos. Foi então que o grande matemático alemão Georg Cantor (1845 − 1918) conhecido por ter elaborado a moderna Teoria dos Conjuntos, propôs uma notação espećıfica para a organização do conjunto dos números inteiros: Z = {. . . ,−3,−2,−1, 0, 1, 2, 3, . . .}1. Podemos destacar também outros importantes subconjuntos de Z. São eles: Z+ = {0, 1, 2, 3, 4, . . .} = IN(conjunto dos números inteiros não negativos), Z− = {. . . ,−4,−3,−2,−1, 0}(conjunto dos números inteiros não positivos) e 1O śımbolo Z provém do alemão Zahl que tem o significado de números contáveis, originado na concepção da Teoria dos Conjuntos. 30 31 Z∗ = {. . . ,−3,−2,−1, 1, 2, 3, . . .}(conjunto dos números inteiros não nulos). O conjunto dos números inteiros também está munido das operações fundamentais de adição e multiplicação. Tais operações gozam das propriedades que serão descritas abaixo. Considere os números inteiros p, q e s, então valem as propriedades: [A.1 ](Associativa da adição) (p+ q) + s = p+ (q + s), ∀p, q, s ∈ Z [A.2 ](Comutativa da adição) p+ q = q + p [A.3 ](Elemento neutro da adição) p+ 0 = p [A.4 ](Simétrico ou oposto para adição) Para todo p ∈ Z, existe −p ∈ Z tal que p+ (−p) = 0 [M.1 ](Associativa da multiplicação) (p · q) · s = p · (q · s) [M.2 ](Comutativa da multiplicação) p · q = q · p [M.3 ](Elemento neutro da multiplicação) p · 1 = p [M.4 ](Distributiva da multiplicação relativamente à soma) p · (q + s) = p · q + p · s 32 Devido à propriedade [A.4] podemos definir em Z a operação de subtração, estabele- cendo que: p− q = p+ (−q), ∀p, q ∈ Z. O produto de números inteiros envolve sempre dois fatores. Vamos considerar então os números p e q tais que p, q ∈ Z∗. Para realizar a multiplicação de p por q, podemos nos deparar com os seguintes casos: 1) Se p > 0 e q > 0, então p · q > 0. 2) Se p > 0 e q < 0, então p · q < 0. 3) Se p < 0 e q > 0, então p · q < 0. 4) Se p < 0 e q < 0, então p · q > 0. 2.2 Racionais com representação decimal finita Como vimos inicialmente uma definição informal e bastante sucinta difundida sobre o que é a Matemática, é que esta é a ciência que trata essencialmente dos números, grandezas, formas e variações dessas formas, edificada sobre uma estrutura racional lógico-dedutiva. Pois dessa forma, deparamo-nos inevitavelmente com problemas relacionados a medidas, como determiná-las e quais técnicas utilizar para efetuar medidas. O problema de medir é bem antigo, segundo nos relata o historiador Heródoto: “O rei Sesótris repartiu o Egito (cerca de 4000 anos atrás) em porções retangulares de terra entre a população eǵıpcia, com a obrigação de cada indiv́ıduo pagar um certo tributo por ano. Se algum terreno fosse diminúıdo pelas águas do Nilo, que o dono reclamasse ao rei, este mandaria medidores ao local para saber de quanto tinha diminúıdo, e conse- quentemente o tributo seria diminúıdo.” Para efetuar medidas devemos sempre comparar duas grandezas de mesma espécie, ou seja área com área, volume com volume, comprimento com comprimento, massa com 33 massa, . . . etc. Então o processo de se determinar uma medida consiste de uma com- paração conveniente entre o que se deseja medir e um objeto ou figura semelhante tomado como unidade de medida. É evidente que a escolha da unidade de medida deve ser ade- quada conforme seja o caso, assim para se medir a extensão de uma rodovia, uma unidade de medida conveniente é o quilômetro, ou para se medir a área de um terreno residencial, devemos utilizar como unidade de medida o m2. Considere um segmento de reta AB. Para medi-lo é necessário adotarmos uma uni- dade de medida (segmento unitário) conveniente, ou seja, obter um segmento-padrão de medida u. Por definição, a medida do segmento u é igual a 1. Suponha que sejam feitas q−1 divisões em segmentos congruentes do segmento AB, obtendo assim q segmentos que justapostos são exatamente iguais. Se estes segmentos forem congruentes com u, diremos que u cabe q vezes em AB e a medida do segmento AB será igual a q. Ocorre que nem sempre que efetuamos uma medida, a unidade de medida cabe um número exato de vezes no que se deseja medir, e a medida do segmento AB não será por- tanto um número natural. Temos então as chamadas medidas fracionárias, ou racionais. Vamos obter então um outro segmento de reta de medida w que caiba q vezes no segmento unitário u e p vezes no segmento AB. Tal segmento será portanto uma medida comum à u e à AB. Encontrado w, diremos que AB e u são comensuráveis. A medida de w será a fração 1/q e se w cabe p vezes em AB então a medida do segmento AB será: p · 1 q = p q . O conjunto formado por todos os segmentos comensuráveis que possuem um número associado a sua medida é chamado conjunto dos números racionais, denotado por Q e definido por: Q = {p q ; p ∈ Z, q ∈ Z∗} Diz-se ser um número racional todo número que pertença ao conjunto dos números ra- cionais. Nesta seção exploraremos essencialmente os números racionais com representação 34 finita escritos em base 10. O valor posicional de cada algarismo da parte decimal dessa forma é então um produto por potências decrescentes de base 10. Assim, a casa à direita da casa das unidades deve representar uma quantidade 10 vezes menor que a unidade, ou seja, deve representar o que chamamos de décimo, a segunda casa à direita do décimo, representa uma quantidade 10 vezes menor que o décimo denominado centésimo, e assim sucessivamente, portanto: • o primeiro algarismo é multiplicado por 10−1 = 1 10 = 0, 1 (décimo); • o segundo algarismo é multiplicado por 10−2 = 1 100 = 0, 01 (centésimo); • o terceiro algarismo é multiplicado por 10−3 = 1 1000 = 0, 001 (milésimo); • o quarto algarismo é multiplicado por 10−4 = 1 10000 = 0, 0001 (décimo de milésimo); ... • o p-ésimo algarismo é multiplicado por 10−p = 1 1 0 . . . 00 ︸ ︷︷ ︸ p zeros = 0, 00 . . . 0 ︸ ︷︷ ︸ p−1 zeros 1 Respondendo então a questão apresentada na seção (1.2), temos que o número 0, 2437 significa: 0, 2437 = 2 · 10−1 + 4 · 10−2 + 3 · 10−3 + 7 · 10−4. Podemos então generalizar a escrita de um número racional com representação finita da seguinte forma: ± RnRn−1Rn−2 . . . R2R1R0, r1r2r3r4 . . . rq−1rq, onde RnRn−1Rn−2 . . . R2R1R0 representa a parte inteira do número e 0, r1r2r3r4 . . . rq−1rq representa a parte decimal do número escrito na base 10, com Ri ∈ {0, 1, . . . , 9}, Rn 6= 0 e rl ∈ {0, 1, . . . , 9}, e tal número significa: ± Rn·10n+Rn−1·10n−1+. . .+R2·102+R1·10+R0+r1·10−1+r2·10−2+. . . rq−1·10−q+1+rq·10−q. 35 2.2.1 Operações elementares no sistema de numeração posicio- nal de base 10 Considere os números racionais com representação finita p = AnAn−1 . . . A2A1A0, a1a2a3 . . . ap e q = RmRm−1 . . . R2R1R0, r1r2r3 . . . rq ambos escritos na base 10. Considere também que An 6= 0 , Rm 6= 0 e m < n e q < p. Sabe-se que: p = An ·10n+An−1 ·10n−1+ . . .