UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÍDIA E TECNOLOGIA – MESTRADO PROFISSIONAL MARCELO BRESSANIN POR UMA ESTÉTICA DO SOM E DO ESPAÇO: A PERFORMATIVIDADE SENSÍVEL DOS DADOS Bauru 2022 Marcelo Bressanin POR UMA ESTÉTICA DO SOM E DO ESPAÇO: A PERFORMATIVIDADE SENSÍVEL DOS DADOS Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia (PPGMiT) – Mestrado Profissional, da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção do título de Mestre em Mídia e Tecnologia sob a orientação da Prof.ª Dra. Regilene Aparecida Sarzi Ribeiro. BAURU/SP 2022 Marcelo Bressanin POR UMA ESTÉTICA DO SOM E DO ESPAÇO: A PERFORMATIVIDADE SENSÍVEL DOS DADOS Banca Examinadora: ____________________________________ Orientadora: Prof. Dra. Regilene Aparecida Sarzi Ribeiro Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Campus Bauru. _____________________________________ Prof. Dr. Gilberto dos Santos Prado Universidade de São Paulo - ECA USP - São Paulo _____________________________________ Profa. Dra. Vania Cristina Pires Nogueira Valente Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP – Campus Bauru. Resultado: _________________________ Bauru, _____/_______________/_______ DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a meu amado companheiro, Fabricio Mesquita de Aro (1979-2022), que esteve ao meu lado desde os primórdios desta pesquisa, sempre contribuindo com sugestões pertinentes, sua presença carinhosa, sua confiança e muito estímulo. A você, Fabricio, com todo meu amor, minhas melhores lembranças e toda minha saudade. AGRADECIMENTOS Ao finalizar mais uma etapa em minha trajetória acadêmica e profissional, agradeço primeiramente a meus familiares, em especial à minhas irmãs, Adriana Bressanin e Aline Bressanin, ao meu sobrinho Lucas Bressanin Galvão e à minha sogra Arlete da Graça Mesquita de Aro, sempre presentes, com muito amor, em todos os momentos. Agradeço ainda, honrado, pela orientação da Profa. Dra. Regilene Aparecida Sarzi Ribeiro, cujas contribuições conceituais e metodológicas para o desenvolvimento desta pesquisa foram fundamentais e enriquecedoras, sempre extremamente profissionais, sensíveis e gentis. Menciono ainda meus agradecimentos aos professores doutores Laan Mendes de Barros e Vânia Cristina Pires Nogueira Valente, por suas contribuições na banca de qualificação deste trabalho, e ao Prof. Dr. Gilberto dos Santos Prado por sua participação na banca final de defesa desta dissertação. Registro ainda minha gratidão a todos os docentes do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia da FAAC Unesp - Bauru, que muito contribuíram para minhas reflexões e, da mesma forma, a todos os servidores da Secretaria de Pós- Graduação da FAAC Unesp Bauru, por sua prontidão quanto aos trâmites acadêmicos e ao Prof. Paulo Sérgio Pereira Pinto, professor especialista da FATEC - Faculdade de Tecnologia de Bauru, cuja assessoria foi de grande importância para a consecução dos processos tecnológicos implementados neste projeto. Fico ainda imensamente grato aos artistas Cecilia Castro (ARG), Claudio Bueno, Gilbertto Prado, Giuliano Obici, Nicolás Bacal (ARG), Paulo Nenflidio, Rejane Cantoni e Wilson Sukorski, cuja interlocução em entrevistas remotas muito contribuíram para o desenvolvimento desta pesquisa. Não poderia ainda de deixar de agradecer a Ailton Ribeiro, artista, educador e gestor do Espaço de Artes Casa Amarela, em Bauru (SP), pela cessão do espaço para a montagem do protótipo da instalação Ornitofonias, assim como a Magali Arantes, artista responsável pelo registro audiovisual desse primeiro experimento. Por fim, deixo aqui meus agradecimentos a meus três amigos/irmãos de uma vida, Milton Gilberto Tocchetto, Paulo Henrique da Cruz Sandrini e Pedro Ricco Noce, parceiros em todos os momentos de experimentação ao longo de minhas investidas artísticas. A todos vocês, meus sinceros agradecimentos. "[...] o dançarino tem o ouvido — nos dedos dos pés!" Friedrich Nietzsche BRESSANIN, M. POR UMA ESTÉTICA DO SOM E DO ESPAÇO: A PERFORMATIVIDADE SENSÍVEL DOS DADOS. Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia da UNESP – Universidade Estadual Paulista, sob a orientação da professora Dra. Regilene Aparecida Sarzi Ribeiro, Bauru, 2022. RESUMO A presente dissertação tem como proposta a elaboração de uma discussão teórico-conceitual em arte e tecnologia especificamente voltada aos processos de criação artística em arte sonora, com ênfase na produção de instalações artísticas cuja performance seja engendrada tecnologicamente a partir de dados recebidos do entorno. Partindo de autores como Arlindo Machado, Claudia Giannetti, Gilbert Simondon, Murray Schafer e Juliana Gontijo, entre outros, o trabalho emprega o conceito de "transdução" como ponto de partida para a compreensão da performatividade de dados de naturezas diversas no agenciamento de conteúdos sonoros em obras de caráter instalativo. A pesquisa contempla a realização de estudos de casos de obras com tais características produzidas na América do Sul entre 2010 e os dias atuais, tendo em vista a análise de suas propostas poéticas e dos recursos tecnológicos empregados, bem como a criação uma obra autoral em diálogo com as discussões estabelecidas ao longo da pesquisa realizada, com ênfase no relato dos processos plásticos e tecnológicos no processo de criação. PALAVRAS-CHAVE: arte e tecnologia, novas mídias, instalações sonoras, performatividade de dados, transdução ABSTRACT This dissertation proposes the elaboration of a theoretical-conceptual discussion in art and technology specifically focused on the creative processes in sound art, with emphasis on the production of artistic installations whose performances are technologically mobilized from data received from the surroundings. Based on authors such as Arlindo Machado, Claudia Giannetti, Gilbert Simondon, Giuliano Obici, Juliana Gontijo and Murray Schafer, among others, the work uses the concept of "transduction" as a starting point for understanding the performativity of data of different natures in the agency of sound content in installative works. The research also includes the carrying out of case studies of works with such characteristics and produced in South America between 2010 and the present day, in view of the analysis of their poetic proposals and the technological resources that were applied, as well as the creation of a artistic work in dialogue with the discussions established throughout the research carried out, with emphasis on the discussion of the plastic and technological processes employed in its realization. KEYWORDS: art and technology, new media, sound installations, data performativity, transduction SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ………….......................................................................................……... 13 1.1 Justificativa …………………………………………………………….………..……... 16 1.2 Objetivo geral ………………………………………………………….………..……... 18 1.2.1 Objetivos específicos …………………………………………..………………….…... 18 1.3 Metodologia de pesquisa em arte e tecnolofia …………………………………...…... 18 2 INSTALAÇÕES SONORAS E SEUS ENTORNOS: ENTRE TECNOLOGIAS E EXPERIÊNCIAS ………………….…………………………………...……………….…. 23 2.1 Arte sonora: origens e conceitos transversais ..………………………………………. 23 2.1.1 "A arte dos ruídos", de Luigi Russolo: a sociedade industrial e o espaço urbano como elementos composicionais …………………………………………..…………………..…... 23 2.2 O advento das tecnologias de gravação/reprodução de áudio e o conceito de objeto sonoro ..…………………………………………………………..…………………...……. 25 2.3 A paisagem sonora, depois de Murray Schafer ..…………………….………...……. 32 2.4 Instalações sonoras: sonoridades e interação em um campo expandido ….....……. 35 2.5 O som e os lugares: algumas situações para pensarmos o conceito de escuta ….…. 40 2.5.1 O espaço e o som imbricados em instalações sonoras ……………………………….. 40 2.5.2 Escuta: espaço, contexto e pertencimento ………………………………...………….. 47 2.6 Da gambiarra à Internet das coisas: novas vias para a produção em arte e tecnologia ……………………………………………………………………………………………….. 51 2.6.1 Gambiarra: a tecnologia e a plasticidade da reapropriação …………………..…….. 52 2.7 O ubíquo e as novas possibilidades para o agenciamento de obras artísticas ….…. 57 3 A ARTE SONORA INSTALATIVA NA AMÉRICA DO SUL COM AGENCIAMENTO DE DADOS EXTERNOS ………………….………………………. 65 3.1 Os espaços de afirmação da arte sonora na Argentina, Brasil, Chile e Colômbia ... 65 3.2 Análise de obras de artistas sul americanos que operam no campo circunscrito pelo recorte da pesquisa ………………………………………………………………………... 74 3.3 Discussão dos processos plásticos e tecnológicos empregados nas obras analisadas 91 4 O SOM E O ESPAÇO: O AGENCIAMENTO DO SONORO POR DADOS DO ENTORNO ..……………………………………………………………………………..…. 99 4.1 Relato de experiências no campo da arte sonora com uso de dados ………………. 99 4.2 O agenciamento do sonoro por dados do entorno: o processo de criação de uma obra inédita ………………………………………………………………………….…………. 108 4.2.1 Discussão conceitual da proposta artística …………………………………...…….. 108 4.2.2 Apresentação dos processos plásticos e tecnológicos empregados …………...…….. 112 4.2.2.1 Da coleta, tratamento e organização das amostras sonoras …...…………...…….. 112 4.2.2.2 Dos dispositivos sonoros e de processamento dos dados coletados …...………….. 117 4.2.2.3 Plataforma tecnológica e parâmetros de processamento das informações do entorno para o agenciamento da obra …...…………………………………………………..…….. 124 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..……………………………………………………...…. 130 6 REFERÊNCIAS ..………………………………………………….………………...…. 133 7 ANEXOS ………..………………………………………………….………………...…. 138 7.1 Instalação Ornitofonias (Código de programação em Arduino) .………….…...…. 138 LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURAS Figura 1 - Intonarumori, Luigi Russolo, 1914 …………………………..…... p. 23 Figura 2 - Pavilhão Philips, 1958 …………....…………………………..….. p. 41 Figura 3 - I am sitting in a room, Alvin Lucier, 2014 …………………...…... p. 43 Figura 4 - Antena eletromagnética, 2017 ………………………..…………... p. 56 Figura 5 - Circuitos amplificadores, 2017 …………………………....……... p. 56 Figura 6 - Ensaio com antena e mochila amplificadora, 2017 ……..………... p. 57 Figura 7 - Arduino Uno ……………………………………………………... p. 59 Figura 8 - Deluxe 5": dispositivo composicional randômico, Marcelo Bressanin, 2020 ……………………………………………………………………………… p. 61 Figura 9 - Deluxe 5": dispositivo composicional randômico, Detalhe, Marcelo Bressanin, 2020 ……………………………………………………………...…... p. 62 Figura 10 - Deluxe 5": dispositivo composicional randômico, Detalhe, Marcelo Bressanin, 2020 ………………………………………………………………...... p. 63 Figura 11 - Flyer de divulgação do Festival Experimenta 2020: Festival Internacional de Arte Sonoro y Visual ………………………………………….... p. 66 Figura 12 - Catálogo da mostra Reverberancias: arte sonoro en Chile ...…….. p. 69 Figura 13 - TabomBass, Vivian Caccuri, 2016 …………………….……..…... p. 73 Figura 14 - Amoreiras, Poéticas Digitais, 2010 …………………………..…... p. 76 Figura 15 - Amoreiras, Planta baixa de projeto, Poéticas Digitais, 2010 ..….... p. 76 Figura 16 - Amoreiras, Próteses poéticas, Poéticas Digitais, 2010 …………... p. 77 Figura 17 - Amoreiras, Sistema eletromecânico, Poéticas Digitais (2010) …... p. 77 Figura 18 - O canto das sereias, Detalhe do aplicativo, Claudio Bueno, (2011) p. 78 Figura 19 - O canto das sereias, Mapeamento GPS, Claudio Bueno, 2011 …... p. 80 Figura 20 - O canto das sereias, Abertura, Claudio Bueno, 2011 …....……...... p. 80 Figura 21 - Máquina dos ventos, Detalhe dos cataventos, Paulo Nenflidio, 2004 ………………………………………………………………………………….…. p. 83 Figura 22 - Máquina dos ventos, Paulo Nenflidio, 2004 ……………….…...... p. 84 Figura 23 - Máquina dos ventos, Cordas, Paulo Nenflidio, 2004 …………….. p. 84 Figura 24 - Revolts, Detalhe, Fernando Godoy e Rodrigo Ríos, 2016 ….…..... p. 86 Figura 25 - Revolts, Detalhe, Fernando Godoy e Rodrigo Ríos, 2016 .……..... p. 86 Figura 26 - Revolts, Fernando Godoy e Rodrigo Ríos, 2016 .…………....…... p. 87 Figura 27 - Acoustic Views, Mónica Bate, 2005 ……………...………….…... p. 88 Figura 28 - Acoustic Views, Mónica Bate, 2005 ……………………………... p. 89 Figura 29 - A armonía verde … para crear raíces, Romina Casile e Carlos Villa, 2010 ………………………………………………………...