UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” - UNESP INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM MÚSICA - MESTRADO Campus de São Paulo WALTER WILLIAMS ALBRECHET CHAMUN A CONSTRUÇÃO DA PERFORMANCE VOCAL EM PORTUGUÊS BRASILEIRO EM TRÊS MODELOS: LÍRICO, CÂMARA E BELTING: ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS São Paulo 2017 WALTER WILLIAMS ALBRECHET CHAMUN A CONSTRUÇÃO DA PERFORMANCE VOCAL EM PORTUGUÊS BRASILEIRO EM TRÊS MODELOS: LÍRICO, CÂMARA E BELTING: ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS. Dissertação apresentada ao programa de Pós- graduação em Música do Instituto de Artes – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Música. Prof. Dr. Ângelo José Fernandes Orientador Profa. Dra. Marina Padovani Co-orientadora Prof. Dr. Luciano Rodrigues Neves Co-orientador São Paulo 2017 WALTER WILLIAMS ALBRECHET CHAMUN A CONSTRUÇÃO DA PERFORMANCE VOCAL EM PORTUGUÊS BRASILEIRO EM TRÊS MODELOS: LÍRICO, CÂMARA E BELTING: ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS. Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação- Mestrado em Música, do Departamento de Música da universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”-UNESP, sob a orientação do Prof. Dr. Ângelo Fernandes, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Música. Aprovado em: São Paulo 28 de julho de 2017. BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Ângelo Fernandes Universidade Estadual de Campinas - Unicamp ___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Adriana Giarola Kayama Universidade Estadual de Campinas - Unicamp ___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Josani Keunecke Pimenta Universidade Federal de Uberlândia “Dedico este trabalho à memória da Profa. Dra. Martha Herr, cuja vida, trabalhos, ensino e pesquisa da performance da música brasileira foram de inspiração para uma grande geração de cantores e professores de canto do Brasil. A você querida professora, meu muito obrigado.” AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeço a Deus que tem me dado motivação forças e saúde, para ir em busca de meus alvos, minhas ambições, tornando assim, viável as minhas pesquisas e mantendo a chama acessa em meu coração para descobrir, pesquisar e estudar todos os dias que me são possíveis, esta matéria tão apaixonante e árdua que é a voz humana, em uma de suas ramificações mais sutis que é o canto. Em segundo lugar agradeço a toda a minha família, minha mãe, meus irmãos meu filho, Fenando Chamun e meus amigos, que me apoiaram em minha trajetória por todos esses anos, cada palavra de incentivo e apoio, me dando forças para seguir em frente mesmo quando já não tinha mais ideias e o caminho não parecia tão certo. Agradeço também de forma especial a Dra. Martha Herr, que me orientou vocalmente por tantos anos e um dia me ajudou a traçar melhor as linhas do meu futuro; “Martha, tenho muito orgulho de ter sido seu aluno, e para sempre vou procurar lembrar de todos os conselhos e ensinos que você me passou”. Quero agradecer em especial, ao professor Dr. Ângelo Fernandes, que se propôs a dar seguimento a orientação de minha pesquisa, uma pessoa que deixou de ser apenas um orientador para se tonar um amigo, uma alma acolhedora. Um mestre que tem se tornado cada dia uma fonte de inspiração e alegria, uma mola propulsora que me convida sempre a desafiar meus limites. Quero agradecer a Dra. Marina Padovani, que por sua generosidade e amizade tem me orientado em minhas pesquisas e me ensinado desde a nossa relação de professor e aluno na FMU, minha supervisora de clínica fonoaudiológica, e até antes, quando no CEV, fazendo o FIV pude pela primeira vez ser seu aluno, alguém que se tornou uma inspiração e motivação constantes para minhas pesquisas, e que com tanta presteza se dispôs a me ajudar na co- orientação de minhas pesquisas ajudando nos raciocínios e análise das espectrografias. Quero agradecer também ao Dr Luciano Neves que por sua generosidade permitiu nossa pesquisa ficar ainda mais consistente com as imagens de laringe, um profissional e amigo querido, a quem encaminho meus alunos e sob os cuidados de quem deixo minha própria voz. Quero agradecer ao Silas Aquino, que tem tornado minha vida mais alegre a cada dia, e que nos momentos em que tive medo de seguir, me deu confiança e me empurrou com sua forma carinhosa e risonha de ser. Quero agradecer muito especialmente a cantora Cintia Cunha, que se dispôs a nos ajudar e ser voluntária em nossa pesquisa. Uma amiga fiel, uma pessoa que passou muito da definição de amiga, uma irmã. Quero agradecer ao Daniel Carvalho em especial pelo carinho e todo trabalho que teve fazendo os arranjos para o grupo instrumental, as horas que dispendeu corrigindo cada música e abrilhantando meu recital com tanto amor e dedicação, muito obrigado. Quero agradecer a pessoas especiais que fazem parte da minha vida e me impulsionaram a chegar aqui desde o início, como Silas Silva, Marineyde Daddio, Thais Sato e todos os meus coristas do estúdio encanto que estiveram torcendo por minha vitória desde sempre. Agradeço também a todos os meus alunos, que sempre foram a força motriz para minhas pesquisas e que por eles e para eles eu cheguei até aqui, e em especial a Isis Cunha que me ajudou com o recital de formatura nos agraciando com sua voz. Agradeço em especial minha amiga Cristine Guse, que me ajudou a dar os primeiros passos na direção desta pesquisa. Agradeço ao Marcelo Conti, que me ajudou com as traduções e revisões de tradução dos originais em inglês e ainda ao Alber Luiz do Nascimento que me ajudou com a formatação final deste trabalho. Agradeço também ao Diego Krauz, que com sua arte e generosidade enriqueceu meu recital de formatura. Agradeço a UNESP, na pessoa de sua Coordenadora de Pós-graduação Dra. Margarete Arroyo e todos os funcionários do setor que sempre foram pessoas atenciosas e prontas a ajudar em nossas necessidades acadêmicas. Bem como a todos os professores da casa com quem pude aprender mais e enriquecer minhas pesquisas. A todos o meu muito obrigado. “A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ninguém ainda pensou sobre aquilo que todo mundo vê. (Arthur Schopenhauer)” RESUMO Este trabalho visa a construção de um protocolo pedagógico que ofereça estratégias para auxiliar cantores na transição entre os gêneros lírico, música de câmara brasileira e belting em português, além de apresentar um modelo de condicionamento pedagógico vocal baseado em conceitos de fisiologia da voz e de aproveitamento máximo da musculatura laríngea, emprestados da ciência da fisioterapia, uma vez que na área de voz ainda não há muitos trabalhos que norteiem quantidade e qualidade vocal relativos aos limites físicos de uso da musculatura envolvida no processo de cantar em qualquer que seja o gênero. Objetivos específicos: 1. Descrever cada gênero em seus conceitos estilísticos; 2. Construir e fundamentar o protocolo de estratégias de transição entre os gêneros; 3. Testar a aplicabilidade do protocolo com um sujeito. Com os resultados obtidos pelas avaliações de laringe e dados espectrográficos, notou-se uma melhora da performance da cantora analisada em todos os gêneros abordados, sendo verificados aumento de energia de espectro, maior regularidade de vibrato e um auto relato da cantora de mais facilidade de emissão em todos os gêneros. O trabalho possibilitou uma reflexão sobre as dificuldades dos cantores em suas praxis diárias no mercado de trabalho, trouxe novos dados para os professores referentes ao direcionamento das suas prática e construção pedagógica bem como avaliações qualitativa e quantitativa de exercícios vocais e sua aplicabilidade. Palavras-chave: canto, pedagogia vocal, performance, transição de gêneros vocais, betting, lírico, música de câmara brasileira. ABSTRACT This work seeks to develop a pedagogical protocol with strategies that try to help singers transition across genres, namely lyrical, Brazilian chamber music and belting sung in Portuguese, besides offering a model for pedagogical vocal conditioning based on concepts of voice physiology and the best use of the laryngeal musculature, borrowed from the physical therapy science, since there are not enough studies within the voice field to scaffold vocal quantity and quality as to the physical limits of the muscles involved in singing whichever the genre. Specific aims: 1. stylistically describing the genres in the study; 2. designing and theoretically supporting the genre transition protocol; 3. trying out the protocol with a subject. The results from larynx analyses and spectrographic data revealed an improvement in the studied singer’s performance in all genres, with an increase in the energy of spectrum, higher vibrato evenness and the singer’s account of ease emission. The study cast a reflection on the difficulties singers find in their professional daily praxis, brought voice teachers new data regarding their practice and pedagogical decisions as well as quantitative and qualitative assessments of vocal exercises and their applicability. Key words: singing, vocal pedagogy, performance, vocal genre transition, belting, brazilian chamber music. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01 Direcionamento da coluna de ar............................................................. 41 Figura 02 Partes do trato vocal............................................................................... 41 Figura 03 Passagem do ar pelas pregas vocais....................................................... 43 Figura 04 Passagem de ar pelo trato vocal.............................................................. 44 Figura 05 Visão frontal da laringe.......................................................................... 50 Figura 06 Corte Lateral visão inferior..................................................................... 50 Figura 07 Músculos extrínsecos da laringe............................................................. 51 Figura 08 Músculos extrínsecos da laringe............................................................. 52 Figura 09 Músculo Cricoaritenóideo lateral........................................................... 53 Figura 10 Músculo Aritenóideo............................................................................. 53 Figura 11 Músculo Cricoaritenoídeo posterior....................................................... 54 Figura 12 Músculo Cricoaritenoídeo posterior....................................................... 55 Esquema 01 Identificação da problemática e elaboração de protocolos de estudo...... 74 Figura 13 Alongamentos e aquecimentos corporais............................................... 84 Figura 14 Vocalizes para aquecimento................................................................... 87 Figura 15 Vocalizes de aquecimento TVSO........................................................... 88 Figura 16 Ressonâncias e suas localizações proprioceptivas.................................. 91 Figura 17 Localização de propriocepção de ressonância do [M] e do [m].............. 93 Figura 18 Vocalizes para aquisição de ressonâncias altas por meio de sensações nasais...................................................................................................... 94 Figura 19 Localização de propriocepção de ressonância de [n].............................. 95 Figura 20 Localização de propriocepção de ressonância de [n].............................. 96 Figura 21 Vocalizes para aquisição de sensações proprioceptivas de ŋ.................. 96 Figura 22 Quadro de localização de pontos articulatórios do NH (ɲ) e suas sensações proprioceptivas de tremor vibratório...................................... 97 Figura 23 Vocalizes para aquisição de sensações proprioceptivas de ressonância alta por intermédio de fonemas nasais.................................................... 