+A2 ·102+A1 ·10+A0+a1 ·10−1+a2 ·10−2+ . . .+ap ·10−p, e q = Rm ·10m+Rm−1 ·10m−1+ . . .+R2 ·102+R1 ·10+R0+r1 ·10−1+r2 ·10−2+ . . . rq ·10−q. Para efetuar-se a soma entre p e q, deve-se colocar as bases numéricas com mesmo ı́ndice deixando a potência em evidência e somando seus coeficientes, assim: p+q = (An ·10n+An−1 ·10n−1+ . . .+A2 ·102+A1 ·10+A0+a1 ·10−1+a2 ·10−2+ . . .+ ap · 10−p)+ (Rm · 10m +Rm−1 · 10m−1+ . . .+R2 · 102+R1 · 10+R0+ r1 · 10−1 + r2 · 10−2 + . . .+ rq · 10−q) = An · 10n +An−1 · 10n−1 + . . .+ 10m · (Am +Rm) + . . .+ 102 · (A2 +R2) + 10·(A1+R1)+(A0+R0)+10−1 ·(a1+r1)+10−2 ·(a2+r2)+. . .+10q ·(aq+rq)+. . .+ap ·10−p Se porventura a soma dos coeficientes de uma determinada potência de 10 exceder o valor numérico ou for igual a 10, que é o valor da base, ou seja se (Ai + Ri) ≥ 10 ou (ak + rk) ≥ 10, teremos Ai +Ri = 10 + x (ak + rk = 10 + y, respect.), com 0 ≤ x, y < 10, {x, y} ∈ N ou seja a soma dos coeficientes é igual a base 10 mais um certo valor x (y), que nesse caso pode ser inclusive nulo. Dessa forma permanece o valor x (y) como fator do produto da base que excedeu o valor 10 na soma de seus coeficientes, e acrescenta-se 1 na soma dos coeficientes da potência de 10 seguinte, isso porque excedemos 10 unidades em uma ordem, e assim temos aumentado em 1 a quantidade da ordem posterior, e esse processo ocorre sucessivamente dessa maneira. Dessa forma, na soma dos números p e q 36 como definidos acima temos: p+ q = An ·10n+. . .+Ai ·10i+. . .+A2 ·102+A1 ·10+A0+a1 ·10−1+. . .+ak ·10−k+. . .+ap ·10−p + Rm ·10m+. . .+Ri ·10i+. . .+R2 ·102+R1 ·10+R0+r1 ·10−1+. . .+rk ·10−k+. . .+rq ·10−q = An ·10n+ . . .+10m ·(Am+Rm)+ . . .+10i+1 ·(Ai+1+Ri+1+1)+10i ·(x)+ . . .+(A0+R0)+ 10−1 ·(a1+r1)+. . .+10−k+1 ·(ak+1+rk+1+1)+10−k ·(y)+. . .+10−q ·(aq+rq)+. . .+10−p ·ap. Para a diferença entre os números racionais finitos p e q, temos os seguintes casos: 1) Se p > q, então definimos p− q = p+ (−q). 2) Se p < q, então definimos p− q = −(q − p) = −(q + (−p)). Considere os números p e q descritos inicialmente. Vamos realizar a subtração de p por q descrita em 1): p− q = p+ (−q) = (An ·10n+An−1 ·10n−1+ . . .+A2 ·102+A1 ·10+A0+a1 ·10−1+a2 ·10−2+ . . .+ap ·10−p)+ (−Rm ·10m−Rm−1 ·10m−1−. . .−R2 ·102−R1 ·10−R0−r1 ·10−1−r2 ·10−2−. . .−rq ·10−q) = An · 10n +An−1 · 10n−1 + . . .+ 10m · (Am −Rm) + . . .+ 102 · (A2 −R2) + 10 · (A1 −R1) + (A0 −R0) + 10−1 · (a1 − r1) + 10−2 · (a2 − r2) + . . .+ 10q · (aq − rq) + . . . ap · 10−p Se porventura a diferença entre algum dos coeficientes for negativa, ou seja, se Ai − Ri < 0 ou ak − rk < 0 então procedemos da seguinte maneira: subtráımos o valor 1 da soma dos coeficientes da potência de 10 posterior, no caso 10i+1 (10−k+1 respec.), e acrescentamos o valor 10 onde a soma dos coeficientes é negativa, logo (Ai −Ri +10) > 0 ((ak − rk + 10) > 0). Estamos na verdade, “cedendo”um agrupamento de 10 da ordem posterior à ordem anterior. Portanto, temos que: p− q = p+ (−q) = An · 10n + . . .+Ai · 10i + . . .+A2 · 102 +A1 · 10 +A0 + a1 · 10−1 + . . . + ak · 10−k + . . . + ap · 10−p + (−Rm · 10m − . . .− Ri · 10i − . . .− R2 · 102 − R1 · 10− R0 − r1 · 10−1 − . . .− rk · 10−k − . . .− rq · 10−q) = An · 10n + . . .+ 10m · (Am −Rm) + . . .+ 10i+1 · (Ai+1 −Ri+1 − 1) + 10i · (Ai −Ri + 10) + 37 . . .+(A0 −R0)+ 10−1 · (a1 − r1)+ . . .+10−k+1 · (ak+1 − rk+1 − 1)+ 10−k · (ak − rk +10)+ . . .+ 10−q · (aq − rq) + . . .+ 10−p · ap. É evidente que o procedimento descrito acima é realizado de maneira análoga quando consideramos a hipótese 2) para diferença entre números racionais finitos. Demonstramos dessa forma como são calculadas a soma e a diferença entre números racionais com representação finita no sistema de numeração posicional de base 10, e podemos agora facilmente compreender porque se pode somar ou subtrair dois números posicionando-os um abaixo do outro, somando ou subtraindo os coeficientes das bases de mesmo expoente. As operações de soma e subtração de números racionais com representação finita são comumente efetuadas armando a conta na vertical, respeitando-se a ordem de cada al- garismo que compõe o número, tanto para parte inteira quanto para a parte decimal do número. Na prática, cada algarismo dos números que compõem a operação fica embaixo da sua respectiva posição em cada uma das classes. Abaixo, apresentaremos exemplos para as operações consideradas: Exemplo 2.2.1. Determine a soma de 562, 83 com 79, 7: 562, 83 + 79, 7 = (5 · 102 + 6 · 10 + 2 + 8 · 10−1 + 3 · 10−2) + (7 · 10 + 9 + 7 · 10−1) = 5·102+(6+7)·10+(2+9)+(8+7)·10−1+3·10−2 = 5·102+13·10+11+15·10−1+3·10−2 = ∗ Na soma, observe que os números em destaque excedem o valor 9, e sempre que isso ocorrer procederemos como descrito acima. Temos então ∗ = 5·102+13·10+(11+1)+5·10−1+3·10−2 = 5·102+13·10+12+5·10−1+3·10−2 = 5 · 102 + (13 + 1) · 10 + 2 + 5 · 10−1 + 3 · 10−2 = 5 · 102 + 14 · 10 + 2 + 5 · 10−1 + 3 · 10−2 = (5+1) ·102+4 ·10+2+5 ·10−1+3 ·10−2 = 6 ·102+4 ·10+2+5 ·10−1+3 ·10−2 = 642, 53 Exemplo 2.2.2. Determine a diferença entre 75, 653 e 9, 42: 38 75, 653− 9, 42 = 75, 653+ (−9, 42) = (7 · 10+ 5+6 · 10−1 +5 · 10−2 +3 · 10−3)+ (−9− 4 · 10−1 − 2 · 10−2) = 7 · 10 + (5-9) + (6− 4) · 10−1 + (5− 2) · 10−2 + 3 · 10−3 = ∗ Observe que a diferença entre os coeficientes destacados é negativa, então procedemos como descrito acima. Temos então ∗ = (7− 1) · 10 + (5− 9 + 10) + 2 · 10−1 + 3 · 10−2 + 3 · 10−3 = 6 · 10 + 6 + 2 · 10−1 + 3 · 10−2 + 3 · 10−3 = 66, 233 Veremos agora como se realiza a multiplicação e divisão no sistema de numeração po- sicional decimal. Para tanto, considere os números p e q definidos no ińıcio da subseção. Sabemos que: p = An ·10n+An−1 ·10n−1+ . . .+A2 ·102+A1 ·10+A0+a1 ·10−1+a2 ·10−2+ . . .+ap ·10−p e q = Rm ·10m+Rm−1 ·10m−1+ . . .+R2 ·102+R1 ·10+R0+r1 ·10−1+r2 ·10−2+ . . .