UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" INSTITUTO DE ARTES SOFIA BASTOS PONTIERI AUGUSTO CONVÍVIO, MULHERES E CORPOS NAS ARTES PLÁSTICAS SÃO PAULO 2020 SOFIA BASTOS PONTIERI AUGUSTO CONVÍVIO, MULHERES E CORPOS NAS ARTES PLÁSTICAS Trabalho de Conclusão de Curso - TCC UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" Área de concentração: Artes Visuais Orientação: Agnus Valente SÃO PAULO 2020 Bastos Pontieri Augusto, Sofia. CONVÍVIO, Mulheres e Corpos nas Artes Plásticas / Sofia Bastos Pontieri Augusto. São Paulo, 2020. 81 f. Trabalho de Conclusão de Curso - TCC (Bacharelado em Artes Visuais) – UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Instituto de Artes, 2020. Orientação: Agnus Valente. 1. Convivialidade. 2. Gênero. 3. Artes Visuais. I. Orientador. II. Título. SOFIA BASTOS PONTIERI AUGUSTO CONVÍVIO, MULHERES E CORPOS NAS ARTES PLÁSTICAS Aprovação: ____/____/________ Prof. Dr. Agnus Valente UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" Prof. Dr. [Nome] [Instituição] Prof. Dr. [Nome] [Instituição] Trabalho de Conclusão de Curso - TCC apresentado como requisito para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" Área de concentração: Artes Visuais AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente aos meus pais, que estiveram comigo durante toda essa pesquisa e durante toda a minha vida, não me deixando desistir. Agradeço ao coletivo “Mulheres que Admiro Muito”, por serem grandes parceiras de trabalho, pelas trocas produtivas, por me estimularem tanto. Agradeço ao meu orientador Agnus Valente, por apoiar minhas idéias, e a Jorge Dubatti, por abrir portas à curiosidade e à pesquisa. Agradeço a Paulo Emílio, por me ensinar a arte da papietagem, e a Vera Cozani, por sempre me ajudar a materializar as minhas ideias. Agradeço por fim ao Instituto de Artes da UNESP, espaço onde realizei esta pesquisa, e à FAPESP, cujo financiamento tornou ela possível. “En las manos te traigo viejas señales son mis manos de ahora, no las de antes doy lo que puedo y no tengo verguenza del sentimiento si los sueños y ensueños son como ritos el primero que vuelve siempre es el mismo” - Mario Benedetti RESUMO O fio condutor da pesquisa é a reflexão sobre como são estabelecidas relações entre espectadores, obra e artista, a partir de obras das Artes Plástico-Visuais, com foco nas questões de gênero, feminilidade, construção corporal e de identidade de mulheres. Elaboro também maneiras de colocar a práxis artística e de observação/espectação como ferramentas válidas para uma pesquisa em artes. Assim, realizo essa pesquisa nos âmbitos teórico e prático, por meio de um aprofundamento na filosofia do teatro através dos textos e postulados do teatrólogo Jorge Dubatti, visando aplicar o conceito de convivialidade no campo das Artes Visuais, e também através de um aprofundamento bibliográfico nos escritos de teóricas feministas, como Judith Butler e Bell Hooks, teóricas que produzem conhecimento sobre arte com um ponto de vista crítico feminista, como Linda Nochlin, Luciana Grupelli Loponte, além do teórico que escreve sobre decolonialidade, Nelson Maldonado-Torres. Como reforço a importância da práxis numa pesquisa artística; escrevo na posição de pesquisadora- observador/espectadora sobre trabalhos de Rosana Paulino, Erika Verzutti e Julia Szabó, e como pesquisadora-artista sobre minha própria produção artística vinculada à pesquisa, com o objetivo de perceber registrar quais são as possibilidades de convívio estabelecidas por esses trabalhos artísticos. Palavras-chave: Convivialidade. Gênero. Artes Visuais. ABSTRACT The guiding line for this research is the reflexion about how are stablished relations between spectators, artwork and artist, in Plastical/Visual Art’s pieces, focusing ones that work with gender questions, feminility, body construction, and women identities. Also it’s aimed to use the artistical and observational/spectatorial práxis as a valuable instrument to a research in art’s field. So, this research is held in a practical and theoretical scope. For this purpose, I made a dive into theatrer’s philosopy throught writtens of the theater specialist Jorge Dubatti, aiming for aply the concept of conviviability in Visual Art’s field. Also happend a bibliographical deepening in Feminism theorie’s writtens by theorists as Judith Butler and Bell Hooks, theorists that produce knowlege over art with an critical feminist point of view, as Linda Nochlin and Luciana Grupelli Loponte, besides the theorist that writes about “decolonialidade”, Nelson Maldonado-Torres. How it’s reinforced the importance of práxis into an art’s research, I write from the position of researcher-observer/spectator about the artworks of Rosana Paulino, Erika Verzutti and Julia Szabó, and as researcher-artist about my own artwork linked to this research, with the will to perceive and register wich are the possibilities of conviviality established by those artworks. Keywords: [“Convivialidade”]. [Gender]. [Visual Arts]. LISTA DE IMÁGENS Figura 1: Imagem da Instalação "Tecelãs, de Rosana Paulino; faiança, terracota, algodão e linha .......................................................................................................................................... 28 Figura 2: Detalhe da Instalação "Tecelãs" de Rosana Paulino; faiança, terracota, algodão e linha .......................................................................................................................................... 29 Figura 3: "Venus Freethenipple" de Erika Verzutti, papel machê e poliestireno .................... 32 Figura 4: Mural de Julia Szabó, tinta sobre parede ................................................................. 37 Figura 5: Mural de Julia Szabó, tinta sobre parede ................................................................. 37 Figura 6: Detalhe do mural de Julia Szabó .............................................................................. 38 Figura 7: Capa da Revista " Corpo Ideal" ............................................................................... 44 Figura 8: Esboço 1 para "Corpo no Bastidor", 2019. Sofia Pontieri. ...................................... 45 Figura 9: Esboço 2 para "Corpo no Bastidor", 2019. Sofia Pontieri. ...................................... 45 Figura 10: "Corpo no Bastidor" em processo de construção, 2019. Sofia Pontieri. ................ 47 Figura 11: "Corpo no Bastidor" na exposição "Linhas de Conforto, Redes de Confronto" 2019. Sofia Pontieri. ................................................................................................................. 47 Figura 12: Instalação "Feminilidade" na exposição "Linhas de Conforto, Redes de Confronto", 2019. Sofia Pontieri, Laixxmo, Stela Martins, Vi Azê, Julia Szabó, Juliana Naufel, Jaq Braum .................................................................................................................... 50 Figura 13: Detalhe da instalação "Feminilidade" na exposição "Linhas de Conforto, Redes de Confronto", 2019. Sofia Pontieri. ............................................................................................. 50 Figura 14: "Experimento 1" em processo, 2019. Sofia Pontieri. ............................................. 55 Figura 15: "Experimento 1" em processo, 2019. Sofia Pontieri. ............................................. 55 Figura 16: "Experimento 1" em processo, 2019. Sofia Pontieri. ............................................. 56 Figura 17: instalação final de "Experimento 1", 2019. Sofia Pontieri. ................................... 57 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 9 1 ESTABELECENDO BASES PARA UMA PESQUISA EM ARTES- REVENDO BASES EPISTEMOLÓGICAS 14 1.1 FILOSOFIA DO TEATRO E CONVIVIALIDADE NAS ARTES VISUAIS 14 1.1.1 BREVE RETOMADA DA FILOSOFIA DO TEATRO 14 1.1.2 ACONTECIMENTOS E SITUAÇÕES 15 1.2 CONSTRUÇÃO TERRITORIAL DAS POÉTICAS: MATÉRIA AFETADA, GÊNERO 19 2 PESQUISADORA OBSERVADORA-ESPECTADORA 25 2.1 OBSERVAÇÃO E ESPECTAÇÃO COMO PESQUISA 25 2.1.1 ROSANA PAULINO: “TECELÃS” NO MAR- MUSEU DE ARTE DO RIO 27 2.1.2 ERIKA VERZUTTI: “VENUS FREETHENIPPLE” NO MASP - MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRIAND 31 2.1.3 JULIA SZABÓ MURAL UNESP 36 3 PESQUISADORA ARTISTA 42 3.1 A PRÁTICA ARTÍSTICA COMO PESQUISA 42 3.1.1 MEMORIAL DESCRITIVO - CORPO NO BASTIDOR 43 3.1.2 MEMORIAL DESCRITIVO - INSTALAÇÃO “FEMINILIDADE” 49 3.1.3 MEMORIAL DESCRITIVO - EXPERIMENTO 1 53 CONSIDERAÇÕES FINAIS 59 REFERÊNCIAS 64 APÊNDICE: “LINHAS DE CONFORTO, REDES DE CONFRONTO: ENCONTROS E DESENCONTROS ENTRE TEORIAS DO GÊNERO E DO CONVÍVIO” - ARTIGO PUBLICADO NA JORNADA DE PESQUISA EM ARTE UNESP PPG IA 2019 – 3ª EDIÇÃO INTERNACIONAL 66 9 INTRODUÇÃO Essa pesquisa nasceu de um incômodo, ou de uma série de incômodos. Dentre eles, o que convém falar primeiro é sobre o tratamento dado às artes no meio sócio-cultural em que vivo, onde diversas vezes elas são consideradas apenas como linguagem e não como área de conhecimento, pois a linguagem é uma ferramenta produtiva, que contribui para a construção e manutenção de diferentes áreas de conhecimento, estas tendo suas particularidades e complexidades. Creio que a perspectiva que define arte como linguagem seja uma perspectiva reducionista. O que acontece conosco ao entrarmos em contato com trabalhos, produzidos na dimensão da arte, não é uma coisa que pode ser transcrita num papel sem a sensação de que as palavras não dão conta. Mesmo se gravássemos nossas reações, a reação que de fato aconteceu no momento não estaria lá, e sim apenas uma face do que ela foi um dia. Não quero dizer que toda produção artística nos preenche completamente e nos leva a uma espécie de nirvana. Dentro desta área do conhecimento existem diversos meios com que se pode trabalhar, explorando diversas habilidades, mas cada um deles tem uma forma específica de nos transmitir sensações, conhecimentos, informações, habilidades e vivências que variam de acordo com cada plataforma artística. Assim, o que podemos acessar ao entrar em contato com uma escultura, por exemplo, é diferente do que acessamos através de uma peça de teatro, que difere do que acessamos através de um filme, que difere do que acessamos numa história em quadrinhos, que difere do que acessamos através de um livro, e estas diferem entre si, pois a reação varia de escultura para escultura, peça de teatro para peça de teatro, e assim vai. Portanto cada uma das plataformas de produção artística tem sua importância, tanto por transmitirem coisas em formatos que só seriam possíveis por meio delas, quanto por estimularem o desenvolvimento de habilidades específicas, nos artistas e nos espectadores, pois ler, observar imagens, ouvir sons, tocar, percorrer, também são atos que se aprende a realizar, e possuem muitas camadas, profundidades e maneiras de serem performados. Neste trabalho de conclusão de curso analiso algumas das minhas produções artísticas e atividades enquanto espectadora, então também é sobre o meu processo de me entender como alguém que trabalha no campo de conhecimento das artes, o que quero enquanto tal, com quais plataformas quero trabalhar, quais são as habilidades que venho desenvolvendo, quais são as que ainda preciso desenvolver e como me relaciono com esses conhecimentos. Há uma recorrência nos trabalhos que desenvolvi durante a faculdade, em trabalhar com tridimensionalidade e modificação de ambientes, em me interessar sobre como as pessoas 10 recebiam e interagiam com o meu trabalho, e o quanto eu, de acordo com o que fizesse ou não, poderia influenciar nessa recepção. Assim minha atenção se volta para como se estabelecem relações humanas no campo da arte, especificamente nas artes visuais e plásticas, e para os múltiplos atravessamentos entre as produções artísticas e seus meios socioculturais. O incômodo se transforma então na necessidade de entender, de pesquisar, adquirir e produzir conhecimento sobre essas questões. Reconhecendo a importância do contato presencial com as manifestações artísticas, inclusive numa pesquisa acadêmica, procurei ferramentas para elaborar teoricamente essas questões, que me dessem aberturas para pesquisá-las a partir de práticas artísticas e não só num âmbito teórico. Assim me interessei pelo pensamento do teatrólogo argentino Jorge Dubatti. Ele trabalha com a dimensão relacional das artes, indo além de uma abordagem puramente semiótica, comum nas pesquisas que tratam das artes visuais, e visualidades de uma forma geral. Por outro lado a semiótica é muito utilizada pelo teatrólogo, que a teve como um dos pontos fundamentais de sua formação. Porém ele aponta de forma precisa as limitações que essa abordagem teria, quando afirma “teatro é mais que linguagem”, é acontecimento, e a semiótica enquanto parte da dimensão linguística serve à sua preparação ou a uma análise posterior: O risco reside em atribuir ao acontecimento características desses materiais anteriores ou posteriores que, na realidade, não são próprias dele. São sem dúvida preciosas para a compreensão do acontecimento poético, sobretudo se este pertence a um passado, remoto ou próximo, sobre o qual se tem pouca informação. Entretanto, não se deve perder de vista que não constituem necessariamente o acontecimento teatral em si...