98 Figura 24 Vocalizes para aquisição de sons cobertos.............................................. 99 Figura 25 Vocalizes para aquisição de boa articulação........................................... 100 Figura 26 Vocalizes para aquisição e transição de registro grave e médio.............. 101 Figura 27 Vocalizes para transição de registros peito/mix/cabeça.......................... 103 Espectrograma 01 Avaliação espectrográfica no gênero lírico – pré.................................... 111 Espectrograma 02 Avaliação espectrográfica no gênero lírico – pós................................... 111 Espectrograma 03 Avaliação espectrográfica da vogal A no gênero lírico – pré.................. 112 Espectrograma 04 Avaliação espectrográfica da vogal A no gênero lírico – pós.................. 112 Espectrograma 05 Avaliação espectrográfica no gênero câmara – pré................................. 113 Espectrograma 06 Avaliação espectrográfica no gênero câmara – pós................................ 113 Espectrograma 07 Avaliação espectrográfica da vogal A no gênero câmara – pré............... 114 Espectrograma 08 Avaliação espectrográfica da vogal A no gênero câmara – pós............... 114 Espectrograma 09 Avaliação espectrográfica no gênero belting – pré................................. 115 Espectrograma 10 Avaliação espectrográfica no gênero belting – pós................................. 115 Espectrograma 11 Avaliação espectrográfica da vogal A no gênero belting – pré................ 116 Espectrograma 12 Avaliação espectrográfica da vogal A no gênero belting – pós................. 116 Quadro 01 Protocolo aplicado em aula – Registro dia 01............................................... 134 Quadro 02 Protocolo aplicado em aula – Registro dia 02............................................... 135 Quadro 03 Protocolo aplicado em aula – Registro dia 03.............................................. 136 Quadro 04 Protocolo aplicado em aula – Registro dia 04............................................... 137 Quadro 05 Protocolo aplicado em aula – Registro dia 05............................................... 139 Quadro 06 Protocolo aplicado em aula – Registro dia 06............................................... 140 Quadro 07 Protocolo aplicado em aula – Registro dia 07............................................... 141 Quadro 08 Protocolo aplicado em aula – Registro dia 08............................................... 142 Figura 28 Partitura Ária – Trovas (ESTRADA, O. D. 1901)...................................... 144 Figura 29 Partitura Canção – Acalanto da Rosa (SANTORO, C. 1958)...................... 147 Figura 30 Partitura Canção – This Is The Moment (BRICUSE, L. & WILDHORN, F. 1990)....................................................................................................... 149 Figura 31 Partitura Canção – Someone Like You (BRICUSE, L. & WILDHORN, F. 1990)............................................................................................................ 154 Figura 32 Partitura Ária – A Moça – Ópera “O Menino e a Liberdade” (COLI, J. & MIRANDA, R. 2013) .................................................................................. 160 Figura 33 Partitura Ária – O Rapaz – Ópera “O Menino e a Liberdade” (COLI, J. & MIRANDA, R. 2013).................................................................................. 166 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Programação semanal das aulas de canto/ conteúdo.............................................. 103 Tabela 2 Resultados e avalição de achados laringológicos................................................... 110 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO __________________________________________________________ 16 2 REVISÃO DA LITERATURA ______________________________________________ 25 2.1 QUESTÕES ESTÉTICAS DA SONORIDADE LÍRICA E DO BELTING _____ 25 2.1.1 Considerações iniciais: o gênero lírico, bases e conceitos para performance ____ 25 2.1.1.1 Músculos Adutores (fecham a prega vocal) __________________________ 52 2.1.1.2 Músculos Tensor (fecham a prega vocal) ____________________________ 54 2.1.1.3 Músculos Abdutor (abre as pregas vocais) ___________________________ 54 2.1.2 A formação das bases vocais na canção de câmara brasileira: uma reflexão ____ 55 2.1.3 A formação das bases vocais do belting brasileiro traduzido do original americano ou composição CCM ____________________________________________________ 63 2.1.3.1 História e relações sócios econômicas na formação do gênero ____________ 65 2.1.3.2 Exigências estilísticas e pedagógicas _______________________________ 66 2.1.3.3 Belting no Brasil: adaptando os conceitos ____________________________ 69 3 MÉTODOS _____________________________________________________________ 72 3.1 A CONSTRUÇÃO DO PROTOCOLO __________________________________ 72 3.1.1 Bases metodológicas para a construção do protocolo ______________________ 72 3.1.2 Estabelecimento de matriz de controle da problemática. ____________________ 74 3.2 O PROTOCOLO E SUAE SUA EXECUÇÃO PASSO A PASSO 1: O ESTABELECIMENTO DOS GÊNEROS ___________________________________ 81 3.2.1 Aquecimento _____________________________________________________ 82 3.2.1.1 Sobre o aquecimento ____________________________________________ 82 3.2.1.2 Descrição dos exercícios _________________________________________ 84 3.2.2 Corpo da aula no total de 20 minutos ___________________________________ 88 3.2.2.1 Trabalho de aquisição de propriocepção de ressonâncias, tremor vibratório de mucos com a utilização da bocca chiusa em modelos: [m], [n], [ŋ], ou mesmo combinações de [ɲ] com vogais__________________________________________ 89 3.2.2.2 Uso do fonema bilabial [m]: ______________________________________ 92 3.2.2.3 Uso do fonema língua-alveolar [n] _________________________________ 94 3.2.2.4 Uso do fonema [ŋ]: _____________________________________________ 95 3.2.2.5 Uso do fonema [ɲ]: _____________________________________________ 97 3.2.3 Aquisição das sonoridades próprias de cada gênero _______________________ 98 3.2.3.1 Lírico ________________________________________________________ 98 3.2.3.2 Canção de Câmara: ____________________________________________ 100 3.2.3.3 Belting: _____________________________________________________ 101 3.3 O PROTOCOLO E SUA EXECUÇÃO PASSO A PASSO II: AQUISIÇÃO E ESTABELECIMENTO DAS TRANSIÇÕES DOS GÊNEROS ________________ 102 3.4 A APLICABILIDADE DO PROTOCOLO PROPOSTO __________________ 105 3.4.1 Método de gravação e descrição de exames pré e pós aplicação do protocolo __ 105 3.4.2 Achados laringológicos e espectrográficos da cantora em situações de pré e pós 107 3.4.3 Relato da cantora que se submeteu ao Protocolo _________________________ 117 4 RESULTADOS E DISCUSÕES ___________________________________________ 118 5 CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS ______________________________ 122 6 SUGESTÕES PARA PESQUISAS FUTURAS _______________________________ 123 REFERÊNCIAS ___________________________________________________ 124 APÊNDICE A – AULAS PREVISTAS PARA TRANSIÇÃO DOS GÊNEROS DE LÍRICOS, MÚSICA DE CÂMARA E BELTING. ________________________ 133 ANEXO A – PARTITURAS DAS CANÇÕES UTILIZADAS NO ESTUDO. __ 143 16 1 INTRODUÇÃO Minhas experiências e vivências profissionais foram decisivas nas razões mais intrínsecas para a realização desta pesquisa que nasceu de uma busca constante de aperfeiçoamento de minha própria voz e dos inúmeros anos nos quais tenho tido a oportunidade de trabalhar com cantores profissionais e amadores como professor de canto, pianista co- repetidor e maestro de coro. A busca que percebo em meu estúdio particular de aulas de canto, bem como nos corais que rejo, tem sido nos últimos anos de uma crescente necessidade de transição de gêneros vocais, de lírico para Contemporary Comercial Music (CCM1) ou mesmo Música Popular Brasileira (MPB), que não faz parte do nosso campo de trabalho e pesquisa, mas, que termina por esbarrar em nossa área, por que são os mesmos alunos que me procuram para ter aulas de canto lírico. Desde que me transferi de Recife para São Paulo, tenho participado como cantor profissional, seja como solista ou como corista do Coro da Osesp, procurando me atualizar e nunca parando de estudar canto, pela própria razão das minhas inquietações vocais na busca de sons mais agradáveis e em face a qualquer problema, sempre me questionando como e onde poderia arranjar todas as respostas para minhas dúvidas e dificuldades vocais. Cantei de Bach até Menotti e Bernstein, passando por Mozart, Schubert e muitos dos consagrados compositores românticos. Fui aluno de renomados professores como Edilson Costa, Leila Farah, Luís Tenaglia, até chegar à querida Martha Herr que, além de orientadora inicial nesse projeto, sempre foi grande incentivadora das minhas buscas e estudos tanto em performance quanto em questões mais teórico pedagógicas. Serei eternamente grato a ela. Quero acrescentar que durante este período de pesquisa de mestrado, continuei meus estudos em performance sob a orientação do Dr. Ricardo Balestero em canto erudito nos gêneros ópera e canção além de participar de cursos de aperfeiçoamento dos quais gostaria de destacar o que participei recentemente, em janeiro do ano de 2017 de certificação para professores e cantores de belting, com Jeane Lovetri, nos Módulos um e dois (2018). Desta forma, sinto-me na obrigação como professor, pesquisador e cantor que sou, de mergulhar mais a fundo em todas as questões aqui expostas. 1 Doravante, utilizaremos sempre a sigla CCM para designar a expressão Contemporary Comercial Music – Música Contemporânea Comercial 17 Com relação à estética do som de maneira geral, seja em voz lírica ou em CCM, no âmbito deste trabalho, baseados em Ware (1998), utilizaremos a expressão em negrito, como a filosofia que estuda o belo na sonoridade vocal. O alvo final é estabelecer um critério no qual as justificativas de escolha artística possam ser avaliadas e criticadas de forma equilibrada e coerente. E, emprestando esse conceito para o canto, o mesmo critério se aplica ao gesto vocal que está normalmente associado a um estilo ou forma musical específico (WARE, 1998, p.4- 5). O ideal de beleza, levando-se em consideração que este conceito do belo pode ser amplo e diferenciado em cada indivíduo, no entanto, não parece levar em consideração a inclusão ocasional do “feio” em todas as formas de arte como temos visto nos dias de hoje. Uma vez que a expressão humana se traduz em uma ampla gama de expressões artísticas da mais elevada a mais básica das emoções, nem tudo que ouviremos pode caber dentro do conceito do belo. Entretanto, como parâmetro básico, podemos dizer que a estética ou escolha estilística do cantor é o estudo da relação do canto com a sensação e intelecto humano. (APEL 1969, p.14 apud WARE, pág. 4) Estética (leia-se aqui como ideal de beleza)2 é genericamente definida como a filosofia ou o estudo “do belo”. Na música, o objetivo final é estabelecer critérios aplicáveis ao canto artístico, o qual é geral e intimamente associado a um estilo ou gostos musicais particulares. O que se deseja ouvir na voz de um cantor através da sonoridade e da comunicação está indissociavelmente ligado ao Estilo, um modo característico e uma forma de expressão. O Estilo musical e de performance vocal ajuda a explicar porque o ouvinte espera um som nasalizado e um sotaque caipira sulista [hill billy] ao ouvir certos tipos de música country. A utilização de um blues negro ou de um Estilo de canto operístico na performance de uma música country muito certamente desagradará um aficionado por country que, muito provavelmente, acharia qualquer desvio vocal ou estilístico completamente inaceitável (WARE, 1998, p. 3-4)3. Mas, o que de maneira mais abrangente seria cantar? Já que vamos falar sobre voz e suas múltiplas perspectivas, uma definição em primeiro plano parece razoável. 