…………………….. p. 90 Figura 30 - A armonía verde … para crear raíces, Romina Casile e Carlos Villa, 2010 ………………………………………………………...…………………….. p. 90 Figura 31 - A armonía verde … para crear raíces, Romina Casile e Carlos Villa, 2010 ……………..……………………………………...……………………..….. p. 91 Figura 32 - Jardim de sinais errantes, Cristian Espinoza, DUO b e Flavia Laudado, 2016 …………………………………………………………………...………… p. 100 Figura 33 - Jardim de sinais errantes, Cristian Espinoza, DUO b e Flavia Laudado, 2016 …………………………………………………………………...………… p. 100 Figura 34 - Quarta ação: sintonização no corredor rádio emissor paulista [contato com o eixo eletromagnético], performance de Marcelo Bressanin. Concepção de Cristian Espinoza, 2016 ……………………………………………………..…... p. 101 Figura 35 - Parênteses, Marcelo Bressanin, 2018 ……...………………..…... p. 103 Figura 36 - Deluxe 5: dispositivo composicional randômico, Marcelo Bressanin, 2021 ……………………………………………………………………...…..…... p.105 Figura 37 - Deluxe 5: dispositivo composicional randômico, Marcelo Bressanin, 2021 ……………………………………………………………………...…..…... p.105 Figura 38 - Deluxe 5: dispositivo composicional randômico, Marcelo Bressanin, 2021 ……………………………………………………………………...…..…... p.106 Figura 39 - Deluxe 5: dispositivo composicional randômico, Detalhe, Marcelo Bressanin, 2021 ……………………………………………………..….………... p.107 Figura 40 - Ornitofonias, Equalizador Gráfico de 8 canais Ableton Live, Marcelo Bressanin, 2022 ………………………………………………………………… p. 115 Figura 41 - Ornitofonias, Compressor Ableton Live, Marcelo Bressanin, 2022 …………………………………………………………………………………… p. 116 Figura 42 - Ornitofonias, Sistema de reprodução sonora, Marcelo Bressanin, 2022 …………………………………………………………………………………… p. 117 Figura 43 - Sensor de intensidade de luz ……...…………...………………... p. 118 Figura 44 - Sensor de proximidade …………….………………..…………... p. 119 Figura 45 - Sensor pluviométrico…………….…………………..………... p. 120 Figura 46 - Arduino Mega 2560 Atmega 2560 ………….…………………... p. 121 Figura 47 - Barra de relés …………………………………….....…………... p. 122 Figura 48 - Ornitofonias, Interação entre os sistemas sonoros, digitais e eletromecânicos, Marcelo Bressanin, 2022 …………….……..…….…………... p. 123 Figura 49 - Ornitofonias, Protótipo da plataforma tecnológica empregada, Marcelo Bressanin, 2022 …………….……..…….…………………………………..…... p. 124 Figura 50 - Ornitofonias, Protótipo da plataforma tecnológica empregada, Marcelo Bressanin, 2022 …………….……..…….…………………………………..…... p. 125 Figura 51 - Ornitofonias, Protótipo da plataforma tecnológica empregada, Marcelo Bressanin, 2022 …………….……..…….…………………………………..…... p. 126 13 POR UMA ESTÉTICA DO SOM E DO ESPAÇO: A PERFORMATIVIDADE SENSÍVEL DOS DADOS 1 INTRODUÇÃO Em 1986, o artista canadense Murray Schafer (1933) enunciou em sua obra “O ouvido pensante” uma frase ainda bastante lembrada por artistas e por pesquisadores da arte sonora e dos processos de emissão sônica e de escuta, e também nos estudos relativos à paisagem sonora: “Qualquer coisa que se mova, em nosso mundo, vibra o ar. Caso ela se mova de modo a oscilar mais do que dezesseis vezes por segundo, esse movimento é ouvido como som” (SCHAFER, 2011, p. 112). De fato, é senso comum nas discussões teóricas sobre acústica que a escuta humana é equipada, em condições fisiológicas ideais, para a percepção de frequências na faixa entre 16 Hz (dezesseis ciclos por segundo, como descreve Schafer) e 20.000 Hz (ou 20 kHz). O modelo hertziano, criado para mensurar o comportamento vibratório das ondas, entre elas as ondas audíveis ou sonoras, foi desenvolvido pelo físico alemão Heinrich Rudolf Hertz (1857-1894) na segunda metade do século dezenove e teve como grande mérito a demonstração da existência da radiação eletromagnética, um fenômeno físico de extrema importância para a criação de todas as tecnologias de comunicação posteriormente desenvolvidas. Desde as primeiras transmissões radiofônicas até as técnicas de comunicação via satélite, a descoberta das ondas eletromagnéticas revolucionou o modo de vida já a partir do início do século XX, incluindo os atuais processos digitais de processamento de dados: afinal, medimos o desempenho de processamento de nossos computadores em megas ou gigahertz. Contudo, retomando a afirmação de Schafer, apenas o que está acima de 16 Hz é “som” e, lembrando que segundo os padrões de escuta humana determinados pelas teorias da acústica, tudo acima de 20 mil Hz escapa à nossa escuta, entendemos que abaixo ou acima de nossa acuidade de audição há todo um universo de frequências sonoras em nosso entorno que é, simplesmente, inaudível e invisível. Além desse universo de frequências imperceptíveis, o desenvolvimento de sistemas de comunicação via satélite, de transmissão de dados digitais e das redes de telefonia celular, 14 entre outros, encorpam um conjunto de sinais que transpassam nossos organismos cotidianamente, sem nenhuma manifestação física evidente. Como afirma o artista chileno Cristian Espinoza, nuestra civilización electromagnética ha llenado la extensión del éter de emissiones tramando en todas direcciones lo invisible, hackeando los sistemas nerviosos de los organismos como cintas magnetofónicas que se escriben y sobre escriben, pero ¿qué queda inscrito en los cuerpos? y qué sicofonias arrastra este magnetismo que ondula en lo invisible? (ESPINOZA, 2017, p. 20). Esta fantasmagoria eletromagnética nos remete, por sua vez, ao pensamento do artista russo Wassily Kandinsky, em sua obra “Do espiritual na arte”, originalmente publicada em 1912. Para Kandinsky, “as relações necessárias entre a cor e a forma conduzem ao exame dos efeitos que a forma exerce sobre a cor''. A forma, mesmo abstrata, geométrica, possui seu próprio som interior; ela é um ser espiritual, dotado de qualidades idênticas à dessa forma” (KANDINSKY, 1996, p. 75). Considerando que a percepção da cor, ou da luz visível, assim como a do som, é entendida fisicamente a partir da variação hertziana de ondas, entendemos como, para o autor, as formas e cores podem mesmo gerar um padrão composicional sonoro, na criação de pinturas que podem atuar como uma partitura ou mesmo uma peça sonora pictórica. Partindo das provocações apontadas acima, a presente pesquisa pretende estabelecer uma discussão a respeito dos processos estéticos e técnicos de criação, de exibição e de fruição em arte sonora, em formatos instalativos. Para tanto serão abordados conceitos como georreferenciamento1, internet das coisas IoT2, computação ubíqua, gambiologia3, distopias tecnológicas, entre outros, com ênfase no uso do sensoriamento de dados como um recurso composicional ou, mais precisamente, como um processo de transdução plástica de dados do entorno por meio de obras artísticas. 3 Gambiologia é uma abordagem contemporânea sobre a gambiarra. É a pesquisa sobre como a tradição brasileira de adaptar, improvisar, encontrar soluções simples e criativas para pequenos problemas cotidianos pode ser aplicada hoje, nos contextos da arte contemporânea e da cultura digital. GAMBIOLOGIA. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikipedia Foundation, 2020. Disponível em: . Acesso em: 19 mar. de 2020. 2 Internet das coisas é um conceito que se refere à interconexão digital de objetos cotidianos com a internet, conexão dos objetos mais do que das pessoas. Em outras palavras, a internet das coisas nada mais é que uma rede de objetos físicos capaz de reunir e de transmitir dados. INTERNET DAS COISAS. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikipedia Foundation, 2020 Disponível em . Acesso em: 19 mar. de 2020. 1GEORREFERENCIAMENTO. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikipedia Foundation, 2020. Disponível em: . Acesso em: 19 mar. de 2020. https://pt.wikipedia.org/wiki/Gambiologia https://pt.wikipedia.org/wiki/Internet_das_coisas https://pt.wikipedia.org/wiki/Georreferenciamento 15 A ideia de transdução ganha importância no contexto das pesquisas aqui apresentadas na medida em que se refere à transformação de um tipo de energia em outro (PIZZOTTI, 2003). Refere-se também a um processo no qual, em termos da física, a ocorrência de perdas, de dissipações, é bastante presente. Tais perdas nos levam a pensar metaforicamente na maneira em que a transdução, no campo da produção artística e das comunicações, pode ser encarada como um elemento importante para compreendermos a relação entre uma obra e seu entorno, sobretudo na produção artística com meios tecnológicos, ou ainda a relação entre o público e a obra. Perdas ou degradações nos processos de coleta/manuseio de dados em obras artísticas, o efeito “glitch”4, a opacidade dos sistemas técnicos, como postula Vilém Flusser em seus estudos sobre as imagens técnicas, a fotografia e o que ele chama a “caixa preta”, são alguns dos elementos que pedem nossa reflexão no que toca às pesquisas aqui propostas. Trata-se, assim, de buscar compreender como tecnologias midiáticas de desenvolvimento ainda recente vêm sendo ou podem vir a ser agregadas ao campo da criação artística e também de investigar como tal produção artística pode promover a mediação entre o entorno/contexto, a obra em si e o público em aproximações conceituais entre mídia e arte contextual segundo pensadores como Nicolas Bourriaud e Paul Ardenne. Nesse sentido, entendemos as tecnologias midiáticas a partir da importância dos softwares na sociedade contemporânea e nos perguntamos, com o teórico russo Lev Manovich, por quê deveriam humanistas, pesquisadores das mídias ou críticos culturais se preocupar com os softwares? Porque, fora de segmentos culturais como o artesanato e as artes clássicas, o software ocupou o espaço de uma diversidade de tecnologias físicas, mecânicas e eletrônicas utilizadas antes do século vinte e um para criar, armazenar, distribuir e acessar artefatos culturais. (MANOVICH, 2013, p. 2, tradução nossa). Neste ponto, extrapolamos os processos criativos em arte para considerar também o circuito artístico como uma importante cadeia produtiva multidisciplinar que tem grande potencial de alinhamento aos objetivos globais estabelecidos nos objetivos 8, 9, 10 e 11 da Agenda 2030 da ONU5. 5 PLATAFORMA AGENDA 2030. Disponível em < http://www.agenda2030.org.br/sobre/>. Acesso em: 04 dez. de 2020. 4 GLITCH. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikipedia Foundation, 2020. Disponível em . Acesso em: 31 jan. de 2020. http://www.agenda2030.org.br/sobre/ https://pt.wikipedia.org/wiki/Falha_(tecnologia) 16 Neste caso, e sobretudo no que se refere ao estímulo à inovação, à geração de trabalho e de renda, ao monitoramento do meio, natural e/ou urbano e à educação de qualidade6, entre outros, investigações artísticas envolvendo a obtenção de dados do entorno podem fomentar discussões sobre novos usos para tecnologias midiáticas ubíquas, hoje já bastante acessíveis. Assim, propomos aqui uma investigação que busca compreender os modos pelos quais os processos criativos e expositivos em arte sonora contemporânea poderiam agenciar um fenômeno atual no qual, segundo Byung-Chul Han, “a mídia digital furta à comunicação a tatilidade e a corporeidade”, ou ainda, “o digital submete a tríade lacaniana do real, do imaginário e do simbólico a uma reconstrução radical”, e “o smartphone é um aparato digital que trabalha com um modo de input-output pobre em complexidade” (HAN, 2018, p. 44-45) , entre outros exemplos. Por fim, sugerimos ainda uma discussão teórica e prática a respeito das relações entre os processos artísticos e as tecnologias midiáticas no qual, segundo Juliana Gontijo, “o objeto técnico, ao entrar no domínio da arte, passa por um novo processo de fetichização, pelo qual assume sua corporalidade individual, dotada de potencialidades ocultas” (GONTIJO, 2014, p. 24-25). Desfetichizar os processos tecnológicos, ainda que reconhecendo sua multiplicação em nosso cotidiano, pensar seu papel na produção artística contemporânea, sobretudo em tempos pandêmicos, problematizar os sistemas de coleta e de manuseio de dados no campo da produção subjetiva de sentidos: tratamos aqui de relacionar tecnologia e criação tendo em vista novas formas de nos relacionarmos com o entorno e com a experiência coletiva, uma questão que acompanha nossa produção como artistas em diversas iniciativas autorais. 