(DUBATTI, 2016, p. 40.) Ao notar as particularidades do acontecimento teatral, ele coloca como algumas delas só são possíveis de perceber presenciando-o, fazendo parte dele, e defende ainda que quem pesquisa o teatro deve pensá-lo por meio da observação de suas práticas, assim como do pensamento sobre elas produzido por artistas, técnicos e espectadores (DUBATTI, 2016, p.85).Dessa forma ele constrói sua Filosofia do Teatro: propondo novos parâmetros para a teatrologia, dentre os quais está considerar teatro como acontecimento e tomar a observação da prática artística como pesquisa, oferecendo um arsenal teórico que permite pesquisar o teatro, e elaborar teorias sobre ele que não ignorem, mas sim valorizem, o que seria sua base irrenunciável: o convívio, no formato de acontecimento (DUBATTI, 2016, p.42), efêmero. Essa permissão tomei como extensível a outras formas de arte, visto que necessitava de bases epistemológicas para realizar a pesquisa da maneira que coloquei como necessária, e também para me aprofundar nas questões dos relacionamentos e trocas humanas, 11 estabelecidos através de práticas artísticas, amplamente discutidos no campo do teatro. Percebo que há múltiplas dessemelhanças entre a estrutura poética1 do teatro e das artes visuais, onde se localiza minha produção artística e pesquisa. Isso torna necessário descrever como os termos trabalhados em Dubatti se relacionam filosoficamente, e enquanto elementos de um método de pesquisa teórico-crítica, com a área da arte aqui abordada. Porém, para além de que no teatro também se trabalha com visualidades e nas artes visuais trabalha-se a teatralidade, já existem muitas formas de intercâmbios entre estes campos de arte-conhecimento. Alguns deles são eles performances, happenings, cenografia, instalações, intervenções, produções audiovisuais em suas infinitas variações. Diversos coletivos e correntes artísticas trabalharam, intencionalmente ou não, com essa mistura de conhecimentos e habilidades; e pude notar uma convergência entre o que estive produzindo e pensando com as ideias de um desses grupos: os Situacionistas. Essas convergências não são integrais, e vim a conhecê-las num momento tardio, após ter terminado a primeira redação desta pesquisa. Assim, posso dizer que existem duas versões deste trabalho, uma que não menciona o situacionismo e esta, onde pude abordá-lo para melhor realizar o diálogo com os termos de Dubatti e sua aplicabilidade nas Artes Visuais. Mas esta corrente não foi a base epistemológica principal dessa pesquisa, por mais que pudesse ter sido usada desta maneira. Sobre a adoção de bases epistemológicas o teatrólogo se pronuncia: A determinação da base epistemológica depende do posicionamento consciente do pesquisador em sua relação científica com a arte. Conforme sua posição, a arte poderá ser estudada de uma forma ou outra. Mudando a base, muda o conhecimento do objeto e, consequentemente, muda também o objeto. Nossa Base epistemológica já está inscrita nos termos técnicos com que trabalhamos, mesmo sem perceber. DUBATTI, 2016, p. 82-83. Mesmo que o situacionismo seja uma referência teórica e artística que acrescentei depois de finalizar o trabalho, é muito curioso como termos que utilizei, Dubatti chama de termos técnicos, são os mesmos utilizados pelos situacionistas, como por exemplo “situação”. Isso confirma que a forma que aprendi a produzir conhecimento sobre arte foi construída a partir de teorias e correntes artísticas européias e norte-americanas do século XX, pois foi o que mais estudei em sala de aula durante minha vida acadêmica e escolar. Ao iniciar o processo de elaboração teórica, procurei bases epistemológicas que me aproximariam de um ponto de vista crítico feminista e decolonial (MALDONADO-TORRES, 1 “poética (com minúscula) é o conjunto de componentes constitutivos do ente poético” DUBATTI, 2016, p. 35. sendo esse ente a prática teatral, a obra de arte. 12 2019). Ele consiste em abordar como dentre as produções artísticas, dentro da arte dita “ocidental”, e nos conhecimentos difundidos sobre ela, são destacados pontos de vista de sujeitos que carregam semelhanças recorrentes entre si: brancos, de alto poder aquisitivo, do hemisfério norte, homens, adultos (NOCHLIN, 1971; LOPONTE, 2002). É importante ressaltar isso, pois revela sobre quais parâmetros são construídas as narrativas hegemônicas sobre a arte, e como isso afeta na maneira que são estabelecidas as trocas humanas e construídas as poéticas. Isto certamente influenciou as escolha de artistas e obras a serem analisados no escopo desta pesquisa, e na bibliografia aqui utilizada. Arte é um saber-fazer, portanto enquanto se cria artisticamente se constroem saberes, se modifica a própria noção de arte. Assim, conhecer artistas ou pessoas que produzem conhecimentos abrangidos no espectro da arte, perceber de onde essas pessoas falam, é se atentar para de onde vêm os conhecimentos e a noção de arte, que estou consumindo, retrabalhando e divulgando. Não vejo meu encontro tardio com o situacionismo como uma coincidência infeliz, apesar de ser uma referência de certa forma canônica. Pelo contrário, isto serviu para exemplificar como, inegavelmente, carregamos os fundamentos de nossas formas de pensar, aprendidas durante a vida, na linguagem e nos termos que utilizamos. Mesmo sendo uma corrente européia, nos seus textos que tive acesso achei comentários pertinentes, apesar de breves, sobre alguns eventos políticos e artísticos da época, ocorridos em países colonizados ou subdesenvolvidos2, além de um posicionamento político explícito contra a exploração e o colonialismo. Assim, foi muito proveitoso traçar diálogos com os escritos situacionistas. Assim, como Dubatti propõe, posiciono-me conscientemente em relação às bases epistemológicas adotadas, atenta para o peso de redigir um estudo teórico estando num sistema político-jurídico de linguagem3, onde a forma de registrar e descrever modifica o 2 No “Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional” Guy-Ernest Debord coloca como a revolução chinesa representa uma vitória dos países colonizados e subdesenvolvidos contra o imperialismo capitalista. Mais adiante no mesmo texto ele menciona como as produções artísticas de “povos que ainda estão sob o jugo do colonialismo” acabam por recair num “exotismo: a fuga das condições reais de vida e criação”, se colocando sempre atrás da influencia dos centros culturais europeus. Porém neste ponto ele se refere às cidades européias como “centros culturais avançados”, o que revela um pensamento com influencias colonialistas. Por mais que ele reconheça a necessidade política e sociocultural dos países marginais de terem autonomia sobre suas produções artísticas, ele desconsidera como essas releituras e reprocessamentos da cultura européia poderiam acabar influenciando as manifestações artísticas dos centros, e sua própria cultura. 3Forma que Judith Butler se refere ao sistema de poder vigente. No mesmo capítulo deste livro ela afirma que “O poder jurídico ‘produz’ (discursivamente) inevitavelmente o que alega meramente representar; 13 conhecimento que se tem acerca de seu objeto, portanto a maneira que entramos em contato com ele; o objeto é visto sob outro ângulo, isso o modifica. Esta monografia é conjunto de conhecimentos que pude acessar e produzir me atentando para cada um dos fatores que considero importante numa pesquisa em artes, que acabo de pontuar. Em seu corpo abordo primeiramente, de forma breve, termos postulados por Jorge Dubatti que desenvolvem o entendimento do teatro enquanto acontecimento, e o convívio como sua matéria prima. Abro possibilidades que serão exploradas no item seguinte, onde realizo a transposição ou reinterpretação desses termos e reflexões para sua utilização nas outras formas de manifestação artística propostas. Procuro tratar especificamente dos questionamentos e postulados epistemológicos presentes na Filosofia do teatro, porem não adentrando profundamente em sua dimensão Ontológica 4 , que foi fundamental para a elaboração desta filosofia, mas que me afastaria do desenvolvimento dessa pesquisa em sua dimensão prática, em prol da dimensão teórica. Esta é uma pesquisa teórica que visa oferecer ferramentas para perceber e realizar a práxis artística, e a práxis de espectadora, como pesquisa e produção de conhecimento. Assim, no primeiro capítulo estão dispostos os recursos teóricos e bibliográficos que reforçam e são complementados por realizações práticas, relatadas nos capítulos 2 e 3, respectivamente sobre meus processos de espectação e produção artística conduzidos nas linhas da pesquisa teórica, discutidos na parte final desta monografia. consequentemente a política tem de se preocupar com essa função dual do poder: jurídica e produtiva. BUTLER, 2017, p. 19. 4 Dubatti parte da pergunta Ontológica “O que é o teatro enquanto ente?”, considerando a etimologia da palavra ontologia, onde “Onto” significa ente, ser, e “logos” significa conhecimento. Trata-se portanto do conhecimento construído acerca do teatro enquanto um ser ou ente que possui características próprias a serem estudadas. “As contribuições da ontologia ao teatro evidenciam uma nova preocupação pelo ser, não mais apenas pela linguagem, mas por aquilo que a faz possível. Uma preocupação por indagar o que existe”. DUBATTI, 2016, p. 29. Isso impulsiona o questionamento epistemológico: “A linguagem não é o fundamento ultimo do acontecer vital, está inscrita numa esfera maior e autônoma a ela, que envolve a ordem da experiência” DUBATTI, 2016, p. 27-28. 