UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇAÕ EM HISTÓRIA ROSA APARECIDA DO COUTO SILVA ITAMAR ASSUMPÇÃO E A ENCRUZILHADA URBANA: NEGRITUDE E EXPERIMENTALISMO NA VANGUARDA PAULISTA Franca 2020 ROSA APARECIDA DO COUTO SILVA ITAMAR ASSUMPÇÃO E A ENCRUZILHADA URBANA: NEGRITUDE E EXPERIMENTALISMO NA VANGUARDA PAULISTA Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Campus de Franca, como requisito para a obtenção do título de Doutora em História. Área de Concentração: História Linha de Pesquisa: História e Cultura Social Orientador: Prof. Dr. José Adriano Fenerick Franca 2020 1 2 ROSA APARECIDA DO COUTO SILVA ITAMAR ASSUMPÇÃO E A ENCRUZILHADA URBANA: NEGRITUDE E EXPERIMENTALISMO NA VANGUARDA PAULISTA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Doutora em História. BANCA EXAMINADORA PRESIDENTE: ____________________________________________________ Prof. Dr. José Adriano Fenerick, UNESP/Franca 1a EXAMINADORA: _______________________________________________ Profa Dra. Daniela Vieira dos Santos UEL/Londrina 2a EXAMNADORA: _________________________________________________ Profa Dra. Márcia Tosta Dias UNIFESP/Guarulhos 3o EXAMINADOR: _________________________________________________ Prof. Dr. Bernardo Carvalho Oliveira UFRJ/Rio de Janeiro 4o EXAMINADOR: ________________________________________________ Prof. Dr. Dylon Robbins – NYU / New York/ USA Franca, 07 de Julho de 2020. 3 Dedico esse trabalho às queridas Valentina Bernardes, Isadora Rosa e à Funmilayo Afrobeat Orquestra Minhas sementes de esperança 4 AGRADECIMENTOS O encerramento desta pesquisa de doutorado é também o final de uma longa etapa de formação acadêmica dentro do Departamento de História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista (UNESP), instituição à qual estive vinculada desde 2008, quando entrei no curso de graduação em História. Foram muitos anos marcados pela presença de pessoas muito especiais, que fizeram com que toda essa jornada tivesse sentido, algumas dessas pessoas já foram devidamente agradecidas e reverenciadas em ocasiões e trabalhos anteriores. No que se refere ao doutorado, que iniciei em 2016, cabe agradecer ao meu orientador e amigo José Adriano Fenerick, por sempre acolher com carinho minhas ideias e projetos, por mais confusos que pudessem parecer. Sem seu olhar de confiança, respeito e amor o caminho teria sido muito mais árduo. Obrigada! Gostaria de agradecer minha mãe, Ângela, meu pai Antônio e meus irmãos Miguel e Ana Carolina. É por eles que sigo. Obrigada! Quero agradecer também minhas tias, tios, primas e primos que ajudaram – direta e indiretamente – no processo de conseguir fundos complementares para meu estágio no exterior, com o qual contribuíram também muitos amigos, além de meu sogro e minha sogra Luzia e José Wilson. Obrigada a todos! Entre 2018 e 2019 tive a oportunidade de morar por seis meses na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos, realizando estágio na New York University. Gostaria de agradecer meu coorientador Dylon Robbins pelo carinho e recepção e também ao professor Fred Moten, que me aceitou como ouvinte em suas aulas. Obrigada! Nova Iorque jamais seria a aventura que foi se eu não tivesse encontrado amigos e amigas que acabaram por se tornar um grupo de apoio maravilhoso. Díjna Torres, Ana Cláudia Cury, Anelise Dias, Camila Rodrigues, Marina Carvalho, Bruna Guerra, Tiago Nascimento, Helena 5 Fietz, Tálisson Melo, Sara Malaguti (minha roomate-irmã), Luis Rincón e Lua Girino: Obrigada! Deixo também um agradecimento especial a Thaís Bignardi (eterna Punk), Connor Engstrom e ao pequeninho Ragnar que me receberam com amor nos meus primeiros dias perdida na gringa. Obrigada! Agradeço a Gabriela Frias pelo compartilhamento de ideias e pela parceria na produção do evento “Por que que eu não pensei nisso antes? Itamar Assumpção na USP” em novembro de 2019, no IEB, com apoio do professor Walter Garcia. No que se refere a esse evento, que para nós foi importantíssimo, agradeço a presença de todas e todos, cujas falas contribuíram grandemente para a formulação das ideias contidas nesse trabalho. Gostaria de agradecer a Daniela Vieira e Sheyla Diniz pelas contribuições em minha banca de qualificação, pelas trocas de ideias, referências e empréstimos de livros. Obrigada! Aproveito para agradecer aos meus queridos amigos de pós-graduação (e da vida), com os quais compartilhei alegrias, sufocos e dos quais recebi apoio em diversas situações: Danilo Ávila, Nívea Lins, Renan Ruiz, Ricardo Arruda, Rainer Sousa e Vanessa Pironato. Obrigada! Agradeço imensamente à pessoas que me cederam entrevistas e me receberam em suas casas com carinho e café. Dentre elas Dona Elizena de Assumpção, Marcelo Del Rio, Clara Bastos, Alzira E., Suzana Salles, Vange Milliet e Paulo Lepetit. Muito obrigada! Agradeço da mesma as “orquídeas” que não consegui entrevistar, mas que se mostraram dispostas e atenciosas, como Tata Fernandes, Nina Blauth e Simone Soul. Agradeço a Fábio Giogio pelas conversas, trocas de informações e também por ter me permitido acessar o primeiro fonograma de Nego Dito. Obrigada! Quero agradecer imensamente a professora Márcia Tosta Dias, pelas discussões e considerações que atravessam meu texto e – principalmente, as que resultaram no quarto capítulo desta tese. Obrigada! Agradeço ao meu companheiro Matheus Rodrigues, por ser parceiro pra toda hora e pra 6 qualquer situação. Nenhuma palavra de agradecimento será suficiente pra você. Obrigada! Agradeço ao querido Kauê Vieira pela leitura final e revisão deste texto. Obrigada, maninho! Agradeço à Funmilayo Afrobeat Orquestra pelas segundas de ensaios terapêuticos: Bruna Duarte, Sthe Araújo, Tamiris Silveira, Vanessa Soares, Suka Figueiredo, Priscila Hilário, Ana Góes, Jasper, Larissa Oliveira e especialmente Stela Nesrine e Afroju Rodrigues pelas discussões que me auxiliaram a interpretar algumas das faixas escolhidas para análise neste trabalho. Por esse mesmo motivo agradeço a Rômulo Alexis e Lucas Melifona. Obrigada! Itamar Assumpção tinha uma grande preocupação com tudo que envolvia a produção de um álbum, inclusive as capas. Por isso, achei de bom tom esse trabalho receber uma capa à altura da obra do artista estudado. A imagem da capa, essa mistura de Itamar e Exu, foi um presente do multiartista Filipe Ramos. Obrigada! Agradeço a todos os funcionários da Seção de Pós-graduação, principalmente a Maísa e o Mauro, pela atenção recebida em todos esses anos. Deixo registrado também meu agradecimento à UNESP, universidade pública e gratuita que, espero, se torne cada dia mais democrática. Obrigada! Por fim, cabe ressaltar que este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) que, além da bolsa de doutorado no Brasil, concedeu-me bolsa de doutorado sanduíche que permitiu a realização do estágio na New York University, nos Estados Unidos. 7 SILVA, Rosa A. do Couto. Itamar Assumpção e a Encruzilhada Urbana: negritude e experimentalismo na Vanguarda Paulista. 2020. 