1.1 Justificativa Tal proposta, em nosso entendimento, se justifica a priori por contribuir para a produção teórica no que se refere à arte sonora com bases tecnológicas, segmento bastante recente na produção em arte contemporânea, considerando-se suas origens nas primeiras décadas do século vinte, e que conta com poucos pesquisadores específicos, em comparação com as demais linguagens artísticas, inclusive as desenvolvidas por meio de suportes tecnológicos. 6 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Disponível em . Acesso em: 29 de jan. de 2020. https://brasil.un.org/pt-br/sdgs 17 Da mesma forma, buscamos ainda trazer para discussão alguns dos processos técnicos, das poéticas, da produção recente e das considerações críticas estabelecidas em arte sonora e em arte e tecnologia, tendo em vista a propagação das pesquisas teóricas e da criação atualmente em desenvolvimento naquela linguagem, de forma a estimular a comunidade de artistas e pesquisadores para maiores aproximações. Para tanto, consideramos importante definir, a princípio, um recorte cronológico que se estende de 2010 até os dias atuais, recorte que se justifica primordialmente por dois fatores: a) o surgimento dos dispositivos de microprocessamento portátil que possibilitaram o desenvolvimento do conceito de IoT , tais como as plataformas pioneiras "Arduíno" (2005) e "Raspberry Pi" (2012) e, b) a consolidação de práticas gambiológicas, no Brasil fortemente marcada pela atuação da Rede Metareciclagem e do Coletivo Gambiologia, tendo como marcos as exposições pioneiras "Gambiólogos - a gambiarra nos tempos do digital", aberta ao público em 2010 no Espaço Centoequatro, em Belo Horizonte (MG), e "Gambiólogos 2.0”, realizada na Galeria Oi Futuro Belo Horizonte, em 2014, e "Maquinações", apresentada originalmente no Centro Cultural Oi Futuro (RJ) em 2018. Tendo em vista esta delimitação, será construído um quadro teórico que ampare e oriente nossas pesquisas sem perder de vista o "tensionamento teórico sobre o objeto”, evitando uma abordagem meramente descritiva ou classificatória do corpus de obras em análise e buscando “referência a conceitos e teorias que o organizem e construam enquanto “objeto de pesquisa” (BRAGA, 2011, p. 24-25). Ressaltamos ainda que tais investigações buscam compreender aquele campo da experimentação artística no contexto de desenvolvimento de novas tecnologias midiáticas, marcadas pela miniaturização, pela ubiquidade, pelo processamento distribuído e pela disseminação de estruturas de comunicação em redes. E, no contexto da pandemia pelo Covid-19 e da implementação dos protocolos de isolamento social, que impactaram fortemente os sistemas de produção, de exibição e de fruição de projetos culturais, é importante considerarmos a contribuição da presente pesquisa no que tange a uma reflexão sobre possíveis novos modelos, baseados em processos midiáticos, para a criação e a circulação de propostas artísticas. 18 1.2 Objetivo geral A partir das discussões acima apontadas, a presente dissertação tem como objetivo geral estabelecer uma discussão a respeito dos mecanismos de agenciamento entre a obra de arte e o meio/entorno, sobretudo no que se refere a obras tecnologicamente engendradas e priorizando o entendimento da performance de dados como agente atuante no processo de criação de resultados artísticos (instalativos e sonoros). 1.2.1 Objetivos específicos A presente pesquisa contempla ainda dois objetivos específicos, a saber: a) a investigação de processos de criação de artistas sul-americanos em arte sonora com meios tecnológicos, de forma a identificar e discutir procedimentos criativos que empregam tecnologias diversas em relação a contextos socioculturais específicos; b) produção de uma obra artística inédita que investigue as possibilidades técnicas e estéticas de agenciamento de dados site specific por meio de tecnologias. 1.3 Metodologia de pesquisa em arte e tecnologia Segundo as pesquisadoras Lucia Leão e Cecília Almeida Salles é possível vislumbrarmos três diferentes perspectivas metodológicas para as pesquisas relativas à processos artísticos em suportes midiáticos, a saber, a abordagem dos processos criativos em si, o acompanhamento crítico dos mesmos e, por fim, o estudo dos procedimentos curatoriais específicos da área (LEÃO e SALLES, 2011, p. 3865). No que se refere à primeira possibilidade, lembram as autoras que o conceito de artista-pesquisador é polêmico e evoca discussões não só a respeito da existência de um tipo de artista cujo processo criativo envolve procedimentos de pesquisa, mas também sobre as íntimas e intrínsecas relações entre o fazer e o pensar. Para vários autores, é impossível separar essas duas ações. Nessa perspectiva, a atividade intelectual é inerente a qualquer atividade prática. (LEÃO e SALLES, 2011, p. 3869). 19 Considerando que o projeto de pesquisa aqui explicitado parte de nossas experiências e indagações artísticas pessoais, entendemos que, metodologicamente, a figura do artista-pesquisador ressaltada pelas autoras configura uma estratégia de trabalho ampla que parte do interesse em analisar processos criativos específicos em arte sonora, no formato instalativo, considerando não apenas nossa própria produção como também a de artistas selecionados na América do Sul. Neste caso, conforme afirma Leão, tal abordagem permite [...] construir um espaço de conversação na qual o sujeito que pesquisa (sujeito epistêmico) dialoga com o sujeito empírico (o sujeito autor dos processos de criação estudados). Parte-se do pressuposto que existe uma relação íntima e indissociável entre o “fazer-criativo” e o “fazer-pesquisa”. (LEÃO, 2016, p. 121). Note-se aqui, portanto, diante das propostas acima apresentadas, que a presente proposta de pesquisa pressupõe um exercício de caráter qualitativo, que tem como pano de fundo a análise de obras relevantes no segmento artístico estudado e nos recortes cronológico e geográfico estabelecidos, bem como a discussão de procedimentos, de experimentos e de interesses que resgatamos a partir de nossa própria práxis, enquanto artista-pesquisador no campo da arte sonora em suportes tecnológicos, destacando como "[...] a reflexão teórica que emerge no processo de escrita e as descobertas sobre o próprio fazer criativo podem atuar como catalisadoras de novos experimentos e versões dos trabalhos estudados [...]. (LEÃO, 2016, p. 121) Tendo em vista os objetivos e as discussões acima apontados, apresentamos aqui as estratégias metodológicas utilizadas ao longo do desenvolvimento de nossa pesquisa. Em um primeiro momento, fica prevista uma revisão das principais discussões teóricas que contemplam as relações entre a arte contemporânea em suportes tecnológicos, com ênfase na produção instalativa em arte sonora e o uso de tecnologias midiáticas para o sensoriamento do espaço. Esta investigação preliminar busca apresentar um campo de diálogo teórico no qual a obtenção e/ou a análise de dados do entorno possa ser interpretado como um elemento agenciador da experiência artística, como um processo para a ativação (não necessariamente linear ou realista) de conteúdos plásticos (sonoros) e de referências simbólicas. Busca-se, com isso, discutir a performance de dados como elemento instituinte de plásticas e de poéticas sonoras dadas a perceber em ambientes expositivos. 20 No que se refere aos estudos de caso propostos, propomos a realização de uma investigação sobre a produção artística em arte sonora em meios tecnológicos na América do Sul, opção que se justifica por nossa participação em residências artísticas, mostras e festivais no continente, experiências que nos permitiram estabelecer uma rede de contatos locais e também notar o caráter fortemente experimental da criação, mesmo mediante poucas iniciativas de fomento à arte, e sobretudo à arte sonora, em uma situação muito semelhante à realidade brasileira. Nesse sentido, define-se aqui a necessidade de orientar as pesquisas pela consulta a uma bibliografia específica sobre a produção artística sul-americana no recorte cronológico acima mencionado e também pela realização de entrevistas abertas com pesquisadores, críticos de arte, curadores e artistas voltados ao segmento da arte sonora, buscando evitar um olhar pautado pelo “gosto" do pesquisador e, sobretudo, identificar obras instalativas relevantes em arte sonora que tenham sido apresentadas ao circuito de arte sul-americano, mantendo em vista os demais objetivos previstos no projeto em questão. Os procedimentos previstos para esta etapa das pesquisas se voltam à constituição de um conjunto de obras artísticas para estudo de casos, a partir dos seguintes critérios: a) a seleção de um corpus de análise constituída por ao menos três obras de artistas sul-americanos dedicados à obras sonoras de caráter instalativo que promovam o diálogo comunicacional entre os espaços expositivos e seu entorno físico e/ou imaterial (tais como redes digitais, sistemas de transmissão midiáticos, mídias móveis, entre outros); b) a busca por artistas não associados a laboratórios ou outras instituições de pesquisa de grande porte, valorizando a produção em plataformas de baixa tecnologia e com práticas alternativas, tais como o "DIY", a gambiologia, o microprocessamento embarcado, entre outros. Tais estudos de casos respondem ao nosso segundo objetivo geral de pesquisa, a saber, a discussão dos processos de agenciamento entre o meio/entorno, a obra de arte e o público, sobretudo no que se refere aos objetos artísticos tecnologicamente engendrados. Por se tratar de um objetivo de pesquisa bastante atrelado a processos tecnológicos e formais, observamos a necessidade de evitar uma simples compilação de fundo técnico, que não questione os motivos conceituais, formais e estéticos específicos para o uso de tais 21 recursos: ou seja, buscaremos estabelecer uma problematização e uma reflexão crítica acerca de um inventário técnico/plástico tendo em vista nosso terceiro objetivo para a pesquisa. Assim, as obras selecionadas para análise serão problematizadas, inicialmente, a partir de suas especificidades no que se refere ao agenciamento de dados obtidos em em seu entorno. Para tanto, apontamos aqui, a princípio, de quatro situações preliminares para o estudo da relação entre obra/entorno a partir das informações coletadas, a saber: a) a mobilização das obras pela simples detecção (binária) da presença ou da ausência de dados captados; b) a mobilização das obras por meio de avaliações quantitativas dos fluxos de dados obtidos (a mensuração da maior/menor intensidade das informações seja por sistemas eletromecânicos, eletrônicos ou digitais); c) a mobilização das obras por meio de avaliações qualitativas dos fluxos de dados obtidos (a mensuração da presença de informações específicas previamente determinadas, seja por sistemas eletromecânicos, eletrônicos ou digitais) ou, d) a hibridização entre as possibilidades acima apontadas. Partindo destes possíveis enquadramentos técnicos, as obras selecionadas serão analisadas em função de suas proposições poéticas e contextuais, de forma a evitar uma situação recorrente apontada por Miguel Iturbide ao nos lembrar que muitas vezes a produção artística baseada em tecnologias atenta mais à "[...] programação de interatividade eletrônica do que à teoria estética e conceitual em que essas obras são fundadas, ou para o equilíbrio necessário que deve existir entre forma e conteúdo" (ITURBIDE, 2007, p. 20, tradução nossa). Por fim, em relação à proposta de criação de uma obra inédita em diálogo com os temas desta pesquisa, temos em vista que os métodos para seu desenvolvimento deverão atentar para o tensionamento entre a teoria e o objeto artístico, na medida em que a concretização do processo de criação proposto não deve simplesmente responder, tal como a uma “receita” ou a um “protocolo”, ao conjunto de propostas técnicas e estéticas levantadas ao longo das pesquisas. Ao contrário, a implementação da obra a ser realizada deverá problematizar, ao invés de simplesmente reapresentar, as tensões teórico-conceituais percebidas no contexto 22 analisado, buscando apresentar possibilidades para novos encaminhamentos criativos, sejam conceituais ou formais. Para tanto, metodologicamente, ficam aqui propostas as seguintes etapas: a) a eleição de um tema significativo no contexto local, a ser abordado artisticamente em uma instalação sonora agenciada por dados do entorno; b) a definição, no decorrer das pesquisas, das plataformas tecnológicas que serão utilizadas na coleta dos dados agenciados na instalação; c) o estabelecimento dos critérios para a interpretação dos dados obtidos; d) a criação ou coleta de material sonoro apresentado na instalação e, e) a definição do projeto técnico de montagem e de exposição da obra a ser apresentada. O processo de criação artística acima proposto será discutido técnica e poeticamente no terceiro capítulo da dissertação a ser apresentada e, considerada a evolução da pandemia pelo Covid-19, a obra poderá ser exposta em formato instalativo para fruição da comunidade acadêmica e do público em geral ou ser realizada por meio de procedimentos remotos a serem determinados ao longo das pesquisas. 