14 1 ESTABELECENDO A FUNDAÇÃO DE UMA PESQUISA EM ARTES - REVENDO BASES EPISTEMOLÓGICAS 1.1 FILOSOFIA DO TEATRO E CONVIVIALIDADE NAS ARTES VISUAIS 1.1.1 BREVE RETOMADA DA FILOSOFIA DO TEATRO Os principais termos postulados por Jorge Dubatti desenvolvem o entendimento do teatro enquanto acontecimento, e o convívio como sua matéria prima. Esse acontecimento convivial é constituído pelo fazer do artista, pelo fazer do espectador, e pelo convívio que se dá na interação de ambos, sendo a presença de seus corpos no mesmo local essencial para que isso aconteça. Esse fazer é tratado como poiesis no sentido aristotélico5. Assim o fazer do artista é poiesis produtiva, artística, teatral, o do espectador é poiesis espectatorial, que em conjunto resultam em poiesis convivial. Convivialidade6 (DUBATTI, 2007) seria então a potência de convívio, resultante desse encontro poietico no acontecimento. Trata-se sobretudo de um encontro de corpos, das ações corporais de espectadores e artistas num mesmo espaço, que são propostas e concretizadas através do trabalho7 dos últimos, que tanto é a poiesis quanto a poética8. Por isso, ao estudar o trabalho como parte da análise da poética, é fundamental o conhecimento da subjetividade do sujeito criador, isto é, sua maneira de estar no mundo, habitá-lo e criá-lo, assim como sua relação com a arte. Pela subjetividade do criador, dá-se o contato com as estruturas históricas de sua época, seu contexto, sua territorialidade. (DUBATTI, 2016, p. 69.) Desta forma, as presenças materiais da realidade cotidiana, como o tempo, os espectadores, os atores e técnicos, o espaço, são condicionadas pela sua situação histórico- territorial. Aqui territorialidade é a sua contextualização geográfica, histórica e cultural. A 5Sobre poiético “Produtivo e criativo, enquanto diferente de prático. Segundo Aristóteles, a arte é produtiva, enquanto a ação não é”. ABBAGNANO, 2007, p.772. Fabricação de objetos específicos da arte. “O termo poiesis envolve tanto a ação de criar (a fabricação) quanto o objeto criado (o fabricado)”, “a poiesis é acontecimento e no acontecimento; e, ao mesmo tempo, ente produzido pelo acontecimento” DUBATTI, 2016, p. 34. 6 Aqui Convivialidade é um substantivo, enquanto seu adjetivo correspondente é convivial 7 Assim como Dubatti, aqui utilizo o conceito de “trabalho” como “trabalho humano” conforme Marx. 8 Escolhas ou regras estéticas seguidas pelo artista; articulação entre produção e produto, na qual a produção é a poiesis. Conjunto de componentes do ente poético, sendo esse ente a arte, ou o teatro, no sentido ontológico. ( ABBAGNANO, 2007; DUBATTI, 2016) 15 poiesis se coloca numa relação de alteridade9 em relação ao mundo cotidiano, o mundo real- territorial, e assim se constitui uma face desterritorializada da mesma. “A alteridade instaura a face desterritorializada da poiesis teatral, que assim põe em evidencia sua natureza oximórica: ao mesmo tempo territorial (convivial, material corporal, cotidiana) e desterritorializada” (DUBATTI, 2016, p. 66). A poiesis ou ação criativa faz existir no mundo um acontecimento, um objeto ou diversos objetos modificando a matéria cotidiana existente, que faz existir tanto o ato criativo como a coisa criada. Uma das matérias utilizadas no teatro é a teatralidade. Ela não é exclusiva dele; há uma teatralidade social, “destinada a organizar o olhar do outro em interações sociais”, e a teatralidade poietica (DUBATTI, 2016, p.38-39), específica do teatro, que organiza o olhar do espectador. O trabalho realizado no teatro é matéria, não num sentido necessariamente físico; um saber teórico, um saber mover o corpo de determinadas formas, é matéria, que perpassada pela poiesis torna-se afetada, diferenciando-se da matéria-forma cotidiana. Como performadores da ação, espectadores, artistas e técnicos realizam suas poiesis a partir da cultura vivente, que constitui seu repertório, matéria de suas poéticas, que quando perpassada pela poiesis se torna matéria afetada10, existindo em alteridade com a matéria cotidiana. 1.1.2 ACONTECIMENTOS E SITUAÇÕES Teatro é a palavra utilizada com o objetivo de identificar uma estrutura recorrente do acontecimento convivial: convívio, poiesis corporal, espectação, e dessa forma permite pensar as artes conviviais, de maneira genérica 11 . Nelas se produzem obrigatoriamente poiesis corporal e espectação no convívio. Assim ela se aplica a manifestações artísticas como a performance, o circo, a dança. A performance é uma manifestação artística muito trabalhada no meio das Artes Plastico-Visuais12, trata-se de um ponto de intersecção com o teatro, por 9 Em relação, “ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro. A Alteridade é um conceito mais restrito do que diversidade e mais extenso do que diferença.” ABBAGNANO, 2007, p. 34. 10Dubatti afirma sobre a matéria afetada, do ente poético, que “é ente pois possui uma unidade de matéria-forma cuja densidade denomino corpo poético (matéria e princípio informador) diverso do(s) corpo(s) (unidades de matéria-forma) da realidade cotidiana”. DUBATTI, 2016, p.50-51. 11 “Na Filosofia do Teatro, a palavra ‘teatro’, em seu sentido ancestral, permite pensar em um genérico mais amplo que o objeto da definição moderna e que inclui diversas manifestações”; “essa palavra não é a-histórica nem universal e exige ser contextualizada no plano das relações histórico territoriais concretas.” DUBATTI, 2016, p.21. 12 Utilizo esse temo pois ele abrange todas as manifestações artísticas do campo das Artes Visuais, mas focaliza nas Artes Plásticas. 16 compartilhar geralmente da estrutura do acontecimento convivial. Caso ela fosse meu objeto de estudo, não seria de primeira importância revisitar como esses termos descrevem possibilidades conviviais, pois da forma que o teatrólogo os coloca já abrangem a performance. Porém, nesta pesquisa volto meu olhar para trabalhos tridimensionais, intervenções e instalações de médio a grande porte, onde a presença corporal do artista não necessariamente faz parte das obras. Agora já aparecem algumas das questões que rondam a aplicabilidade do termo em todo o espectro das artes plástico-visuais: essa forma de manifestação artística abarcaria possibilidades de convívio? Se sim, em que reside sua convivialidade? Como é possível que haja convívio com corpos não humanos? E mais, sabendo que muitas obras de arte permanecem no tempo, não são efêmeras como as práticas teatrais, como se pode conviver com elas, se o convívio é efêmero como um acontecimento? Para afirmar que há convívio, primeiramente é necessário considerar porque essas situações não se encaixam no tecnovívio, “cultura vivente desterritorializada por intermediação tecnológica” (DUBATTI, 2016, p.129). No tecnovívio os corpos, as poiesis do espectador e do artista não se encontram, não necessariamente partilham algum aspecto territorial, enquanto, no convívio, corpos, ações, poiesis, precisam coexistir territorialmente. Neste o corpo do espectador encontra o corpo poético13 do artista, que no teatro é seu próprio corpo cotidiano afetado pela poiesis. Assim, a poiesis teatral faz existirem no mundo, além de acontecimentos, esses corpos-objetos, no sentido de presenças materiais, físicas ou não. Na filosofia do teatro esses objetos são ontologicamente pertencentes ao teatro, não tendo necessariamente sua materialidade como uma existência física. Podemos afirmar que, acontecendo o encontro de um corpo poético com um corpo de espectador, havendo acontecimentos e objetos produzidos na poiesis, e o encontro de poiesis produtiva e poiesis espectatorial, há convívialidade. Identifico onde esses elementos ocorrem nas artes plásticas; o corpo poético não é a pessoa do artista necessariamente, mas os corpos- objetos produzidos, a ação sobre a matéria cotidiana é, aqui, um processo de modificação das suas características físicas, ou reconfiguração espacial das mesmas. Assim o encontro corporal que acontece é entre espectador e objeto poiético fisicamente presente, corporalmente diverso de quem o produz. O encontro é efêmero a priori, e o espectador indispensável para o convívio, então para que a obra de arte, objetos plástico-artísticos, façam 13“A unidade do corpo poético possui a capacidade de acontecer sem dissolver as presenças originárias das matérias informadas” DUBATTI, 2016, p 53. 17 parte de um acontecimento convivial, precisam ser posicionados num espaço onde haja a possibilidade de sua concretização, onde transitem espectadores. Esse espaço, organizado para inserir no mundo as possibilidades do acontecimento convivial, construído a partir do espaço cotidiano, modificado por e para abarcar o corpo-objeto poético, com o qual estabelece a relação de alteridade e assim passando a ser também matéria afetada, “mundo paralelo ao mundo” 14; é uma situação convivial, onde se inserem e se concretizam possibilidades de convívio. Ao utilizar o termo situação seria estranho não mencionar o situacionismo, o nome deste movimento revela por que. Seus membros elaboraram uma série de propostas para a construção de situações no meio urbano, algumas com instruções específicas, outras colocavam a necessidade da multiplicidade de formatos possíveis dessas construções, mas principalmente buscavam principalmente reforçar a importância de intervir nos espaços, criando o que chamaram de ambiências momentâneas de vida: Nossa idéia central é a construção de situações. Isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida e os comportamentos que ele provoca e que o alteram. DEBORD, 2003, p. 54. Nessas ambiências, espaços-momentos, haveriam vivências diferenciadas daquelas que aconteciam nas situações cotidianas, então se procuraria experimentar aspectos lúdicos, passionais, da existência. Através disso se diminuiriam ao máximo os momentos nulos da vida causados pela sociedade de exploração, e se alcançaria uma revolução nos costumes (DEBORD, 2003). Era um movimento sobretudo constituído por pessoas que trabalhavam com visualidades, arquitetura, artes visuais, cinema. Se Dubatti, atuante na área do teatro, volta sua atenção para as particularidades do encontro, do acontecimento convivial, podemos perceber que os situacionistas e eu observamos a questão por outro ângulo, voltando nossa atenção sobre os espaços onde esses acontecimentos se dariam. Se o teatro é um acontecimento convivial, as artes plásticas seriam os processos de construção da situação, esta que agrega possibilidades de acontecimento convivial, sendo que este pode ser teatro ou não, na medida 14 Essa forma de se referir ao regime de diferença entre os espaços cotidianos e os espaços da poiesis, é utilizada inicialmente por Dubatti em “A alteridade e desterritorialidade da poiesis permitem considerá-la um ‘mundo paralelo ao mundo’, com suas próprias regras (imanência): o ente poético funda um novo nível do set, produz um salto ontológico. Essa capacidade de saltar a outro nível e estabelecer-se “em paralelo”, em distinção, concede ao ente poético uma natureza metafórica. 18 em que algumas práticas plásticas possuem a estrutura do acontecimento teatral, ou fazem parte dele. A situação e os fazeres que a constroem são poiesis, no sentido aristotélico da palavra: são o trabalho artístico, e o que se concretiza a partir dele, a matéria que é afetada. Aqui as atividades do espectador e do artista podem ser consideradas, respectivamente, poiesis espectatorial e poiesis plástica-produtiva, sendo que desta fazem parte a elaboração do corpo poético e da situação Quando falamos em trabalhos artísticos, plásticos, que são chamados cotidianamente de obras de arte, e podem ser chamados de trabalhos e criações, ainda pensamos em objetos que podem ser guardados, mantidos por um longo tempo, colecionados. Mas para pensar em possibilidades conviviais não basta pensar em objetos sem ligação com o tempo e o espaço onde foram feitos, e também nas condições espaço-temporais onde estão, pois as possibilidades de convívio a serem estabelecidas com objetos estão nas situações. Estas existem a partir de espaços geograficamente localizados, corpos-objetos presentes, situados e referenciados através da sua relação com o próprio espaço e outros corpos-objetos; onde isso se estabelece histórico-territorialmente, quais as possibilidades conviviais sugeridas nestas circunstâncias. A territorialidade é indispensável para se pensar o convívio nas artes visuais. A desterritorialidade não é uma negação da territorialidade, mas o termo utilizado por Dubatti na tentativa de compreender a diferença entre o mundo cotidiano, onde se dão as vivências cotidianas, e o mundo paralelo dos acontecimentos conviviais. No Situacionismo, construir esses lugares e momentos é o que Paola Berenstein considera como criar novas territorialidades15, pois o movimento ambicionava, além de proporcionar vivências diferentes das habituais, criar novos padrões de comportamento para a vida corrente16 a partir destes momentos. Portanto, considerando tanto a desterritorialidade, quanto às novas territorialidades, podemos perceber que funcionam como perspectivas lançadas à própria territorialidade, para conhecê-la e modificá-la. Partindo disso é possível notar como as situações alteram o comportamento de cada um dos seus elementos componentes. Um trabalho de arte, objeto poético, existe enquanto corpo poético na situação. Fisicamente existe fora dela também, mas não necessariamente enquanto matéria afetada. Se um objeto poético é separado de toda e qualquer possibilidade de contato com a atividade de 15 “A Internacional Situacionista (IS) buscava a constituição de novas territorialidades que resgatassem as múltiplas formas de nomadismo que as cidades modernas foram progressivamente esquadrinhando, restringindo, fixando e confinando, com o fim de aniquilá-las por completo” BERENSTEIN, 2003, p. 11. 