287 f. Tese (Doutorado em História e Cultura Social) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2020. RESUMO O objetivo principal desta tese é analisar os aspectos experimentais da obra musical de Itamar Assumpção, artista relacionado à movimentação cultural conhecida como Vanguarda Paulista, ocorrida em São Paulo, no início dos anos 80. Os artistas ligados à Vanguarda Paulista assumiram uma posição crítica e criativa frente às imposições do mercado musical. As principais fontes dessa pesquisa são os sete álbuns de estúdio lançados durante a carreira de Itamar Assumpção: Beleléu Leléu Eu, Sampa Midnight, Intercontinental! Quem Diria! Era Só o que Faltava !, Bicho de 7 cabeças vol. I, II e III, Ataulfo Alves por Itamar Assumpção - Para sempre agora e Pretobrás - por que eu não pensei nisso antes? Tendo esse material como suporte, a pesquisa procura demonstrar como a negritude e as referências culturais afro-brasileiras são utilizadas de maneira inovadora, a fim de construir uma linguagem musical específica. Por fim, este trabalho elucida as relações intrínsecas entre o racismo institucional / sistêmico e o mercado musical, com base no reforço de estereótipos negativos impostos aos afro-brasileiros, que impactam diretamente a obra do artista estudado. Palavras-chave: Itamar Assumpção. Música Experimental. Música Popular. Racismo. Indústria Fonográfica. 8 SILVA. Rosa A. do Couto. Itamar Assumpção and the urban crossroad: blackness and experimentalism in Vanguarda Paulista, 2020. 287 l. Thesis (Doctorate in History and Social Culture) - Faculty of Human and Social Sciences, State University of São Paulo “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2020. ABSTRACT This dissertation’s main objective is to analyze the experimental aspects of the Itamar Assumpção's musical work, an artist related to the cultural movement known as Vanguarda Paulista, which took place in São Paulo, in the early 1980s.Vanguarda Paulista was an artistic scene in which musicians took a critical and creative stand against the musical market impositions. The main sources for this reserach are the seven studio albums released during the Assumpção's career: Beleléu Leléu Eu, Sampa Midnight, Intercontinental! Quem Diria! Era Só o que Faltava!, Bicho de 7 cabeças vol. I, II and III, Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora and Pretobrás -por que que eu não pensei nisso antes? Having this material as support the research seeks to demonstrate how blackness and Afro-Brazilian cultural references are used in an innovative way, in order to build a specific musical language. Finally, this work elucidates the intrinsic relations between institutional / systemic racism and the musical market, based on the reinforcement of negative stereotypes imposed to the Afro-Brazilians that directly impact the work of the studied artist. Keywords: Itamar Assumpção. Experimental Music. Popular Music. Racism. Phonographic Industry. 9 SILVA, Rosa A. do Couto. Itamar Assumpção y la Encrucijada Urbana: negritud y experimentalismo en la Vanguarda Paulista. 2020. 287 h. Tesis (Doctorado en História y Cultura Social) – Facultad de Ciencias Humanas y Sociales, Universidad Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2020. RESUMEN El objetivo principal de esta tesis es analizar los aspectos experimentales de la obra musical de Itamar Assumpção, artista afín al movimiento cultural conocido como Vanguarda Paulista, que tuvo lugar en São Paulo, Brasil, a principios de la década de 1980. Los artistas vinculados a la Vanguarda Paulista asumieron una posición crítica y creativa contra las imposiciones del mercado de la música. Las principales fuentes de esta investigación son los siete álbumes de estudio publicados durante la carrera de Itamar Assumpção: Beleléu Leléu Eu, Sampa Midnight, Intercontinental! Quem Diria! Era só o que faltava!, Bicho de 7 cabeças vol. I, II y III, Ataulfo por Alves de Itamar Assumpção – Pra sempre agora y Pretobrás - por que que eu não pensei nisso antes? Con este material como soporte, la investigación busca demostrar cómo la negritud y las referencias culturales afrobrasileñas son utilizadas de manera innovadora, para construir un lenguaje musical específico. Finalmente, este trabajo dilucida las relaciones intrínsecas entre el racismo institucional / sistémico y el mercado musical, a partir del refuerzo de estereotipos negativos impuestos a los afrobrasileños, que impactan directamente en la obra del artista estudiado. Palabras – clave: Itamar Assumpção. Música Experimental. Música Popular. Racismo. Industria Discográfica. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................................13 CAPÍTULO 1. A CANÇÃO COMO EXERCÍCIO DE ENCRUZILHADA ......................................................................................................................24 1.1 BELEL.EU - PREMISSAS MUSICAIS E MERCADO INDEPENDENTE...........................24 1.2 SOBRE TERMINOLOGIAS – MÚSICA POPULAR, CULTURA POPULAR NEGRA, CLAVES OU TOPOI.....................................................................................................................51 CAPÍTULO 2 - TOTALMENTE À REVELIA, MAS LOUCO DE TANTA ALEGRIA......................................................................................................................................57 2.1 TRÂNSITOS MUSICAIS DE LONDRINA A SÃO PAULO.................................................57 2.2 SAMPA MIDNIGHT: ÁLBUM-IDEIA EM DISSOLUÇÃO.................................................85 2.3 ALGO ME DIZ PRA SER SUTIL, NÃO FAÇO IDEIA MAS ME RESTA UM CAMINHO...................................................................................................................................108 CAPÍTULO 3 – ENTRE A PALAVRA E A MELODIA – O GRANDE POETA NÃO.............................................................................................................................................114 3.1 ALZIRA, ALICE, ORQUÍDEAS...........................................................................................114 3.2 A DÉCADA DE 1990 – PADRONIZAÇÃO E SEGMENTAÇÃO......................................130 3.3 OUTROS CIRCUITOS DE PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO MUSICAL........................................................................................................138 4. CAPÍTULO 4 – EX.PER.IMENT.AR como ES.PER.ANCE.AR......................................145 4.1 É SAMBA QUE ELES QUEREM? ......................................................................................145 4.2 NO SAMBA NÃO HÁ PRECONCEITO DE COR (HAHAHA) EU ACHO GRAÇA.......150 4.3 PRETOBRÁS – BLACK DO BRÁS DO BRASIL...............................................................175 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................184 BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................189 ANEXOS (entrevistas transcritas)............................................................................................198 11 12 INTRODUÇÃO Exú é o começo Atravessa o avesso Exú é o travesso Que traça o final Exu é o pau No caule que sobe O caminho de além Do bem e mal Dito pelo não dito Odara é bonito se a água não acaba Elegbara elegante no falo que baba Exú é quem cruza e descruza o amor Bará não tem cor Estará onde quer que qualquer corpo for Pra todo trabalho É o laço e o atalho É o braço e a mão Do falho e do justo Exu é o custo Do movimento O tormento do ser Que não é Exú!1 Francisco José Itamar de Assumpção, ou simplesmente Itamar Assumpção, foi um músico que se consolidou como um dos principais nomes da movimentação cultural surgida na década de 1980 em São Paulo, conhecida como Vanguarda Paulista. Artista inquieto, é por muitos 1 Trecho da faixa Exú do álbum Ascensão (2016), de Serena Assumpção. Este trecho escolhido é recitado por José Celso Martinez Correa. Serena é a filha mais velha de Itamar Assumpção, falecida em março de 2016, pouco depois de ter finalizado o álbum. 