23 2 INSTALAÇÕES SONORAS E SEUS ENTORNOS: ENTRE TECNOLOGIAS E EXPERIÊNCIAS Neste segundo capítulo, o objetivo é elencar e discutir processos e conceitos que surgem ao longo do século vinte com o desenvolvimento da arte sonora, tendo em vista a importância para a compreensão de uma modalidade artística específica, objeto desta dissertação, as instalações sonoras, bem como sua relação com o espaço em seu entorno. Assim, não se trata aqui de elaborar uma compilação historiográfica a respeito de recursos tecnológicos ou de experimentos artísticos - iniciativa já conduzida por vários pesquisadores interessados pelo tema - mas sim de um olhar direcionado para elementos conceituais relevantes para essa pesquisa. 2.1 Arte sonora: origens e conceitos transversais 2.1.1 "A arte dos ruídos", de Luigi Russolo: a sociedade industrial e o espaço urbano como elementos composicionais O campo de investigações teóricas e artísticas circunscrito pela expressão “arte sonora” tem sua origem histórica diretamente vinculada ao Futurismo italiano, considerado por Giulio Carlo Argan “[...] o primeiro movimento que se pode chamar de vanguarda [...]”, na medida em que “[...] investe um interesse ideológico na arte, […] negando em bloco todo o passado e substituindo a pesquisa metódica por uma ousada experimentação na ordem estilística e técnica [...]" (ARGAN, 1992, p. 310). De fato, dentre os diversos enunciados desencadeados pelo Manifesto Futurista (1909)7 de Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), a publicação de “A arte do ruído” (1913) por Luigi Russolo (1885-1947) aponta as principais propostas do pintor futurista em defesa de uma nova forma de expressão artística por meio do sonoro, em confronto direto com a tradição musical erudita europeia. Declaradamente inspirado pela crescente industrialização urbana na Itália do início do século vinte, Russolo concebeu um campo de criação no qual os ruídos das novas paisagens urbanas industriais deveriam ser incorporados à arte e à música. 7 FUNDAÇÃO E MANIFESTO DO FUTURISMO. Biblioteca Digital Mundial. Disponível em . Acesso em: 28 de abr. de 2021. https://www.wdl.org/pt/item/20024/ 24 Nas palavras de Russolo, caminhemos juntos por uma grande capital moderna, com os ouvidos mais atentos do que os olhos, e iremos variar os prazeres de nossas sensibilidades distinguindo entre os borbulhos de água, ar e gás dentro de canos metálicos, os estrondos e os chocalhos de motores respirando com óbvios espíritos animais, o subir e descer dos pistões, a estridência das serras mecânicas, o estrépito dos bondes nos trilhos, o estalar dos chicotes, o chicotear das bandeiras. Vamos nos divertir imaginando nossa orquestração de portas corrediças de lojas de departamento, o burburinho das multidões, os diferentes rugidos das estações ferroviárias, as fundições de ferro, as fábricas têxteis, as tipografias, as indústrias e os metrôs. (RUSSOLO, 2004, p. 7, tradução nossa). Imbuído de tais convicções, e num contexto no qual o desenvolvimento de dispositivos de gravação e reprodução fonográficos era ainda incipiente, Russolo desenvolveu seus “intonarumori”, instrumentos criados pelo artista para mimetizar mecanicamente sonoridades urbanas e com os quais passa a desenvolver uma série de composições autorais8. Figura 1: Intonarumori, Luigi Russolo, 1914 Fonte: http://www.medienkunstnetz.de/works/intonarumori/images/1/ Tais proposições fundadoras de Russolo nos interessam sobretudo, nesta dissertação, para além do desenvolvimento de seus instrumentos e composições, na medida de seu pensamento pioneiro em relação à assimilação de sonoridades do entorno e do cotidiano no processo de criação artística relativo ao sonoro. De fato, a partir de Russolo surge a possibilidade embrionária de refletirmos sobre a influência dos ambientes sonoros na 8 Parte da produção sonora de Russolo pode ser ouvida no link: https://www.ubu.com/sound/russolo_l.html http://www.medienkunstnetz.de/works/intonarumori/images/1/ https://www.ubu.com/sound/russolo_l.html 25 sensibilização individual a partir de vivências e de memórias vinculadas à diferentes situações sócio-espaciais. Nesse sentido, nos diz Russolo que o ruído acompanha todas as manifestações de nossa vida. O ruído é familiar para nós. O ruído tem o poder de nos trazer de volta à vida. Por outro lado, o som, estranho à vida, sempre uma coisa musical, externa, um elemento ocasional, chegou a atingir nossos ouvidos não mais do que como um rosto excessivamente familiar chega aos nossos olhos. O ruído, que jorra confusa e irregularmente da vida, nunca nos é totalmente revelado e guarda inúmeras surpresas para nosso benefício. Temos certeza de que, ao selecionar e coordenar todos os ruídos, iremos enriquecer os homens com uma volúpia de que eles não suspeitavam. (RUSSOLO, 2004, p. 9, tradução nossa). Assim, destacamos a partir da obra de Russolo não apenas o momento de fundação das questões relativas à produção em arte sonora mas, principalmente, um marco inicial nas reflexões sobre as imbricações entre o sonoro, o espaço e a escuta individual e social, como trataremos posteriormente, já apontando inicialmente nosso interesse no potencial da matéria sonora como mobilizador de nossas interações sociais e espaciais, na medida em que, como afirma Giuliano Obici, o som carrega a potência do intensivo que opera em nossa subjetividade de maneira muito particular, simultaneamente frágil e potente. Dizemos frágil porque o fluxo intensivo que o som atualiza em nossa subjetividade pode ser desfeito a qualquer momento por um evento que venha a interrompê-lo. Dizemos que o som é potente porque tem a capacidade de mobilizar com pouco. (OBICI, 2008, p. 100). Um passo adiante no processo de assimilação dos ruídos da sociedade industrial pela produção artística, no caso de Russolo realizada por meio de sistemas mecânicos e acústicos, foi resultado do desenvolvimento das tecnologias de gravação e de reprodução de áudio, que, como nos informa Schafer, permitiram a outros artistas reconhecerem posteriormente a importância devida às ideias do futurista italiano (SCHAFER, 2001, p.162). 2.2 O advento das tecnologias de gravação/reprodução de áudio e o conceito de objeto sonoro Teóricos como Lílian Campesato (CAMPESATO, 2007, p.10), Felipe Vaz (VAZ, 2008, p. 47) e Manuel Iturbide (ITURBIDE, 2015, p. 38), entre outros, reconhecem que o surgimento e a ampliação do acesso à equipamentos de registro e reprodução de sons, como a fita magnética e o toca discos ou ainda a proliferação dos estúdios de radiodifusão tiveram um 26 papel importante no desenvolvimento da arte sonora, sobretudo a partir da atuação de Pierre Schaeffer (1910-1955), reconhecido como criador da música concreta. Nesse sentido, segundo Obici, em meados do século XX, após um período de desenvolvimento e aplicações de tecnologias como, por exemplo, os transdutores, surgiram ferramentas que possibilitaram converter energia mecânica em eletricidade. Dentre os vários inventos, a fita magnética, como suporte de gravação, permitiu versatilidade na manipulação e produção dos sons, proporcionando a execução de atividades como cortar, colar, combinar e reproduzir em diferentes velocidades. (OBICI, 2008, p.25). Tais técnicas, que passaram a permitir a repetição, a manipulação e a análise detalhadas de registros de áudio, permitem o rompimento entre a origem do som em si, em sua fonte, e as possibilidades de sua fruição em um sem número de outras situações, sem a necessidade de um referente/emissor, tendo sido fundamentais para criação, por Schaeffer, do conceito de objeto sonoro, um registro sonoro que se libera de um caráter efêmero e antes "[...] se mantém conforme propriedades específicas que se atualizam sempre graças a um aparato que o fixou, mesmo não sendo percebido sempre da mesma maneira quando repetido" (OBICI, 2008, p.29). Como exemplifica Felipe Vaz, apesar de ter tido instrução em conservatório como celista, Schaeffer formou-se engenheiro, e se empregou no Office de Radiodiffusion Télévision Française em 1936. Com o aparato técnico a que tinha acesso, começou a experimentar com o som gravado, e em 1948 produziria os Études aux bruits, com a ajuda do engenheiro de som Jacques Poullin. Nestes trabalhos, o ruído capturado em discos é o elemento sonoro fundamental. Como exemplo, no Étude aux chemins de fer, o material sonoro são ruídos de trens, editados engenhosamente de forma a criar um novo sentido musical. (VAZ, 2008, p. 15). Tais conceitos e experimentos propostos por Schaeffer seriam fundamentais para o desenvolvimento das experiências acusmáticas operadas pelo artista e pesquisador, bem como para a discussão sobre o conceito de escuta, que abordaremos adiante. Ao definir como acusmático o que se refere "[...] a um ruído que se ouve sem saber as causas de onde provém [...]" (OBICI, 2008, p.30), Schaeffer nos permite pensar na dissociação entre o visual e o sonoro, bem como nas imbricações entre a audição, o corpo, o espaço e nossos repertórios (individuais e/ou sociais) de memórias. Neste momento, consideramos importante retomar a opinião do artista e pesquisador colombiano David Vélez, para quem "uma grande parte da construção que fazemos da realidade, segundo após segundo, é produto de nossa imaginação visual ativada pela 27 sensibilidade acústica". (VÉLEZ, 2015, p. 17). Partindo deste ponto, ao entendermos que muito do que imaginamos resulta do que ouvimos, devemos também refletir sobre como ouvimos e o que decidimos ouvir e registrar. Vale retornarmos, aqui, a partir da ideia de objeto sonoro, aos procedimentos técnicos que nos permitiram, desde o século passado, a gravação e a manipulação de sonoridades. Tendo em vista os objetivos desta dissertação, não pretendemos aqui estabelecer um histórico do desenvolvimento de tais tecnologias, mas sim compreender seus impactos na produção em arte sonora, em suas repercussões no que se refere aos debates em torno do conceito de transdução, bastante central em nossa pesquisa, e também à concepção de escuta. A partir de McLuhan, Giuliano Obici se refere ao microfone e ao alto-falante como extensões de nossos ouvidos e bocas (OBICI, 2008, 35). Segundo o autor, "os dispositivos tecnológicos que nos servem como personagens conceituais são o microfone e o alto-falante, que, juntos, compõem a maquinaria auditiva de um regime criado a partir do advento da eletricidade”. (OBICI, 2008, p.113). Contudo, e considerando que entre aqueles dois dispositivos se instaura a instância da gravação, que segundo Iturbide "[...] liberou o criador sônico do uso de instrumentos musicais, tornando-o independente, ensinando-o a escutar de maneira atenta a todos os sons e lhe permitiu realizar obras sonoras com diferentes tipos de ruídos [...]" (ITURBIDE, 2015, p. 38), propomos aqui adicionar ao modelo proposto por Obici a figura do gravador entre os dispositivos básicos atuantes quando pensamos em arte sonora, a saber, a) o microfone, em referência às mais diversas tecnologias de captação de áudio, b) o gravador, entendido como o conjunto de aparatos responsáveis pelo registro e pela reprodução dos sons amostrados, fazendo uso de uma gama de suportes para seu armazenamento físico e c) o alto-falante, termo que sumariza uma diversidade de dispositivos empregados para a difusão de tais registros. Um microfone pode ser definido, basicamente, como um equipamento que capta ondas sonoras (mecânicas) de um determinado ambiente, por meio de uma membrana vibratória interna, transformando-as