16 “O jogo situacionista se distingue do conceito clássico de jogo pela negação radical dos aspectos lúdicos de competição e de separação da vida corrente.” ( DEBORD, 2003, p.56). 19 espectação, a sua presença no mundo é um material físico-cotidiano, apenas objeto. Ele só é matéria afetada sob testemunho, colocado na relação de alteridade pelo espectador, desta forma este é quem realiza o acontecimento convivial nas situações onde não está presente o corpo do artista. A poiesis plástica-produtiva tem sua continuidade na poiesis do espectador; enquanto a primeira produz o corpo poético, as possibilidades de convívio, o produto da outra é o acontecimento convivial. A Situação é construção coletiva. Na medida em que ha um conjunto de estratégias através do qual tenta se organizar o olhar do outro, o elemento da teatralidade perpassa as artes visuais em grande parte das manifestações artísticas, e podemos perceber isso no formato de convívio estabelecido. A poiesis produtiva visual-plástica conduz a atenção do espectador pelo espaço, através da visualidade. Olhar é o movimento dos olhos, que tende a conduzir o movimento do corpo todo: se a pessoa permanece imóvel, se inclina o corpo, se anda pelo espaço, ao redor, por dentro da obra; assim quem olha ultrapassa o status de observador, de acordo com os estímulos presentes no objeto da poiesis produtiva, e torna-se espectador. Assim, as situações, e seus respectivos frequentadores, realizam inúmeras possibilidades de espectação partindo de estímulos plástico-visuais. 1.2 CONSTRUÇÃO TERRITORIAL DAS POÉTICAS: MATÉRIA AFETADA, GÊNERO Existem milhares de artistas no mundo, e a definição de arte e artista varia de acordo com cada lugar e momento histórico, portanto esta legenda está em constante modificação. Os artistas, através de suas poiesis, insinuam e pressupõem conscientemente ou não os comportamentos do espectador. Seus fazeres artísticos estão sujeitos à territorialidade; é dela que tiram a matéria de suas poéticas e desse fazer; assim o espectador tem suas possibilidades de ação influenciadas pela realidade histórico-temporal do artista além da sua própria. Elementos de ambas compõem a situação. O conhecimento sobre arte produzido a partir da práxis artística deve levar em conta tanto o contexto do artista quanto de quem produz esse conhecimento, podendo ocorrer que, em alguns casos, este último seja o próprio artista. O mesmo se dá com o contexto do espectador, que poderá ser semelhante ou não, ao do artista. As particularidades territoriais abrangem desde a localização histórico-temporal, espacial e econômica dessas pessoas, até suas características físicas, seu gênero, sua sexualidade, e seus posicionamentos políticos, devidamente relacionados e interligados entre si. Assim, é importante perceber como as relações humanas, as dinâmicas socioculturais, afetam e são afetadas pelas produções 20 artísticas nos múltiplos atravessamentos entre estas e seus contextos territoriais, de onde retiram suas matérias, e dos quais fazem parte. Portanto, é importante que quem produz arte ou produz conhecimento sobre arte esteja ciente de como a territorialidade afeta sua produção, ou seja, como faz parte dela e que papel possui na sociedade. Neste caminho, percebo e me apoio em teorias, sobre as quais discorrerei mais adiante, que afirmam a existência de um ponto de vista predominante no território em que vivo, dentro e fora do mundo da arte, cuja perspectiva é mais visível histórico-sócio- culturalmente e se apóia em uma série de normas sociais com o objetivo de determinar, entre outras coisas, o que é “Arte”, quem é o artista e quem é o espectador apto a produzir conhecimento sobre ela. A partir disto se coloca de maneira sutil e eficiente que todos eles partilhem características do ponto de vista predominante. Que normas sociais são essas? Por que determinados pontos de vista são mais valorizados culturalmente? Quais são as práticas que tornam isso possível? São os valores coloniais europeus que conduzem todo esse processo, influenciando na noção de arte dos territórios colonizados que, mesmo após sua independência, ainda estão sujeitos a esse sistema sociocultural (MALDONADO-TORRES, 2019 ). O discurso que produz e instala cotidianamente esses valores, segundo Judith Butler, estabelece limites para a experiência: Tais limites se estabelecem sempre nos termos de um discurso cultural hegemônico, baseado em estruturas binárias que se apresentam como a linguagem da racionalidade universal. Assim a coerção é introduzida naquilo que a linguagem constitui como o domínio imaginável do gênero. (BUTLER, 2017, p. 30-31.) Assim, o conceito de “Arte” é constituído discursivamente, assim como gênero e outros elementos da vida social, através de práticas discursivas reguladoras17, que moldam desta maneira os ambientes das produções artísticas e de conhecimentos atuais. Porém, considerar que esta cultura determina absolutamente como se dará toda a experiência é recair no universalismo, e portanto no gesto colonizador (BUTLER, 2017 ). No momento em que vivemos ocorre um aumento da visibilidade das produções artísticas de pessoas que não se 17 Em Butler, práticas reguladoras são aquelas que mantêm o discurso hegemônico, universalizante e colonizador, enquanto práticas subversivas são aquelas que põem em questão os valores e parâmetros pregados nesse discurso através das práticas reguladoras. Em relação a como essas práticas constroem o gênero, ela mostra como o formato deste, como difundido pela ideologia hegemônica, é frágil: “Mostrar-se-á então que o eu de gênero permanente é estruturado por atos repetidos que buscam aproximar o ideal de uma base substancial de identidade, mas revelador, em sua descontinuidade ocasional, da falta de fundamento temporal e contingente dessa ‘base’.”, sendo esta descontinuidade as práticas subversivas, subversões performativas ou atos corporais subversivos. BUTLER, 2017, p.243. 21 encaixam no perfil colonial normatizado, o que se conseguiu por meio das disputas de poder entre as práticas reguladoras e as práticas que subvertem o discurso das primeiras. Sabendo que a ideologia colonial permaneceu constituindo valores éticos e estéticos sexistas, racistas, LGBTQ+-fóbicos, xenofóbicos, para justificar a desigualdade e a concentração dos poderes políticos, econômicos e narrativos, e que nos territórios uma vez colonizados ainda se valoriza a organização sociocultural dos colonizadores europeus, temos aqui uma lógica binária, onde o sujeito do discurso hegemônico se estabelece por oposição: A operação da repulsa pode consolidar “identidades” baseadas na instituição do “Outro”, ou de um conjunto de Outros, por meio da exclusão e da dominação. O que constitui mediante divisão os mundos “interno” e “externo” do sujeito é uma fronteira e divisa tenuemente mantida para fins de regulação e controle sociais. BUTLER, 2017, p. 231. Por ser uma mulher brasileira, latino americana, branca, de classe média, nesta pesquisa julguei ser necessário adotar um ponto de vista crítico, feminista e decolonial, pois a partir dele posso produzir conhecimento evitando reproduzir o máximo possível uma lógica com valores coloniais, num processo que partiu da autocrítica e da autoavaliação18. Trago assim elementos do pensamento de algumas teóricas e teóricos que abordaram a questão da desigualdade de gênero e do sexismo, assim como racismo e LGBTQ+-fobia dentro e fora do meio artístico, além de teorias decoloniais. Aqui temos um trecho do artigo “Sexualidades, artes visuais e poder: pedagogias visuais do feminino”, da Professora Doutora e Educadora Luciana Grupelli Loponte: O discurso mais comum que chega até nós sobre a arte, no entanto, ainda é uma interpretação pertencente a um sistema de significações muito particular, no qual certo modo de ver masculino é dominante. Através de representações artísticas e da produção de sentidos em torno dessas representações exerce-se poder. Poder este que de uma forma não unitária, estável ou fixa vem privilegiando e reforçando um determinado ‘olhar masculino’. Poder que, sem dúvida, produz efeitos nos nossos modos de ver e entender questões de gênero e sexualidade. Política, poder e arte articulam-se nas imagens que muitas vezes são julgadas e analisadas apenas sob um ponto de vista formalista.LOPONTE, 2002, p. 285 Enquanto mulher brasileira, Loponte faz considerações sobre como esse olhar masculino influencia nossa concepção territorializada de arte que afeta todas as produções artísticas do mundo colonial. Esse olhar é descrito por ela em seu texto, e está tanto na ideia 18 Focando na necessidade da autocrítica dentro do movimento feminista, com atenção à postura das feministas brancas, bell hooks reflete que esse trabalho é “necessário para o desenvolvimento de uma consciência política radical, que começa pela avaliação crítica e honesta do próprio status social, dos próprios valores, convicções políticas, etc.” para identificar como reproduzimos as lógicas coloniais e como somos afetadas por elas. HOOKS, 2019, p. 83 22 de artista quanto na de espectador. Já no teatro, a Professora Doutora Lúcia Romano coloca acerca da abordagem sexuada da recepção, que implica em perceber que gênero e sexualidade são presumidas nos espectadores, falando sobre o contexto norte-americano, com o qual o brasileiro tem semelhanças pelo histórico colonial, e do qual sofre esse tipo de influência: A tradição ilusionista que domina o teatro norte-americano (como uma síntese do teatro ocidental) é criada para refletir e perpetuar a ideologia de um ‘espectador ideal’, de fato, branco, classe média, heterossexual e do sexo masculino. Tal pressuposto permite que o teatro convencional, sobretudo o de bases realistas, dirija- se para a platéia como se para uma massa unificada. Isso, tanto para a atriz, quanto para a espectadora, irá significar objetificação, passividade, constrangimento da sexualidade feminina ativa e dificuldades de reconhecimento (a mulher não consegue se identificar com as representações da mulher na cena e, quando identifica-se com as imagens do masculino, percebe que oprime seu próprio sexo).19 ROMANO, 2009, p. 248. Portanto, a arte e o conhecimento sobre ela foram constituídos por e para um sujeito: o homem colonizador, imperialista, branco e heterossexual, discursivamente estabelecido (BUTLER, 2017). Por isso a figura do “Gênio da Arte” que é abordada pelos historiadores da arte como uma questão de sorte, ou "talento natural”, é de fato mais um dado que expõe como o gênero, a cor, a classe social e local de nascimento de uma pessoa são fatores utilizados na divisão dos papéis sociais na sociedade colonial (MALDONADO-TORRES, 2019). Essas figuras eram homens brancos europeus, e mais recentemente estadunidenses, em geral filhos de artistas ou associados a artistas renomados, que desde cedo tinham acesso a elementos fundamentais da educação artística do período20. Mesmo se não tivessem esse acesso, tinham disponibilidade de tempo para dedicar à atividade artística; boa parte foi reconhecida em seu meio social e assim financiados em vida, e os outros obtiveram esse sucesso após a morte. Porém em sua grande maioria não pertenciam à aristocracia, pois a função social desta era 19 Aqui a pesquisadora fala com base no texto “The Feminist Spectator as Critic”, 1988, de Jill Dolan. 