+rq ·10−q. O produto de p por q é definido então por: p ·q = ∑ i=0,...,n;j=0,...m AiRj ·10i+j+ ∑ i=0,...,n;k=1,...q Airk ·10i−k+ ∑ l=1,...,p;j=0,...m alRj ·10−l+j+ ∑ l=1,...,p;k=1,...q alrk · 10−l−k. Consideremos o caso onde o produto dos coeficientes seja maior do que ou igual a 10, ou seja, se AiRj = st, Airk = st, alRj = st ou alrk = st com s, t ∈ IN satisfazendo 1 ≤ s ≤ 9, 0 ≤ t ≤ 9 e st ≥ 10. Então o algarismo t permanece multiplicando a potência de 10 onde o produto de seus coeficientes ficou maior ou igual a base, e o algarismo s é somado aos coeficientes da potência de 10 imediatamente maior, e assim sucessivamente. Exemplo 2.2.3. Determine o produto de 5, 32 por 17, 12: 5, 32× 17, 12 = (5 + 3 · 10−1 + 2 · 10−2) · (1 · 10 + 7 + 1 · 10−1 + 2 · 10−2) = 5 ·10+35+5 ·10−1+10 ·10−2+3+21 ·10−1+3 ·10−2+6 ·10−3+2 ·10−1+14 ·10−2+2 ·10−3+ 4 ·10−4 = (50+35+3)+(21+2+5) ·10−1+(10+3+14) ·10−2+(6+2) ·10−3+(4) ·10−4 = 39 88 + 28 · 10−1 + 27 · 10−2 + 8 · 10−3 + 4 · 10−4 = ∗ Na soma, observe que os números em destaque excedem o valor 9. Assim procedemos como descrito acima. Temos então ∗ = 88+ (28+ 2) · 10−1 +7 · 10−2 +8 · 10−3 +4 · 10−4 = (88+ 3) + 0 · 10−1 +7 · 10−2 + 8 · 10−3 + 4 · 10−4 = 91, 0784. Na divisão de números racionais com representação finita temos envolvidos os ele- mentos usados na divisão aritmética. São eles: dividendo, divisor, quociente e resto. Ocorre que ao obtermos um resto inteiro menor que o divisor, podemos fracioná- lo em décimos e continuar o processo de divisão; o próximo resto pode ser fracionado em centésimos, e assim sucessivamente, portanto a divisão consiste de um processo de divisão continuada. Sabemos que todo número racional p q , p ∈ Z, q ∈ Z∗ admite uma re- presentação decimal, e para representar uma fração ordinária em sua forma decimal basta dividirmos o numerador (dividendo) pelo denominador (divisor) da fração. Note que, na divisão de números racionais sempre é posśıvel obter frações equivalentes com dividendo e divisor inteiros, a fim de “eliminarmos”a parte decimal dos números. Abaixo, um exemplo ilustrativo do processo de divisão de números racionais. Exemplo 2.2.4. Vamos dividir 235, 008 por 43, 2, temos então: 235, 008 43, 2 = 235008 43200 Utilizando o método das chaves temos: Na prática, para efetuar tal divisão, geralmente o professor impõe a seguinte regra: 40 • Primeiro igualar as casas decimais (ordens à direita da unidade após a v́ırgula) dos dois números; • Em seguida, “cancelar”a v́ırgula; • Finalmente efetua-se a divisão euclidiana. Tal processo consiste simplesmente em encontrar frações equivalentes com numerador e denominador inteiros, a fim de realizarmos a divisão tal como foi concebida. Ocorre que na divisão de números racionais, nem sempre a expressão decimal obtida como resultado é um número racional com representação finita. Podemos obter também números cuja representação não é finita porém é periódica: são as chamadas d́ızimas periódicas que serão tratadas na seção seguinte. Com isso, encerramos as operações aritméticas básicas no sistema de numeração posicional de Base 10 envolvendo números racionais com repre- sentação finita. 2.3 Dı́zimas e expressões decimais Todo número racional admite uma representação dada por uma fração ordinária, repre- sentação esta que é única se tomarmos as frações com denominador positivo e em forma irredut́ıvel.2Para obtermos a representação decimal de um número racional, basta efetuar a divisão do numerador pelo denominador da fração. Na seção anterior, vimos um exem- plo de divisão de números racionais encontrando como resultado um número decimal com representação finita. A divisão de números racionais terá como resultado um número decimal com repre- sentação finita, sempre que na decomposição do denominador da fração em forma irre- dut́ıvel tivermos apenas um produto de fatores primos de potências de 2 e/ou 5 (ver lema (2.3.3)). Isso é verdadeiro pois assim sempre será posśıvel obter frações equivalentes, in- troduzindo os fatores 2 e 5 de tal forma que o denominador sempre será uma potência de 2Frações irredut́ıveis são frações que possuem o numerador e o denominador primos entre si, e neste caso o único divisor comum dos dois números é o número 1, logo tais frações não podem ser simplificadas. 41 10. Veja os exemplos abaixo: 9 5 = 9× 2 5× 2 = 18 10 = 1, 8 17 40 = 17 23 × 5 = 17× 52 23 × 53 = 425 1000 = 0, 425 91 80 = 91 24 × 5 = 91× 53 24 × 54 = 11375 10000 = 1, 1375 Mas o que acontece então se tivermos fatores diferentes de 2 e 5 na decomposição do denominador em fatores primos? Observe abaixo a divisão de 8 por 3: Podemos notar que neste caso o resultado da divisão é um número com representação decimal infinita e periódica e sempre que tivermos fatores diferentes de 2 ou 5 na decom- posição do denominador em fatores primos, o resultado da divisão remete a um número com expressão decimal infinita e periódica, fato este que será demonstrado posteriormente. Portanto um número N com expressão decimal infinita e periódica é: N = ± R, r1r2 . . . rn . . . onde R representa a parte inteira do número e r1, r2, . . . , rn, . . . ∈ {0, 1, 2, . . . , 9} são os d́ıgitos que representam a parte decimal infinita, que em algum momento comporá um peŕıodo constante que se repete infinitamente. No sistema de numeração posicional decimal o número N representa: N = ± R+ r1 · 10−1 + r2 · 10−2 + . . .+ rn · 10−n + . . . = R+ r1 10 + r2 102 + . . .+ rn 10n + . . . 42 Antes de formalizarmos o conceito de d́ızima periódica para representar números raci- onais com representação decimal infinita e periódica, vamos ressaltar que a representação decimal de um número racional não é única. Para tanto, considere o número racional: α = 0, 999 . . . = 9 10 + 9 100 + 9 1000 + . . . Afirmamos que α = 1. Com um número suficientemente grande de casas decimais a diferença entre 1 e α é tão pequena, que nos permite concluir que o número α = 0, 999 . . . tem como limite o número 1 e portanto 0, 999 . . . = 1. Podemos concluir portanto que a expressão decimal de um número racional qualquer não é única. Veja os exemplos a seguir: 4, 999 . . . = 5; 0, 6999 . . . = 0, 7; 20, 24999 . . . = 20, 25. Podemos generalizar tal fato afirmando que as expressões decimais R, r1 . . . rn999 . . . e R, r1 . . . (rn + 1)000 . . . representam o mesmo número racional. Definição 2.3.1. Uma expressão decimal R, r1r2 . . . chama-se d́ızima periódica simples, de peŕıodo a1a2 . . . ap quando os primeiros p d́ıgitos após a v́ırgula se repetem indefinida- mente na mesma ordem. São exemplos de d́ızimas periódicas simples: 0, 555 . . . ; 7, 444 . . . ; 22, 313131 . . . ; 9, 273273273 . . . ; etc. Quando uma d́ızima periódica possui um ante-peŕıodo, ou seja um grupo de algaris- mos que antecedem a parte periódica da d́ızima, classificamo-las como d́ızimas periódicas compostas. São exemplos de d́ızimas periódicas compostas: 0, 2333 . . . ; 8, 2545454 . . . ; 21, 2735414141 . . . ; etc. 2.3.1 Geratriz de uma d́ızima periódica Vamos inicialmente definir geratriz de uma d́ızima periódica simples justificando a validade da definição e em seguida explicar também um processo para obter as geratrizes de d́ızimas periódicas compostas. 