em sinais elétricos de mesma frequência da emissão sonora. (PIZZOTTI, 2003, p. 169). Um gravador, por sua vez, pode ser sumariamente definido como um “aparelho que grava e reproduz som, imagem ou dados” (PIZZOTTI, 2003, p. 135), enquanto um 28 “alto-falante”, por fim, corresponde a um “dispositivo que converte energia elétrica em energia sonora, amplificando o som em aparelhos de som” (PIZZOTTI, 2003, p. 24) e exercendo a função inversa dos microfones. Estas descrições podem levar à impressão ingênua de que tais tecnologias instituem formas neutras ou isentas para a utilização de uma determinada fonte sonora. Porém, "se nosso raio de visão é de 140 graus e o de escuta é de 360 graus, a uma grande parte das coisas percebemos de maneira acusmática [...]" (VÉLEZ, 2015, p.17), ou seja, independentemente de um contato com um referente visual, e considerando a "[...] relação de enquadre, que se dá pela captação do microfone [...]" (OBICI, 2008, 34), por exemplo, somos levados a pensar que qualquer operação de atenção para um determinado elemento sonoro em nosso entorno não apenas supera uma relação de visualidade como também implica em escolhas, em seletividades. Nas palavras do arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa, "o senso da visão implica exterioridade, mas a audição cria uma experiência de interioridade. Eu observo um objeto, mas o som me aborda; o olho alcança, mas o ouvido recebe" (PALLASMAA, 2011, p. 46) e, por isso, em nosso entendimento, qualquer registro ou gravação sonora demanda, para além das tecnologias de registro disponíveis, intenções de registro, decisões que podem ser pautadas por componentes múltiplos e de naturezas variáveis. Estando imersos constante e continuamente em sons, podemos, como afirma Vaz, [...] enxergar no escuro e através das paredes com os ouvidos, percebendo inclusive as qualidades do ambiente conforme a reflexão sonora. Além disso, o ouvido é capaz de perceber movimentos muito mais imediatamente do que a visão, e mesmo o fato de nós e os mamíferos ouvirmos o tempo todo, até durante o sono, tem certamente um papel preponderante na sobrevivência destas espécies. Pode-se arriscar dizer que, em comparação com o olho, o ouvido está ligado a níveis ainda mais imediatos e fundamentais da experiência humana. (VAZ, 2008, p. 49). Neste ponto, vale pensarmos que nossas relações contemporâneas com o sonoro são operadas, a priori, a partir de nossos recursos fisiológicos e com forte mediação por aparatos tecnológicos diversos. Porém, apesar de tal presença tecnológica, que se dá por uma miríade de dispositivos, é importante considerar que tais processos podem ser entendidos não apenas como transduções técnicas, mas também simbólicas. Segundo José Henrique Padovani, do ponto de vista técnico, podemos entender transdução como um processo 29 [...] associado à transmissão de um sinal e à sua concomitante conversão de um determinado meio energético para outro. Trata-se, enfim, de fazer com que um sinal captado a partir de determinado dispositivo ou elemento técnico module um outro suporte ou meio energético de maneira que seja possível reconhecer os traços específicos do sinal original durante tal processo. Isto é, de maneira que, mesmo ao ser alterado, transformado ou até mesmo distorcido devido às características intrínsecas aos mecanismos técnicos em questão, possa-se reconhecer ou identificar a prevalência de características do sinal original no sinal resultante. Nas práticas eletroacústicas, como é evidente, os processos de transdução estão relacionados à interconversão entre sinais elétricos e sinais acústicos – algo que só se tornou viável com o desenvolvimento de transdutores, como microfones e alto-falantes. (PADOVANI, 2014, s.p.). Vemos, com o autor, que o procedimento de transdução consiste na conversão de um sinal para seu trânsito entre diferentes dispositivos de forma que se mantenham, ao final, as características mínimas para o reconhecimento das informações originais, o que não exclui as possibilidades de distorção ou transformações do sinal inicial. Neste sentido, qualquer operação envolvendo conteúdos sonoros por meio de tecnologias das mais variadas naturezas pode ser vista como um ato de transdução, ou seja, a manipulação de sinais físicos de forma a permitir sua circulação entre dispositivos distintos. Porém, e sobretudo quando tratamos de processos artísticos, nem sempre a impecabilidade dos processos realizados, em favor da preservação dos sinais manuseados, se apresenta como uma demanda necessária. De fato, muitas vezes o erro, as perdas ou distorções se tornam componentes importantes em produções artísticas na medida em que permitem abordar questões relativas à percepção individual, às interferências de um determinado contexto (social ou espacial) na fruição de uma obra e de igual forma aos limites do maquínico como suportes para a arte, entre outras. E, neste caso, um objeto sonoro, algo que se escuta a despeito de suas causas ou de relações de visualidade, nos parece necessariamente ser sempre resultado de uma transdução ampliada: algo que se escuta a partir dos recursos e de enquadramentos próprios às tecnologias empregadas e aos sujeitos de seu registro e, ainda, às particularidades de cada ouvinte. Assim, nos aproximamos aqui do conceito de transdução à luz do pensamento do pesquisador francês Gilbert Simondon (1924-1989). Na introdução de sua obra "Do modo de existência dos objetos técnicos" (originalmente publicado em 1958), Simondon aponta para uma falsa oposição entre a cultura e sistema dos objetos técnicos, "[...] mediadores entre a cultura e a natureza [...]", afirmando que 30 a cultura é desequilibrada, pois reconhece certos objetos, como o objeto estético, e lhes confere o direito de cidadania no mundo das significações, mas remete outros objetos, em particular os objetos técnicos, para o mundo sem estrutura daquilo que não possui significação, mas apenas uso, função útil. (SIMONDON, 2020, p. 43-44). Como podemos notar, a relação entre o homem e os chamados objetos técnicos associados diretamente à figura das máquinas - sejam elas destinadas à produção e à automação industrial em grande escala, à produção e à de conteúdos midiáticos (como câmeras fotográficas ou de vídeo, gravadores e reprodutores de áudio portáteis ou aparelhos de telefonia celular) ou ainda sistemas de processamento e compartilhamento de conteúdos, como computadores, tablets ou smartphones - demanda, segundo o autor, uma interpretação mais ampla, na medida em que se estabelece uma clivagem entre o cultural e o maquínico, entre o técnico e o estético, em função de um olhar utilitário no qual "os objetos técnicos - que, em sua ligação com o mundo natural, põem em ação, de maneira essencial, uma causalidade recorrente [...] só são viáveis quando o problema é resolvido [...]" (SIMONDON, 2020, p. 106). É a partir desta dicotomia entre o objeto técnico ou maquínico e o objeto estético que Simondon elabora as distinções entre o que chama de pensamento técnico, que "[...] concebe um funcionamento de conjunto como um encadeamento de processos elementares que agem ponto por ponto e etapa por etapa [...]" (SIMONDON, 2020, p. 262), e o pensamento estético, que, segundo o autor, é aquele que mantém a lembrança implícita da unidade: de uma das fases do desdobramento, ele chama a outra fase complementar, busca a totalidade do pensamento e visa a recompor a unidade por relação analógica, ali onde o aparecimento de fases poderia isolar o pensamento em relação a si mesmo. (SIMONDON, 2020, p. 267). No caráter relacional e analógico do pensamento estético, como aponta Simondon, nos parece residir um ponto importante para nossa pesquisa, na medida em que nosso interesse em compreender as relações entre instalações sonoras e seu entorno, considerando a performatividade de dados obtidos por plataformas tecnológicas, pode ser potencializado ao considerarmos tais obras artísticas não apenas como sistemas tecnológicos que respondem programaticamente a causalidades previamente estabelecidas mas que podem permitir a emergência de analogias e mesmo de acasos ou imprevisibilidades. Neste caso, retomamos ainda, a partir das análises de Simondon sobre máquinas de tradução, as particularidades da memória humana, e por que não social, no que toca à 31 transdução, em contraste com a capacidade de armazenamento e de processamento de dados em sistemas maquínicos. Para o autor, o storage da máquina de calcular ou da máquina de traduzir [...] é muito diferente da função do agora pela qual, no homem, a memória existe no nível da percepção, através da percepção, dando sentido à palavra de agora em função da construção geral da frase e das frases anteriores ou, ainda, de toda a experiência que se adquiriu no passado a propósito da pessoa que fala. A memória humana acolhe conteúdos que têm poder de forma, no sentido de eles mesmo se sobreporem, se agruparem, como a experiência adquirida servisse de código para novas aquisições, para interpretá-las e fixá-las: o conteúdo torna-se codificação no ser humano - e, em termos gerais, no ser vivo -, ao passo que na máquina, codificação e conteúdo permanecem separados como condição e condicionado. (SIMONDON, 2020, p. 192). A "função do agora", mencionada pelo autor, nos permite pensar em uma situação na qual um determinado conteúdo é percebido e elaborado, ou transduzido, dentro de um processo que pode variar individual e socialmente em função de um conjunto imprevisível de experiências acumuladas e de interferências imediatas ao processo. Isto posto, consideramos possível afirmar que, para além dos procedimentos puramente tecnológicos que indicamos acima, de uma mera conversão de sinais entre dispositivos de naturezas distintas, o conceito de transdução pode ser expandido de forma a compreender não apenas os sistemas técnicos envolvidos como também aglutinar aspectos sensíveis, individuais ou coletivos, mobilizados por meio dos dados colecionados em contextos específicos. Neste sentido, tendemos igualmente a acatar a ideia de que uma instalação artística agenciada por dados obtidos de seu entorno - o que constitui a princípio uma ação site specific na medida em que permite a interpretação poética "[...] questões culturais/lugar, das relações de dimensões geográficas com relação à escala/escala, da relação localização e distância entre objetos no espaço/espaço e da relação com o espaço urbano da cidade/espaço arquitetônico" (TSUDA, 2012, p.201) - pode ser entendida não apenas como o resultado de um processo técnico de captação e de processamento de dados, mas também como um mecanismo para a mobilização de tais informações a partir de subjetividades ou do esgarçamento dos próprios sistemas técnicos empregados. Afinal, como afirma Arlindo Machado, o artista da era das máquinas é, como o homem da ciência, um inventor de formas e procedimentos; ele recoloca permanentemente em causa as formas fixas, as finalidades programadas, a utilização rotineira, para que o padrão esteja sempre em questionamento e as finalidades sob suspeita. (MACHADO, 2001, p. 15). 32 Assim, ao pensar uma obra de arte em suportes tecnológicos e em diálogo com informações externas a seus próprios mecanismos constitutivos, não podemos desconsiderar que temos ali não apenas recursos para o tensionamento artístico de qualquer tecnologia como também dos valores que associamos às ideias de arte ou de cultura e ainda os usos sociais atribuídos a nosso universo maquínico. Torna-se, portanto, interessante, em nosso entendimento, a possibilidade de pensar uma obra de arte como algo em trânsito entre os sistemas técnicos, estéticos e culturais. Com isso, e tendo destacado alguns pontos que consideramos relevantes no que se refere a conceitos técnicos presentes na produção artística no campo da arte contemporânea com suportes tecnológicos, cremos ser importante agora abordar alguns aspectos relativos à sonoridade em recortes mais amplos, sociais ou mesmo socioambientais, o que nos leva ao conceito de paisagem sonora e de suas relações com sistemas tecnológicos e midiáticos. 