20 Aqui me refiro à questão dos nus no ensino das artes “no período que vai da renascença até meados do fim do século XIX. Durante este período, o estudo cuidadoso e prolongado de modelo vivo nu era essencial para a produção de qualquer trabalho com pretensões de grandeza, e para a própria história da pintura, que foi geralmente aceita como a mais alta categoria de arte” NOCHLIN, 1971, p.24, tradução minha. Em seguida, a autora afirma haver “a completa indisponibilidade de modelos nus para qualquer mulher aspirante a artista. Apenas em 1893, as ‘senhoritas’ não eram admitidas nas aulas de modelo vivo na academia oficial em Londres, e quando o foram, depois dessa data, o modelo havia de estar parcialmente coberto” NOCHLIN, 1971, p.24, tradução minha. Uma autora brasileira que fala sobre o assunto é Luciana Grupelli Loponte, afirmando que “Às mulheres era vedado o acesso à prática de desenho do natural com modelo nu, que foi a base do ensino acadêmico e da representação na Europa do século XVI ao XIX. As mulheres ‘artísticas’ por natureza deveriam ser controladas de alguma forma, sendo proibidas de estudar arte fora do contexto estético doméstico (decoração de interiores, arranjos florais, tocar piano etc.)” LOPONTE, 2002, p. 287. 23 governar21. Eram raras as mulheres brancas artistas, pois sua função era de esposa do homem branco (MALDONADO-TORRES, 2019); e nenhuma das que obtiveram êxito na profissão foi considerada um “gênio da arte” (NOCHLIN, 1971) da mesma forma que seus contemporâneos homens brancos. Também não obtinham o mesmo status artistas de povos racializados: o colecionismo europeu (CARNEIRO e BEVILACQUA, 2018. (2h46m19s)) valorizava os trabalhos artísticos provenientes dos países colonizados, ao mesmo tempo em que não reconheciam e menosprezavam quem os fazia, tanto que boa parte dessas peças é de autoria desconhecida; a essas pessoas anônimas era atribuído violentamente o papel social de escravizados e colonizados. Não surpreendentemente, os historiadores que se apoiam na noção de “Gênio da Arte” como alguém possuidor de talento inato, partilham do mesmo perfil sócio-cultural, econômico e racial do tal gênio. Loponte aborda como esses fatores afetam a relação que se estabelece culturalmente com a arte contemporânea: Poderíamos perguntar aqui, afinal, qual o papel das artes visuais na vida contemporânea? Para a maioria das pessoas, esse tipo de arte é vista como uma prática destinada a poucos ‘eleitos’. Associa-se arte à grande arte consagrada em museus, galerias, livros caros de reproduções. Alguns ‘iluminados’ por centelhas de gênio a produzem para um público seleto que pode compreender. Por outro lado, a produção artística é considerada um hobby para o deleite individual, ou uma distinção social. Saber arte nos coloca na posição daqueles que pertencem à ‘alta cultura’.LOPONTE, 2002, p. 285. Aqui podemos ver como a territorialidade não apenas influencia, mas constitui a forma com que se faz arte e se lida com ela, utilizando as normas sociais para determinar o que é arte ou não, quem são as pessoas e instituições que protagonizam esse processo, normatizador, e como a sociedade é organizada na forma onde a cada um de seus membros é designado um papel social, objetivando manter seu funcionamento através de práticas cotidianas. Isto acaba por normatizar também como as situações de possibilidade convivial podem ser constituídas nesses espaços, na medida em que determinam onde a arte pode estar, quem pode produzi-la, e quem pode estar perto dela para que seja Arte com “a” maiúsculo. Isso acaba por restringir as possibilidades de convívio, já que a diversidade de perspectivas não está presente nesse processo, portanto o convívio com a obra parece não ser tão importante quanto a sua posse material e simbólica; ela é assim tratada mais como objeto de 21 Nochlin afirma sobre a rara aparição de grandes artistas membros da alta aristocracia até o século XIX, que “os tipos de demandas e expectativas colocadas tanto para os aristocratas quanto para as mulheres – o montante de tempo necessário para se devotar às suas funções sociais, os tipos de atividades demandadas – simplesmente tornava fora de questão e impensável a devoção total à produção artística profissional, tanto para os homens das classes mais altas quanto para as mulheres em geral” NOCHLIN, 1971, p. 10. 24 especulação financeira, matéria cotidiana, do que matéria afetada. A poiesis do artista é mais uma marca que valoriza um objeto mais do que o passo inicial em direção a uma poiesis convivial22. Porém, a territorialidade brasileira é composta também pelas tensões que rondam essas relações de poder (FOUCAULT, 2014); assim o fazer artístico também é um campo onde isso se explicita e um campo de disputa. Pessoas que têm suas atividades voltadas para práticas artísticas frequentemente consideradas menores ou artesanais, que buscam conhecer as práticas artísticas e culturais que fogem à história da arte sob uma perspectiva eurocêntrica ou colonial, que partem da territorialidade presente para questionar os papéis sociais estabelecidos, questionando e transcendendo os seus próprios posicionamentos sociais, mesmo tendo seu acesso ao “mundo da arte” restrito, cada vez mais se destacam por suas práticas artísticas, assim como produções de conhecimento sobre arte que fogem às expectativas sociais normatizadas e utilizam como matéria os conflitos nas estruturas de poder vigente, ao mesmo tempo em que protagonizam esses conflitos, e são, dessa forma, matéria repertorial para as poéticas. Assim, considerando as produções artísticas que utilizam essa mesma territorialidade como matéria, podemos perceber como existem diversas possibilidades de troca e de convívio para além da zona de conforto dos saberes colonialistas. 22 Esses são aspectos territoriais que perpassaram várias poéticas durante o século XX, e até nos dias de hoje, sendo amplamente utilizados por artistas que tinham acesso ou não ao mundo da arte oficial; alguns exemplos são Duchamp, Piero Manzoni, Andy Warhol, entre outros. 25 2 PESQUISADORA OBSERVADORA-ESPECTADORA 2.1 OBSERVAÇÃO E ESPECTAÇÃO COMO PESQUISA Aqui me coloco então como espectadora. Enquanto tal tento perceber meu repertório, minha territorialidade, meu ponto de vista, o fato de ser eu, uma estudante, artista e espectadora e como tudo isto esta nessa minha atividade de espectação, em relação com os repertórios territoriais, os pontos de vista das artistas e de suas obras que tive a oportunidade de presenciar. Isto transparece na minha interação com as obras e nas reflexões que tive a partir disto, registradas ao longo deste capítulo. Me coloco assim, como alguém que pesquisa a partir da experiência e da atividade de espectação . Acerca da práxis no meio artístico, de forma geral, como ferramenta de pesquisa, Dubatti afirma: “acredito que essa dimensão participativa da pesquisa artística venha crescendo cada vez mais em razão direta com a redefinição do papel universitário no plano da arte e das ciências da arte, e que a função do crítico-filósofo esteja estreitamente ligada a essa participação” (DUBATTI, 2016, p. 96). Essa afirmação toma como legítimo que na pesquisa se produza conhecimento a partir do contato com o material poético, matéria afetada, corpo poético, situação e acontecimento conviviais. Se a importância desse contato não é reconhecida, não ha diferença entre processos de pesquisa onde pesquisadores entrem em contato com as obras que estudam e os processos onde se trabalha a partir de registros e relatos sobre essa obra. Isso é ignorar o papel do acontecimento e das situações tanto nas obras de arte quanto na pesquisa. Longe de atribuir um juízo de valor aos pesquisadores que não presenciam as obras que estudam, afirmo apenas que esse aspecto é importante e pode mudar os rumos e os objetivos das pesquisas e pesquisadores. Portanto, como quero perceber a dimensão relacional dos trabalhos artísticos, que se dá no convívio, não me basta pesquisar a partir de fotografias, vídeos, textos, formas de registro de trabalhos artísticos, que não sejam estes trabalhos fotografias, vídeos e textos, pois a totalidade do acontecimento é inapreensível por meio de registros; a única maneira de acessá- lo é vivendo-o. Assim, também reconheço que este trabalho é um registro, e quem tomar conhecimento das obras e dos acontecimentos que cito através dele, e não do contato presencial, estará antes entrando em contato com minhas análises, e relatos, não com as obras em sua completude, não com os acontecimentos e situações em suas particularidades. O 26 escrever sobre a obra se localiza no momento de semioticização ou tradução em palavras dos acontecimentos conviviais23, posterior a este. Aqui portanto assumo a impossibilidade de traduzir o acontecimento em palavras, pois “nem tudo que está em cena (...) transforma-se em signos. Em cena há muito mais que signos” (DUBATTI, 2016, p. 54); e aqui tomo a liberdade de trocar cena por situação nessa sentença: Em situação há muito mais do que signos. Nesta pesquisa, a prática artística observada é plástico-visual, portanto é necessário estar ciente das limitações impostas pelo caráter efêmero do acontecimento, assim como da permanência da matéria cotidiana e da obra artística no tempo e nas situações. Nos capítulos anteriores já foram descritos os motivos pelos quais nesse tipo de produção artística existem potências conviviais: porque há o encontro de corpos, de poiesis, e a ação é realizada pelo espectador, no caso, espectadora. As obras que observei são de três artistas, mulheres, brasileiras, e cada uma delas se posiciona a partir de um ponto de vista distinto, cada uma em uma instituição de arte diferente. Os trabalhos analisados são de grande escala, e construídos sobre temas referentes a gênero e corporeidade, abordando imageticamente feminilidades, mulheres e seus corpos. Assim as matérias cotidianas, que compunham as situações conviviais onde adentrei, pertenciam aos repertórios e pontos de vista de cada uma dessas mulheres, que protagonizando suas próprias práticas artísticas e expondo seus trabalhos em instituições de arte, lugares onde por muito tempo narrativas dissidentes não eram protagonistas, ressignificam o papel de artista na sociedade. Como esses fatos, que dizem sobre às territorialidades componentes das situações, afetam o convívio? Como os gestos dessas mulheres, que identifico como gestos poieticos com uma bagagem feminista, perpetuam-se dessa forma no gesto espectatorial? Como as artistas conduzem a atividade espectatorial, através de suas obras, não estando presentes no mesmo espaço que elas? Como perdura esse gesto poietico, poético, cuja potência é guardada no corpo-objeto, que é descoberto como corpo poético durante a espectação? A essas perguntas estive atenta em todo o processo de observação, e na reflexão posterior aqui registrada, mas não para apreender o acontecimento convivial, e sim perceber e refletir sobre o que se dá nessa troca. 23 Dubatti se refere à obra como um corpo poético que possui duas dimensões: o momento em que é um corpo pré-semiótico e o que é um corpo semiótico. DUBATTI, 2016, p.55. 