43 Definição 2.3.2. Chama-se geratriz de uma d́ızima periódica simples a fração cujo nu- merador é o peŕıodo e cujo denominador é o número formado por tantos noves quantos são os algarismos do peŕıodo. É fato que 0, 999 . . . = 9 10 + 9 100 + 9 1000 + . . . = 1, dividindo por 9, temos que 0, 111 . . . = 1 10 + 1 100 + 1 1000 + . . . = 1 9 (2.1) Multiplicando a expressão (2.1) por a, ∀a ∈ IN , obtemos 0, aaa . . . = a 10 + a 100 + a 1000 + . . . = a 9 . Podemos dizer então que: 0, 555 . . . = 5 9 . Estendendo o resultado, podemos observar também que 9 10 + 9 100 = 99 100 , 9 1000 + 9 10000 = 99 10000 , etc., dessa forma: 1 = ( 9 10 + 9 100 ) + ( 9 1000 + 9 10000 ) + . . . = 99 100 + 99 10000 + . . . = 99 ( 1 100 + 1 1002 + . . . ) (2.2) Dividindo a equação (2.2) por 99, temos que 1 100 + 1 1002 + 1 1003 . . . = 1 99 . (2.3) Multiplicando a equação (2.3) por ab, a ∈ {1, 2, . . . , 9} e b ∈ {0, 1, . . . , 9}, obtemos que 0, ababab . . . = ab 100 + ab 1002 + ab 1003 + . . . = ab 99 . Podemos citar como exemplo que: 0, 454545 . . . = 45 100 + 45 1002 + 45 1003 + . . . = 45 99 . 44 De maneira análoga, podemos mostrar que 0, 374374374 . . . = 374 1000 + 374 10002 + 374 10003 + . . . = 374 999 . Este procedimento estende-se para todas as d́ızimas periódicas simples. Agora, vamos descrever um procedimento para obter a geratriz de uma d́ızima periódica composta, como segue no exemplo abaixo: Seja x = 0, 42353535 . . ., então: 100x = 42, 353535 . . . = 42 35 99 = = 42× 99 + 35 99 = 42(100− 1) + 35 99 = = 4200− 42 + 35 99 = 4235− 42 99 . Portanto, x = 4235− 42 9900 . O procedimento descrito acima, sugere a aplicação de uma regra para encontrar a geratriz de uma d́ızima periódica composta conforme [8]: “A geratriz de uma d́ızima periódica composta é a fração cujo numerador é igual a parte não-periódica (42) seguida de um peŕıodo (35) menos a parte não-periódica e cujo o denominador é formado por tantos noves quantos são os algarismos do peŕıodo, seguidos de tantos zeros quantos são os algarismos da parte não-periódica.” Vimos então que para se obter a geratriz de d́ızimas periódicas, sejam estas simples ou compostas, podemos utilizar os métodos descritos acima. Para obtermos a representação decimal de frações irredut́ıveis ordinárias, é sabido que o método conveniente é efetuar- se o processo de divisão continuada do numerador pelo denominador. Mas será posśıvel identificar através da fração ordinária se sua representação decimal será finita, uma d́ızima periódica simples ou uma d́ızima periódica composta? A resposta é sim, veja abaixo os resultados posśıveis: 45 1. Uma fração ordinária irredut́ıvel p/q, quando transformada em decimal, tem uma representação decimal finita ou infinita periódica (d́ızima periódica). Vimos que o primeiro caso ocorre se q = 2m · 5n com m,n ∈ IN e o segundo caso ocorre quando q = 2m · 5n · s1 · . . . · st com m,n ∈ IN e s1, . . . , st primos com 10. 2. Quando o denominador q é primo com 10, ou seja quando q = s1 · . . . · st com s1, . . . , st primos diferentes de 2 e 5, a d́ızima periódica gerada pela fração p/q é simples, ou seja o peŕıodo começa no primeiro algarismo decimal. 3. Se q = 2m ·5n ·s1 · . . . ·st com m,n ∈ IN , m,n não nulos ao mesmo tempo e s1, . . . , st primos com 10, ou seja, caso q seja diviśıvel por 2 ou por 5 e também por um outro número primo diferente de 2 e 5, a d́ızima periódica gerada pela fração irredut́ıvel p/q é composta, isto é, a parte decimal possui algarismos formando um ante-peŕıodo antes da parte periódica. O número de algarismos do ante-peŕıodo é igual ao maior expoente de uma potência de 2 ou de 5 pela qual q é diviśıvel. Os resultados serão justificados tendo como aporte os lemas a seguir: Lema 2.3.3. Toda fração ordinária irredut́ıvel p/q com denominador q = 2a · 5b pode ser representada por uma fração decimal. Demonstração. Se p/q for decimal finito, podemos representá-lo da forma: p q = A, a1a2 . . . ak = A+ a1 10 + a2 102 + . . .+ ak 10k = r 10k . Como p q = r 10k , então p · 10k = q · r, além disso p e q são primos entre si, logo q | 10k. Tomamos então q = 2a · 5b, com a, b ∈ IN . Assim: p q = p 2a · 5b · 2b · 5a 2b · 5a = 2b · 5a · p 2a+b · 5a+b = 2b · 5a · p (2 · 5)a+b = 2b · 5a · p 10a+b (2.4) Como o denominador da equação (2.4) é uma potência de 10, temos então que toda fração ordinária irredut́ıvel p/q pode ser representada por uma fração decimal e possui portanto representação decimal finita. 46 Lema 2.3.4. Todo número natural q primo com 10 têm um múltiplo cuja representação decimal é formada apenas por noves. Demonstração. Se o número q é primo com 10, então na decomposição de q em fatores primos não aparecem os fatores 2 e 5. Temos que os números 9; 99; 999; 99 . . . 9 quando divididos por q deixam restos r ∈ IN tal que 0 ≤ r < q − 1, gerando então um número finito de restos. Existem portanto dois números formados por noves que deixam o mesmo resto quando divididos por q. Sejam x e x ′ esses números, temos que: x− x ′ = k e q | k e além disso, k = 99...90...0. Então: n · q = k = 99...90...0 = 99...9 · 10m. Assim q | 99...9 · 10m e como q é primo com 10m, segue que q | 99...9. Lema 2.3.5. Todo número natural q têm um múltiplo cuja representação decimal é for- mado por uma série de noves seguidos por uma série de zeros. O menor múltiplo de q desta forma termina com um número de zeros igual ao maior expoente de uma potência de 2 ou 5 pela qual q é diviśıvel. Demonstração. Temos que q = 2a · 5b · s1 · . . . · st onde s1, . . . , st são primos com 10. Suponha a > b. Então a é o maior expoente de uma potência de 2 ou 5 pela qual q é diviśıvel. Seja n o menor natural tal que: n · s1 · . . . · st = 99...9. Então o menor múltiplo de q formado por noves seguidos de zeros é: 5a−b · n · q = 10a · n · s1 · . . . · st = 99...90...0 (a zeros no final) O Teorema a seguir é imediato. Teorema 2.3.6. Toda fração irredut́ıvel p/q é equivalente a uma fração cujo denominador tem uma das formas 10...0, 99...9 ou 99...90...0. Temos os seguintes casos: 1) Se q = 2a · 5b então p q = n 10...0 ; 2) Se q é primo com 10, então p q = n 99...9 ; 3) Se q = 2a ·5b ·s1 · . . . ·st onde o produto s1 · . . . ·st é primo com 10, então p q = n 99...90...0 . 47 Nos casos 1) e 3), se o numerador n não terminar em zero, o número de zeros do denominador é igual ao maior dos expoentes a ou b. Demonstração. Decorre imediatamente dos lemas apresentados anteriormente, basta obter uma fração equivalente conforme o caso. Caṕıtulo 3 Números Reais Nos caṕıtulos anteriores foram explorados à priore os primeiros métodos de contagem, inevitavelmente surgidos vistas as necessidades práticas do homem, originando assim os números naturais (providos para associar quantidades a tudo o que vinha da natureza); a posteriori o advento dos números inteiros novamente aludidos frente aos avanços da sociedade (expansão comercial, problemas de outra natureza envolvendo quantidades ne- gativas) e o consequente conceito de comensurabilidade entre grandezas e as razões entre números inteiros, pareciam ser suficientes para elucidar qualquer questão prática rela- cionada à problemas envolvendo determinação de comprimentos e medidas. O método demonstrativo que embasou toda a geometria demonstrativa, deduzido pelo matemático, filósofo e astrônomo Tales de Mileto (considerado um dos “sete sábios”da antiguidade, durante a primeira metade do século VI a.C.) já estava consolidado e sucedeu incontáveis avanços no estudo das relações abstratas envolvendo números 1. Mais tarde Pitágoras de Samos (nascido por volta de 572 a.C.), que provavelmente fora disćıpulo de Tales, fun- daria em Crotona (Sul da Itália) a escola pitagórica, um centro de estudos de filosofia, matemática e ciências naturais, caracterizada por ser uma irmandade estreitamente unida por ritos e cerimônias. A filosofia doutrinadora da escola pitagórica fundamentava-se na suposição de que a 1Para os gregos, o estudo das relações abstratas envolvendo números estava inserido num ramo da matemática denominado loǵıstica, atualmente designado como teoria dos números. 