2 Nota do pesquisador 3 Aesthetics is generally defined as the philosophy or study of ‘’ the beautiful”. In the music, the ultimate goal is to establish criteria apply to the singing gesture, which is normally intimately associated with a particular musical Style or taste. What one wants to hear in a singer’s voice by way of tone and communication is inextricably connected to Style, a characteristic manner and mode of expression. Musical and vocal performance Style helps explain why the listener expect to hear a nasal Twang and Southern hillbilly dialect when hearing certain types of country music. The substitution of a black blues or operatic singing Style in the performance of a country song will most certainly not satisfy the country aficionado, who would likely find any vocal or stylistic deviation totally unacceptable. 18 Recorramos, pois, a uma definição que entendemos responder bem a essa questão. Segundo Appelman (1975): Psicofisicamente, o canto artístico e a fala são o (sempre dinâmico) ato de coordenar simultaneamente as sensações de respiração (o ato de respirar), fonação (o ato de emitir um som), ressonância (o ato de formar a posição de uma vogal específica) e articulação (o ato de se comunicar através da emissão de ambas vogal e consoante), resultando em uma enunciação disciplinada [e expressiva]4 (APPELMAN, 1975, p. 9). O que de maneira geral o público gostaria de ouvir em um cantor e na sua voz está intrinsicamente ligado à característica, maneira e modo deste cantor traduzir sua arte e seus sentimentos ou viés do que pretende comunicar. O estilo vocal ou modo do cantor se expressar pode explicar porque o público, ao ouvir uma música do sul dos Estados Unidos, espera ouvir na voz do cantor um conteúdo de nasalidade característico do Twang, um dos sub estilos do CCM. Caso esse cantor opte por uma mudança no timbre vocal, causará estranheza e não aceitação por parte do ouvinte que tem na memória um padrão vocal esperado para aquele estilo de canção. A substituição do Twang, por uma sonoridade operística ou própria do Black blues irá desagradar, por certo, o aficionado do estilo country (WARE, 1998, p 4). Tendo em vista a pluralidade de estilos necessários no mercado de trabalho, e porque as necessidades não são as mesmas para todos os alunos, e os estilos a serem ensinados pelos professores são diversos, precisamos refletir, fundamentar e aplicar estes múltiplos conceitos na construção do protocolo em pesquisa. Devemos pensar que essa reflexão fundamenta a inclusão das diversas matizes de sonoridade vocal admitida em todos os gêneros. O que para algumas plateias, poderia ser considerado agressivo, para outros poderia soar. Refletir sobre os matizes de som que um aluno pode ter, e pesquisar pedagogicamente as estratégias para aquisição deles, faz parte desta pesquisa. É ainda importante ressaltar que o gesto vocal5 tem modificações advindas das questões estilísticas próprias dos vários períodos históricos. Em sua narrativa descritiva de como se procedeu paulatinamente o desenvolvimento vocal e suas características mais intrínsecas, Miller afirma que: [...] Desde de o nascimento da ópera e do surgimento do cantor solista, no início do século 17, cada década seguinte trouxe um aumento das demandas 4 Psychophysically, artful singing and speech is the dynamic (ever changing) act of coordinating instantaneously sensations of respiration (the will to breath), phonation (the will to utter a sound), resonation (the will to form particular vowel position), and articulation (the will to communicate by forming both vowel and consonant) into a disciplined [and expressive] utterance. 5 Gesto vocal: métodos e dinâmicas práticas para obtenção de uma curva melódica ou timbre ou expressão vocal ou uma intensão comunicativo. Meio ou maneira pela qual se define uma emissão vocal. (Grando, 2015) 19 técnicas sobre o cantor solista. Isto permanece um fato também em nosso próprio tempo. [...] maiores espaços de apresentação e orquestras com maior volume de som tem contribuído para o aumento da exigência colocada no artista de canto, bem como o surgimento, do diretor de palco (que cada vez mais não é um musicista) e o regente da orquestra (que pode ter pouca experiência com a voz cantada profissional) como os membros mais importantes na equipe de performance. [...] Através da história, o aumento das exigências colocadas sobre o cantor solista tem mudado década após década (a escrita operística de 1840 a 1880 é um grande exemplo) O reconhecimento desse fato é pertinente a qualquer estudo do estado atual da arte do vocalize. [...] Décadas recentes não trouxeram qualquer atenuação em relação às exigências feitas ao cantor solista. A escrita vocal contemporânea frequentemente contém grandes extensões vocais e registros e sostenutos extremos, uma variedade de cores de voz, e saltos de intervalos disjuntos inacreditáveis, além dos objetivos estéticos dos vocalizes que têm sido constantemente alterados; eles continuam aumentando (MILLER, 1997, p.15- 17)6. Quando se pretende falar de propostas técnicas e estilísticas, como é o caso dessa pesquisa que se propõe a pesquisar e elaborar um protocolo de ações pedagógicas, devemos refletir sobre o que molda ou forma o conceito dos sons e como esses conceitos são influenciados pela sociedade e pela formação do gosto do cantor e do aluno de canto. Tanto no CCM quanto no lírico podemos observar em um grau maior ou menor a influência dos conteúdos sócio culturais modificando ou alterando padrões que seriam considerados básicos dentro das escolas tradicionais de canto. Segundo Ware (1998) em dias de pluralismo cultural como o que vivemos, diversidade ética e correntes políticas, falar em estética, especialmente em arte vocal pode suscitar discussões acirradas. Quase toda pessoa que tenha acesso a meios de transmissão de música como rádios, televisão, computador, tablets e celulares ouve toda sorte de música, sendo estes meios formadores naturais de opinião estética. Este mesmo autor ainda fala que a política de igualdade dos gêneros musicais e estilísticos tem gerado inúmeras controvérsias nos meios acadêmicos. 6 [...] Beginning with the birth of the opera and the emergence of the solo singer in the early seventeenth century, each subsequent decade has placed increased technical demands on the solo singer. This is true of our own era as well. […] Larger performance spaces and louder orchestral sound have contributed to the growing demands put on the singing artist, as has the emergence of the stage director (who increasingly is not a musician) and the orchestral conductor (who may have little experience with the professional singing voice) as the most important members of the performance team. […] Throughout history, the evolving demands on the solo singer have changed almost decade by decade. (The operatic writing from 1840 to 1880 is a prime example) Recognition of this is pertinent to any study of the current state of the art of vocalism. […] Recent decades have brought no abatement with regard to new demands placed on solo singer. Contemporary vocal writing often entails vast range extension, register and sostenuto extremes, a variety of vocal colorations, and disjunct intervallic leaps that go beyond history, the aesthetic goals of professional vocalism have constantly altered; they continue to expand. 20 O fato de que todos os gêneros estão em pé de igualdade parece ser norma, porém, o exercício do debate tem se mostrado frutífero e, com isso, queremos trazer à tona a questão que nem lírico e nem o teatro musical podem influenciar de forma mandatória um ou outro estilo. Por outro lado, temos um imperativo moral no que tange ao exercício do pensar, sobre o que cabe ou não na interpretação escolhida. Baseados em fatos historicamente comprovados, continuar nossos debates sobre estes valores estilísticos parece ser a solução mais viável e coerente à nossa sede de pesquisa e estudos (WARE,1998). Resumindo, embora tenhamos divergências e predileções para este ou aquele jeito de cantar, se respeitarmos a origem do gênero e justificarmos nossas escolhas, haverá uma chance menor de termos problemas nas nossas escolhas estilísticas e de gesto vocal. Ware (1998) defende que, tendo em vista as influências globais de meios de comunicação e diversidade de estilos, temos um amálgama de estilos e gostos na formação das escolhas timbrísticas e formas de cantar no século XXI. Segundo o autor, as influências socioculturais podem atuar na formação desse gosto artístico. Essas são escolhas que afetam diretamente o repertório de música vocal e o estilo que os cantores se utilizarão na sua performance (WARE, 1998). Tudo isso exige do pedagogo uma abordagem mais ampla e diversificada no ensino de canto. No processo de pesquisa e elaboração destas ações e estratégias pedagógicas vistas nesta pesquisa, para a transição dos gêneros vocais abordados, no que concerne ao quesito saúde vocal, precisamos analisar o modelo de fala do executante (cantor) para que este não leve para o canto possíveis ajustes laríngeos tensos ou que provoquem desconforto na execução da canção. A anatomia articulatória humana é bem complexa, em grande parte porque usamos mais ou menos as mesmas passagens para alimentos, ar e som. Como resultado destas interações, língua, laringe, garganta, mandíbula e palatos estão interconectados com um ponto de conexão física e neurológicas comum a todos eles. Esse pequeno ponto de união entre todos eles se chama osso hioide, um dos três ossos no corpo humano que não estão conectados a outros ossos – um ponto suspenso, uma estrutura bastante operante, da laringe, a conexão para a raiz da língua e o local primário para os músculos que abrem a boca e baixam a mandíbula. Cantar bem em qualquer gênero requer domínios desta estrutura e depende da boa interação de todos estes complexos musculares. A natureza da nossa deglutição e fonação parece estar em sentidos opostos e conspirar contra uma boa fonação. E para cantar devemos aprender como manter as estruturas da fonação e deglutição em posições diferentes daquela que assumimos desde que nascemos. Segundo Melton: 21 A prática do bom canto, em qualquer gênero, requer um alto grau de independência entre todas essas estruturas articulatórias e infelizmente a natureza conspira contra nós, tornando tal objetivo difícil de ser alcançado. Desde o momento em que nascemos, nossos corpos se baseiam em ato- reflexo para elevar o palato e levantar a laringe cada vez que engolimos. Esta ação se torna habitual: o palato sobe, a laringe também se eleva. Mas dependendo do estilo de música que estivermos cantando, podemos precisar manter a laringe baixa enquanto o palato sobe (na ópera e na música clássica), ou o palato baixo, com a laringe alta (country e bluegrass). Como sabemos, hábitos são difíceis de mudar, o que é uma das razões para se necessitarem de tanto estudo e prática a fim de se tornar um excelente cantor. A compreensão dos hábitos reflexivos naturais do corpo pode facilitar um pouco esse trabalho7 (MELTON, 2014, p.39). Melton comenta sobre as várias preocupações dos cantores que fazem teatro musical, já que precisam falar, gritar, dançar, chorar e cantar. Como fonoaudiólogo, este pesquisador pode acrescentar que se os ajustes para a fala são tensos ou com a musculatura extrínseca de laringe muito acionada, esses ajustes podem ser levados para a voz cantada se o cantor não estiver consciente da sua forma de falar, em termos quantitativos e qualitativos. Para Melton: Do mesmo modo, cantores com som bonito em partes cantadas de um drama podem se tornar autoconscientes e desconfortáveis nas linhas faladas caso aquele aspecto de sua técnica não esteja seguro. De fato, é muitas vezes um pouco mais do que a forma usada em uma conversa normal, caso eles não tenham tido a oportunidade de fazer as conexões técnicas entre a fala e o canto no palco. Além disso, o aspecto físico de sua atuação é frequentemente limitado devido à falta de treinamento do movimento8 (MELTON, 2007, p. 14). Temos também que pensar a fala e suas características acústicas segundo Bahmanbiglu et al. (2016), em que os pesquisadores encontraram diferenças acústicas entre 7 Good singing, in any genre, requires a high degree of independence in all these articulatory structures. Unfortunately, nature conspires against us to make this difficult to accomplish. From the time we were born, our bodies have relied on a reflex reaction to elevate the palate and raise the larynx each time we swallow. This action becomes habitual: palate goes up, larynx also lifts. But depending on the style of music we are singing, we might need to keep the larynx down while the palate goes up (opera and classical), or palate down with the larynx up (country and bluegrass). As we all know, habits can be very hard to change, which is one of the reasons that it can take a lot of study and practice to become an excellent singer. Understanding your body’s natural reflexive habits can make some of this work a bit easier. 