27 2.1.1 ROSANA PAULINO: “TECELÃS” NO MAR- MUSEU DE ARTE DO RIO Na procura de obras que eu tivesse a possibilidade de presenciar, realizadas por artistas mulheres contemporâneas e que abordassem as questões de gênero, tive uma coincidência muito feliz: a exposição individual de Rosana Paulino, que aconteceu de abril a setembro de 2019 no MAR – Museu de Arte do Rio. Um dos trabalhos exibidos nessa exposição individual foi a instalação Tecelãs (Figura 1). É um trabalho de grandes dimensões formado por um conjunto de pequenas partes, 100 peças em faiança, terracota, algodão e linha, cada uma combinando elementos figurativos do corpo feminino, casulos e ninhos de insetos, que ocupavam quase inteiramente duas grandes paredes brancas dispostas em 90º, numa das salas de exposição do MAR. Dessa forma é um trabalho tridimensional onde a grande e a pequena escala estão combinados, e assim provocou em mim enquanto espectadora duas reações: primeiramente o impacto causado pela quantidade de peças, pois o conjunto ocupava boa parte do espaço expositivo, depois a curiosidade despertada por cada peça, me levando a fazer repetidos movimentos de aproximação e distanciamento, observar as partes, suas inter-relações, e o todo como resultado da proliferação das partes. Lembrando das impressões que me aconteceram no momento, me vem primeiro à atenção os materiais usados na composição, aos quais me atentei no momento em que estava mais próxima à obra, e a partir destas memórias começo a refletir e fazer algumas relações. Penso que a escolha dos materiais, respectivamente barro e linha, estabelece uma relação de dualidade e complementaridade. Os materiais são associados a práticas artesanais, e se nesta situação a eles é conferido o status de arte, a técnica utilizada na manipulação de ambos têm raízes em práticas artesanais. Ambas têm uma série de diferenças quase oposicionais entre si, considerando o tratamento dado aos distintos materiais. Pelo que conheço de cerâmica, percebo que o barro tem ritmo e dinâmica próprios. Estes se revelam nos processos de sova, modelagem, secagem e queima. Para que a peça não se quebre em nenhuma das etapas da sua construção, é preciso imergir o corpo e a atenção no material e no tempo dos seus processos, para cooperar e lidar com as características físicas assumidas progressivamente por ele, e não simplesmente curvá-las à vontade. É ao mesmo tempo um material brutal, delicado e frágil. Enquanto isso, percebo na linha uma fragilidade aparente, porém a sua maleabilidade permite que se adapte mais às necessidades e técnicas de quem a utiliza do que o barro. Assim o conjunto de linhas, tramas, urdimentos, tecidos, podem ser produtos extremamente resistentes, justamente pela sua maleabilidade e adaptabilidade, 28 havendo uma dificuldade em romper a superfície formada pelo conjunto dos fios entrelaçados; se um tecido cai no chão ele não quebra da mesma forma que uma peça de cerâmica. Assim, a linha é um material que em sua delicadeza carrega uma potência de força e resistência. Saindo da questão do material para a da figuratividade com a qual a artista moldou esses materiais, observei que cada uma das pequenas peças mostrava figuras híbridas em diferentes estágios de desenvolvimento. Os casulos colocados no chão me deram a sensação de movimento, um ponto de partida de onde as figuras parecem surgir. Pelo trabalho ser posicionado num ângulo do espaço expositivo, ao invés de uma única parede, ele me lembrou uma colônia de bichos-da-seda ou vespeiro; dessa forma essas figuras aparentemente delicadas trazem também uma potência agressiva. Elas estão na fase larval de seu desenvolvimento; algumas possuem vários seios, outras estão grávidas, curvadas sobre si mesmas ou interagindo com o corpo das outras, ambas as situações de forma dolorosa porém harmônica, sempre com metade desses corpos coberta com fios brancos dando a impressão de rabos ou caudas. Porém todas estão sugerindo movimentos de contorção e crescimento. Uma potência de vir-a-ser. Assim, a curiosidade inicial em mim instigada – o que são essas criaturas? Passa a ser, após alguns minutos de observação: no que elas estão se transformando? Figura 1: Imagem da Instalação "Tecelãs, de Rosana Paulino; faiança, terracota, algodão e linha Fonte: Acervo da autora 29 Figura 2: Detalhe da Instalação "Tecelãs" de Rosana Paulino; faiança, terracota, algodão e linha Fonte: Acervo da autora O título da obra me deu uma pista, e assim me relaciono também com a palavra presente, ela sendo um novo elemento que soma e modifica no conjunto de matérias afetadas em situação, materiais-figuras-disposição no espaço-palavra. Tecelãs, quem tece, quem faz tecidos, é a forma que a artista escolheu nomear essas pequenas figuras femininas. Mas não devemos nos enganar pela aparente fragilidade e passividade que normalmente é associada com a atividade de tecer presente no ideário comum. Ao colocar práticas artesanais em destaque, Rosana Paulino coloca mais uma dimensão do esforço que perpassa todo o seu trabalho, de abordar temas que usualmente não tiveram a devida visibilidade nas grandes obras que marcaram a história da arte “ocidental”, eurocêntrica, como racismo, opressão sexista, apagamento histórico, a violência dos processos coloniais e o tratamento dado nele a corpos negros e de mulheres. Ela faz isso sob um ponto de vista também historicamente invisibilizado, dentro e fora do mundo da arte, por o de uma mulher negra. Assim, além de tornar visíveis essas questões, ela inverte os papéis sociais coloniais do artista e do espectador. Nessa obra, a artista utiliza e ressignifica um arsenal imagético-linguístico presente na cultura brasileira; utiliza a matéria e o ideário das práticas artesanais nas suas figuras híbridas de insetos e figuras femininas (Figura 2); além disso, coloca cada um destes pequenos seres numa etapa de crescimento, e o seu conjunto num movimento de expansão, trabalhando 30 visualmente e plasticamente os termos “individual” e “coletivo”. Usando como matéria os seus significados convencionais, numa composição feita com elementos territoriais e seus significados culturalmente associados, mostra como eles podem ser lidos fora de uma lógica binária, onde fragilidade e força, brutalidade e delicadeza, maleabilidade e rigidez, se mesclam e se emendam na medida em que uma parece não somente se referir a outra, mas conter características da outra. Barro e linha são ambos brutais e delicados, o primeiro frágil em sua rigidez e o segundo resistente em sua maleabilidade, as figuras são pequenas e perigosas, podem ser bichos-da-seda ou vespas em estágio larval. Dessa maneira, a ameaça real se concretiza na sua saída do ninho, que é um movimento individual, mas quando todas o fazem ao mesmo tempo é uma potência de coletividade. Neste processo elas crescem sob o nome de tecelãs, se expandindo em formato de rede. O que tecem as tecelãs de Rosana Paulino? Elas tecem a si mesmas e assim tecem também as potências do coletivo, este é o seu tecido. A partir destas impressões e análises parti a traçar relações entre essa obra e algumas teóricas feministas. A própria autora coloca explicitamente que esse diálogo existe em seu trabalho, principalmente em relação ao feminismo negro (GOBBI, 2019 ). Aqui retomo bell hooks, uma das principais teóricas feministas negras, quando em sua obra ressalta a importância dos processos individuais e coletivos, da importância da autoavaliação e da autocrítica, e como isso é essencial para que haja uma solidariedade política24 quando se atua no coletivo. Também nesse sentido Judith Butler, considerada precursora da teoria Queer, avalia que, para atingir os objetivos feministas, a construção variável da identidade deve ser pré-requisito e objetivo de uma política feminista (BUTLER, 2017, p. 25)25. Ambas reforçam que a luta contra a opressão sexista (HOOKS, 2019 ), ou uma postura feminista, deve trabalhar com o fato de que as pessoas carregam diferenças entre si, para que as suas práticas 26 coletivas não sejam excludentes e se apóiem em parâmetros nocivos aos seus próprios propósitos. Por outro lado, as metáforas e processos presentes no trabalho de Rosana 24 Sobre lidar com as diferenças no coletivo a autora escreve “Ao mapear estratégias distintas, pudemos afirmar nossa diversidade ao mesmo tempo que trabalhávamos em prol da solidariedade. As mulheres devem explorar várias formas de se comunicar umas com as outras interculturalmente para que consigam desenvolver solidariedade política” HOOKS, 2019, p. 99. 25Também no mesmo capítulo a autora afirma que “o gênero estabelece intersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a noção de ‘gênero’ das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida” BUTLER, 2017, p.21. 26 Ver práticas reguladoras e performance de gênero em BUTLER, 2017, p. 44 e p.240. 31 Paulino dão margem para entendê-los e vivenciá-los fora da lógica binária hegemônica, que tem como fundamentos os mesmos das explorações e opressões, pois nessa obra simbolismos culturalmente sugestionados como opostos se combinam e coexistem num mesmo corpo- objeto artístico, saindo de interpretações dualistas e reducionistas, possibilitando múltiplas formas de espectação, observação e reflexão. Nesse trabalho aparecem diversos elementos que estão em sintonia com teorias feministas, e esses parâmetros se transmitem através do movimento de espectação. O disparador da análise nesse texto foi o movimento físico que tive de realizar como espectadora-observadora, de distanciação e aproximação. Os deslocamentos que a situação instaurada provoca são primeiramente corporais, não simbólicos. Estes vêm num momento posterior quando me proponho a pensar a partir do próprio movimento. Assim, como espectadora fui levada a entender primeiramente no corpo, sendo este entendimento perceber os estímulos corporais que me abriram as possibilidades de me colocar frente à obra. A partir dessa relação motora estabelecida começei o processo de atribuição de significado e relexão, não apenas para a obra, mas também para o que vivi frente a ela e a partir dela. 2.1.2 ERIKA VERZUTTI: “VENUS FREETHENIPPLE” NO MASP - MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRIAND Entre 2017 e 2019 o MASP realizou três ciclos de exposições e palestras, “História da Sexualidade”, “Histórias Afro-atlânticas”, e "Histórias das mulheres”, mostrando um movimento do museu para abarcar as questões socioculturais e artísticas dos movimentos LGBTQ+, Negro, e Feminista. Nesse movimento, o museu revisita o seu acervo permanente em exposição, culminando na mostra de uma série de peças que adquiriu durante essas exposições, entre elas, a obra Venus Freethenipple (2017) da artista Erika Verzutti, que fez parte do ciclo “História da Sexualidade”. Foi neste espaço que a conheci. Trata-se de uma escultura de 180x118 cm, e suas dimensões e cor dão a impressão de que é de pedra maciça. Inicialmente me pareceu ser muito pesada, impressão logo foi quebrada na leitura de sua plaqueta informativa: Papel Machê e poliestireno; são os materiais que compõem a figura que alude à Venus de Willendorf, composta por três partes que retratam uma jaca, uma abóbora e um aspargo, gigantes. Saber sua composição modificou totalmente a forma com que me coloquei frente à obra: olhei mais perto, para constatar a veracidade da informação, e ao confirmá-la me veio um impulso de levantá-la do chão e sentir seu peso, fiquei curiosa por saber como fora feita sua estrutura, pois também trabalho com 32 esculturas de papel, mas não toquei a obra pois havia um quadrado branco no chão a sua volta. Tive assim em sucessão três percepções diferentes acerca do mesmo objeto: de início parece tão pesado que seria impossível movê-lo com as mãos, depois há a constatação de que essa possibilidade existe, e num terceiro momento essa possibilidade é barrada, não pela improbabilidade física do ato, mas pelas convenções sociais de comportamento estabelecidas para aquele espaço. A artista utiliza um material muito semelhante a outro visualmente, com diferenças marcantes entre ambos quanto às suas características físicas, causando certa ilusão, porém por causa dos outros fatores presentes na situação, que não a obra propriamente dita, essa diferença não pôde ser constatada. As possibilidades que tive então como espectadora na construção de minha poiesis espectatorial estavam restritas à visão, e a locomoção também que a auxilia. Como esta obra me despertou o desejo tocá-la e movê-la, esse sentimento de restrição por causa das normas do espaço me foi muito forte. Figura 3: "Venus Freethenipple" de Erika