2.3 A paisagem sonora, depois de Murray Schafer A expressão paisagem sonora se consolidou no campo de pesquisas em arte sonora a partir da publicação da obra "A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto de nosso ambiente: a paisagem sonora", em 1977, pelo artista e pesquisador canadense R. Murray Schafer, livro que resulta em grande parte das pesquisas realizadas pelo autor, em parceria com dezenas de outros especialistas, no Projeto Paisagem Sonora Mundial (World Soundscape Project)9. A obra, que herda daquele Projeto a preocupação com a proliferação de sonoridades no mundo industrializado (paisagem lo-fi) em prejuízo aos sons do universo natural (paisagem hi-fi), dá grande ênfase aos estudos voltados à poluição sonora e à necessidade de "[...] criar uma interdisciplina que poderíamos chamar projeto acústico, na qual músicos, engenheiros acústicos, psicólogos, sociólogos e outros estudariam em conjunto a paisagem sonora mundial, o que nos capacitaria a fazer recomendações inteligentes para sua melhoria (SCHAFER, 2001, p. 19). Para Schafer, a poluição sonora ocorre quando o homem não ouve cuidadosamente. Ruídos são os sons que aprendemos a ignorar. A poluição sonora vem sendo combatida pela diminuição do ruído. Essa é uma abordagem negativa. Precisamos procurar uma 9 WORLD SOUNDSCAPE PROJECT. Disponível em . Acesso em: 29 de jul. 2021. https://www.sfu.ca/sonic-studio-webdav/WSP/index.html 33 maneira de tornar a acústica ambiental um programa de estudos positivo. Que sons queremos preservar, encorajar, multiplicar? Quando soubermos responder a essa pergunta, os sons desagradáveis ou destrutivos predominarão a tal ponto que saberemos por que devemos eliminá-los. (SCHAFER, 2001, p. 18). Note-se aqui que, embora reconheça a contribuição pioneira de Luigi Russolo, que postula a incorporação dos ruídos da sociedade industrial a um novo campo de criação artística (SCHAFER, 2001, 161), o autor defende a criação de uma ecologia sonora que beira o higienismo. Como aponta Giuliano Obici, ao formular suas proposições, Schafer apresenta uma visão ecológico-jurídico-higienista acerca do ruído que deverá ser combatido, previsto, circunscrito, medido, higienizado e controlado a partir de estratégias que o docilizem como ameaça ao ambiente, à lei e à saúde. A ecologia sonora schaferiana acaba funcionando como um pensamento disciplinar, no sentido foucaultiano, quando pensa o ruído pelo crivo da poluição. (OBICI, 2008, p. 44). Apesar da possível rigidez da proposta inicial de Schafer, é importante lembrar que o autor é mundialmente reconhecido pela consolidação de um campo de pesquisas dedicado ao mapeamento, ao registro e à análise das transformações nos regimes sonoros nos mais diversos contextos, tendo ainda contribuído para instaurar estudos interdisciplinares aplicados ao sonoro. Mas, afinal, o que é a paisagem sonora para Murray Schafer? Segundo o autor, a paisagem sonora é qualquer campo de estudo acústico. Podemos referir-nos a uma composição musical, a um programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como paisagens sonoras. Podemos isolar um ambiente acústico como um campo de estudo, do mesmo modo que podemos estudar as características de uma determinada paisagem. (SCHAFER, 2001, p. 23). Como podemos notar, Schafer estabelece como o limite de uma paisagem sonora qualquer objeto que se dá a perceber no campo da acústica, seja uma peça musical ou as sonoridades características de um determinado recorte espacial, criando assim uma categoria de pesquisa extremamente abrangente. Talvez, justamente por tal elasticidade do conceito e em função das proposições de Luigi Russolo, a ideia de paisagem sonora se desprendeu de interesses de caráter ecológico para se configurar como um gênero de expressão artística. Não nos cabe aqui, no limite desta pesquisa, traçar um percurso histórico da produção criativa no que se refere às paisagens sonoras. Porém, vale ressaltar que a aproximação entre pesquisas acústicas de caráter socioambiental, como propostas inicialmente por Schafer, e iniciativas de caráter artístico, partem de princípios distintos, como coloca o artista e pesquisador grego Marinos Koutsomichalis. 34 Gravações ambientais surgiram em contextos artísticos desde os primeiros dias da música eletrônica, mas ainda assim foi apenas recentemente que as práticas de registro de campo se tornaram mais proeminentes e, até certo ponto, padronizadas. [...] o reenquadramento do som ambiental de acordo com algum contexto artístico distorce dramaticamente seu significado de várias maneiras. Isso muitas vezes é evidente quando é a intenção do artista, mas mesmo se um artista tenta simplesmente apresentar ou distribuir gravações de uma paisagem sonora da maneira mais direta, sem intenções composicionais ou outros empreendimentos em sua agenda, e mesmo se fosse possível reproduzir com precisão som ambiental em todos os seus aspectos, o próprio ato de fazê-lo contribuiria com o conteúdo por si só: a saber, que o artista considerou um local específico que vale a pena gravar, ouvir e distribuir. Além disso, distribuir gravações de paisagens sonoras através de uma rede originalmente destinada a distribuir música ou arte implicitamente sugere que um determinado ambiente sonoro deve ser considerado como música ou como arte, de algum tipo, ou pelo menos que o artista está tentando contrastá-lo com a música ou a arte por algum motivo. (KOUTSOMICHALIS, 2013, tradução nossa). Como podemos perceber, o registro de elementos de uma paisagem sonora e sua apropriação em um projeto artístico, seja qual for sua natureza, de alguma forma também se configura como um procedimento de transdução, na medida em que a transposição das informações sonoras originais para um novo contexto, e em diferentes suportes de reprodução, não apenas suscita uma nova apreensão do material obtido como também implica em sua exposição para um novo conjunto de ouvintes, não necessariamente familiarizados com o ambiente de origem das sonoridades amostradas. Temos aqui, portanto, uma situação na qual a paisagem sonora, enquanto obra de arte, aciona um processo de criação de imagens e de sentidos que se dá a partir dos valores e referências trazidas à situação de exibição da obra, como sugere a artista e pesquisadora austríaca Gabriele Proy, enquanto ouvimos o som projetado, imaginamos imagens sonoras. Nossos sentidos se tornam uma sala auditiva virtual, um lugar onde surgem imagens acusticamente evocadas. [...] Enquanto ouve uma projeção sonora, por exemplo, o rádio, o próprio ouvinte é a tela acústica na qual as imagens sonoras são projetadas. Ouvimos imagens sonoras criadas por um compositor ou produtor de rádio e formamos nossas próprias imagens sonoras pessoais. A percepção do som evoca imagens mentais. (PROY, 2002, p. 17, tradução nossa). Consideremos, por fim, que a constituição das paisagens sonoras sobretudo nos ambientes urbanos contemporâneos ou lo-fi, na expressão de Schafer, foi certamente impactada pelo desenvolvimento de uma série de dispositivos portáteis discretos ou explícitos - desde o surgimento dos primeiros equipamentos de reprodução sonora pessoais, nos anos de 1980, até a atual disseminação de aparelhos celulares - que interferem em nossa relação com o entorno. 35 Como propõe Obici, "[...] a portabilidade desses meios e equipamentos tem se difundido, criando territórios portáteis, que nos acompanham em muitos aspectos da vida, como meios de criar uma zona temporária de segurança [...]" (OBICI, 2008, p. 87-88), proteção esta que a princípio se afirma ao nos isolar de uma imersão em um conjunto de sonoridades cotidianas e que, no limite, talvez permita até mesmo questionar, atualmente, a validade do conceito de paisagem sonora em seus aspectos socioambientais. De qualquer maneira, e justamente por isso, tal ideia permanece nos parece permanecer potente como recurso para reflexão e a criação artística. 2.4 Instalações sonoras: sonoridades e interação em um campo expandido O formato conhecido como instalação sonora se configurou, ao longo do século vinte, como decorrência de experimentações artísticas pós-modernistas, no campo da arte contemporânea, e também a partir de processos criativos herdados do desenvolvimento da arte sonora como um todo e especificamente da contribuição de propostas artísticas específicas, surgidas a partir da década de 1960. Assim, para definirmos suas principais características intrínsecas, faz-se necessário o resgate das principais referências para sua consolidação Para tanto, nos parece importante rastrear, inicialmente, as balizas que fundamentaram o campo mais amplo da arte sonora a partir daquele momento, buscando inicialmente compreender a origem e o conceito de instalação. A esse respeito, Lílian Campesato nos explica que a efervescência de novas possibilidades artísticas impulsionadas pela arte conceitual da década de 1960 e a ideia recorrente da dissolução das fronteiras entre arte e vida, incitaram um processo de extrapolação do uso dos espaços e meios artísticos, bem como uma desmistificação da obra de arte e do artista criador. A ênfase em diferentes tipos de espaço, bem como a extrapolação de concepções e usos dos espaços, torna-se uma busca fortemente reiterada nas artes visuais do pós-guerra. (CAMPESATO, 2007, p. 28). Esta mudança de paradigma pode ser explicada, entre outros fatores, pela crise do Expressionismo Abstrato nos Estados Unidos, pelo surgimento do Action Painting, no qual as obras de Jackson Pollock trariam à tona a atuação corporal do artista no espaço durante o processo da pintura, numa prática já praticamente performática e pela influência de Marcel Duchamp, de seus ready mades e da Pop Art, que questionaram fortemente os cânones da arte moderna. (CANONGIA, 2005, p. 12-17) 36 Lembramos ainda que, de forma mais ampla, o conceito de instalação artística dialoga diretamente com a ideia de campo ampliado ou expandido, proposta pela crítica de arte norte-americana Rosalind Krauss no artigo "A escultura no campo ampliado", publicado originalmente em 1979, e no qual a autora afirma que, após o modernismo, a práxis artística "[...] não é definida em relação a um determinado meio de expressão [...] mas sim em relação a operações lógicas dentro de um conjunto de termos culturais para o qual vários meios [...] possam ser usados". (KRAUSS, 1984, p. 136) Além da apropriação possível de variados meios, tecnologias e materiais, uma instalação se define não apenas por estabelecer diferentes possibilidades de diálogo com espaço mas, também, pela interação com público. Nesse sentido, em termos mais específicos, [...] instalações são trabalhos que, de uma certa forma, direcionam-se para uma experiência sensorial mais completa do público, na medida em que usam materiais e conceitos que invocam os vários sentidos. Na instalação, há um nítido deslocamento da ideia de contemplação para a imersão e esse processo pode ser traçado a partir de vários indícios. Entretanto, chamaremos atenção aqui à interferência (interação) do público, ressaltando seu papel na atualização da obra artística, que tende a solicitar uma participação mais ativa do espectador no processo artístico. (CAMPESATO, 2007, p. 31). Com tal deslocamento conceitual para a valorização de experiências imersivas, as instalações favoreceram o desenvolvimento de proposições artísticas multi-sensoriais, abarcando elementos visuais, táteis, corporais e sonoros, entre outros. Desta maneira, experimentos que caracterizaram o desenvolvimento da arte sonora foram aos poucos assimilados em processos instalativos dando origem ao conceito de instalação sonora. Segundo Felipe Vaz, a produção artística em arte sonora pode ser observada em inúmeros formatos, tais como [...] instalações, esculturas, arte ambiental, objetos, performances, soundwalks, net art, instrumentos experimentais, ambientes interativos imersivos, intervenções arquitetônicas e urbanas, entre outras. Tal tipo de produção vem sendo frequentemente caracterizado como uma categoria recente, com questões novas e exclusivas, a despeito das origens e dos antecedentes desses trabalhos e suas questões. Estas raízes são verificáveis de um lado na música, começando com experiências à época das vanguardas históricas do início do século XX, e de outro nas investigações realizadas no campo das artes plásticas, em especial a partir dos anos 1950 – assim como na constante realimentação e interdeterminação dos movimentos e gêneros artísticos destas duas disciplinas no período que se estende até hoje. (VAZ, 2008, p. 1-2). Diante desta variedade de formatos, nos diz Campesato que, além da possibilidade de recurso a uma diversidade de estratégias tecnologicamente engendradas, abre-se o campo para 37 a "[...] referência a elementos contextuais que apontam para fora da obra e estabelecem conexões referenciais e conceituais que, embora recorrentes no âmbito das artes visuais, aparecem de maneira muito mais tímida no campo da música" (CAMPESATO, 2007, p. 34), e opera-se um rompimento com a temporalidade linear que tradicionalmente caracteriza a produção musical, o que permite ao público determinar a duração, a intensidade, a velocidade e o engajamento corporal de sua experiência com a obra de arte. Para compreendermos melhor tais ampliações de campo, sobretudo no que se refere às questões relativas às instalações sonoras, é importante mencionarmos aqui a mobilização do sonoro em obras de caráter instalativo muitas vezes questiona a manutenção da lógica expositiva herdada do modernismo e do conceito de cubo branco. De fato, desde a década de 1960, as discussões decorrentes das proposições de Brian O’Doherty a respeito do cubo branco e das relações entre uma obra de arte e seu contexto de exibição, originaram uma polêmica significativa que mobilizou artistas, curadores e teóricos atuantes no campo da arte contemporânea e, desde então, muito já se falou sobre a suposta neutralidade do espaço das galerias. Para o autor, [...] a galeria ideal subtrai da obra de arte todos os indícios que interfiram no fato de que ela é arte. A obra é isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma. Isso dá ao recinto uma presença característica de outros espaços onde as convenções são preservadas pela repetição de um sistema fechado de valores [...]