8 Likewise, singers who sound beautiful in sung parts of a drama may become self-conscious and uncomfortable on spoke lines because that aspect of their technique is not secure. Indeed, it is often little more than what they use in ordinary conversation if they have not had the opportunity to make the technical connections between speaking and singing on stage. In addition, the physicality of their acting is frequently limited by lack of movement training. 22 falantes bilíngues nas extrações de medidas acústicas, nas duas línguas, o que sugere que o simples fato de mudar a língua pode ocasionar perda ou ganho de medidas. Esse assunto nos interessa de perto pois cantar os musicais em português, árias de óperas em português pode, por si só, interferir na sonoridade pretendida para cada gênero em sua língua de origem. Esse assunto será explorado de forma mais detalhada ao longo deste trabalho. O objetivo central deste trabalho é a criação de um protocolo de transição para os gêneros lírico/câmara e teatro musical (CCM) que possa ser eficiente e saudável para se atingir cada um destes modelos, de forma a se alcançar um resultado artístico satisfatório, mantendo conforto vocal e adequação as características próprias de cada gênero abordado. Além do objetivo central, este trabalho tem como objetivos específicos: contribuir para o enriquecimento do acervo bibliográfico da pedagogia vocal voltada para a execução do repertório em língua nacional; e averiguar a eficácia e eficiência das estratégias através de um estudo de caso, com a cantora Cintia Cunha9, dando aplicabilidade ao protocolo desenvolvido. Esta dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro discorre sobre as características de cada gênero abordado e as diferenças entre eles. O segundo capítulo apresenta o protocolo proposto com as bases científicas utilizadas para cada estratégia escolhida. O terceiro e último capítulo descreve o estudo de caso realizado com a cantora Cintia Cunha , apontando os resultados obtidos nas execuções de cada estilo e que diferenças foram obtidas após a aplicação do protocolo com a cantora. Pretendemos com esta pesquisa investigar estratégias e exercícios vocais que ajudem o cantor a encontrar o caráter sonoro e interpretativo de três diferentes estilos de canto em português brasileiro, sendo dois de estética lírica – a ópera e a canção de câmara brasileira – e outro, adaptado da estética vocal americana – o teatro musical, utilizado nas peças de teatro na Broadway e traduzidas para o português. A partir da revisão bibliográfica em áreas correlatas e um estudo de caso com uma cantora, sujeito da pesquisa, o objetivo principal deste trabalho é propor um protocolo de condução pedagógica nas transições dos gêneros acima abordados. Este protocolo é baseado em conceitos advindos de estudos sobre práticas interpretativas, bem como conceitos de aproveitamento máximo da musculatura laríngea. Estes conceitos foram emprestados da área da fisioterapia, uma vez que na área de voz ainda não temos um número significativo de trabalhos que possam nortear quantidade e qualidade vocal 9 Aluna de canto deste pesquisador, tem aulas de canto lírico desde 2009, trabalha no mercado de canto lírico e atualmente como cantora Cross-over em casamentos. 23 no que tangem os limites físicos do uso da musculatura envolvida no processo do canto, em qualquer que seja o gênero. Colocaremos de forma breve os conceitos de cada estilo nesta introdução e nos deteremos em uma explicação mais detalhada de cada gênero nos capítulos que se seguem, tanto no que diz respeito a estilo quanto aos conceitos de anátomofisiologia na seguinte ordem de apresentação: a voz lírica na ópera, considerações sobre a voz na canção de câmara e a voz no teatro musical ou CCM. Ainda como forma de construção do protocolo, emprestando conhecimentos do estruturalismo e da Gestalt, pensamos que um protocolo com bases sólidas precisa ter a preocupação do estruturalismo e, ao mesmo tempo, contemplar uma flexibilidade que a teoria da Gestalt carrega nos seus alicerces intrínsecos, permitindo a transição dos gêneros vocais. O estruturalismo se encarregou de dar forma ao protocolo e a teoria da Gestalt deu definição ao passo a passo das aulas e suas bases pedagógicas. Neste ponto desta dissertação podemos questionar por que a pesquisa está sendo conduzida sobre o português brasileiro uma vez que os dois principais gêneros propostos pela pesquisa têm origens estrangeiras, a ópera na Europa e o CCM nos Estados Unidos. Também deve ser alvo de questionamentos a validade e utilidade desta pesquisa, uma vez que dados sobre os dois gêneros principais aqui já são alvo de outros pesquisadores. A pesquisa em foco se torna relevante porque a virtuosidade do cantor no século XXI é a versatilidade. Na vida profissional do cantor, o canto em português brasileiro está presente nesses modelos de sonoridade: em óperas brasileiras ou traduzidas10, em produções brasileiras de musicais11 e na construção de recitais de canções de câmera brasileiras. E nossa pesquisa está centrada na procura de estratégias que facilitem a transição em qualquer direção entre os gêneros lírico, câmara e belting. Como se pode verificar com o dia a dia de mercado, um mesmo cantor atua em óperas precisando utilizar a projeção de seu próprio instrumento, em musicais usando um tipo de emissão compatível com o uso do microfone e ainda deve saber utilizar aspectos mais intimistas no recital de canções de câmara. Sendo assim, o domínio de ajustes vocais que possam dar ao cantor segurança para a sua performance e possibilidade de trocas de estéticas são, na verdade, uma forma coerente para o cantor em geral e da mesma forma o performer brasileiro. Ele deverá utilizar conhecimentos que remetam ao canto lírico (ópera e canção de 10 Como na montagem da obra de Humperdinck, João e Maria, apresentada no Teatro Municipal em 2006 a qual foi apresentada traduzida para o português. 11 Nas produções brasileiras é de praxe a obra ser apresentada traduzida para o português. As principais produções brasileiras de Noviça Rebelde, Mama Mia, Rei Leão, O Fantasma da Ópera, Miss Saigon, etc., foram apresentadas na versão traduzida. 24 câmara) e ao CCM, e se utilizar de que permitam uma abordagem ampla, segura, saudável e eficaz em cada estética. Outro motivo pelo qual estamos focando a pesquisa no canto em português é o fato de que cantar na língua materna pode nos levar a dificuldades e facilidades para se afastar ou se aproximar do modelo de emissão próximo à fala (cotidiano). Não seria o cantar na língua materna uma linha tênue entre a emissão cantada e a falada? Poderiam alguns cantores apresentar dificuldades em executar uma música no idioma materno na interpretação lírica por associar restrita o idioma materno à emissão falada? Por outro lado, outros poderiam sentir dificuldade em utilizar a emissão falada no canto, pelo fato de que a canção se utilizaria de alturas (frequências) distantes da frequência da fala cotidiana? A elaboração deste protocolo pretende prover ao professor reflexões sobre suas práticas didáticas para promover uma transição de gêneros mais adequada e eficiente para o aluno. Acreditamos que o professor de canto, sendo conhecedor de múltiplos recursos pedagógicos, pode com mais desenvoltura tentar resolver as diversas dificuldades que cada aluno apresenta ao somar o canto em português dentro das diversas estéticas artísticas requeridas no século XXI. O professor também deve usar estratégias eficientes e eficazes para produzir aquilo que ele deseja que o aluno produza sonoramente; ser flexível a ponto de lidar com a exigência da versatilidade da vida profissional de seus alunos; saber conduzi-los com responsabilidade por meios seguros no que tange a saúde vocal; e ainda entender as características morfológicas e anatômicas particulares de cada aluno para fazer eventuais ajustes de técnica de acordo com as possibilidades de cada aluno. Esta dissertação que segue está dividida em introdução, três capítulos de desenvolvimento. O primeiro deles discorre sobre as características de cada gênero abordado e as diferenças entre eles. O segundo capítulo apresenta o protocolo proposto de forma detalhada com as bases cientificas utilizadas para cada estratégia escolhida. O terceiro e último capitulo descreve o estudo de caso realizado com a cantora Cintia Cunha, apontando os resultados obtidos nas execuções de do estilo e que diferenças foram obtidas após a aplicação do protocolo com a cantora. 25 2 REVISÃO DA LITERATURA 2.1 QUESTÕES ESTÉTICAS DA SONORIDADE LÍRICA E DO BELTING 2.1.1 Considerações iniciais: o gênero lírico, bases e conceitos para performance Há séculos o canto lírico tem despertado a admiração de muitos e gerado a realização de importantes estudos em seus diferentes segmentos – anatomia e fisiologia da voz, técnica vocal, práticas interpretativas, fonética e dicção de diferentes idiomas, acústica da voz, entre outros. O conhecimento sobre o desenvolvimento gradativo do gesto vocal desde a música medieval vem sido cada vez mais difundido. Sabemos que o cantor mudou sua abordagem e maneira de cantar ao longo dos séculos por diversas razões, dentre elas: a mudança da função da prática vocal nos diferentes segmentos (igreja, teatros, etc.); a transformação dos espaços acústicos nos quais se cantava tanto de forma solista quanto em coro, incluindo desde as pequenas salas até os grandes teatros construídos nos séculos XIX e XX; o crescimento da sonoridade instrumental e, por consequência orquestral, em função do aprimoramento das técnicas de construção de instrumentos que permitiram um aumento sonoro, além do crescimento da orquestra em números de participantes. As mudanças do gosto e da estética são diversas desde que se tem notícias da voz solo, com o surgimento da ópera no final do século XVI e princípio do XVII com Claudio Monteverdi (1567-1643). Richard Miller (1997) comenta sobre algumas estratégias utilizadas no início do bel canto com Orfeu de Monteverdi no que diz respeito à forma de se usar a voz, e apenas algumas décadas depois é que vemos mudanças significativas na maneira de cantar, e os problemas relativos a mais ou menos uso voz de cabeça, levando em consideração a questão do aumento significativo de volume, para se obter os efeitos desejados. Menos volume mais voz de cabeça e mais volume mais voz de peito, uma associação que fazemos hoje, embora esse conceito de registros tenha se desenvolvido mais com Manuel Garcia (1805-1906). Essa questão muito nos interessa, uma vez que para transições de gêneros vocais é necessário um trato vocal flexível e uma fonte glótica capaz de transitar entre mais ou menos voz de cabeça. Nas palavras de Miller: 26 