48 49 causa última das várias caracteŕısticas do homem e da matéria são os números inteiros, ou seja, para os seguidores da escola pitagórica, tudo podia ser expresso através dos números inteiros. Os seguidores da escola pitagórica propuseram os conceitos de números perfeitos, números amigos, além de outros tantos resultados, mas talvez o resultado mais impor- tante, que leva o nome do mentor da escola pitagórica, tenha sido o renomado Teorema de Pitágoras. É fato que os números racionais até então eram suficientes para qualquer si- tuação envolvendo números e operações aritméticas. No caṕıtulo anterior definimos o que são segmentos comensuráveis, o que nos conduz a uma interpretação geométrica bastante simples. Numa reta horizontal marque os pontos O e X (O à esquerda de X), o segmento OX é tomado como unidade de medida. Numa correspondência biuńıvoca atribúımos va- lor 0 ao ponto O e valor 1 ao ponto X, assim a unidade de medida OX tem comprimento unitário. Podemos então estender a correspondência entre número inteiros e pontos da reta da seguinte maneira: à direita de O, para cada ponto na extremidade do segmentos unitários subsequentes, atribúımos um número inteiro positivo (de forma crescente). Da mesma forma, à esquerda de O, para cada ponto na extremidade dos segmentos unitários antecedentes atribúımos um número inteiro negativo (de forma decrescente). As frações de denominador q podem ser representadas pelos pontos que dividem cada um dos inter- valos unitários em q partes. Portanto para cada número racional correspondia um ponto da reta. Acreditava-se que cada ponto da reta teria um correspondente número racional associado a ele. Contudo, uma descoberta atemorizante atribúıda aos pitagóricos causaria uma enorme crise, conflitando com o que acreditava-se ser uma verdade incontestável sobre a sui ge- neris existência dos números racionais. Certamente foi causa de espanto e surpresa para os pitagóricos descobrir que há pontos na reta que não correspondem a nenhum número racional. A constatação geométrica de tal fato, além de extremamente relevante é bas- tante simples de se ver: os pitagóricos demonstraram que não há nenhum número racional associado ao ponto P da reta no caso em que OP é a diagonal de uma quadrado de lado medindo uma unidade (veja a figura (3.1)). Essa grande descoberta trouxe a tona o surgi- mento de novos números para associarmos a estes pontos da reta; posto que esses números 50 não eram racionais, foram então chamados de números irracionais. Este certamente é um marco revolucionário para o desenvolvimento da matemática. Figura 3.1: Números irracionais Vamos provar a seguir que a diagonal de um quadrado de lado unitário não corresponde a nenhum número racional. Se a = OP que é a medida da diagonal do quadrado, então pelo teorema de Pitágoras sabemos que em qualquer triângulo retângulo onde a é a medida da hipotenusa, e b e c as medidas dos catetos respectivamente, temos: a2 = b2 + c2. (3.1) Na situação geométrica descrita acima, como os catetos medem 1 = b = c, então a medida da diagonal OP do quadrado é dada substituindo os valores na equação (3.1), então: a2 = 12 + 12 ⇔ a2 = 2 ⇔ a = √ 2 Proposição 3.0.7. O número √ 2 é um número irracional. Demonstração. Suponha que √ 2 seja um número racional, então existem p e q inteiros, p e q primos entre si tais que √ 2 = p/q, então: p = q √ 2. (3.2) Elevando os dois membros da equação (3.2) ao quadrado temos p2 = 2q2. (3.3) Como p2 é o dobro de um inteiro, concuĺımos que p2 é par, então p também é par e portanto p = 2r. Substituindo o valor de p na equação (3.3) temos: (2r)2 = 2q2 ⇒ 4r2 = 2q2 ⇒ 2r2 = q2. 51 Dessa forma q2 também é par, então q também é par. Mas isso é um absurdo, pois na hipótese inicial admitimos p e q primos entre si, ou seja a fração p/q deve ser irredut́ıvel. Portanto, o número √ 2 não é racional e assim temos que √ 2 é um número irracional. A demonstração da irracionalidade de √ 2 pelos pitagóricos 2 causou grande descon- forto na escola pitagórica, a ponto de esconderem durante um bom tempo, inclusive ameaçando e punindo severamente quem viesse a revelar o feito. Com a descoberta de números que não eram racionais ,ou seja, números que não eram comensuráveis com a unidade, os alicerces da filosofia pitagórica estavam abalados, pois até então admitia-se que todas as grandezas eram comensuráveis com a unidade. Em outras palavras, existem segmentos AB e CD sem unidade comum EF , são os chamados segmentos incomensuráveis. O tratamento adequado dos números irracionais foi dado bem mais adiante pelo matemático alemão Richard Dedekind (1831− 1916) em 1872. A existência desses segmentos que não são comensuráveis com nenhuma unidade de medida em contraposição aos números racionais que estão associados a medidas de segmentos comensuráveis, deu origem ao conjunto dos números irracionais que será denotado por: Qc = {x/x /∈ Q} Dessa forma, diz-se ser um número irracional todo número que não é racional, ou seja, para cada segmento incomensurável, existe um número irracional associado a medida desse segmento. Podemos afirmar assim que todo número irracional possui representação decimal infinita e não periódica, e vamos por enquanto apenas admitir a existência desses números. Não há um padrão ou regularidade para definir um número irracional, podemos de forma inventiva criar uma estrutura infinita e não periódica para um número e este número produzido será irracional. Observe os números irracionais a seguir: 0, 112123123412345 . . . ; 0, 515511555111 . . . ; 2, 10100100010000 . . . ; 23, 788778887778888 . . . . 