. (O'DOHERTY, 2002, p. 3). No âmbito desta dissertação, não pretendemos retomar diretamente este debate mas sim apresentar alguns apontamentos a respeito de seus desdobramentos no que se refere à produção em arte sonora em formatos instalativos. Nesse sentido, como afirma o historiador brasileiro Robson Xavier da Costa, o cubo branco como espaço clean, isento de contradições visuais, em sua neutralidade, não dá conta da complexa diversidade de propostas artísticas advindas das experimentações conceituais da arte contemporânea, com suas inúmeras formas de manifestação, múltiplas perspectivas visuais híbridas, que dialogam diretamente com o espaço, muitas vezes construindo seu próprio espaço, como é o caso das instalações, das vídeoinstalações, do site specific, do in sito, da performance e da land art. (COSTA, 2009, p. 100). Como podemos perceber, ainda que as polêmicas sobre o cubo branco já tenham sido hoje exaustivamente exploradas, o debate provocado pelas concepções de O’Doherty e por suas sucessivas interpretações nos parece mais fortemente vinculado ao campo da visualidade, raramente mencionando as práticas artísticas sonoras. 38 Inúmeros autores já discorreram sobre o predomínio da visualidade na cultura ocidental, porém, como comenta Rivas, “[...] nas últimas décadas vem crescendo o sentido crítico no meio das ciências sociais de forma a nos advertir que existem outros enfoques perceptuais que podem nos permitir compreender o homem a partir da pluralidade dos sentidos [...]”. (RIVAS, 2017, p. 6, tradução nossa). Assim, nos parece relevante refletir sobre as práticas para a criação e para a exposição de instalações sonoras a partir dos ecos das discussões sobre o cubo branco e da opinião do arquiteto Bernard Lassus, para quem, a paisagem é sempre o que está mais distante, o que permanece fora de nossa exploração, o horizonte sempre relegado, renovado … o inalcançável. E, se porventura conseguimos nos aproximar, no mesmo momento em que chegamos a ela, a paisagem se converte em lugar … o lugar em que me encontro [...]. (LASSUS, 1998 apud VÉLEZ, 2015, p. 17, tradução nossa). Neste ponto, e lembrando também das proposições do arquiteto norueguês Norberg-Schulz, ao afirmar que "[...] a fronteira não é aquilo em que uma coisa termina, mas, como já sabiam os gregos, a fronteira é aquilo de onde algo começa a se fazer presente [...]” (SCHULZ, 2006 apud COSTA, 2009, p. 98-99), é importante pensar que o som - um objeto sonoro, uma obra sonora ou uma paisagem sonora - possui fronteiras muito fluídas e mutáveis. Tal fluidez nos faz pensar que práticas em arte sonora não se deixam compreender por meio de um manual de instruções e sim por nossas sucessivas aproximações e transformações. Da mesma forma, não cremos ser necessário buscar um espaço neutro e/ou ideal para a escuta de práticas artísticas sonoras ou mesmo defender a necessidade de cubos brancos para suas exibições, a menos que, necessariamente, os conceitos que organizem tais obras estabeleçam relações diretas com a suposta neutralidade de um espaço expositivo controlado. De fato, nos parece mais interessante considerar, como proposta conceitual, uma abordagem do universo sonoro a partir do encontro das ideias de vazio e de corpo, como apontadas por Anne Cauquelin, e do conceito de intuição, na obra de Clement Greenberg. Em seu livro "Frequentar os incorporais", Anne Cauquelin se apropria do estoicismo para elaborar uma abordagem teórica da arte contemporânea. De acordo com a autora, o pensamento filosófico dos estóicos se organiza em torno de quatro incorporais, a saber, o lugar, o vazio, o tempo e o exprimível. Segundo Cauquelin, os estóicos definiam o vazio como “[...] um espaço que não contém corpo algum, mas que é capaz de contê-lo”, ou ainda, “['...] a natureza do vazio é tal 39 que não possui absolutamente nenhum caráter além do de ser apta a conter corpos [...]”. (CAUQUELIN, 2006, p. 31). A partir desta primeira definição, temos um conceito de lugar. Para a autora, “[...] é impossível pensar o lugar separadamente do vazio [...]. O lugar emerge do vazio como aquilo que é ocupado por um corpo, mas esse mesmo lugar volta a ser vazio se esse corpo lhe for subtraído”. (CAUQUELIN, 2006, p. 36-7). Vazio, corpo e lugar seriam, portanto, relacionados e interdependentes. As ideias de Cauquelin nos permitem, portanto, assumir que um vazio, ao abrigar em seu interior um corpo conhecido, transforma-se em um lugar, excluindo o que lhe é exterior embora permaneça em contato com ele. A partir desta proposição, tendemos a considerar que uma paisagem ou uma prática sonora, em seu caráter fugidio e instável, se configura como um lugar tão logo abrigue elementos ou corpos conhecidos, sendo igualmente capaz de se comunicar com elementos exteriores a si mesma e/ou de retornar à condição de vazio. Nesse sentido, reforçamos nossas impressões a respeito da não necessidade de enquadramentos ou condicionamentos para a exibição de obras sonoras que, em sua concepção, abriguem em si objetos sonoros trazidos de um exterior para um interior, definindo assim não apenas um lugar, mas um lugar de escuta. A partir desta visão do lugar como resultante da ocupação de um vazio por uma presença, entendemos que qualquer espaço pode configurar uma paisagem sonora específica tendo em vista as particularidades da escuta do sujeito que a ativa, em função de suas experiências. Em tal processo, a presença necessária de um corpo pode ser concebida como um procedimento para a ativação ou a mobilização de um lugar. Consequentemente, este corpo mobilizador - se entendido como um ouvinte - pode ser tomado como o elemento fundador do lugar da escuta ao mesmo tempo em que permanece conectado ao vazio exterior à tal experiência. Clement Greenberg, por sua vez, ao discutir a apreensão da arte a partir do conceito de intuição, nos diz que “[...] a passagem da intuição comum para a intuição estética é efetuada por certa alteração mental ou psíquica [...]” e sendo que, [...] emoção, percepção sensorial, lógica, saber e até mesmo moralidade tornam-se conhecidos, percebidos de um ponto privilegiado em que são controlados e manipulados em exclusivo benefício da consciência. O prazer da experiência estética é o prazer da consciência [...]. (GREENBERG, 1964, p. 45). 40 Segundo o autor, aquela “alteração mental ou psíquica” (GREENBERG, 1964, p. 45) seria capaz de mobilizar nossos sentidos e racionalidade em favor de uma experiência consciente e sensível do mundo, ativando os mecanismos para a vivência da experiência artística. Gostaríamos aqui de pensar que tal “alteração mental ou psíquica” ocorre precisamente no momento preciso da mobilização de um vazio por um corpo, da criação de um lugar para a sensibilidade, um lugar intuitivo no qual nossos sentidos e nossa consciência são acionados para a percepção de fenômenos que foram destacados de uma condição ordinária em função de nossa atenção e/ou presença. Desta forma, ao pensar na imaterialidade do som enquanto fenômeno, tendemos a concluir quem - na medida em que todas as coisas podem soar - o espaço do que é sonoro, das práticas artísticas em arte sonora, extrapola os espaços das galerias, dos museus, das salas de concerto ou mesmo dos espaços das cidades, e se define por meio de uma negociação delicada entre o ouvinte e os objetos sonoros que o convocam para um deslocamento em direção a um lugar intuitivo, aberto e mutável, o lugar sempre provisório da escuta. 2.5 O som e os lugares: algumas situações para pensarmos o conceito de escuta A esta altura, quando nos aproximamos de uma discussão do conceito de escuta, consideramos igualmente relevante exemplificar algumas experiências na produção artística contemporânea no que se refere a obras sonoras em formato instalativo que, de algum modo, podem ser tomadas como fundadoras nesse campo. Para tanto, vejamos agora os casos do Pavilhão Philips (1958) e da obra "I'm sitting in a room" (1970), de Alvin Lucier (1931). 2.5.1 Espaço e som imbricados em instalações sonoras Segundo Marcella Aquila, tiveram início em janeiro de 1956 as negociações entre os executivos da Philips Radio Corporation e o arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965) tendo em vista a construção do Pavilhão Philips, que representaria a empresa na Exposição Mundial de 1958, em Bruxelas. (AQUILA, 2015, p. 22). Ainda conforme a autora, desde os primeiros momentos da concepção do projeto, já estava descartada a ideia do projeto como um mero espaço para a demonstração dos produtos 41 da companhia e sim, "[...] uma demonstração plástica de suas potencialidades tecnológicas em som e luz [...]". (AQUILA, 2015, p. 22). Figura 2: Pavilhão Philips, 1958 Fonte:https://www.researchgate.net/figure/The-Philips-Pavilion-at-the-Brussels-World-Fair-in-1958-Courtesy-A nton-Buczynski_fig11_264586041 Nos dois anos seguintes se juntariam a Le Corbusier, o compositor francês Edgar Varèse (1883-1965) e o arquiteto e compositor grego Iannis Xenákis (1922-2001), configurando a equipe final de autores da proposta, tendo sido Xenakis [...] responsável pela concepção do prédio e de um pequeno interlúdio musical (“Concrete PH”), E. Varèse responsável pela composição musical principal, o cineasta P. Agostini responsável pela filmagem e edição do material a ser projetado, e Le Corbusier atuando como supervisor e definidor das diretrizes a serem seguidas. (DEL NUNZIO, 2006, p. 976). No interior do espaço, sete filmes, com duração entre 50 e 120 segundos eram projetados nas paredes, enquanto um sistema de som espacializado com 400 alto-falantes e 20 amplificadores permitia a reprodução de 15 canais de áudio gravados em tapes, gerando roteiros sonoros para o percurso dos visitantes, que eram recebidos já na entrada por um interlúdio sonoro de autoria de Varése e conduzidos ao concerto principal criado por Xenákis. (DEL NUNZIO, 2006, p. 977-978). https://www.researchgate.net/figure/The-Philips-Pavilion-at-the-Brussels-World-Fair-in-1958-Courtesy-Anton-Buczynski_fig11_264586041 https://www.researchgate.net/figure/The-Philips-Pavilion-at-the-Brussels-World-Fair-in-1958-Courtesy-Anton-Buczynski_fig11_264586041 42 Neste contexto, a menção ao Pavilhão se faz necessária na medida em que podemos considerar a iniciativa, apesar de suas intenções de caráter empresarial, uma primeira experiência intermidiática de grande porte e que, além de reunir artistas vanguardistas já renomados na época, teve como ponto de partida a mobilização da arquitetura para uma experiência sinestésica e, por que não dizer, instalativa e site specific. Pensar o Pavilhão como uma estrutura especificamente criada para a hibridização de diferentes linguagens reforça nossa impressão de que, o desenvolvimento de propostas instalativas arte sonora favorece a ruptura com o espaço expositivo tradicional (cubo branco). Neste caso, nos diz Vaz, ao analisar o campo da produção em arte sonora, [...] ao tirar a obra de arte da moldura idealizada e transparente do espaço institucional e trazê-la para um mundo que a informa e que com ela se relaciona, a idéia do site-specific cria o precedente para a exploração auditiva do espaço e sua ancoragem ao contexto nas diferentes formas que verificaremos a seguir: através da exploração dos fenômenos acústicos de algum lugar; da distribuição espacial do som em espaços que não aqueles idealizados pela espacialização da música eletroacústica na sala de concerto (real ou virtualizada); e da contraposição conceitual à carga simbólica de um determinado lugar onde está inserida. (VAZ, 2008, p.43). No que se refere explicitamente às particularidades acústicas de um determinado ambiente, às potências da distribuição espacial de elementos sonoros em um determinado espaço de forma a compor uma experiência estética ou ainda às características plásticas e simbólicas atribuídas às sonoridades pelo espaço em si nos levam a pensar no experimento pioneiro de Alvin Lucier. Produzida originalmente em 1970 pelo artista norte-americano, a instalação I'm sitting in a room agrega à nossa discussão a exploração de mais um elemento importante para pensarmos as dinâmicas geradas entre o sonoro e seu entorno: a ambiência como elemento ativo na síntese sonora. 