Contudo, começando pelo nascimento da ópera e o surgimento do cantor solista no início do século XVII, cada década subsequente foi impondo exigências técnicas crescentes sobre o cantor solista. Isto é verdade em nossa época também. […] o vigor e a intensidade, particularmente dos papéis em La Coronazione di Poppea, refletem-se nas crescentes exigências vocais de extensão, agilidade e sostenuto, ultrapassando e muito, aquelas presentes na primeira década do século12 (MILLER, 1997, p. 15). Podemos constatar essas mudanças se compararmos os conceitos do início do século XVII com os de Tosi, por exemplo, autor do século XVIII que nos fala de voz de peito (voce di petto), voz de cabeça (voce di testa) e falseto, enquanto Mancini parecia defender apenas dois registros, peito e cabeça, sendo este último também chamado de falsete (Miller, 1997, p.105). Um dos principais problemas que enfrentamos para uma definição estilística de cada gênero aqui abordado, seria a postura de cada cantor frente a suas experiências sócio culturais e a resultante da preferência timbrística de cada cantor. A estética vocal de cada cantor é uma extensão do seu condicionamento cultural. A civilização ocidental europeia trouxe para o cantor os conceitos de que o bom padrão vocal é aquele em que uma postura e alinhamento do corpo são importantes para uma produção eficaz/eficiente. Outras culturas, de alguma forma, trouxeram padrões diferenciados em seus cantores no que tange a postura corporal e as qualidades vocais resultantes. Porém, de forma geral, o que se espera de um cantor de gênero lírico é um equilíbrio corporal, no que tange a postura, com uma produção vocal baseada na exploração do timbre claro/escuro, em coordenação entre estes padrões com a projeção adequada às formações instrumentais e à adequação ao tipo de música e período histórico executado (MILLER, 1996, pág.205-206). Estes conceitos levam o cantor do gênero lírico a ser comparado a um atleta de alta performance, tendo que ter seus limites fisiológicos e psicológicos explorados ao máximo, em constante pesquisa e em manutenção de excelência de performance (WARE, 1998, pág.2- 3). Em outras palavras, o canto artístico é uma conquista humana adquirida ou aprendida. Tal visão é historicamente plausível. Levando-se em conta que a humanidade precisou de séculos para desenvolver competências para feitos 12 However, begginning with the birth of the opera and the emergence of the solo singer in the Early seventeenth century, each subsequent decade has placed increased technical demands on the solo singer. This is true of our own era as well. […] the vigor and intensity, particularly of the Poppea roles, are reflected in the mounting vocal demands of range, agility, and sostenuto, far exceeding those of the first decade of the century. 27 vocais incrivelmente difíceis, muito comparáveis aos feitos pirotécnicos dos atletas olímpicos atuais1013 (WARE, 1998, p.2). Atletas olímpicos são treinados por um grupo de profissionais que incluem médicos e fisioterapeutas para que, como alvo máximo a ser atingido, consigam a melhor e mais eficiente produção do corpo. Os atletas vocais, igualmente, precisam estar preparados e serem supervisionados por vários profissionais como o otorrinolaringologista, o fonoaudiólogo, o pianista co-repetidor, o psicólogo, e claro o professor de canto, para que sua atuação suba em parâmetros de excelência e eficácia e portanto a construção dessa estética possa ter vários ganhos pedagógicos e de performance uma vez aliados aos aspectos estilísticos e pedagógicos com as bases mais modernas da ciência nas áreas de fonoaudiologia e fisioterapia (Ware, 1998, p. 05). Com relação ao canto lírico, dentre os autores referenciados é importante destacar os conceitos e organização de fatos das pesquisadoras Wendy Leborgne e Marci Rosenberg. Segundo Leborgne et al (2014), foram escolhidos 13 parâmetros essenciais para uma percepção de uma bela voz no canto clássico ocidental: • Vibrato adequado • Ressonância/brilho (squilo) • Cor/uma voz quente • Claridade/foco • Intensidade • Gama de dinâmicas • Controle de ar eficiente • Igualdade de registros • Flexibilidade • Liberdade em toda a extensão vocal • Afinação precisa • Linha de legato • Dicção acurada De acordo com Ekholm et al (1998) os quatro primeiros itens estão relacionados com os atributos do som, e não originários de uma execução técnica pura e simplesmente, podendo ser observados em apenas uma pequena amostra de som. Com relação ao vibrato, 13 In other words, artful singing is an acquired or educable human achievement. Such a view is historically plausible. Consider that humanity has taken centuries to develop expertise for incredibly difficult vocal feats, very comparable in fact to the pyrotechnical feats of present day Olympics athletes. 28 estudos revelam uma presença constante de uma ondulação da frequência fundamental de cerca de 5-7 ciclos por segundo, com uma execução da frequência fundamental de menos de mais ou menos 1 semitom. Outro dado constatado é que em face a momentos mais dramáticos da performance, a variação de ciclos pode ser superior a 6 ciclos. O critério de ressonância ou brilho na voz ou ainda squilo, está associado às habilidades dos profissionais da voz cantada de acusticamente projetar a voz. Uma característica importante para as vozes de barítono, tenor e contralto, que se beneficiam com o agrupamento do terceiro, quarto e quintos formantes, oriundos do trato vocal e que resultam em um espectro de energia conhecido como formante do cantor14. Sobre o aspecto “voz quente” caracterizado pela presença de arredondamento, escurecimento, riqueza e plenitude (voz completa), podemos dizer que uma voz que seja carente deste aspecto pode vir a ser considerada de voz branca15 ou imatura ou incompleta. Garcia (1805-1906) usava o termo “voz coberta” para descrever a sua técnica de como produzir um timbre mais escuro, advindo do abaixamento da laringe, em oposição a voz branca que o cantor produz obtendo uma posição de laringe mais alta. Em acordo com a fisiologia subjacente, outros correlatos acústicos da “voz coberta” ou “escura” que tem sido encontrado seria o fortalecimento da frequência fundamental e de parciais graves do espectro, formantes mais graves, e menos presença do formante do cantor. Vander Berg (1920-1985) e Vennard (1909- 1971), no entanto notaram que uma laringe excessivamente baixa pode resultar em: uma voz de qualidade não desejada, com falta de harmônicos agudos. O outro critério colocado foi o de intensidade, ou “foco”, ou “clareza do tom”, ou “poder de propagação”, “pureza de tom”, “claridade do foco que permite a voz girar”. Os professores de canto foram criteriosos em distinguir intensidade de volume ou poder. Os termos clareza ou foco parecem ser termos mais apropriados, para que não se faça confusão com o termo acústico para amplitude de onda sonora. Clareza ou foco aqui estariam mais ligados ao ruído não harmônico no tom vocal. Níveis relativamente altos de ruídos são costumeiramente percebidos como rouquidão ou soprosidade, termos muito usados em área correlata, que são indicativos de alguma disfunção funcional ou organo-funcional16. O termo 14 O formante do cantor é encontrado geralmente em vozes com treinamentos específicos do canto erudito e é definido pela amplificação sonora das frequências de 2.000, 3.000, e 4.000 Hz, sendo demonstradas no espectro acústico pela junção do terceiro, quarto e quinto formante. Isso se deve à sua localização na região aguda e ao elevado pico de amplitude, desta forma, não se tem a ocorrência de outras vozes ou mesmo dos instrumentos da orquestra. Gusmão et al (2010) 15 Adjetivo dado a voz que não tem treinamento e que não consegue pelos parâmetros do canto lírico uma voz mais redonda ou colorida. 16 Disfunções funcionais são descritas por Behlau como alterações vocais que se subdividem em primárias por uso incorreto da voz e secundarias por inadaptação vocal. Nas disfonias primárias elas podem se apresentar no nível do 29 foco é usado figurativamente pelos cantores e professores de canto de maneira geral para descrever as sensações de vibrações claras produzidas por um som bem produzido, sentidas em algum ponto do rosto e conhecidas como “som na máscara”. O oposto desta sensação descrito por Vennard seria chamado de som apertado (EKHOLM et al 1998, p.82-83). Quanto à gama de dinâmicas, seria a habilidade do cantor produzir sua voz em variações de volume, representadas musicalmente por pp – p – mp – mf – f – ff. Esta gama de dinâmicas, como nos diz Costa (2001), é um efeito vocal que requer uma complexidade de exigências como: ......Domínio da respiração, apoio total da coluna sonora, equilíbrio do ataque e da coordenação muscular. É importantíssimo no adestramento da voz, por que é esse efeito que se domina o aparato respiratório em função das cavidades de ressonância. Deve ser um ato de presteza do som, principalmente nas notas de passagem, para não haver uma espécie de fratura nesse ponto crucial da emissão sonora. (COSTA, 2001, p.81) Podemos observar no comentário de Costa, que o aparato respiratório no controle dos processos de inalação e exalação, além da ressonância são partes da construção do controle de dinâmica referido por Leborgne et al. (2014). Quanto ao controle de sopro (ar eficiente), segundo Sundberg (2015) o aumento de volume parece estar associado ao aumento de pressão subglótica, bem como um envolvimento maior da cadeia muscular da laringe. Hirano e colaboradores, nas palavras de Sundberg, perceberam por meio de EMG17 modificações de intensidade, no registro de peito; havendo aumento de uso muscular do CAL18 e do TA19, o que indicaria uma adaptação das pregas vocais em face a maiores níveis de pressão subglótica. Segundo Sundberg: Se relacionarmos essas observações ao que foi visto anteriormente, ou seja, ao fato de que o aumento da intensidade de fonação ocorre devido ao aumento de pressão subglótica, poderemos supor que os músculos da laringe venham a compensar um possível aumento da frequência de fonação decorrente do aumento da pressão subglótica. (SUNDBERG, 2015, p.89) Aparentemente este controle de sopro referenciado por Leborgne et al, tem várias ramificações no uso da voz, sendo que soprosidade, dificuldades para cantar um som e vibrato largo são alguns dos problemas que podem ser resolvidos com o controle desta qualidade vocal (parâmetros) tida como obrigatória no canto lírico, e se estas coordenações aparelho respiratório por inspiração insuficiente ou no nível glótico por compressão excessiva ou ainda no nível ressonantal (BEHLAU ET AL 2000, p.) 17 Exame para verificar o acionamento das fibras musculares chamado eletromiografia. 18 Cricoaritenoídeo lateral, músculo intrínseco da laringe. 19 Tiroaritenoideo, músculo intrínseco da laringe. 