13 considerado um dos grandes nomes da música popular brasileira, sempre entendido como sinônimo de qualidade, inventividade e resistência à padronização cultural que permeava (e ainda permeia) a indústria da música no Brasil. Nasceu em 13 de setembro de 1949 em um pequeno município do interior de São Paulo chamado de Tietê e ali viveu, criado pela avó, até os 14 anos de idade. Ainda adolescente, Itamar mudou-se para a casa dos pais em Arapongas, região norte do Estado do Paraná, onde aprendeu teatro e teve acesso à movimentação cultural de Londrina, aos festivais universitários, à sociabilidade estudantil e também às discussões políticas que pululavam no período da ditadura militar no Brasil (1964 -1985). Na cidade de Arapongas situava-se o Grupo de Teatro de Arapongas (GRUTA), fundado e coordenado por Nitis Jacon, médica psiquiatra que fomentou o teatro universitário naquela região, que acabou por se tornar reconhecida nacionalmente neste âmbito. Neste grupo, Itamar Assumpção encenou a peça Arena conta Tiradentes, texto de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, sendo considerado uma grande promessa já em sua primeira aparição. Foi também em Londrina que Itamar Assumpção participou de seus primeiros festivais de música, chegando a ser premiado, como foi o caso do Festival Universitário de Música Popular, no qual recebeu o prêmio de “Melhor Apresentação Total”, nas edições IV e V. Esta sociabilidade universitária permitiu a Itamar – mesmo que este não fizesse faculdade alguma – um contato fundamental com parceiras que teriam um importante papel em sua trajetória musical, tais como Neuza Pinheiro, Arrigo e Paulo Barnabé, também londrinenses. Entretanto, apesar de ter sua obra gestada no sul do país, foi na cidade de São Paulo, em meio ao caos urbano, às novas descobertas estilísticas e ao turbilhão social, que o músico experimentou as belezas e vicissitudes de viver como músico profissional. A capital paulista foi uma grande fonte de inspiração para Itamar Assumpção, que declarou seu amor, seu ódio e sua identificação total com a cidade em diversas canções, tais como Sampa Midnight, Venha Até São Paulo, Bicho de 7 cabeças e tantas outras cujas narrativas ocorrem aqui na Penha, na Avenida Paulista, ou em qualquer outro lugar significativo da cidade. Em 1980, na Vila Madalena, no cruzamento da Rua Fradique Coutinho com a Wizard, ocorreu a segunda edição do Festival da Feira da Vila Madalena. Neste evento Itamar Assumpção conseguiu classificar-se com a música Nego Dito, que alcançou o terceiro lugar. Em 14 decorrência deste fato, Itamar pôde gravar a canção vencedora em um LP, intitulado Festival Feira da Vila (1980), lançado pela gravadora major Continental. Os bairros Vila Madalena e Pinheiros foram os pólos de experimentalismo artístico na capital paulista durante a década de 1980, por serem, acima de tudo, bairros povoados por estudantes, artistas, ativistas, intelectuais, produtoras culturais e boêmias. Em Pinheiros, próximo à praça Benedito Calixto, situado à rua Teodoro Sampaio 1.091 surgiu, em 1979, o Teatro Lira Paulistana, que no início não passava de um pequeno porão com arquibancadas. Com o passar do tempo, os produtores do Lira estenderam seus tentáculos para todas as áreas possíveis da produção cultural: realizaram festivais, criaram uma gravadora independente, abriram uma editora e também criaram espaço para a arte de rua, o graffiti e as artes plásticas. Itamar Assumpção, estando entre os vencedores do supracitado Festival da Feira da Vila, foi convidado por Wilson Souto, produtor musical que fazia parte do júri do festival, a fazer uma temporada de shows no teatro Lira Paulistana e, fato importante, a ter um LP lançado com suas demais composições pelo estreante selo independente Lira Paulistana, fato que resultou no disco Beleléu leléu eu, com a banda Isca de Polícia. É justamente a partir deste disco icônico que este trabalho se inicia. No primeiro capítulo, intitulado A canção como exercício de Encruzilhada, realizo a análise do disco Beleléu Leléu Eu (1980), no intuito de compreender as premissas musicais de Itamar Assumpção, tendo como base principal o trabalho de Maria Clara Bastos, pesquisadora e baixista que integrou a banda Orquídeas do Brasil, que acompanhou Itamar pelos palcos na década de 1990. Busco destacar também o modo como manifestações populares de matriz africana, como o Batuque de Umbigada, são utilizadas de maneira experimental para o desenvolvimento de uma linguagem músico-performativa original. Ainda neste capítulo, a partir do trabalho de Sérgio Molina, descrevo termos e conceitos caros à escritura deste texto, como música popular cantada, palavra cantada, canção popular, faixa e fonograma, considerando os avanços tecnológicos que permitiram uma transformação no modo de conceber a composição popular a partir de meados do século XX. Estabelecidos os parâmetros de análise, caminho para o segundo capítulo, intitulado Totalmente à Revelia, mas louco de tanta alegria, cujo objetivo é compreender a relação de 15 Itamar Assumpção com a ideia de contracultura e desbunde da década de 1970 e seus artistas “malditos” e “marginais”. Para isso, baseio-me principalmente na tese de doutorado de Sheyla de Castro Diniz, que busca refletir sobre a contracultura em solo brasileiro. Considerando as questões que envolvem o mercado musical e a consolidação da MPB como nicho de mercado privilegiado, procuro compreender a inserção de Itamar Assumpção no “momento” independente da década de 1980, em torno do Lira Paulistana e o processo de dissolução desta mesma movimentação artística e cultural. Para isso, utilizo como fonte principal os discos Sampa Midnight (1983) e o Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!! (1988) que busco cotejar com as informações contidas na tese de doutorado de Daniela Vieira dos Santos. Tais arcabouços teóricos me auxiliam a compreender os sentidos de “marginalidade” na obra de Itamar Assumpção em relação à indústria fonográfica brasileira. Para abordar o modo de organização dessa