Verzutti, papel machê e poliestireno Fonte: Acervo da autora Enquanto espectadora tomei consciência da limitação motora imposta, na medida em que, nesse espaço e sob estas condições, minha poiesis estava quase inteiramente reduzida à observação, eu tinha pouco poder, poder legal, de interferir na situação. A locomoção em torno da obra permitiu que mudasse o ângulo de visão, mas a superfície é circular e haviam muitas outras obras em volta, que por sua vez tinham linhas de proteção em torno de si, o que 33 por sua vez reduziu ainda mais as possibilidades de movimento. Assim, recaí numa movimentação circular, onde via quase a mesma coisa qualquer que fosse meu posicionamento em relação à peça. Foi um movimento angustiante, aprisionador e infinito onde de espectadora fui quase somente a observadora. As possibilidades da espectação são maiores que a da observação. Maiores em quantidade. A quem especta é oferecida uma gama maior de possibilidades de gesto e de fruição; pode fazê-lo com cada um dos seus sentidos na medida em que eles são afetados pela proposta, ou poiesis do artista. No observador é considerado apenas o olhar, e dessa forma apenas a visão é valorizada, permitida ou possível. As possibilidades de se conviver são as de reagir. Re-agir, agir em resposta, agir novamente, continuar a ação. Assim, ao espectar continua-se a ação da proposta artística, o gesto da poiesis plástica no seu gestual, na sua poiesis espectatorial. De acordo com a proposta, o espectador dá mais ou menos vazão às suas idéias e vontades, utilizando as ferramentas de espectação, que vão desde o seu próprio corpo até ferramentas que o próprio artista pode deixar a disposição na situação, e como cada um tem idéias, vontades, e maneiras diferentes de usar essas ferramentas, existem inúmeras possibilidades de ação na atividade de espectar, a partir da atividade artística instauradora da situação onde o convívio, a poiesis convivial, é possível. Na medida em que as possibilidades de ação são limitadas, também o são as possibilidades de convívio. Porém, dependendo dos meios, plataformas ou materiais escolhidos pelo artista, assim como o lugar onde seu trabalho é exposto, existem limites de até onde se pode cercear as possibilidades de ação e a ação de fato. São duas coisas diferentes. Seria possível levantar com as mãos a Venus de Erika Verzutti, mas de fato nenhum espectador corriqueiro do museu o fez, que eu saiba, pois as condições da situação onde ela está, mais do que seu aparente peso, impedem que isso aconteça. Nesse caso, quem espectou a obra, assim como eu, não foi totalmente reduzido a observador pois a locomoção no espaço ainda estava sugerida. Esse trabalho me permitiu estar consciente das limitações que nos são impostas e suas razões diante das possibilidades de ação, percebendo até onde certas coisas parecem ser impossíveis por conta da sua aparência ou das condições que as rodeiam. Considerando agora o título da obra, percebo uma ironia da autora ao jogar com uma série de recursos visuais que se relacionam simbolicamente com o corpo feminino, como frutas e a própria Venus. Através desse título ela estabelece uma relação com acontecimentos políticos internacionais recentes, e de novo vemos a palavra modificando a impressão que se tem do objeto plástico, quando presente no corpo poético. 34 Sobre os acontecimentos, trata-se da reação de grupos de mulheres sob o nome de movimento free the nipple, traduzido como libere seus mamilos, à censura da exposição pública de corpos femininos nas redes sociais, que resultaram inclusive na censura da imagem da Venus de Willendorf pelo sistema das redes sociais (CORREIO DO POVO, 2018 ), que levou ao debate sobre topless e a questão da amamentação em público são. Assim, tanto pelo seu título quanto pela referência à Venus de Willendorf essa obra foi construída com o movimento em mente. Porém como a razão disso não estava explícita, ou seja, não estava explícito se a obra era uma sátira, crítica, um posicionamento a favor do movimento ou apenas um jogo com esses símbolos do momento. As relações que pude estabelecer a partir da minha atividade espectatorial foram entre a situação impeditiva onde essa obra estava e as restrições impostas ao corpo feminino, descritas nesse movimento. Porém, enquanto pessoa que estuda o feminismo em suas diferentes vertentes, e reivindica a defesa do mesmo, não pude ignorar o fato de que o título, e por tanto a obra, me remetem a posicionamentos que se colocam sob a etiqueta de feminismo mas a eles existem diversas críticas, descritas a seguir. Por isso, após conhecer o título, enquanto espectadora tive uma reação reticente de estranheza e afastamento, tanto em relação à obra quanto à artista que a construiu, que não existia num primeiro momento. A questão é que o posicionamento incerto da artista, pois não a conheço nem sua posição política, e também pela forma inapreensível com que essas questões são sugeridas na obra, parecem tanger um posicionamento, refletido nos princípios da campanha free the nipple, que tem uma visão restrita das diferentes pressões que circundam a exposição, a exploração e a opressão sexista sobre corpos distintos, relacionável ao feminismo liberal. Apesar das figuras de destaque do movimento o descreverem como “uma campanha coletiva e global que tem a esperança de encorajar a igualdade, o empoderamento e a liberdade de todos os seres humanos” (ROBERTS, 2019 ), as mulheres que aparecem nos protestos convocados pela causa, assim como as que a apóiam nas redes sociais são quase “exclusivamente brancas e magras, com cabelo longo e calças de cintura alta”, como descreve a pesquisadora. Laura Patterson, no artigo “Branquitude nas campanhas feministas contemporâneas: liberte seus mamilos”, artigo onde ela analisa como esse aspecto afeta a campanha: Pessoas brancas tendem a não trazer a tona debates sobre raça ou racismo em seus espaços de ativismo porque elas aprenderam a ignorar seus privilégios e assumir um discurso engessado cheio de “boas intenções” (Harper 2011; hooks 2000; Wilson 1996). O privilégio e a supremacia branca permitem que pessoas brancas vivam nos Estados Unidos sem ao menos considerarem raça como um dos fatores que determinam a maneira que se experiencia o mundo (McIntosh 1992; Crenshaw 1989). A habilidade de não se conscientizar sobre como a cor de nossa 35 pele afeta nossas possibilidades de conseguir um empréstimo, educação (McIntosh 1992), ou manifestar de topless nas ruas de Louisville é uma manifestação de privilégio branco (PATTERSON, 2016, p. 27). Tradução minha. Dessa forma, ao ignorar a importância de se abordar as diferenças e a partir disso constituir um movimento, a campanha free the nipple demonstra adotar um posicionamento que mina o que deve ser o horizonte do feminismo: acabar com a opressão sexista, e não somente reivindicar igualdade de gênero. Bell Hooks descreve que Mulheres que não se opunham ao patriarcado, ao capitalismo, à distinção de classes sociais ou ao racismo de repente passaram a se intitular “como feministas”. Suas expectativas eram as mais variadas, Mulheres privilegiadas queriam igualdade com os homens de sua classe, algumas lutavam por salários iguais para trabalhos iguais; outras queriam um estilo de vida alternativo. Muitas dessas legitimas preocupações foram cooptadas pelo patriarcado capitalista dominante. HOOKS, 2019. Porém a obra de Erika Verzutti não é redutível a uma manifestação de apoio acrítica ao movimento free the nipple. A nudez feita de frutas de sua Vênus também pode remeter à objetificação de um corpo de mulher, tratado como um bem de consumo. As manifestações desse movimento se constituíram de maneira ingênua quando se trata desse ponto; reclamaram de não terem direitos de se comportar corporalmente como os homens, brancos, e não consideraram que ao utilizarem o topless de mulheres brancas, cisgênero, de classe média a alta como maior tática de luta, estariam ignorando outras discussões sobre gênero, sexualidade e ferramentas de mudança social feministas, desconsiderando a extrema necessidade de multiplicidade dentro dos movimentos sociais. Ao construir esse espaço onde apenas mulheres, que se encaixam no padrão ideal de corpo, se sentiam à vontade inicialmente para protestar isso resultou numa sexualização do movimento, no assédio de todas as participantes, sem mudanças sociais efetivas. Considerando o corrente status quo, as pessoas já vêem a campanha de maneira sexualizada, e eu não penso que continuar expondo os mamilos pode mudar isso. Muito debate é necessário em primeiro lugar, e outros tipos de mudanças essenciais precisam acontecer antes que a prática do topless seja de alguma forma efetiva. PATTERSON, 2016, p. 29, tradução minha. Após essa reflexão, considerei uma direção para a qual a ironia na obra de Verzutti pode apontar, onde a Venus tem seus mamilos liberados, mas se torna comestível. Esses desdobramentos teóricos são uma possibilidade que a obra oferece, e que me faz ponderar sobre os posicionamentos políticos envolvidos. Mas eles não afetam diretamente convívio, pois ele é anterior a este momento de reflexão. Quando ele aconteceu, num primeiro momento, eu ainda estava principalmente empolgada com a questão material da obra, e num segundo, após a leitura do título e pela interpretação a partir dos meus referenciais territoriais, 36 sócio-políticos, minha reação se modificou novamente na situação. Portanto, os aspectos político-contextuais que envolvem uma obra de arte são alguns dos aspectos territoriais que podem interferir totalmente na atividade de espectação. No caso, o aspecto territorial que mais me chamou a atenção no momento do convívio foi o quadrado de fita adesiva colado no chão em torno da obra, que me vedava o contato físico com ela, pois esse pequeno detalhe imediatamente modificou totalmente a situação, e a forma de convívio possível com a obra. Assim, quem é o espectador, considerando todos os aspectos sócio-políticos envolvidos na construção identitária do mesmo, também é um aspecto territorial que modifica o convívio. 2.1.3 JULIA SZABÓ MURAL UNESP Conheci esta obra da Artista Julia Szabó no Instituto de Artes da UNESP. Assim como as duas anteriores, era o espaço interno de uma instituição voltada para as artes, mas esta é uma instituição pública universitária. Divergindo dos trabalhos anteriormente abordados aqui, que eram tridimensionais, este é um mural bidimensional, uma intervenção no espaço realizada através da pintura de uma parede de aproximadamente 3x4 m num dos andares das escadarias do instituto. Dos trabalhos que analisei, foi o único que não estava num espaço vigiado e não havia nenhuma linha divisória separando ele do espectador. Assim, em relação ao local, ao público e à artista que realizou esta pintura, esse trabalho apresenta uma série de divergências aparentemente sutis em relação aos outros, porém que modificaram completamente os acontecimentos conviviais estabelecidos na situação instaurada, tanto o meu quanto o dos outros espectadores. Na obra, a artista retrata um corpo nu, fora dos padrões de beleza estabelecidos para a mulher, agachado de pernas abertas. Dessa forma, todas as pessoas que lá passaram se depararam com a imensa pintura de uma vagina. Como era um lugar de grande fluxo de pessoas, pude observar muitas formas de comportamentos gerados a partir desse trabalho. Uma parte dessas pessoas parava e observava, outra descia as escadas mais rápido do que o habitual, tentando evitar olhar. No pé ou no topo da escada, ou mesmo antes de chegar à sua porta de acesso, a imagem já era visível e presente. Indisfarçável. Esse trabalho, apesar de não ser tridimensional e afetar poucas características físicas do espaço, alterou completamente como ele foi vivenciado. Muitos desviavam forçosamente o olhar. Era um trabalho que visivelmente afetava a todos que se deparassem com ele, provocando reações. 