30 musculares forem corretas podem evitar problemas vocais bem como auxiliar nos efeitos expressivos em qualquer gênero. Segundo Dayme: O controle da intensidade vocal, da altura, da pressão do ar subglótica e as taxas de fluxo de ar implica em uma grande coordenação de mecanismos operando dentro da laringe, do sistema respiratório e de outras áreas do corpo. Um estudo feito por Rubin, LeCover e Vennard (1967) mostrou que tanto o estreitamento do trato vocal quanto da respiração provocava um efeito bastante perturbador sobre a relação do fluxo de ar e a pressão subglótica e que um controle respiratório deficiente prejudicava a qualidade vocal. Quando a coordenação de todas essas forças é precisa e espontânea, problemas vocais como a respiração, inconsistência da qualidade tonal, dificuldades de afinação, oscilações e muitas outras ineficiências são eliminadas20 (DAYME, 2009, p.114). Igualdade de registros é a habilidade de um cantor de passar de uma região a outra do chamado teclado vocal sem aparentes diferenças timbrísticas. Registros vocais têm sido uma questão muito controversa dentre os pesquisadores de voz cantada, em particular, lírica. Embora não esteja no escopo deste trabalho detalhar o assunto, vamos, ao menos citar um pouco do que alguns importantes autores têm descrito sobre o tema. Segundo Doscher (1994), as primeiras questões a serem colocadas seriam: do que se tratam os registros, se eles existem de fato e quantos e quais seriam. Essa autora já responde à questão dizendo que existem sim os registros e eles podem ser divididos em quatro. Pelos conceitos de Doscher, os professores que discordam da existência de múltiplos registros defendem que registros aparentes seriam o resultado de uma técnica pobre e não de fatores fisiológicos. Nesse aspecto a pedagoga norte americana conjectura sobre o que seria uma técnica pobre senão uma disfunção fisiológica. Sendo assim, por essa linha de pensamento, os registros vocais não são eliminados; antes, seus parâmetros são como que misturados, ou equalizados até que não haja aparente discrepância para os ouvidos ou para a garganta do cantor (DOSCHER, 1994 p.171). Mas, toda essa discussão nos leva a pensar como poderíamos de forma mais 20 The control of vocal intensity, pitch, subglottic air pressure and rates of air flow involves a highly co- ordination of mechanisms operating within the larynx, the respiratory system and other areas of the body. A study by Rubin, LeCover and Vennard (1967) found that either narrowing of the vocal tract or breathiness had a seriously disturbing effect on the relationship of air flow and subglottic pressure, and poor control of breathing impaired vocal quality. When coordination of all these forces is precise and spontaneous, vocal problems such as breathiness, unevenness of tonal quality, pitch difficulties, wobbles and many more undesirable inefficiencies are eliminated. 31 objetiva definir o fenômeno registro, e para nos dar essa resposta recorremos a Garcia (1894) através de Doscher (1994) que compara a definição de Garcia com Colton (1988), respectivamente descritos abaixo: Um registro é uma série de sons consecutivos e homogêneos produzidos por um mecanismo, distinguindo-se essencialmente de uma outra série de sons igualmente homogêneos produzidos por um outro mecanismo. [...] um registro é uma série de frequências fundamentais consecutivas de qualidade aproximadamente igual21 (DOSCHER, 1994, p.171). Outra preocupação com relação aos registros é a definição de quantos podemos encontrar segundo a literatura vigente e, para isso, mais uma vez, recorremos a Doscher (1994, p. 173) que explica que são em número de quatro: 1) o mais grave de todos, o registro basal, chamado de pulso ou fry; 2) o segundo no qual ocorre a maior parte da voz cantada ou falada, chamado de registro modal, ou registro pesado; 3) o terceiro seria um registro mais leve, usado mais para o canto do que para a fala, e os termos tradicionais seriam leve ou falsete; 4) o último registro, encontrado apenas em mulheres e crianças são chamados tradicionalmente de assovio ou flauta (DOSCHER, p.173). Ainda sobre registros, a fonoaudióloga e pesquisadora Gláucia Laís Salomão nos diz que O COMET (Collegium Medicorum Theatri), uma organização formada principalmente por médicos interessados nos estudos de voz profissional e no aprimoramento das práticas para tratamento da voz de atores e cantores, construiu um conceito junto a engenheiros e professores de canto e, desta reunião, os conceitos que ficaram foram: 1) os registros vocais existem e, ainda que suas diferenças possam vir a ser “encobertas” com treino, eles devem ser reconhecidos como entidade. 2) o modo como os registros vocais se manifestam no canto é distinto do modo como se manifestam na fala. Resultados de investigações dos registros vocais manifestos na fala não podem ser diretamente extrapolados para o canto; 3) os registros vocais não podem ser eliminados da voz, uma vez que são determinados fisiologicamente. Seus efeitos podem, na verdade, ser 21 A register is a series of consecutive homogeneous sounds produced by one mechanism, differing essentially from another series of sounds equally homogeneous produced by another mechanism. […] A register is a series of consecutive fundamental frequencies of approximately equal quality. 32 minimizados em determinados estilos de canto, do mesmo modo como podem ser enfatizados em outros estilos. (SALOMÃO, 2008, p.31-32) O próximo item da nossa lista de características vocais do canto lírico seria flexibilidade, que também inclui a flexibilidade de dinâmica. Segundo Ware (1998) em última instancia um cantor profissional deve ser capaz de cantar com consistência e efetividade em várias formas de articulação, dinâmica e estilo. Essas formas seriam: “Legato, suave e conectado; marcado fortemente acentuado; staccato-nítido e solto; aspirado – utilizando a letra ‘h’ para articular notas rápidas”22 (WARE, 1998, p.185). Segundo o pedagogo Ware (1998), a melhor forma de se desenvolver um trabalho de flexibilidade mais detalhado é através da execução do próprio repertorio vocal. O repertório vocal está cheio de exemplos e solicitações de flexibilidade. Ou ainda, exercícios podem ser escritos para desenvolver a flexibilidade, como se pode observar em métodos de autores como Concone, Panofka, Lütgen e muitos outros. Ware (1998, p.185). Outro parâmetro do canto lírico é a liberdade em toda a extensão vocal. Este nos remete a questão técnica como: domínio de transição de registro, equilíbrio de ressonâncias, domínio dos aspectos mecânicos de ajuste de trato vocal e saúde vocal ou ausência de patologias que possam prejudicar uma boa emissão em toda a extensão. Para definir de forma mais objetiva o que poderia ser liberdade em toda a extensão, Dayme (2005), nos chama a atenção para o que poderia causar tensão ou constrição indevida para o trato vocal em toda a extensão. Para a autora qualquer tensão indevida nos músculos constritores ou longitudinais da faringe irá acionar várias estruturas da boca, garganta e laringe. A variedade de forma e movimento do trato vocal são inúmeros. Qualquer mudança nos formatos do trato vocal ou altera a voz de forma significativa. Intérpretes podem ser vistos fazendo um esforço excessivo durante o aprendizado ou ao perceberem que não estão se empenhando arduamente. Eles podem desenvolver uma série de hábitos precários os quais afetam a qualidade vocal, entre eles: músculos faciais demasiadamente ativados, especialmente a boca e lábios, olhar fixo demais, olhar apático, a posição e a ação da mandíbula, rigidez da língua, músculos do pescoço saltados, constrição peitoral e superenvolvimento emocional23 (DAYME, 2005, p.78- 79). Segundo a mesma autora, quando todas estas áreas mencionadas são 22 Legato, smooth and connected; marcato-strongly accented; staccato-crisp and detached; aspirato – using h’s to articulate fast notes. 23 Performers can be seen using excessive effort when learning or when perceiving that they are not working hard enough. They can develop a number of poor habits that affect voice quality. These include the following: overly active facial muscles, especially the mouth and lips, staring, unseeing eyes, the position and action of the mandible, rigidity of the tongue, muscles in the neck that can be seen standing out, chest constriction an emotional overinvolvement. 33 coordenadas de forma correta, a emissão passa a ser livre em toda a extensão. caso contrário, o que se vê é um efeito dominó de tensões na cabeça e pescoço, facilmente reconhecidas na aparência do cantor. Para se falar em afinação podemos emprestar conceitos do processamento auditivo central. Sabe-se que a audição humana tem processos complexos de captação, transmissão e decodificação dos sons, aspectos nos quais a linguagem também está envolvida. Segundo Moreti et al (2012), a afinação é uma reprodução de alturas de notas isoladas. A afinação vocal implica na reprodução de alturas de notas isoladas e pode seguir critérios de avaliação e comparação, desde que se considere o contexto e a cultura em questão. A desafinação no canto pode ser definida como a não reprodução vocal da linha melódica entre os intervalos das notas, o que a torna diferente do modelo sugerido, sendo suas possíveis causas relacionadas à dificuldade de percepção musical, à falta de domínio vocal, ou à combinação destes fatores. Desta forma, cabe destacar que tanto os mecanismos neurais inatos e a vivência cultural, quanto as emoções, determinam a resposta comportamental aos estímulos musicais. Para que a música seja considerada como uma representação mental específica, sua identificação cerebral e sua interferência no processamento linguístico devem ser conhecidas. Para uma boa reprodução do que se escuta é preciso ouvir bem, o que requer não somente uma boa detecção auditiva, mas também um processamento sensorial eficiente. Falhas na afinação vocal podem ocorrer por problemas de percepção, processamento, memória, linguagem e/ou produção da emissão. Tais problemas podem ter causas de natureza orgânica, cognitiva, funcional, atitudinal ou estar relacionados à combinação destes fatores. Considerando a plasticidade do sistema nervoso central, acredita-se que, na maior parte dos casos, a afinação possa ser desenvolvida por meio de treino específico (MORETI et al, 2012, p.369). Mesmo as preferências timbrísticas, ou seja, vozes mais brilhantes ou mais escuras (redondas) implicam em percepções diferenciadas da afinação. A técnica vocal e a afinação têm entre si uma relação intrínseca, e muitas vezes o treinamento musical não é suficiente para garantir uma afinação precisa. Uma vez que são os cantores que produzem o instrumento musical na hora em que cantam e cada mudança realizada no trato vocal implica em alteração do som, se você não fizer as modificações do trato vocal de forma precisa uma pequena alteração não planejada pode trazer alterações indesejadas na afinação. Segundo Lopes (2011) o legato se refere à habilidade do cantor de transitar entre as notas musicais com ou sem texto, de forma que todas estejam conectadas entre si. Este autor observa que no conceito de Martha Amstad (1961) o legato é a alta escola do equilíbrio 34 das vogais, da precisão das consoantes, do controle da dinâmica e do equilíbrio dos intervalos; é a arte de colorir. Ainda nas palavras de Lopes, o legato sugere a calma da garganta apesar dos intervalos musicais, do ritmo e da articulação (LOPES, 2011, p.48). Não obstante a linguagem figurativa e pouco precisa nas questões conceituais, o que de maneira geral o autor pretende comunicar é que apesar dos intervalos e vogais diferentes, o cantor precisa dar uma impressão auditiva de homogeneidade em toda a execução da sua música, e as alterações do trato vocal não podem ser percebidas auditivamente como solução de continuidade do som homogêneo e ligado entre todas as notas. Segundo Miller (1986), até que o cantor domine ataques vocais leves, rápidos e controle de ar na sua inalação e exalação, cantar linhas longas de legato e sostenuto pode ser extremamente cansativo, levando o cantor a utilizar a musculatura extrínseca da laringe de forma indevida. Se o cantor não tem habilidade para manejar a articulação das consoantes de forma rápida e um controle de produção de vogais nas diversas línguas como italiano, francês, inglês e alemão, este cantor certamente vai se cansar para produzir sons mais ligados e sustentados principalmente se for em uma tessitura aguda. A tarefa mais difícil para cantores com relação a técnica certamente se baseia no canto sustentado, no qual energia e força de voz precisam estar em equilíbrio com relação a liberdade de produção vocal. Durante a produção sonora em forte intensidade e de maneira sustentada a laringe é colocada sob forte pressão subglótica e o cantor precisa aprender a não pressionar demais a válvula laríngea que seriam as pregas vocais, procurando dessa forma uma fonação mais fluida em que o tempo de fechamento glótico não seja demasiado elevado. Esse controle de fechamento glótico se deve à emissão controlada de ar e ao uso da região umbilical epigástrica e regiões intercostais (MILLER, 1986, p.108). O último item da lista de Leborgne et al. é a dicção acurada sobre a qual falaremos mais detalhadamente ao abordarmos a canção de câmara. Introduzindo o assunto, no entanto, podemos dizer que mesmo na ópera há a preocupação com o enunciado do texto, nas várias línguas que o cantor é obrigado a aprender a cantar, como francês, alemão, inglês, espanhol, português, italiano, latim, russo entre outras. A compreensão do que está sendo cantado é, antes de mais nada, uma das primeiras preocupações de um cantor que leva a sério o seu ofício. Uma boa pronuncia faz parte das exigências de toda boa escola de canto em qualquer que seja o gênero. Mas, as dificuldades de uma boa emissão começam quando a tessitura é mais elevada, e também quando há a incidência de vogais mais fechadas como [i], [e] e [u] em notas mais agudas. A escolha entre uma boa compreensão e uma emissão agradável produz o dilema chamado por Lopes (2011) de o “problema” dos cantores. 