mesma indústria, considerando-se a relação entre as grandes gravadoras (majors), que ditavam a lógica no mercado fonográfico brasileiro, e as pequenas (indies), utilizo- me dos estudos de Márcia Tosta Dias, José Adriano Fenerick e Eduardo Vicente, autores requisitados em diversos momentos neste trabalho. O terceiro capítulo, Entre a palavra e a melodia – o Grande Poeta Não, é dedicado à análise da Trilogia Bicho de 7 Cabeças (1993-1994), gravada conjuntamente com a Banda Orquídeas do Brasil, que funcionou como um verdadeiro laboratório poético-sonoro. Nesse capítulo busco compreender a aproximação de Itamar Assumpção da poesia e das intercalações entre palavra, som e ritmo, com destaques para experimentalismos que o aproximam da palavra cantada, da poesia concreta e de artistas nos quais se inspirava, como Alzira Espíndola, Alice Ruiz, Tom Zé, Jards Macalé, Paulo Leminski, Waly Salomão, entre outros, sem perder de vista as transformações pelas quais passavam a indústria fonográfica na década de 1990, contrapostas às expectativas do músico estudado. Por fim, o quarto e último capítulo intitulado EX.PER.IMENT.AR como ES.PER.ANCE.AR, é dedicado à pormenorizar e historicizar as relação intrínsecas entre racismo e indústria fonográfica – compreendida no complexo atrelamento entre as rádios e as gravadoras no período inicial de modernização do Brasil e construção de nossa nacionalidade. Iniciamos o 16 capítulo com a análise do disco Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre Agora (1995), buscando entrelaçar a história de Itamar Assumpção à do sambista por ele homenageado. Finalizo o capítulo – e com ele a tese – com a análise de algumas faixas selecionadas do disco Pretobrás – por que eu eu não pensei nisso antes? (1998), último a ser lançado em vida por Itamar. O objetivo principal da análise é pontuar como o experimentalismo e a negritude na obra do músico em questão abrem caminhos de utopia e esperança e dão substrato para que nós possamos imaginar outros modos de sociabilidade para além dos impostos pela lógica neoliberal que impera em nossos dias. Para as análises deste capítulo, baseio-me no estudo sobre o samba realizado por José Adriano Fenerick em sua tese de doutorado, somando-o à obra de Michael Denning acerca do boom de gravações elétricas dos anos 1925 a 1930, que permitiram a expansão e mundialização da indústria de discos em torno do Atlântico Negro. Além de Fenerick e Denning, referendo a pesquisa de Borges Pereira, que nos auxilia a compreender as relações raciais no âmbito da estrutura radiofônica, meio de comunicação que se consolidou conjuntamente ao nosso processo de modernização. Sobre os materiais aos quais recorri no decorrer desta pesquisa, utilizo como fontes primárias alguns dos discos de Itamar Assumpção, sendo eles Beleléu Leléu Eu (Lira Paulistana, 1980); Sampa Midnight (Mifune Produções Artísticas,1986); Intercontinental! Quem Diria! Era só o que faltava!! (Continental,1988); Trilogia Bicho de 7 cabeças (Baratos e Afins, 1993-1994); Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – pra sempre agora (Paradoxx, 1995) e Pretobrás – por que que eu não pensei nisso antes? (Atração Fonográfica, 1998). Desses álbuns, apesar de abordar cada álbum - ou trilogia - como uma unidade, escolhi selecionar algumas faixas específicas para construir a narrativa que aqui se apresenta, tendo como parâmetro elementos que fossem representativos de todo o álbum do qual tal faixa foi pinçada, como se verá na escolha de Embalos, Venha Até São Paulo, Sampa Midnight, entre outras, portanto, foi a partir da escuta atenta da obra de Itamar Assumpção que pude realizar a escolha das faixas que dão suporte às questões presentes nesse trabalho. O disco Às Próprias Custas S.a (Isca, 1981) ficou fora de nosso escopo analítico por ser um disco “gravado ao vivo”, em shows realizados na sala Guiomar Novaes da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) e exigiria uma abordagem que considerasse questões para além 17 das desenvolvidas nesta tese. Além disso, não consideramos os discos Isso Vai Dar Repercussão (Elo Music/ Boitatá, 2004), em parceria com Naná Vasconcelos, e os dois últimos volumes de Pretobrás: Pretobrás II – Maldito Vírgula (Selo SESC, 2010) e Pretobrás III - Devia ser Proibido (Selo SESC, 2010), todos lançados postumamente e, portanto, sem a interferência direta de Itamar Assumpção no processo de produção, como era costumeiro para este artista. Além dos discos, foram utilizados como fontes auxiliares os livros Pretobrás: Por que que eu não pensei nisso antes? - O livro de canções e histórias de Itamar Assumpção Volumes I e II, organizados por Luiz Chagas e Mônica Tarantino, nos quais constam depoimentos de amigos e parceiras musicais de Itamar e transcrições para partitura de grande parte de suas composições, realizadas por Maria Clara Bastos. Utilizo o livro Lira Paulistana – um delírio de porão, organizado por Riba de Castro, um dos fundadores do teatro homônimo e também o livro Na boca do Bode: entidades musicais em trânsito, de Fábio Giórgio, que nos conta acerca da movimentação contracultural no Paraná, nas décadas de 1960 e 1970. Por fim, consultei igualmente o livro Cadernos Inéditos, onde constam as anotações, poesias e letras de músicas que Itamar Assumpção escrevia em diversos cadernos, reunidos e organizados por Serena, Elizena e Anelis Assumpção, com apoio de Marcelo Del Rio. Utilizei também matérias e críticas musicais jornalísticas do período em questão. No que se refere ao material audiovisual, apoiei-me nos documentários Daquele Instante em Diante (2011), dirigido por Rogério Velloso; Reverberações (2014), dirigido por Cláudia Pucci e Pedro Colombo; Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista (2012), dirigido por Riba e Castro; no mini-documentário Beleléu Cá entre nós – Itamar Assumpção antes do Nego Dito (2004), dirigido por Fábio Giorgio; no documentário Alquimistas do Som (2003), de Renato Levi e em uma série de entrevistas e shows gravados, recolhidos nos arquivos do Serviço Social do Comércio (SESC) e do Museu da Imagem e do Som (MIS), além de entrevistas, shows completos e trechos de shows recolhidos na internet, tais como o programa Provocações, da TV Cultura, apresentado por Antônio Abujamra; o programa Hypershow da Rede Minas de televisão e o programa Fábrica do Som – Especial Vanguarda Paulista, da TV Cultura, entre outros. Além de todo o material que logrei reunir, tive o prazer de entrevistar pessoas que foram 18 extremamente generosas em seus depoimentos, tais como Maria Clara Bastos, Vange Milliet, Paulo Lepetit, Alzira Espíndola, Suzana Salles e Elizena Brigo de Assumpção. Contei também com o auxílio de Marcelo Del Rio que, além de colocar-me em contato com Dona Elizena, me permitiu acesso a alguns arquivos e informações relacionados a Itamar Assumpção. Apesar da pluralidade dos materiais consultados - oral, iconogŕafico, jornalístico, escrito e audiovisual - é primordialmente a partir da música, da historicidade