43 Figura 3: I am sitting in a room, Alvin Lucier, 2014 Fonte: The Museum of Modern Art, New York. Dezembro de 2014. Foto: Amanda Lucier. https://www.moma.org/explore/inside_out/2015/01/20/collecting-alvin-luciers-i-am-sitting-in-a-room/ A obra foi executada originalmente em um espaço equipado com um sistema de gravação e um microfone, por meio do qual o próprio artista leu e gravou em áudio um pequeno texto de sua autoria. O material originalmente gravado foi, em seguida, submetido a sucessivas reproduções e regravações em tape, em um procedimento que gerou, após cerca de 45 minutos, uma peça sonora abstrata resultante da interferência das características acústicas do espaço de exibição em cada uma das fases do processo. Segundo Randal Davis, I am sitting in room” sujeita um pequeno fragmento de texto falado a repetidas reproduções e regravações por um microfone colocado na sala, um processo que ativa as características acústicas do próprio espaço de performance. Gravado pelo compositor, o texto usado também específica e reflexivamente, descreve a circunstância de início da performance: Estou sentado em uma sala diferente daquela em que você está agora. Estou gravando o som da minha voz falada e vou reproduzi-la na sala repetidamente, até que as frequências ressonantes da sala se reforcem de modo que qualquer semelhança com minha fala, talvez com exceção do ritmo, seja destruída. O que você vai ouvir, então, são as frequências ressonantes naturais da sala articuladas pela fala. (DAVIS, 2003, p. 206, tradução nossa). Note-se aqui que procedimentos como o loop e a superposição se fazem presentes no processo de criação da obra, na medida em que uma única gravação fidedigna do texto é realizada pelo artista para depois sofrer sucessivas transformações em função de exposições e regravações consecutivas no espaço, o que vem a diluir completamente relações de verossimilhança entre a obra final e o material sonoro inicialmente registrado. https://www.moma.org/explore/inside_out/2015/01/20/collecting-alvin-luciers-i-am-sitting-in-a-room/ 44 Nesse sentido, tratamos aqui, em um primeiro momento, de um processo no qual uma operação visualmente orientada (a leitura do texto impresso) agencia um processo composicional (sonoro) cujos resultados se dão a perceber sem mais nenhuma referência ao texto original. Com isso, a operação artística proposta por Lucier pode ser considerada como um processo no qual a autoria do artista se define pelo engendramento de uma proposta conceitual enquanto a obra, em si, é um resultado do espaço por meio do qual se configurou. Tendo em vista os procedimentos operados e os resultados obtidos por Lucier, nos colocamos diante de algumas questões. A informação verbo-visual do texto acionado pelo narrador seria relevante para a compreensão do material sonoro produzido na obra? Cremos que não, considerando que os conteúdos verbais agenciados na obra tendem a uma desconstrução radical, ao ponto do não reconhecimento da mensagem original. A sonoridade resultante, por sua vez, seria capaz de dar a compreender em si mesma as especificidades acústicas operadas em sua própria constituição como um objeto sonoro? Tampouco acreditamos nesta possibilidade, na medida em que a cada novo ciclo de reprodução, exposição acústica e regravação realizado, um novo material audível se apresenta ao espaço, acionando diferentes repercussões em sua acústica. Como então compreender a obra sonora ali gerada? Para sugerir uma estratégia neste sentido, recorremos aqui ao conceito de “jogo”, tal como formulado por Gadamer. No ensaio "A atualidade do belo. A arte como jogo, símbolo e festa”, originalmente apresentado como uma conferência em 1975, o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002) postula uma abordagem da obra de arte a partir do conceito de “jogo”. Para Gadamer, o jogo, “uma função elementar na vida humana”, é caracterizado por "[...] um vai e vem constante, um vai e vem daqui para lá, ou seja, um movimento que não está vinculado a nenhum propósito [...]”, que por sua vez constitui “um espaço de jogo”, a necessidade de um “jogar com”, bem como a definição de um espectador como não apenas como um participante do jogo mas também como elemento constituinte deste. (GADAMER, 1991, p.p. 66-69). E, no que se refere à aplicação do conceito de jogo para a compreensão das expressões artísticas, diz Gadamer que "[...] o jogo então aparece como o auto-movimento que tende a um fim ou a uma meta, mas antes ao movimento como movimento, indicando, por assim dizer, um fenômeno de excesso, de auto-representação do vivente [...]”. (GADAMER, 1991, p.p. 66-67). 45 A partir do excerto acima, podemos inferir que o auto-movimento não finalístico implícito à ideia de jogo, como definido pelo autor, mais do que buscar explicar a obra artística, nos parece sobretudo adequado à leitura dos processos de criação em si. O jogo, e sua ausência de uma finalidade necessária, se daria a princípio no engajamento dos participantes, dentro do espaço instituído pelo próprio jogar e com os demais agentes envolvidos, nos permitindo, cremos, pensar a criação artística na modernidade sobretudo em seu caráter processual. Nesse sentido, nos diz ainda Gadamer que é do “[...] sentido medial do jogo que só então resulta a relação com o ser da obra de arte. A natureza, na medida em que existe sem finalidade e intenção, inclusive sem esforço, e enquanto é um jogo que sempre se renova, pode, por isso mesmo, surgir como um modelo da arte”. (GADAMER, 1997, p. 179). Destacamos, da proposição acima, a possibilidade de renovação constante de um jogo, à semelhança da natureza, aspecto este que, para o autor, permite o uso do conceito com um modelo para a arte, ao que se soma uma outra proposição de Gadamer: “todo jogar é um ser jogado”. (GADAMER, 1997, p. 181). Diante deste quadro nos indagamos: qual a natureza do jogo proposto por Alvin Lucier na instalação I am sitting in a room? Começamos nos perguntando se, em relação àquela obra, seria possível apartar o processo de criação dos resultados apresentados? Apesar de registrada fonograficamente como uma peça sonora, tal composição, afinal, pode ser considerada única: em cada uma de suas possíveis re-ediçõe já que componentes como a performance para a leitura inicial do texto escrito, as especificidades técnicas dos esquipamentos empregados, as características do espaço de gravação, entre outros componentes, muito possivelmente resultariam em composições distintas da edição obtida em 1970. Neste caso, retomamos a ideia de renovação constante em um jogo, como postulada Gadamer: na obra de Lucier, a leitura do texto por um narrador, o espaço acústico, os elementos tecnológicos utilizados bem como a percepção dos ouvintes são apenas alguns dos possíveis jogadores, ali atuantes para serem “jogados" ou transformados a partir das proposições do artista. E, neste sentido, diz Gadamer, [...] a obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá transformar aquele que a experimenta. O "sujeito" da experiência da arte, o que fica e persevera, não é a subjetividade de quem a experimenta, mas a própria obra de arte. [...] Pois o jogo tem uma natureza própria, independente da consciência daqueles que jogam. [...] O sujeito do jogo não são os jogadores, porém o jogo, 46 através dos que jogam, simplesmente ganha representação. (GADAMER, 1997, p.p. 175-176). Podemos pensar que, uma das chaves para a compreensão do sonoro, a partir do exemplo da instalação de Lucier e dos conceitos apresentados por Gadamer, seria considerarmos que o som, como matéria para a arte, se configura como um objeto potencialmente fugidio, seja por suas características intrínsecas ou por sua imbricação com a nossas capacidades perceptivas. A esta altura, retomamos as proposições de Gadamer sobre a natureza da obra de arte. Segundo o autor, [...] se a identidade da obra é o que dissemos, então apenas haverá uma verdadeira recepção, uma verdadeira experiência artística da obra de arte, para quem "joga com", isto é, para quem, com a sua atividade, realiza a sua própria obra. [...] Por meio do que uma "obra" tem sua identidade de obra? O que torna a sua identidade uma identidade, podemos dizer, hermenêutica? Esta outra formulação significa claramente que sua identidade consiste precisamente em que há algo "para entender", em que afirma ser entendido como aquilo a que "se refere" ou como aquilo que "diz". Este é um desafio que sai da “obra” e que espera ser retribuído. Exige uma resposta que só quem aceitou o desafio pode dar. E essa resposta tem que ser sua, aquela que ele produz ativamente. O co-jogador faz parte do jogo. (GADAMER, 1991, p. 72/73). A partir das considerações do autor e da observação dos processos desencadeados na obra de Lucier, somos levados a propor que o grau de abstração obtido naquela instalação só poderia ser compreendido por seus observadores na medida em que estes pudessem se engajar não apenas na escuta dos resultados sonoros finais obtidos mas principalmente na percepção de cada um dos sucessivos passos audíveis a partir da primeira reprodução da narração do texto original. De qualquer modo, nos interessa particularmente aqui demonstrar, a partir dos dois casos mencionados acima, a interferência do espaço em processos instalativos de obras sonoras, guardadas as devidas ressalvas: no Pavilhão Philips, a arquitetura foi desenhada em função da experiência imagética e sonora roteirizada que seria oferecida do público enquanto a obra de Lucier resulta em plasticidades audíveis variáveis que dependem diretamente do local de sua exibição, ou seja, cada uma das situações de mostra da instalação resulta em diferentes sonoros. Com isso, nos lembramos das considerações de Floriênski, para quem [...] acerca da questão do espaço do mundo temos a dizer que no próprio conceito de espaço distinguem-se três camadas que estão longe de ser idênticas. Isso é, a saber: o 47 espaço abstrato e geométrico, o espaço físico, e o espaço fisiológico, sendo que neste último, por sua vez, diferenciam-se o espaço visual, o espaço tátil, o espaço auditivo, o espaço gustativo, o espaço do sentido orgânico geral. (FLORIÊNSKI, 2012, p.113). Como destaca o autor, a visualidade não é, necessariamente, nossa única possibilidade para a compreensão de nossas relações com o espaço: outros sentidos, como a audição, podem ser igualmente importantes como parte de nosso equipamento sensorial, dispondo de especificidades intrínsecas. De todo modo, apesar das distinções e das aproximações entr