35 Segundo este autor, aparentemente, temos uma preocupação crescente por parte dos cantores e professores de canto e das entidades promotoras de eventos, em tornar os textos que os cantores cantam compreensíveis, sejam elas na ópera nas grandes casas e teatros ou em música de câmara, recitais em pequenos locais mais intimistas. As dificuldades vocais surgem não apenas em relação às vogais, mas também em relação às consoantes que provocam uma obstrução, ou mesmo uma oclusão, ainda que momentânea do trato vocal. A estrutura acústica das vogais é principalmente afetada pela frequência; quanto mais agudo for o som, maior a vibração das pregas vocais e, dessa forma, mais problema para entender o texto de forma precisa uma vez que sons mais agudos dependem do trato vocal alongado, excursão mais pronunciada da mandíbula e afastamento dos lábios o que promove uma distorção natural das vogais. Talvez por isso o recitativo tenha aparecido na ópera clássica, pois era o momento do cantor enunciar melhor o texto sem grandes notas agudas, permitindo melhor articulação do texto (LOPES, 2011, p.79-84). Como resolver esta situação, principalmente se pensarmos em relação ao belting e música de câmara? O interprete precisa ser ouvido e tornar perceptível o que canta. Ao mesmo tempo, certas regras musicais de cantar bem e de forma agradável estão na direção oposta à de ser compreendido. Podemos observar que nos desenvolvimentos dos conceitos explícitos aqui, a questão terminologia do canto se coloca como uma ferramenta para ser discutida tanto nos aspectos da facilidade de emissão quanto do controle da dicção acurada, nas diversas tessituras da voz. Questões de conduta pedagógica e caminhos didáticos se entrelaçam e norteiam as ferramentas didáticas para a aquisição dos diversos parâmetros da voz cantada, dentre eles dicção e facilidade de emissão. Mesmo não sendo o alvo da nossa pesquisa, algumas abordagens sobre pedagogia e terminologia do professor de canto nos fornecem informações importantes de como esses profissionais chegam aos conceitos estéticos sobre pronunciar ou não com acurácia os diversos textos nos gêneros variados. Para Lopes (2011) o canto deve parecer fluente, sem esforço e natural, mesmo em meio a tantas horas de estudo, concerto ou show, o que implicaria estratégias de posicionamento do trato vocal que eventualmente podem conduzir para uma clareza de texto bem reduzida. Claro que aqui estamos falando de um autor português dentro do gênero lírico e os desvios naturais para os outros gêneros concernentes a esta pesquisa têm que ser adaptados frente às necessidades estilísticas de cada gênero. Para se conseguir todas estes parâmetros, dicção e facilidade de emissão, de forma equilibrada, professores de canto, e pesquisadores na área de voz tem procurado uma 36 didática e uma linguagem baseada em prática e evidências científicas, mas nem sempre estas linguagens são concordantes ou objetivas. Faremos aqui alguns desdobramentos conceituais relacionados a estes dois parâmetros. Com relação a facilidade de emissão, segundo Leborgne et al (2014) historicamente, os professores de canto têm tentado fazer com que os cantores produzam sons esteticamente agradáveis de acordo com o gênero em questão. As pesquisas realizadas por estas autoras demonstram que os últimos 50 anos permitiram um olhar mais acurado em questões como aerodinâmica, acústica e medidas fonatórias de função glótica. As pesquisadoras ressaltam que de forma alguma as informações e pesquisas estão concluídas e são suficientes, mas, a literatura disponível fornece a ambos o professor de canto e o pesquisador da voz evidência de técnicas de treino específicas que resultam na produção do som desejado”24 (LEBORGNE ET AL, 2014, p. 198). Para validar estes parâmetros cientistas da voz, pedagogos e fonoaudiólogos dispendem muito tempo e esforço para validar exercícios vocais e, dessa forma, melhorar a qualidade de seu trabalho. Dentro da pedagogia do canto, qualidade vocal, é o termo usado para descrever os atributos vocais das vozes. Também podemos usar este termo para definir que grau de excelência vocal foi atingido por um cantor e se sua voz atinge a demandas profissionais requeridas. Em se tratando de qualidade vocal, temos nos parâmetros dicção acurada e facilidade de emissão, um binômio muitas vezes difícil de ser equacionado e que esbarra muitas vezes na escolha estética, terminologia do professor e questões conceituais sobre voz cantada. Avaliação confiável em voz implica, igualmente, no uso de uma terminologia adequada que cubra todas as características intrínsecas descritivas para a voz e de medidas de excelência vocal. Apesar dos avanços no campo da ciência da voz, a pedagogia ainda se apoia fortemente em termos imagéticos e contraditórios (EKHOLM et al, 1998). Para refletir sobre definições dos gêneros, também precisamos avaliar a terminologia do professor e como ela tem influenciado os conceitos e a formação dos cantores, desta forma e em última instancia como irá influenciar a construção do nosso protocolo. Sobre os aspectos da terminologia do professor de canto e, portanto, com relação a reflexão de Ekholm (1998) houve uma reação forte contra a literatura e a terminologia utilizada pelos profissionais da voz pós década de 50, que tinham em suas bases os conceitos 24 But the available literature provides both the singing teacher and the voice scientist evidence of specific training techniques that result in desired sound production. 37 de Garcia bem arraigados em seus pilares teóricos. Duas questões vieram à tona para os cientistas e para os pedagogos envolvidos nessa nova forma de pesquisa: a coerência entre as crenças e os fatos científicos; e a busca de uma terminologia com significados mais precisos (MARIZ, 2013). Muitas expressões utilizadas no ensino tradicional, que podem ter surgido originalmente como metáforas referentes a impressão subjetiva que determinados sons ou ajustes musculares complexos causavam em seus criadores, ganham status de termos objetivos e literais. O apego ao sentido estrito de certas palavras é muito criticado por diversos autores, dentre eles os professor e pesquisador William Vennard, um dos primeiros a buscar na ciência tanto confirmações de ideais tradicionais quanto soluções para impasses de técnica vocal (MARIZ, 2013, p.33). E ainda: O uso de termos idiossincráticos (ou termos gerais com significados idiossincráticos, como é ainda mais comum) revela também duas importantes questões implicadas no modelo de ensino da pedagogia vocal. A primeira diz respeito a complexa questão da cognição e da aprendizagem do canto, que compreende inúmeros fatores além da linguagem utilizada para a comunicação de conceitos. Dentro deste processo cognitivo multifatorial, a terminologia pode ter muitas outras funções além da de definir objetivamente um conceito estético ou fisiológico (MARIZ, 2013, p.34). Com relação a esta problemática, o professor de canto e conhecido cientista da voz Donald Miller foi bem enfático em suas opiniões no que diz respeito a linguagem do professor de canto em seu livro Resonance in singing: A quem a linguagem de canto deve servir? Aos relativamente inexperientes, para quem os termos são novos e misteriosos, ou aos velhos profissionais que “sabem o que querem dizer” quando os utilizam, mesmo que não consigam dar uma definição de dicionário? Os novatos querem aprender o que as expressões significam para as pessoas que utilizam. Entre os experientes, no entanto, o anseio por definições claras frequentemente vem aliado ao desejo de fazer com que todo sigam suas maneiras particulares de se expressar. Não sem justificativa para fazê-lo, eles apontam que os estudantes deles não acham esses termos confusos. Isso não é arrogância, mas uma convicção nascida da prática centrada no ensino particular de canto. (MILLER, 2008, pp. 3 e 4, apud MARIZ, 2013, p. 34). 38 Em sendo assim, quanto mais qualificado for o cantor mais beleza será notada em sua voz e mais itens dentre os citados serão encontrados, ideal este que tem sido buscado com o surgimento do bel canto25. Há ainda quem defenda que o bel canto foi um estilo que culminou com as linhas melódicas floridas e rebuscadas aos extremos de dificuldade como nas coloraturas de Giacomo Rossini (1792-1868). O próprio Rossini externou suas exigências para um intérprete do bel canto como tendo uma voz naturalmente bela, registros mistos e tonalidade equilibrada do grave até o agudo, treinamento disciplinado, resultando em uma produção musical sem esforço e ornamentada, e um comando estilístico não ensinado, mas sim aprendido ouvindo-se os melhores cantores italianos. O contexto não deixa claro se ele estava utilizando tal frase em seu sentido literal ou mais genérico, porém ele sem dúvida lamentava o fato de que a tradição já estivesse morrendo ao longo da metade do século XIX26 (ELLIOT, 2006, p.127). Interessante observar que sobre ensinar ou não a arte do bel canto, o velho maestro acreditava que não se tratava de algo a ser ensinado, e sim apreendido pela escuta, uma atitude pedagógica da qual hoje nos distanciamos, uma vez que buscamos de todas as formas explicar em várias abordagens de linguagem o que o aluno de canto precisa aprender. Desde que o século XX se iniciou, a história da pedagogia mudou e, por isso, novos autores trazem fórmulas mais detalhadas de como atingir esse ideal lírico e, mais recentemente, em todos os outros gêneros que vamos analisar neste trabalho. Com relação ao século XX, os aspectos mais importantes que surgiram foram: uma onda crescente na experimentação vocal como o Sprechgesang, uma forma mais próxima da fala que do canto e música de experimentação harmônica e rítmicas muito arrojadas. Podemos também citar os avanços na tecnologia de amplificação e microfones, gravação de discos. Observamos também, a popularidade da música de Wagner nos anos 20 e 30, o desenvolvimento do verismo italiano na ópera e as pesquisas sobre a música antiga. Porém, não obstante estas influências, os professores de canto e cantores continuaram a manter a tradição de ensinar e cantar na forma do século XIX. Alguns dos 25 Para alguns autores é uma técnica, enquanto que para outros, trata-se de um conceito para execução de linha melódicas com caráter de suavidade, doçura e melodias flutuantes (Miler 1987) 26 Rossini himself expressed his requirements for a bel canto singer as having a naturally beautiful voice, blended registers and even tone from the low to the high range, diligent training resulting in effortless delivery florid music, and a command of style not taught but rather learned from listening to the best italian singers. It is not clear from the context whether he was using the phrase in its literal or more general meaning, but he did regret that the tradition was already dying out by the middle of the nineteenth century. 