2Não se sabe ao certo se tal descoberta foi usando argumentos numéricos, como fizemos anteriormente, ou se utilizaram alguma construção geométrica para demonstrar o fato. 52 Nos caṕıtulos seguintes será dado um enfoque especial a algumas grandezas incomen- suráveis que merecem destaque, com uma abordagem muito mais abrangente do que estes simples exemplos de números irracionais. O fato de ampliarmos o conceito de número de tal forma que todo segmento tenha portanto uma medida associada a ele nos conduz a um conjunto mais amplo formado por todos os segmentos comensuráveis e todos os segmentos incomensuráveis e suas respectivas medidas associadas. A união desses dois conjuntos com seus respectivos elementos precedidos de um sinal “−”para indicar os números negativos dá origem ao conjunto dos números reais, que será denotado por R e definido por: R = Q ∪Qc. Um tratamento geométrico permite com grande lucidez visualizarmos o conjuntos dos números reais e todas as operações e propriedades vigentes em tal conjunto. 3.1 Números reais e a reta real Fundamentalmente, a ideia central vislumbrada até agora está relacionada a problemas de contagem (e o advento de um sistema de numeração posicional adequado - base 10) prece- dida por problemas envolvendo determinação de medidas de segmentos, conceituando-se segmentos comensuráveis e segmentos incomensuráveis. Para tanto tratamos inicialmente conjuntos mais elementares como o conjunto dos números naturais precedido do conjunto dos números inteiros, racionais e também o conjunto dos números irracionais. Priori- tariamente todos os números trabalhados até o presente momento estão relacionados a medidas de segmentos, portanto vamos relacioná-los a pontos de uma reta, de forma que em correspondência biuńıvoca, todo número real corresponderá a um ponto da reta de- terminando a medida de todos os segmentos comensuráveis e incomensuráveis como será descrito. Considere uma reta e um ponto fixado arbitrariamente denominado origem, denotado por O. Escolhemos um outro ponto A à direita da origem e definimos OA como unidade de comprimento. A reta OA será chamada reta real, ou eixo real. O ponto O divide a reta OA em duas semirretas. A que contém o ponto A é a semirreta positiva, e a outra é a semirreta negativa. Na semirreta da direita, marcamos inicialmente 53 os números naturais. Na semirreta da esquerda, marcamos todos os segmentos com uma extremidade na origem e em sua extremidade esquerda a medida do segmento definido por um número natural, precedido do sinal “−”. Temos então os pontos associados as números inteiros. Em seguida, marcamos todos os segmentos a direita da origem co- mensuráveis com a unidade de comprimento OA, determinando assim na extremidade direita cada número racional associado a medida do segmento: são os números racionais positivos. De maneira análoga, mas considerando agora a semirreta negativa marcamos os segmentos comensuráveis com a unidade a unidade e na extremidade esquerda desses segmentos determinamos os números racionais negativos associados as suas medidas. Te- mos portanto os números racionais representados na reta. Mas vimos que há pontos na reta correspondentes a medidas de segmentos que não são comensuráveis com a unidade de comprimento OA, e a fim de “preenchermos”todos os pontos da reta, associamos os números irracionais as medidas de todos os segmentos incomensuráveis. Seja X um ponto da reta. A cada número real x associado a medida do segmento OX colocado na extremidade direita (semirreta positiva) ou esquerda (semirreta negativa) de cada segmento, diremos que x é abscissa do ponto X na reta, de tal forma que a cada ponto da reta, faz-se corresponder um único número real, e cada número real corresponde a um único ponto da reta. É evidente que: IN ⊂ Z ⊂ Q ⊂ R ⊃ Qc Dizemos que x ∈ R é positivo e denotamos por x > 0 caso x pertença à semirreta positiva, e dizemos que x ∈ R é negativo, denotando por x < 0 caso x pertença à semir- reta negativa. 3.2 Operações em R Para definirmos as operações no conjunto R vamos explorar conjuntamente os mode- los aritmético (usando os números reais) e geométrico (pontos constituindo a reta real). Vimos que todo ponto da reta possui uma abcissa representada por um número real. 54 Considere os pontos da reta conforme descrição. Tome os pontos X com abcissa x e Y com abcissa y. Temos os seguintes casos a considerar: i) Para x < y e x, y > 0 : Neste caso, temos que X e Y ambos estão à direita do ponto O de abcissa 0, e assim, temos que a soma x+ y é a abcissa do ponto W de tal forma que o segmento YW tem o mesmo comprimento e o mesmo sentido de percurso de OX. Figura 3.2: Soma i) ii) Para |y| < |x|, x > 0 e y < 0 : Neste caso, temos X à direita de O e Y à esquerda de O, e a soma x+ y é a abcissa do ponto W tal que o segmento XW tem o mesmo comprimento e o mesmo sentido de percurso de OY . Figura 3.3: Soma ii) iii) Para |x| < |y| e x, y < 0 : Este caso é análogo ao item i), porém a soma x + y é a abcissa do ponto W que pertence a semirreta negativa. Figura 3.4: Soma iii) 55 iv) Para |y| < |x| , x < 0 e y > 0 : Este caso é análogo ao item ii), porém a soma x + y é a abcissa do ponto W , que pertence a semirreta negativa. Figura 3.5: Soma iv) Para o produto de números reais vamos fazer a demonstração geométrica do fato. Vamos considerar as abcissas dos pontos X e Y positivas, ou seja, temos que x > 0 e y > 0. Observe a construção a seguir: 1. Sobre a reta real, marque a unidade P representada pela abcissa 1 e o ponto Y de abcissa y; 2. Trace uma reta auxiliar l que passe pela origem (ponto O) e forme um ângulo inferior a 90o com reta real e sobre a reta l, marque o ponto X de abcissa x no semiplano definido acima da reta real; 3. Trace uma reta s que passa por X e pela unidade P ; 4. Trace uma reta t paralela à reta s passando por Y , e marque o ponto {Z} = t ∩ l. Seja z a abcissa do ponto Z. Temos que os triângulos OPX e OY Z são semelhantes pelo caso ângulo-ângulo de seme- lhança de triângulos então: 1 y = x z ⇒ z = xy Portanto a abcissa z do ponto Z indica o produto de x por y. Observe a figura (3.6) que ilustra geometricamente o produto definido. Para os demais casos é só trocar o sinal de forma conveniente como mostra a tabela a seguir: 56 Figura 3.6: Multiplicação de números reais x y xy + − − − + − − − + As operações definidas anteriormente, quando particularizadas aos números racionais, permitem-nos definir o tradicional formato das operações entre esses números. Basta tomar x = a b e y = c d com x, y ∈ Q, dessa forma temos: a b + c d = ad+ bc bd a b · c d = ac bd . As operações de adição e multiplicação no conjunto dos números reais satisfazem as seguintes propriedades: [A.1 ](Associativa da adição) (x+ y) + z = x+ (y + z), ∀x, y, z ∈ R [A.2 ](Comutativa da adição) x+ y = y + x, ∀x, y ∈ R [A.3 ](Elemento neutro da adição) x+ 0 = x, ∀x ∈ R 57 [A.4 ](Simétrico ou oposto para adição) ∀x ∈ R, ∃ − x ∈ R tal que x+ (−x) = 0 [M.1 ](Associativa da multiplicação) (xy)z = x(yz), ∀x, y, z ∈ R [M.2 ](Comutativa da multiplicação) xy = yx, ∀x, y ∈ R [M.3 ](Elemento neutro da multiplicação) x · 1 = x, ∀x ∈ R [M.4 ](Elemento inverso da multiplicação) ∀x ∈ R∗, ∃y ∈ R tal que xy = 1 [M.5 ](Distributiva da multiplicação relativamente à soma) x(y + z) = xy + xz, ∀x, y, z ∈ R 3.3 Desigualdades no conjunto R Definição 3.3.1. Dados os números reais x e y, dizemos que x < y se y − x > 0. Um subconjunto importante do conjunto dos números reais é o conjunto dos números reais positivos, definido por: R+ = {x ∈ R|x > 0} O conjunto dos números reais positivos permite-nos enunciar duas importantes pro- priedades que serão descritas a seguir: 58 P.1) A soma e o produto entre números reais positivos é também um número real positivo, ou seja: x, y ∈ R+ ⇒ x+ y ∈ R+ e x · y ∈ R+ P.2) Dado um número real x existem apenas três possibilidades mutuamente exclusivas: ou x = 0, ou x ∈ R+ ou −x ∈ R+. Munido das operações de adição e multiplicação com suas respectivas propriedades, além da relação de desigualdade apresentada através das propriedades P.1) e P.2), diremos que o conjunto dos números reais caracteriza o que chamamos de corpo ordenado. A relação de ordem x < y (ou y > x) goza ainda das seguintes propriedades: i) Tricotomia: Quaisquer que sejam x, y ∈ R há uma, e somente uma hipótese a se considerar: x < y, x = y ou y < x. ii) Transitividade: Dados x, y, z ∈ R, se x < y e y < z então x < z. iii) Monotonicidade da Adição: Dados x, y ∈ R, se x < y, x + z < y + z, qualquer que seja z ∈ R. iv) Monotonicidade da Multiplicação: Dados x, y ∈ R, se x < y, xz < yz, qualquer que seja z ∈ R+. O que difere o conjunto dos números reais do conjunto dos números racionais é a com- pleteza dos números reais, ou seja a não existência de “buracos”na reta real. O conjunto dos números reais é um dito um corpo ordenado completo. Ainda relativamente à desigualdade entre números reais, o significado geométrico da desigualdade x < y, é que existe um ponto X de abcissa x à esquerda de um ponto Y de abcissa y, ambos na reta real. Do ponto de vista númerico para comprovar que x < y, considere os números reais dados por suas expressões decimais: x = A0, a1a2 . . . an . . . e y = B0, b1b2 . . . bn . . . 59 Temos três casos a considerar: 1o caso) Se os números x e y são reais positivos então vamos utilizar o algoritmo descrito abaixo: – Se A0 < B0 então x < y. – Caso tenhamos A0 = B0, comparamos os números da primeira ordem decimal: se a1 < b1 então x < y. – Caso tenhamos A0 = B0 e a1 = b1, comparamos os números da segunda ordem decimal: se a2 < b2 então x < y. – Caso tenhamos A0 = B0, a1 = b1, a2 = b2, . . . , o procedimento de comparação entre os d́ıgitos ai e bi é repetido até que exista um número inteiro k > 0 tal que ak < bk então teremos x < y. 2o caso) Caso tenhamos x ≤ 0 < y a relação x < y é imediata. 3o caso) Finalmente se x e y forem números reais negativos, tem-se que x < y se, e somente se, −x > −y. 3.4 Identificando números irracionais via polinômios No estudo dos conjuntos numéricos apresentados até aqui foram abordados prioritaria- mente aspectos relativos a conceituação histórica, operações e propriedades no sistema de numeração decimal. Seguimos um enredo que apresenta os números e os conjuntos numéricos conforme uma ordem consecutiva de surgimento e importância na vida do homem. É notável que contextualizando o ensino da matemática no ensino médio, os números racionais são muito mais evidentes que os números irracionais, pois a ideia de medida usando frações para representá-las é imediata. Contudo os números irracionais tem uma elevada relevância no universo dos números, apesar de serem números pertencen- tes a um conjunto que não possui uma estrutura padrão definida. Além disso, é motivo de espanto admitirmos que existem mais números irracionais que racionais, fato que é amenizado quando aceitamos existir uma infinidade de ráızes não exatas de um número 60 inteiro, isto é, se k é um número inteiro, existem infinitas ráızes n √ k, a maioria delas irracionais. Para identificarmos ráızes irracionais através de polinômios, vamos utilizar o teorema a seguir: Teorema 3.4.1. Seja a equação polinomial de coeficientes inteiros anx n + an−1x n−1 + . . . + a1x + a0 = 0, com an 6= 0. Se o número racional p/q, p ∈ Z e q ∈ Z∗, com p e q primos entre si é raiz dessa equação, então p é divisor de a0 e q é divisor de an. Demonstração. Como p q é raiz da equação, temos: an ( p q )n + an−1 ( p q )n−1 + . . .+ a1 ( p q ) + a0 = 0 (3.4) Multiplicando ambos os membros da equação (3.4) por qn, temos: anp n + an−1p n−1q + . . .+ a1pq n−1 + a0q n = 0 (3.5) Isolando anp n e colocando q em evidência na equação (3.5), temos: anp n = −q(an−1p n−1 + . . .+ a1pq n−2 + a0q n−1) ︸ ︷︷ ︸ α (3.6) Agora, isolamos a0q n e colocamos p em evidência na equação (3.5): a0q n = −p(anp n−1 + an−1p n−2q + . . .+ a1q n−1) ︸ ︷︷ ︸ β (3.7) Como todos os coeficientes a0, a1, . . . , an, p e q são inteiros, segue que α e β são inteiros. Nas equações (3.6) e (3.7) temos:    anp n = −q · α ⇒ anp n q = −α ∈ Z e a0q n = −p · β ⇒ a0q n p = −β ∈ Z As igualdades obtidas acima mostram que: • anp n é diviśıvel por q. Como pn e q são primos entre si, an é diviśıvel por q, isto é, q é divisor de an. 61 • a0q n é diviśıvel por p. Como qn e p são primos entre si, a0 é diviśıvel por p, isto é, p é divisor de a0. O resultado acima é aplicado ao polinômio p(x) = xn − a (supondo que n √ a não é exata), onde an = 1 e a0 = −a, então, se um número racional p/q é raiz desse polinômio, temos que q é divisor de 1, ou seja, q = ±1, o que mostra que p/q é um número inteiro. Então, existe um número inteiro k que satisfaz: kn − a = 0 ⇒ kn = a ⇒ k = n √ a A afirmação acima é falsa, pois por hipótese n √ a não é exata, logo não existe k ∈ Z tal que k = n √ a. Conclúımos portanto que o polinômio p(x) = xn − a não admite ráızes racionais. Como n √ a é raiz do polinômio p(x), visto que não pode ser um número racional, é portanto um número irracional. Podemos através do teorema (3.4.1) e do resultado obtido posteriormente comprovar a irracionalidade ou a racionalidade de determinados números reais. Exemplo 3.4.1. Determine através do teorema das ráızes racionais se o número √ 5− √ 3 é racional ou irracional. Seja √ 5− √ 3 = a, então: √ 5 = a+ √ 3 ⇒ 5 = (a+ √ 3)2 ⇒ 5 = a2 + 2a √ 3 + 3 ⇒ −2a √ 3 = a2 − 2 ⇒ (−2a √ 3)2 = (a2 − 2)2 ⇒ 4a2 · 3 = a4 − 4a2 + 4 ⇒ a4 − 16a2 + 4 = 0. Portanto, temos que a é raiz do polinômio p(x) = x4 − 16x2 + 4. Pelo teorema das ráızes racionais temos que p|4 e q|1. Temos os posśıveis valores para p = {±1,±2,±4} e para q = {±1}, o que mostra que as ráızes racionais do polinômio p(x) caso existam, são inteiras. Por verificação, comprovamos que nenhum dos valores assumidos por p são ráızes de p(x). Conclúımos então que o número a = √ 5− √ 3 é um número irracional. Exemplo 3.4.2. Determine através do teorema das ráızes racionais se o número 3 √ 2− √ 5+ 3 √ 2 + √ 5 é racional ou irracional. 