dos som, silêncios, letras, falas e ruídos que abordaremos o trabalho de Itamar Assumpção com intuito de entender as contradições de sua obra e do momento histórico em que a produziu. Abre o caminho, sentinela está na porta2 Como aponta Vagner Silva, “o Exu, devido a seu caráter ambíguo, tem servido como leitmotiv para representar os dilemas da sociedade brasileira, entre incorporação dos valores culturais de herança africana e a exclusão social dos negros”3. Com essas considerações em mente é que busco compreender a obra de Itamar Assumpção, marcada pela busca de experimentar por meio de técnicas e inovações advindas das vanguardas eruditas, tais como o atonalismo, além das colagens presentes na música pop4 e de outros elementos recortados da “cultura de massa”, como falas radiofônicas e caricaturais, além da criação do personagem Nego Dito, seu alter-ego anti-herói-exu, elementos necessariamente calcados na experiência histórica da diáspora, de sua posição como homem negro em um país que estava passando, lentamente, por 2 Referência à música Padê, do álbum homônimo (2008) de Juçara Marçal e Kiko Dinucci. 3 SILVA, Vagner Gonçalves. Exu do Brasil: Tropos de uma Identidade afro-brasileira nos trópicos. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André. (orgs.) Histórias Afro-atlânticas: [vol. 2] antologia. São Paulo: MASP, 2018. P. 397. 4 Aqui, entendo a música pop em dois sentidos: o primeiro refere-se à música de mercado e o segundo à música popular que se apropria de procedimentos realizados pelos artistas da pop art, como a colagem de fragmentos de canções distintas. Ver: Segundo FENERICK, José Adriano; Carlos Eduardo MARQUIONI: As revoluções do Álbum Branco: vanguardismo, nova esquerda e música pop. ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 13, p. 21-37, jul-dez 2015. 19 um processo de abertura política, saindo de um período extenso de ditadura militar. Na cosmogonia das culturas e “religiões” de matriz africana a encruzilhada é um local carregado de simbolismos: espaço de encontros e intersecções, onde corpos se esbarram e onde diversos caminhos apresentam-se como possibilidade. É também um dos locais nos quais Exu trabalha, orixá-entidade5 que tem preferência pelas fronteiras, locais de passagem e de transmutação, como portas, porteiras, ruas e estradas. No continente africano há uma pluralidade de significados em torno da controversa figura de Exu. Primordialmente relacionado à função de mensageiro e comunicador, este Orixá seria o responsável pela relação entre o mundo dos seres humanos (aiye) e o universo de todos os outros orixás (orun). Sem Exu a relação com as energias da natureza e os seres humanos não seria possível, por esta razão ele é sempre o primeiro a ser reverenciado, saudado e lembrado em qualquer “trabalho”, ou ritual.6 Após os primeiros contato entre africanos, árabes e europeus, esse orixá teria passado por um processo de “demonização”, fruto de interpretações e traduções que resultaram, por exemplo, nas versões da Bíblia e do Alcorão Bíblia em língua iorubá, nas quais Exú – por não se enquadrar em uma visão binária e dualista do mundo – teria sido interpretado como o “Diabo” cristão e o “Shaitan” muçulmano, ambos relacionados à ideia de mal absoluto.7 Pensando a ideia de “demônio”, Exu sintetiza (...) a ‘encruzilhada ética e moral’ da Europa Ocidental que na Idade Média viu seus próprios demônios espalhados pelos quatro cantos do mundo e no século 19 teve de transitar entre a racionalidade e o pensamento mágico-religioso, o expansionismo e o comunitarismo, a modernidade e a tradição, absolutizando definições relativas do bem e do mal, da ciência e da fé.8 5 Orixás são divindades africanas relacionadas primordialmente às forças da natureza e à mitologia referente aos povos daquele continente, tais como Ogum, Xangô, Nanã, Oxum, Yemanjá, entre outros. Já entidade refere-se às divindades afro-brasileiras, necessariamente diaspóricas, como Zé Pilintra, Maria Padilha, os boiadeiros, os caboclos, os preto velhos, ciganos etc. Escolhi utilizar aqui os dois termos para dar conta da diversidade de interpretações que Exu apresenta nas manifestações culturais e religiosas de matriz africana. 6 SÀLÁMI, Síríkù (King); RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Exu e a ordem do universo. São Paulo: Editora Oduduwa, 2011. P. 15. 7 Idem. 20 Isso significa dizer que a “demonização” de Exu é fruto do amplo processo de construção da visão da Europa Ocidental sobre os povos com os quais entrava em contato durante a colonização, funcionando como tentativa de subjugar o que não se encaixava em uma visão de mundo encerrada no binarismo “bem” e “mal”, relegando ao não-ocidental a personificação de características a eles não creditadas, como bem salientaram Stuart Hall e Grada Kilomba ao apontarem que, nos binarismos como “bem/mal”, há sempre uma “dimensão de poder que mantém posições hierárquicas e preservam a supremacia branca”. 9O tabu e o assombro em torno da figura deste orixá-entidade viriam justamente destes processos interpretativos. Exu desembarcou em solo brasileiro juntamente com os povos africanos que para cá foram forçosamente trazidos durante a escravidão e seus sentidos vão sofrer variações segundo as diversas escolas10 de formação das religiões afro-brasileiras, que derivam do contato com a cultura europeia e a ameríndia. Dentre suas diversas características, podemos destacar algumas que aqui nos interessam, tais como sua relação com a transgressão da ordem estabelecida, sua capacidade de “abrir caminhos”, sua faceta provocadora de trickster, ou traquinas, “porque detentor de magia, conhecedor das desordens da alma humana e, bem por isso, responsável pelo equilíbrio, de modo que mesmo para manter o equilíbrio seja necessário, por vezes, causar o que à primeira vista pode soar como confusão”.11 Exu, marginalizado na sociedade brasileira, representado na umbanda por Zé Pilintra, malandro que caminha pelas ruas e sarjetas, bem 8 SILVA, Vagner Gonçalves. Op. cit. P. 393. 9 KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidiano. P. 52. Ver ainda: HALL, Stuart. Cultura e Representação Rio de Janeiro: PUC-Rio/Apicuri, 2016. 10 Segundo Rivas Neto, as escolas de formação das religiões afro-brasileira têm como base três principais eixos: o indo-europeu, o africano e ameríndio. As liturgias e saberes de cada terreiro podem se aproximar ou se distanciar de cada uma dessas matrizes, fato que acarreta na pluralidade dessas religiões e religiosidades. RIVAS NETO, F. . Apresentação. In: RIVAS NETO, F. (organizador) Exu e Pombagira. São Paulo: Arché Editora, 2015. P. 14. Cabe lembrar que existe uma equivalência das funções deste orixá em manifestações religiosas que não são necessariamente de origem iorubá, como é o caso do candomblé angola no qual as funções de Exu estariam ligadas ao inquice Aluvaiá, no Batuque ao Bará, no Vodu poderíamos relacionar funções semelhantes a Papa Legbá e assim por diante. Sobre esse assunto ver: ASANTE, Molefi Kete; ABARRY, Abu S. (editores). African Intellectual Heritage: a book of sources. EUA: Temple University Press, 1996. 