37 Figura 4: Mural de Julia Szabó, tinta sobre parede Fonte: Foto por Julia Szabó Figura 5: Mural de Julia Szabó, tinta sobre parede Fonte: Foto por Julia Szabó 38 Figura 6: Detalhe do mural de Julia Szabó Fonte: foto por Julia Szabó Gestos que observei dos espectadores desta obra, como o de desviar o olhar, o de deslocar-se para ver a obra de vários ângulos, como no meu caso, parar no topo da escada, ou ao pé dela voltar-se para olhar novamente, alterar a velocidade de caminhada, chamar a atenção de outras pessoas para o trabalho, todos esses gestos são a continuidade do primeiro gesto, o da artista, que instaura essa situação. Aqui o gerar desconforto se mostra uma potente ferramenta de ativação do convívio. Um trabalho de arte colocado num local de passagem, sem faixas rodeando seu perímetro, sem uma placa dizendo que ele é de fato uma obra, tende a ser ignorado no ritmo corriqueiro do cotidiano, a menos que tenha algum apelo forte o bastante que chame o passante para a situação, que o transforme em espectador para que se dê início aos processos poieticos. A obra de Szabó nos mostra que essa “captura” do espectador, esse canto da sereia, não se resume a formas consideradas belas e confortáveis. Provocar o incômodo, o desconforto, o desagrado, no caso foi uma escolha poética que contribuiu para provocar o espectador, inserindo-o numa situação de convívio onde ele se vê confrontado pela imagem; há uma quebra na indiferença com a qual as pessoas normalmente se portam naquelas escadarias. Como acompanhei diversos trabalhos da artista, pude perceber que este é um posicionamento que ela assume na maioria de suas obras. Tanto para mim quanto para os outros espectadores, percebi que houve uma quebra de expectativas em relação às nossas trajetórias cotidianas, na medida em que o local físico por onde passávamos todo dia, as escadas, foi alterado. Não é possível, portanto, ignorar essa alteração, ela também trata de temas tabus, coloca em questão uma série de valores 39 estruturantes na nossa sociedade. No caso desta obra, isso gerou um acontecimento convivial específico, não meu mas que chamou muito a minha atenção, e alterou a forma com que interagi com a obra: foi feito um borrão com giz de lousa, que encobria a grande vulva. Esse gesto de riscar e cobrir, é pequeno em movimento mas tem grandes implicações: isso aconteceu numa Faculdade de Artes, local onde convivem estudantes e professores de artes visuais, cênicas e música bem como servidores, portanto onde diversas expressões artísticas são estudadas e realizadas, onde o nu feminino não é uma novidade, e isso gera a expectativa de que a interação com a situação se dê minimamente num âmbito profissional, onde trata-se de uma experiência de trabalho produzido por uma estudante. Aconteceu o oposto; o convívio deixou vestígios na obra e na situação, por sua vez modificando-as e modificando a leitura se faz delas, introduzindo-se no corpo poético 27. Eu não vi este evento enquanto acontecia, mas sim o seu vestígio. Como me deparei com a obra por vários dias seguidos pois fazia parte do meu trajeto rotineiro, oportunamente convivi com ela antes, durante e depois da intervenção deste espectador desconhecido. Digo oportunamente, porque pude notar como a minha poiesis enquanto espectadora, e minha interação na situação foram diferentes em cada um destes dias, assim como minhas expectativas sobre ela foram constantemente quebradas; em cada um dos encontros o acontecimento se deu explicitamente de forma distinta. Estes convívios me afetaram de forma intensa, tanto a nível individual quanto na coletividade daquele espaço a qual faço parte, quando nela me localizo numa posição muito parecida com a da artista, pois ambas somos estudantes na instituição e do mesmo curso, artistas plásticas, mulheres, partilhando uma série de semelhanças nas zonas de interesse e materiais territoriais que circundam nossas produções artísticas, fazemos parte de um mesmo coletivo de artistas, o mulheres que admiro muito, e nos conhecemos a nível pessoal. Então a interferência na obra dela foi vivenciada quase como um ataque pessoal a mim mesma. Esse caso mostra como a poiesis é atravessada por fatores territoriais, e como o corpo poético, objeto poético, é construído com e sobre estes fatores. Me refiro à poiesis tanto de forma geral quanto me atentando às poiesis específicas do espectador desconhecido, da artista Julia Szabó, e da minha enquanto espectadora. 27 Em Dubatti, o corpo poético é densidade da poiesis teatral, do acontecimento, ente poético. Ele abrange poiesis e signo, e divide-se em: Corpo pré-semiótico, Corpo semiótico I - signo de si, Corpo semiótico II - signo do outro em si (universo referencial) e Corpo semiótico III - semióse ilimitada (signo do signo). DUBATTI, 2016, p 55. 40 No caso do espectador desconhecido, temos um acontecimento que deixou vestígios, o borrão de giz como um corpo de censura, um objeto escondendo outro corpo-objeto, resultado da ação de alguém que foi profundamente tocado pelo acontecimento; caso contrário o gesto da artista não teria despertado esse segundo gesto, do espectador. Ao reagir e ser afetado pela situação, por mais que de maneira violenta28, esse espectador revela o sucesso da obra em provocar o convívio. Ao tentar interromper esse processo, o acontecimento, por temor às potências mobilizadoras da situação, este espectador acaba adicionando a ela um novo elemento, sua poiesis. Por isso, apesar de ter me incomodado profundamente com este gesto, considerei que ele sublinha as qualidades da situação e da intenção provocativa da artista, acabando por alimentar as potências que intencionava censurar. Quando falo em aspectos territoriais falo também em valores socioculturais com raízes político-econômicas. A que dizem respeito esses valores, abalados pela visão pública de uma mulher nua de expressão desafiadora? De onde vem esse desconforto? A começar pelo tratamento dado ao nu feminino nas práticas artísticas historicamente, a arte que tem a Europa colonial como seu primo expoente, Luciana Loponte em seu artigo “Sexualidades, artes visuais e poder: pedagogias visuais do feminino” escreve: John Boeger (1999), por exemplo, argumenta o quanto a representação das mulheres na arte ocidental solidifica uma imagem feminina de passividade, de submissão a um olhar masculino, tanto do artista quanto do espectador preferencial – “os homens atuam e as mulheres aparecem”. Para ele, o protagonista principal dessas obras, um suposto espectador masculino para o qual a obra é endereçada (tanto como espectador como possível comprador), nunca é pintado. Assim, os nus femininos nessa realidade tradicionalmente são uma representação do desejo masculino e branco. Exibir um corpo feminino fora dos padrões de beleza, que não trata desse desejo, retratado com expressões faciais e corporais desafiadoras, é uma quebra de paradigmas sociais, pois pessoas que tem corpos semelhantes a esse não são encorajadas a apresentar esse tipo de postura, muito menos quando nuas. O corpo retratado na obra de Szabó é imediatamente comparável com o “corpo ideal de mulher” e com a “atitude ideal de mulher”, e a eles se opõe. Colocar sobre o desenho de um corpo expectativas sociais, as mesmas que são aplicadas a corpos reais, é sintomático de como a representação de uma mulher está vinculada ao conceito de mulher. Pois se uma mulher é representada fora dos 28 Aqui considero violência como descrita por Foucault, enquanto um momento derivado de disputas de poder. (FOUCAULT, 2014 ) 41 padrões de feminilidade, isso é uma abertura para reconhecer que existem pessoas-mulheres fora dos padrões de feminilidade: Com efeito, a lei produz e depois oculta a noção de “sujeito perante a lei”, de modo a invocar essa formação discursiva como premissa básica natural que legitima, subsequentemente, a própria hegemonia reguladora da lei. Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem e na política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder...BUTLER, 2017, p. 20. Assim, outro sujeito é produzido desviando da conformidade com as estruturas de poder. Essas estruturas produzem seus sujeitos por meio da invisibilização de existências fora dos padrões estabelecidos. Quando alguma dessas existências é referenciada em um lugar público e visível, difunde-se a ideia de que elas não necessariamente precisam ser negadas, não são erradas. Por outro lado, censurar essas referências visuais é retomar a ideia de negação. Essa negação é uma das formas de perpetuar o sexismo. Tal como outras formas de opressão de grupo, o sexismo é perpetuado por estruturas sociais e institucionais; por indivíduos que dominam, exploram ou oprimem; e pelas próprias vítimas, educadas socialmente para agir em cumplicidade com o status quo. A ideologia supremacista masculina encoraja a mulher a não enxergar nenhum valor em si mesma (...) HOOKS, 2019, p. 79. Todos esses aspectos são utilizados pela artista como matéria da sua poiesis, principalmente o confronto com o sexismo e com as políticas representacionais. Ela constrói a situação de uma maneira que o espectador, ao se encontrar com a obra, é colocado também em confronto com esses aspectos, e a partir disso o espectador produz sua poiesis e concretiza o acontecimento convivial. Tudo se transforma em poiesis, mas nem tudo se transforma em signo, por essa razão as inúmeras afetações poieticas que essa obra teve sobre seus múltiplos espectadores não devem ser reduzidas ao signo produzido por um deles, que não aceitou o potencial de liberdade do gesto artístico de Julia Szabó. Em relação à minha poiesis espectatorial, ela certamente se estende desde aquele momento, atravessa todo o processo desta da pesquisa, influência na minha busca por referências bibliográficas que me permitam traçar conexões no nível da teoria, e se materializa nestas reflexões que aqui escrevo. Não só em relação aos acontecimentos vivenciados na situação construída por Julia Szabó, mas também com as obras de Rosana Paulino e Erika Verzutti. O convívio com as três certamente me influencia muito tanto nas minhas práticas artísticas quanto nas minhas práticas teóricas, afetando até hoje como me comporto, e o que faço, enquanto artista, escritora e pesquisadora. 42 3 PESQUISADORA ARTISTA 3.1 A PRÁTICA ARTÍSTICA COMO PESQUISA A Filosofia do teatro visa promover essa renovação da teatrologia e das ciências da arte. Desde sua origem ela enfatizou o papel do artista como produtor de saberes, como pensador e intelectual específico e insubstituível na geração de um pensamento único. O artista, na práxis, para a práxis e sobre a práxis, produz pensamento continuamente, de várias maneiras, segundo as poéticas, isto é, segundo as formas de trabalho, os procedimentos estruturais e a concepção de teatro. DUBATTI, 2016, p. 94. Como artista que produz pensamento e conhecimento sobre arte, descrevo neste capítulo a prática artística que desenvolvi como pesquisa, assim como o desenvolvimento da poética e da poiesis, nas Artes Plástico-Visuais, que dialoga com a atividade de espectação. Ambas tratam do desenvolvimento de duas atividades essenciais para que se haja convívio, a poiesis plástica-produtiva e a poiesis espectatorial, e assim pude perceber por dois ângulos os fatores que viabilizam ou restringem o convívio nessas práticas artísticas observadas cujas temáticas abordadas convergem entre si. Trabalhar com a dimensão relacional na minha própria prática artística, no momento da idealização e realização dos trabalhos, sabendo que este é um processo cujo complemento está no momento em que a atividade de espectação entra em cena, concretizando o acontecimento convivial, tornou necessário um olhar paciente. Tratar a prática artística como experiência, na qual construir uma situação fértil que possibilitasse inúmeras formas de acontecimento, por meio de uma poiesis que partisse dos materiais territoriais propostos, era o objetivo. Isso não significa que, caso construísse uma situação sem essas características, esse materia