39 pedagogos que escreveram no início do século XX foram: William Shakespeare (1849- 1931), David Frangeon-Davies (1855-1918), Lilli Lehmann (1848-1929), Luiza Tetrazzini (1871-1941), Hebert Withersponn (1873-1935), e Victor Alexander Fields (1947), que publicaram pesquisas na área de pedagogia vocal entre 1928 e 1942. Também tivemos contribuições cientificas de médicos como: H. Holbrook Curtis (1856- 1920), e P. Mario Marfiotti (1878-1951), enquanto Douglas Stanley (1890-1958) desenvolveu alguns conceitos tidos como pseudocientíficos e que geraram muita controvérsia (WARE, 1998, p.252). Após a segunda guerra mundial, uma economia vibrante e crescente impulsionou uma expansão educacional que produziu um crescimento curricular nas escolas de música, conservatórios faculdades e universidades. A academia se mostrou como terreno fértil para o desenvolvimento da educação musical. De fato, desde a metade do século XX houve uma explosão de publicações sobre voz produzidas por acadêmicos e pedagogos como: Kenneth Westerman (1889-1955), Edgar F. Hebert-Caesari (1884-1969), James Terry Dawson (desconhecido), David Blair McClosky (1902-1988), Anthony Frisell (desconhecido), Cornelius Reid (1911- 2008) (WARE, 1998, p.251-252). No Brasil, este processo de construção vocal do gênero lírico trouxe à tona professores que contribuíram com livros sobre canto lírico e um deles, Edilson Costa (2001), paraibano, cantor de classificação vocal de baixo cantante nos traz algumas reflexões sobre esta construção da voz lírica. É preciso que se diga que a linguagem do professor Edilson Costa reflete uma época em que o empirismo ainda era muito comum nas condutas pedagógicas e que a ciência vocal estava se desenvolvendo e sendo conhecida de forma muito restrita tanto em quantidade de informações quanto em relação aos ambientes que ela alcançava aqui no brasil, em particular na cidade de são Paulo De acordo com Costa (2001), em termos de qualidade vocal ou sonoridade, no canto lírico o som deve se manter homogêneo ao longo da extensão vocal e arredondado27. Ele preconiza um trabalho inicial com as vogais anteriores [i] e [e] e depois as centrais e posteriores [a], [o] e [u], chegando, dessa forma, a uma uniformização. 27 Segundo Fernandes (2009), os sons vocais redondos são os sons com mais componentes harmônicos graves, em decorrência de um trato vocal mais alongado em que a laringe se posiciona de forma mais baixa e o palato mole está mais elevado. 40 Nos primeiros meses, o aluno deverá fazer somente vocalizes preliminares com as vogais ‘i’ e ‘u’, que por serem anteriores, facilitam o desenvolvimento da voz e são mais apropriadas para se encontrar o ponto focal dos ressoadores. Quando essas vogais já estiverem bem apontadas, trabalha-se com as posteriores ‘a’ ‘o’ e ‘u’, que devem ser dirigidas ao mesmo ponto das anteriores, garantindo a uniformização de todas as vogais. É aconselhável moderar os exercícios, para que não se fixe na quantidade e sim na qualidade. Geralmente, a qualidade sobrepuja a quantidade, dependendo, logicamente, da orientação de um bom professor (COSTA, 2001, p. 17). No fraseado musical, utilizam-se linhas melódicas longas e ligadas ao máximo umas às outras. Busca-se uma boa articulação do texto cantado, mas a inteligibilidade do mesmo não se torna questão prioritária. Segundo Costa (2001) o som deve ser emitido partindo de ressonâncias altas28 e a corrente de ar contínua leva ao chamado “giro vocale29”. Imageticamente falando, os sons seriam enviados ao palato mole e por meio de propriocepção do cantor, a cavidade oral faria a ampliação da sonoridade, dando a sensação de sons flutuantes30, leves, redondos e projetados. Sobre este conceito vocal de sons direcionados a cantora e fonoaudióloga Claire Dinville nos diz que: O cantor deve se preocupar com a direção que vai dar ao sopro. Ele deve dirigi-lo verticalmente ao longo da parede da faringe, para trás e para o alto em direção ao véu palatino para desembocar no que habitualmente chamamos de lugar de ressonância, que é o lugar onde a sensação de tremor vibratório é sentida. Ela se situa, no grave e no agudo, acima do véu palatino, um pouco à frente no grave e cada vez mais atrás e em cima a medida que vai aos agudos. Nestas condições, a voz deve dar a impressão de estar suspensa acima da linha imaginaria sustentada pelo sopro. Isto é importante, pois da direção imposta ao sopro, dependerá todo o conjunto de coordenações musculares que terão uma influência sobre a qualidade da emissão, portanto sobre o timbre (DINVILLE, 2001, p.34-35) Observemos a figura 01 abaixo, em que as setas indicam as imagens do direcionamento da coluna de ar de Dinville: 28 Esse autor refere ressonâncias altas como as sensações de tremor vibratório de mucosa nas regiões de nasofaringe. 29 O giro vocal é um efeito que os cantores líricos pretendem, ao obter na sua voz, sons com vibrato e sem aparente esforço, utilizando o vibrato com até 6 ou 7 pulsos por segundo. (SUNDBERG, 2015) 30 Sons flutuantes e ou leves seriam sons que aparentam estar sendo emitidos com leveza (sem a presença de esforço físico demasiado) e suavidade também com presença de vibrato. 41 Figura 01: Direcionamento da coluna de ar. Fonte:https://www.google.com.br/search?q=imagens+de+laringe&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwir2uK02NHUAhUGQ ZAKHRkYCooQ_AUICigB&biw=1536&bih=735 Estes conceitos e palavras impressionistas estão dando lugar pouco a pouco a pesquisas na área de voz que definem e separam conceitos sobre produção vocal e ressonância de forma diferenciada dos autores mais antigos que escreveram sobre voz cantada. Dinville (2001) localiza bem as várias partes do trato vocal que podem ser vistas na figura 02 abaixo: Figura 02: Partes do trato vocal. Fonte:https://www.google.com.br/search?q=imagens+de+laringe&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwir2uK02NHUAhUGQ ZAKHRkYCooQ_AUICigB&biw=1536&bih=735 42 Ainda sobre ressonância ou o chamado lugar da voz, ou ainda sensações proprioceptivas de tremor vibratório, Paparotti e Leal (2011) iniciam o capítulo do seu livro sobre ressonadores defendendo que, ao contrário do que se imagina comumente, os seios da face ou sinus não são lugar de ressonância. Que os verdadeiros lugares de ressonância são as cavidades supraglóticas, ou seja, laringe e faringe. Após a passagem de ar pelas pregas vocais o som trafega pelo trato vocal podendo ter efeitos de ampliação ou amortecimento modificando os harmônicos produzidos pela fonte glótica em formantes. Um único som que é captado pelo sistema auditivo tem uma relação de propagação acústica complexa. De acordo com Titze (2013): As vogais são percebidas e classificadas com base na frequência dos dois formantes mais baixos do trato vocal (Peterson & Barney,1952; Bogert & Peterson, 1957; Kent,1978, 1979). Um som complexo, de muitos harmônicos gerados na laringe, pela vibração das pregas vocais, é acusticamente filtrado pelo trato vocal (faringe e boca, como um tubo combinado) de acordo com estas frequências dos formantes. Até onde a percepção da vogal pode chegar, esse processo de filtragem simplifica o código com o qual o processamento auditivo tem de lidar. A maior concentração de energia acústica nas duas regiões dos formantes tem o efeito de amortecer todos os harmônicos circundantes com exceção dos harmônicos mais relevantes nas áreas próximas das duas frequências dos formantes (TITZE 2013, p.193). O modo como esses harmônicos são modificados, os formantes são produzidos e ampliados pelas cavidades e, por fim, o fenômeno que conhecemos como ressonância. Sundberg (2015) explica os formantes como frequências que são transmitidas com maior eficiência pelo trato vocal e que em um gráfico de espectrografia se apresentam mais fortemente desenhadas em picos mais elevados. Os parciais31 da fonte glótica que estiverem mais próximos dos formantes são irradiados pelos lábios com uma intensidade maior que a dos demais (Sundberg, 2015, p.135). Na prática, Paparotti et Leal (2011) localizam as cavidades de ressonância dividindo-as em laringe, cavidade oral e faringe. Podemos observar que do maior ou menor uso destas cavidades de ressonância temos características de sons, sendo os mais líricos advindos da orofaringe e os mais populares advindos da laringofaringe. As autoras mencionam ainda a rinofaringe ou fossas nasais, ou ainda, as conchas nasais que, dependendo da elevação maior ou menor do véu palatino, podem produzir sons também muitos utilizados em maior ou menor quantidade nos gêneros lírico ou popular ou 31 Os harmônicos 43 CCM (Paparotti e Leal, 2011, p. 56-57). Observemos na sequência de imagens esquemáticas da figura 3 abaixo a passagem de ar pelas pregas vocais: Figura 03: Passagem do ar pelas pregas vocais. Fonte:https://www.google.com.br/search?q=imagens+de+laringe&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwir2uK02NHUAhUGQZ AKHRkYCooQ_AUICigB&biw=1536&bih=735#tbm=isch&q=imagens+fluxo+de+ar+em+prega+vocal Nesta outra imagem (Figura 04) vemos como o ar passa pelo trato vocal e como o som é amplificado ou modificado pela manipulação das cavidades de ressonância, um jogo de maior ou menor uso das várias possibilidades de mudança do trato vocal que os cantores têm a sua disposição. Explicando; O ar passa pelo trato vocal e vai gradativamente sendo modificado pelas várias configurações que o trato vocal assume nos diferentes fonemas quando enunciados pelos cantores. Na figura os raios de propagação de som (sopro e articuladores) passam advindos da glote e vão ser finalmente projetados e direcionados pelos lábios, que em última instancia servem como propagadores finais do trato vocal. 44 Figura 04: Passagem de ar pelo trato vocal. Fonte:https://www.google.com.br/search?q=imagens+de+laringe&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwir2uK02NHUAhUGQZ AKHRkYCooQ_AUICigB&biw=1536&bih=735#tbm=isch&q=imagens+fluxo+de+ar+em+prega+vocal Hoje, comparativamente, podemos encontrar explicações mais objetivas e detalhadas em autores como Sundberg (2015) que explica em detalhes os conceitos vocais baseado em termos anatomofisiológicos e acústicos. Entretanto entender como estes conceitos mais antigos norteavam os professores de canto, comparando com a ciência da voz hoje, nos fornece uma visão mais sistêmica do amálgama de conceitos de pedagogia vocal, com os quais os professores de canto estão habituados a lhe dar. Mesmo este renomado autor ressalta que as questões vibratórias não são simples de serem analisadas. E quando falamos de sensações de coluna de ar estamos na realidade falando de vibração de mucosa. Em resumo, podemos dizer que as vibrações no crânio refletem não somente aspectos fonatórios, como também articulatórios. Assim, a relação entre os padrões vibratórios no rosto e a fonação não é simples nem direta, e, portanto, o controle da fonação mediante essas vibrações não constitui uma tarefa trivial. [...] Além disso, parece-nos que os parciais agudos do espectro, que dependem da velocidade de fechamento das pregas vocais, podem fornecer algum tipo de sensação vibratória em certas regiões da face. Esse poderia ser o motivo pelo qual muitos cantores preconizam que a voz deve ser “colocada na máscara (SUNDBERG, 2015, pág. 222-224) Outro autor que aborda este tipo de sensação de tremor vibratório é Titze, que comenta como os cantores podem localizar as sensações para cada vogal, [i] mais a frente e [u] mais atrás: A sensação do cantor sobre onde a vogal está localizada (focada) está muito possivelmente relacionada à localização da pressão máxima das ondas 45 estacionárias no aparelho fonador. Há vários lugares onde a sensação vibratória deve ser maximizada. Para a vogal [i], por exemplo, a pressão é maior na região do palato. Para [u], a pre