11 MANOEL, Ricardo Garcia. Era uma vez… Exu… In: In: RIVAS NETO, F. (org.) Exu e Pombagira. op cit . P. 73-74. 21 poderia ser neste trabalho representado por Nego Dito, personagem e “alter-ego” criado por Itamar Assumpção. Nego Dito, assim como Exu, é a transformação constante que insiste em mover energias estacionadas, “é aquele que tem o poder de quebrar a tradição e pôr as regras em questão, romper a norma e promover a mudança”12, contestando as regras estabelecidas. Para essa aproximação, faço meus os argumentos de Vagner Silva: (...) Exu, devido ao caráter de mensageiro, é uma espécie de mediador cultural, oferecendo metáforas potentes para se pensar as relações entre os grupos étnico- raciais que compõem a sociedade brasileira. Ou, mais exatamente, um “tropo” por meio do qual podemos refletir sobre os conflitos e alianças existentes nessas relações. 13 O objetivo, portanto, não é entender a obra de Itamar Assumpção por um viés religioso, o que estaria fora das possibilidades deste trabalho. Entretanto, recorrer ao arcabouço teórico das religiões e das culturas de matriz africana como “lente” com a qual pretendo acurar a mirada é, também, uma forma de posicionar-me contra certo cartesianismo que impera na lógica Ocidental de perceber o mundo e ressaltar que nas artes que têm a África e suas diásporas como referencial (ou em qualquer outro tipo de arte, eu diria) não é possível uma separação entre o político, o estético, o religioso e o social. Isso também significa dizer que, apesar da pluralidade dos encontros que marcam as formas de sociabilidade da Encruzilhada que é o Brasil, nosso foco recairá sobre o modo como esses referenciais diaspóricos são centrais na obra do músico em questão – e na música popular brasileira como um todo - numa tentativa deliberada de contribuir para “denegrir” o campo de estudos sobre música popular. Metaforicamente, é a partir das diversas características de Exu, esse Orixá-Entidade africano-brasileiro, que lançarei o olhar analítico sobre a obra de Itamar Assumpção, cuja obra constitui o interesse dessa pesquisa de doutorado, artista que desenvolveu uma maneira particular de articular influências que vão do Batuque de Umbigada, passando pela poesia marginal, pela musicalidade dos terreiros e dos pontos de umbanda, pelos “vernáculos musicais diaspóricos”, 12 PRANDI, apus, JORGE, Erica. Desmistificando Exu e Pombagira. In: RIVAS NETO, F. (org) Exu e 13 SILVA. Vagner Gonçalves da. Exu do Brasil: Tropos de uma identidade afro-brasileira nos trópicos. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André. (orgs.) Histórias Afro-atlânticas: [vol. 2] antologia. São Paulo: MASP, 2018. Grifos meus. 22 chegando até mesmo ao atonalismo que apreendeu de sua amizade com Arrigo Barnabé. Exu e suas encruzilhadas será o mediador da leitura da obra de Itamar Assumpção, mesmo quando não diretamente referenciado. Exu é maldito? Não, é bendito, ou melhor: Benedito. Laroyê! 23 CAPÍTULO UM – A CANÇÃO COMO EXERCÍCIO DE ENCRUZILHADA 1.1 – BELEL.EU - PREMISSAS MUSICAIS E MERCADO INDEPENDENTE Em 1980 Itamar Assumpção concorreu com a música Nego Dito no Festival Feira da Vila Madalena, tendo alcançado a terceira colocação numa final disputada com o Jorge Matheus e Celso Machado. O júri deste festival era composto por críticos musicais, artistas e produtores musicais, dentre eles estava Wilson Souto, que ficou positivamente impactado com a apresentação. Desse encontro, surgiram duas oportunidades: a gravação da música Nego Dito no disco Festival Feira da Vila que seria lançado com as demais composições vencedoras pela Continental e, apesar de ter terminado o festival em terceiro lugar, a música de Itamar Assumpção faz a abertura do LP, sendo a primeira do lado A; e a possibilidade de ter um disco próprio inteiro produzido a convite de Souto, um dos fundadores do Lira Paulistana. Sobre esse fato, Pena Schmidt, que àquela época trabalhava no estúdio Gravodisc da Continental (gravadora brasileira de médio porte), nos conta o seguinte: O festival havia sido competitivo, havia uma ordem de premiação, mas na hora de montar o disco e separar os lados A e B, tomei uma decisão. Nego Dito era a música que iria abrir o LP, mesmo que tivesse tirado apenas o terceiro lugar na competição. Wilson Souto, o Gordo, era dono do Lira, que já despontava como um lugar conceitual, mais do que um simples espaço para shows. Eu e ele começamos uma conversa sutil com Itamar, eu tentando propor sua contratação na Continental e Gordo tentando abrir uma frente de produção de discos no Lira. Era assim que eu entendia, disputávamos. Um dia soube que Itamar havia fechado com o Lira. Seja feliz, serei seu fã, dissemos um para o outro.14 É interessante notar no depoimento acima o fato de Pena Schmidt, produtor experienciado no mercado fonográfico brasileiro, ter percebido desde o primeiro momento o potencial mercadológico na música Nego Dito e, já de início, a postura de Itamar Assumpção em escolher gravar por um selo iniciante e até então desconhecido, o Lira Paulista, que faria com Itamar seu 14 SCHMIDT, Pena. Pequeno palco, grandes revelações. In: CASTRO, Riba de. Lira Paulistana – um delírio de porão. 1ed. São Paulo: Ed. do Autor, 2014. P. 144-145. 24 debut no mercado “independente” de discos. Em decorrência destes fatos, o primeiro disco de Itamar Assumpção, intitulado Beleléu Leléu Eu, seria gravado em 1981, sem o suporte financeiro de uma major, com o músico participando e opinando ativamente de todo o processo de produção, da capa à mixagem. Esse álbum acabou tornando-se um dos mais emblemáticos de sua carreira, uma vez que reúne as ideias musicais pelas quais Itamar será consagrado, aprofundando-as de diferentes maneiras no decorrer do tempo, fato que justifica a escolha deste trabalho como forma de abrir o primeiro capítulo desta tese. Vale a pena analisarmos alguns aspectos desse disco mais pausadamente, a começar pelo capa e pelo suporte em si, o LP, e o modo como as canções foram nele acomodadas em faixas, como demonstramos na tabela abaixo: Organizado simetricamente, o disco tem o lado A e o lado B iniciados e finalizados por vinhetas que vão, uma por vez, “montando” e dando prévias da faixa principal, que dá nome à personagem cujas peripécias acompanhamos em todo o trabalho. Ao final, a faixa Nego Dito aparece completa e encerra o álbum. Posteriormente, quando remasterizado para ser lançado em CD, primeiramente pelo selo Baratos e Afins em parceria com a Atração Fonográfica, de Wilson Souto (2000) e, alguns anos depois, pelo selo SESC (2010), essa noção de simetria se perdeu, uma vez que a vinheta II e III fora sintetizadas em uma peça única, quebrando a lógica de montagem do LP. De fato, a vinheta III configura-se como uma continuação da vinheta II, no 25 lado B do vinil. Entretanto, essa peculiaridade além de demonstrar o intuito de equiparar os dois lados, pode demonstrar os limites