62 Seja 3 √ 2− √ 5 + 3 √ 2 + √ 5 = a, então: a3 = ( 3 √ 2− √ 5 + 3 √ 2 + √ 5 )3 = 2− √ 5+3 ( 3 √ 2− √ 5 )2 ( 3 √ 2 + √ 5)+3( 3 √ 2− √ 5) ( 3 √ 2 + √ 5 )2 + 2+ √ 5 = 4+3· 3 √ (2− √ 5)2(2 + √ 5)+3· 3 √ (2− √ 5)(2 + √ 5)2 = 4+3· 3 √ (2− √ 5)(22 − 5)+ 3· 3 √ (2 + √ 5)(22 − 5) = 4−3· 3 √ 2− √ 5−3· 3 √ 2 + √ 5 = 4−3· ( 3 √ 2− √ 5 + 3 √ 2 + √ 5 ) = 4− 3a ⇐⇒ a3 + 3a− 4 = 0 Portanto temos que a é raiz do polinômio p(x) = x3+3x− 4. Pelo teorema das ráızes racionais temos que p| − 4 e q|1. Temos os posśıveis valores para p = {±1,±2,±4} e para q = {±1}, o que mostra que as ráızes racionais do polinômio p(x) caso existam, são inteiras. Por verificação, é fácil verificar que x = 1 é raiz desse polinômio e que o quociente da divisão de p(x) por x − 1 é q(x) = x2 + x + 4, que não admite ráızes reais. Portanto, x = 1 é a única raiz real de p(x). Logo, 3 √ 2− √ 5 + 3 √ 2 + √ 5 = 1 Ao definirmos o conjunto dos números reais estamos necessariamente lidando com todos os números racionais e também todos os números irracionais. Estes números foram classificados mais tarde pelo matemático Joseph Liouville3(1809−1882) em dois tipos: os números algébricos e os números transcendentes. Definição 3.4.2. Um número real é dito um número algébrico se satisfaz alguma equação da forma a0 + a1x+ a2x 2 + . . .+ anx n = 0 onde {a0, a1, . . . , an} ∈ Z. Se um número real não é algébrico, então é um número transcendente. É evidente que todo número racional α = p q , com p ∈ Z e q ∈ Z∗ é um número algébrico, pois α é raiz da equação qx− p = 0. Contudo, existem muitos números irracionais que não são algébricos, ou seja, não são ráızes de nenhuma equação do tipo descrito anteriormente. Podemos citar como exemplos 3O professor de matemática e mecânica clássica Joseph Liouville foi quem demonstrou pela primeira a existência de números transcendentes. 63 de números transcendentes o número e, o π e o número de ouro φ, que serão abordados nos caṕıtulos posteriores. Com esta nova classificação para os números reais, podemos então descrevê-lo como a união do conjunto dos números algébricos(A) com o conjunto dos números transcendentes (T ), isto é R = A ∪ T . Caṕıtulo 4 Base 3 e Conjunto de Cantor Neste caṕıtulo daremos destaque ao sistema posicional ternário ou sistema de numeração de base 3. Como vimos anteriormente, dado um número racional p qualquer, este pode ser escrito sob qualquer base numérica b inteira positiva, assim um número p = AnAn−1An−2 . . . A2A1A0, a1a2 . . . , escrito na base 3 é do tipo: p = An · 3n + An−1 · 3n−1 + . . .+ A2 · 32 + A1 · 3 + A0 + a1 · 3−1 + a2 · 3−2 + . . . com Ai, ai ∈ {0, 1, 2}. As razões pela qual destacamos o sistema de numeração posicional ternário, tem a ver com o conceito de capacidade de um sistema de numeração e também com uma propriedade interessante desse sistema relacionada ao Conjunto de Cantor. Definição 4.0.3. A capacidade do sistema de numeração de base b com n d́ıgitos é defi- nida por b n b . Teorema 4.0.4. A definição de capacidade independe de n e o sistema de numeração de maior capacidade é o de base 3. Demonstração. A demonstração desse teorema será desenvolvida na Seção (5.5) que trata sobre aplicações do número e. 64 65 Por exemplo, com 30 d́ıgitos considerando base 10 podemos escrever 1000 números, isto é 10 + 10 + 10 escolhas entre 0, 1, . . . , 9 para cada ordem, gerando 10 · 10 · 10 = 10 30 3 posśıveis números. Podemos ver também que para escrever os números de 0 a 99.999 (temos 100.000 números) são necessários 50 d́ıgitos (10 d́ıgitos de 0 a 9 dispońıveis para escolha de cada uma das ordens). Já no sistema de numeração binário, para escrevermos os mesmos 100.000 números de 0 a 99.999 são necessários 33 d́ıgitos. Conclui-se conforme teorema acima, utilizando ferramentas do cálculo diferencial e integral, que o sistema de maior capacidade numérica é o sistema de base 3. Abaixo segue um exemplo para capacidade numérica de determinados sistemas com n = 30 d́ıgitos: Base Capacidade 2 215 = 32768 3 310 = 59049 5 56 = 15625 6 65 = 7776 10 103 = 1000 15 152 = 225 30 301 = 30 Podemos dizer então que o sistema de numeração de base 3 é a mais eficiente de todas as bases de números inteiros, por oferecer maior representatividade numérica com um número mais reduzido de d́ıgitos. É sabido que o código utilizado nas tecnologias de informática é do tipo binário, ou seja, a linguagem computacional nada mais é do que um sistema de numeração posicional de base 2, definido para sentenças em circuitos do tipo verdadeiro (mode-on) ou falso (mode-off), utilizando os valores numéricos 0 ou 1 para sua representatividade. Visto que a base 3 é mais eficiente do ponto de vista de dotação numérica, porque então o sistema binário é o sistema adotado até hoje nas tecnologias de informática? A resposta para tal questão tem como referência um artigo publicado no endereço eletrônico www.americanscientist.org/issues/pub/third-base. 66 As primeiras ideias de um sistema ternário surgiram em 1950, oriundas de uma pes- quisa de tecnologia de informática encomendadas em nome da Marinha dos Estados Uni- dos pela equipe de engenharia Research Associates. Posteriormente o estado americano chegou a utilizar a arquitetura ternária em um sistema de rede militar durante o peŕıodo da Guerra Fria. Um pouco mais tarde na Rússia, mais precisamente na Universidade Esta- dual de Moscou, Nikolai P. Brusentsov e seus colegas constrúıram o primeiro computador ternário de trabalho, batizado de Setun, nome de um rio que corre perto do câmpus da universidade. Setun era operado utilizando 18 d́ıgitos ternários, ou trits, dotando-lhe de uma capacidade numérica de 387.420.489. Para o computador binário, seriam necessários 29 bits para chegar a esta capacidade. A hipótese de desenvolver uma tecnologia ternária é inclusive mais plauśıvel segundo a lógica humana, já que possibilita a inserção de uma ter- ceira condição além dos consistentes verdadeiro ou falso: o talvez. Por convenção prática ao invés de utilizar a simbologia 0, 1 e 2 utilizou-se −1, 0 e 1 ou simplesmente −, 0,+, em vias de tornar o processamento e transmissão de informações mais rápidos. Frente a circunstâncias concretas que conduziam a uma evolução das tecnologias de informática, por que então a tecnologia ternária não avançou? Ocorre que o armazenamento de informações em trits, mesmo com todas as vantagens apresentadas, não conseguiu reduzir em termos de quantidades de componentes o sistema binário, que já era uma tecnologia consolidada, inclusive com altos investimentos em métodos para fabricação de chips binários. A complexidade do desenvolvimento de um sis