e desafios impostos pelo formato Long Play de 33 1/3 rotações por minuto, que podia conter cerca de 20 minutos de gravação por lado. Ou seja, a organização das canções foi pensada deliberadamente para esse formato, ficando esse aspecto descaracterizado quando relançado para o formato CD, no qual essa lógica perdia o sentido. Outro aspecto interessante das remasterizações e relançamentos em CD é o surgimento da Vinheta Radiofônica como faixa individual que, no LP, é parte integrante da música Nego Dito funcionando justamente como um momento de apresentação dos músicos que desemboca na apresentação do personagem Beleléu e sua banda/bando Isca de Polícia. Quando a Vinheta Radiofônica é criada, surge a possibilidade de escutá-la separadamente, desmembrando a ideia de performance por trás da execução de Nego Dito, explicitando, mais uma vez, aspectos que marcam as negociações e tensões que permeiam o processo de criação artística: a capacidade de armazenamento do disco, a organização das faixas, o intuito de reproduzir na gravação a intenção e energia das apresentações ao vivo, a vontade de materializar o mais fielmente possível o que surge no universo das ideias. Esse intuito de simetria pode ser interpretado como uma maneira de intensificar o “eco sonoro”, recurso bastante utilizado nas canções deste disco, cuja ideia também se reproduz na imagem da capa. Sobre esse fato, reproduzo as palavras de Wilson Souto, que além de ter produzido, participado do disco como músico e como um dos responsáveis pela mixagem, foi o idealizador do conceito por trás da capa. Em entrevista a Arrigo Barnabé, em outubro de 2009, ele nos conta: (...) Uma coisa doida, eu nunca imaginei ser artista gráfico na vida, mas o Itamar... todas as propostas de capa, o Itamar ficava... ficava descontente. Ele achava que as propostas dos artistas gráficos, que traziam as propostas, não contemplavam o nível de pesquisa ou de elaboração que tinha na música dele. Um dia eu recortando as fotos e tal, eu tentei fazer uma montagem inespecífica daquilo, mais pelo desespero, e que não tinha muito sentido gráfico, mas era na verdade uma repetição como se fossem uns ecos que a gente usou no disco. Várias câmaras de eco e tal. O Itamar chegou e eu estava no camarim do Lira, ali atrás da arquibancada, ele viu aquela colagem e disse “cara, você matou a ideia. Agora é só a gente entregar pra um artista gráfico pra finalizar, mas a ideia da capa é essa repetição, onde você se bater o olho, ou o ouvido, pela primeira vez, você não vai perceber muito do que tá acontecendo”. Ele vai sempre tentar, 26 precisar que você redobre a atenção, por isso a coisa do “ouvidos atentos”, né, essa chamada que tem no disco que o “ouvidos atentos”, essa... conclamando as pessoas a prestarem atenção no que estava ali de uma maneira especial, porque tinha uma elaboração especial por trás.”15 Capa do disco Beleléu Leléu Eu, 1980. Selo Lira Paulistana A contracapa, por sua vez, concatena-se ao sentido da capa, já que nela, além da ficha técnica e o arrolamento das faixas do disco, apresentam-se fotografias dos integrantes do(a) perigosíssimo(a) bando/banda Isca de Polícia que se encontram sobrepostas à imagem da face de Beleléu. No centro da contracapa, uma foto 3x4 de Itamar Assumpção colocada acima de uma navalha na qual se lê seu próprio nome gravado. Ao lado, os dizeres: “beleléu e a banda isca de polícia”. Nesse conjunto de símbolos, podemos perceber uma tentativa de simbiose entre o autor e a personagem. Um mesmo corpo assume o lugar de totem de duas faces de uma personalidade. Neste primeiro disco Beleléu é mesmo Itamar Assumpção. É interessante notar que o nome do artista irá aparecer somente na ficha técnica, mas quando se escuta as faixas do disco, nota-se que em momento nenhum Itamar Assumpção é mencionado, como acontece com as 15 Entrevista cedida no âmbito programa Supertônica, da Rádio Cultura Brasil - apresentado por Arrigo Barnabé, Out. 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=s1s4_yd9otI. 27 https://www.youtube.com/watch?v=s1s4_yd9otI outras musicista e músicos e envolvidos na gravação, citados nominalmente na Vinheta Radiofônica. Contracapa do disco Beleléu Leléu Eu, 1980. Selo Lira Paulistana A questão da simbiose entre criador e personagem, simbolizada na decomposição do título do disco – Beleléu Leléu Eu - e nos artifícios utilizados na construção da capa, para além das questões musicais, foi ricamente explicitada por Tatit: Claro que não preciso dizer “eu” literalmente para me fazer sentir como enunciador do texto. Quando digo, “você”, “tu”, “o senhor” ou qualquer indício que me dirijo a alguém (...) imediatamente me instalo como “eu”, já que ninguém pode se dirigir ao outro sem estar presente. (...) O eu-beleléu contribuiu, sem dúvida, para uma associação direta da sonoridade do disco com o seu protagonista. A negritude, a marginalidade musical, a loucura descrita em muitas passagens das letras, tudo isso convoca a figura magra e enigmática do autor, o qual, por sua vez, nada fazia para dissociar o personagem do ser em carne e osso. A complexidade rítmica dos arranjos denunciava as origens africanas; a singularidade das soluções musicais, embora fosse imediatamente reconhecida pelo público fiel, constituía uma barreira a mais para o seu ingresso na produção em série do mainstream. Por fim, os desatinos 28 explícitos de Beleléu misturavam-se às indiossincrasias do compositor, pouco ou nada afeito a concessões.16 Como podemos vislumbrar, Beleléu Leléu Eu pretende alcançar uma coerência que englobe todos os aspectos de sua produção, desde a centralidade da presença da personagem que, por sua vez reflete esse “eu” que não se esvai momento algum, que tem muito o que dizer e o faz com todo o corpo, até a musicalidade que evoca uma articulação de elementos distintos, advindos da experiência no teatro, do convívio e aprendizagem com outros músicos, da experiência social de um homem negro do interior recém-chegado à cidade grande. Essa última experiência explicita-se na delicadeza de fonogramas como Fon fin fan fin fun, fruto da parceria de Itamar Assumpção e Older Brigo. Interpretada por Mari Souto, essa canção alcança, pela letra e pela instrumentação, uma atmosfera que remete à vida no interior do país. O contrabaixo, muito marcante nessa faixa, entra fazendo comentários a partir da frase “Noite de Verão” mas é a partir dos 35 segundos, acompanhando após seguir a mesma linha melódica da frase “o galo cantou”, que ele passa a executar um fraseado que se assemelha à dicção de canções sertanejas. Em certos momentos, os ataques do contrabaixo coincidem com o tamborim, que desenvolve tercinas que remetem ao samba, gênero que tem uma marcada origem interiorana e rural (antes de ganhar as cidades) acompanhadas, em outros momentos, pela presença do triângulo, instrumento percussivo também fortemente relacionado a ritmos do interior do país, como o forró e o baião. A letra dessa canção carrega essa poesia característica do universo sertanejo: Fon fin fan fin fun Machucando a noite Noite de verão, verão solidão, ai Fon fin fan fin fun Lá dentro do meu coração O galo cantou, já é madrugada Sereno molhou cada flor da estrada 16 TATIT, Luiz. In: A transmutação do Artista. In: CHAGAS, TARANTINO (ORGS). Pretobrás: Por que que não pensei nisso antes? Livro de canções e histórias de Itamar Assumpção. Vol I. São Paulo: Ediouro, 2006. P. 21-34. Grifos meus. 29 https://www.youtube.com/watch?v=3Tp4JjCbk3U https://www.youtube.com/watch?v=3Tp4JjCbk3U Lua clareou as pedras no chão Rompe um fole triste nessa noite de verão Quem eu quero bem, tão longe está e a noite vem Vem negra cheia de estrelas e um farto luar Brilha prateia meu rosto Me faz relembrar Daquelas noites tão lindas, tão cheias de amor Vem, vem matar minha dor Fon fin fan fin fun Fon fin fan fin fun é uma onomatopéia, quase um solfejo, que imita os sons emitidos pela sanfona. Entretanto, apesar da letra, toda essa sonoridade interiorana é quebrada quando passamos a observar o piano e o acordeón, dois instrumentos improvisadores que destroem essa atmosfera calma e saudosa. O acordeón tem um uso extremamente criativo, causando dissonâncias e certo incômodo ao ouvido desavisado, levando as interpretações possíveis dessa canção para outros caminhos, causando uma sensação onírica à música, como se aquela paisagem calma na qual está inserida o eu-lírico feminino que espera por alguém: “Quem eu quero bem, tão longe está e a noite vem” / “Vem, vem matar minha dor” estivesse em plena dissolução. O sentido de dissolução é extrapolado se considerarmos a relação que Itamar Assumpção tinha com o experimentalismo. Nesse sentido, outra interpretação possível para essa canção estaria na crítica textual17 que ela realiza do próprio fazer musical, como bem observou Ivan Bruyn: Ao final da primeira estrofe, a canção modula bruscamente da tonalidade de mi menor para a de mi bemol maior. A estranheza aumenta por uma quebra no andamento, dada pelo acréscimo de um tempo no compasso que finaliza a estrofe (embora a sensação de surpresa causada pelo procedimento talvez sugira, antes do acréscimo de um tempo no compasso anterior, a supressão de três tempos no seguinte, antecipando a entrada da segunda estrofe, como que eliminando redundâncias). O mesmo procedimento se repete ao final da segunda estrofe (agora, modulando de mi bemol maior para ré maior). A música continua 17 Crítica textual, segundo Naves, seria a crítica interna do próprio fazer musical, que passa necessariamente pela crítica ao mercado fonográfico. Segundo a autora a canção popular no Brasil irá – principalmente a partir da Bossa Nova – se preocupar em pensar a própria forma-canção, realizando uma crítica textual, além de refletir sobre as questões que assolavam o país, afetando a vida social, numa crítica contextual. NAVES, Santuza Cambraia. A canção brasileira: Leituras do Brasil através da música. São Paulo: Zahar, 2015. 30 “caindo”, sempre de meio em meio tom, enquanto se repetem seus versos finais. A analogia com a “queda” de um certo estilo de se fazer música se impõe. Como que revelando uma procura vã pelo lugar certo para se encaixar a canção, busca fadada ao fracasso – como procuraram mostrar as diversas interferências externas ao discurso da canção ao longo da mesma18 Do convívio com Arrigo Barnabé, amigo desde Londrina e com o qual compartilhou moradia assim que chegou a São Paulo, antes de se mudar para a Zona Leste da cidade, Itamar Assumpção extraiu diversos aprendizados e realizou diversas trocas musicais. A mais significativa delas foi o contato com as ideias advindas das vanguardas musicais eruditas do século XX, às quais Arrigo Barnabé estudava e pretendia trazer alguns elementos para a música popular. Como aponta José Adriano Fenerick19, Arrigo sempre se colocou explicitamente mais relacionado às vanguardas europeias do que com a canção popular em si, tendo passado grande parte de sua vida artística se dedicando a composições dentro do âmbito da música erudita. Foi a partir do convívio com Arrigo que Itamar Assumpção exerceu seriamente seu lado instrumentista e arranjador, já que tocava contrabaixo na banda Sabor de Veneno, para a qual fazia arranjos, juntamente com Paulo Barnabé, irmão de Arrigo. Além disso, Itamar Assumpção teve contato com técnicas de composição atonais, como o dodecafonismo e a música serial. No álbum Beleléu, a presença da parceria entre os dois é materializada no fonograma Aranha, uma canção atonal de autoria de Arrigo Barnabé, Rondó e Neusa Pinheiro. A música se desenvolve numa verdadeira teia de notas e vozes que cantam as frases “Aranha vem dançar/ Nessa teia cadeia de prata / Vai aranha emaranhar/ Vem pra essa teia/ vem pratear virar prata/ Na teia aranha”, fazendo um pano de fundo para a voz principal ecoante de Mari Souto que entoa: “Sou aranha de prata/ sou aranha que mata”. A faixa termina repentinamente, sem que a canção anunciasse um fim, como um corte, ou como a morte anunciada pela aranha. Ainda falando sobre os procedimentos criativos e experimentais empregados na feitura 18FERRAZ, Ivan Bruyn. Música como missão: experiência e expressão em Itamar Assumpção. Dissertação de mestrado. UNIFESP: Guarulhos, 2013. 19FENERICK, José Adriano. Arrigo Barnabé e o pop-rock nos anos 1980. Revista Ideias, Campinas, SP, v.8, n.2, p. 13-32, jul/dez. 2017. 31 https://www.youtube.com/watch?v=mXonWfgItIY desse primeiro disco, vale a pena verificar a canção Embalos. Esse fonograma ocupa a terceira faixa no lado B do disco e é uma composição de Itamar Assumpção em que as vozes são utilizadas como se fossem verdadeiros instrumentos de sopro. A canção apresenta uma tessitura musical característica do modo de compor de Itamar, em que o contrabaixo desenvolve uma linha em forte diálogo com o coro, composto pelas vozes femininas mais agudas de Mari e Eliana, e as vozes masculinas graves de Wilson Souto e Turcão. O procedimento utilizado faz com que o coro realize diferentes linhas melódicas de pano de fundo, ou BGs cumprindo uma função que normalmente é realizada por instrumentos como os saxofones ou trompete, criando assim um naipe inteiro de vozes que repetem as frases: “Girei esse tempo todo”; “Embalo no, giro no giro”; “giro no, embalo, embalo”; “giro no giro” (graves) e as vocalizações rítmicas “giro no giro”, “giro no”, “a, a, a, a, tchurururu” (agudos). As frases dos coros são executadas em um entrelaçamento complexo e em cada momento é acentuada uma sílaba diferente, contribuindo para a marcação dos silêncios e a construção do balanço, do groove que esta canção apresenta. Diferentemente de outros fonogramas do disco, o coro não funciona somente como uma resposta ao que canta Itamar Assumpção, mas sim como uma base sobre a qual a voz principal se desenvolve. Cabe destacar que nenhum instrumento de sopro é utilizado na feitura desse disco e esse uso estratégico das vozes pode ter sido pensado como uma solução para essa ausência que, acreditamos, se deu pelo fato do disco ter sido feito com poucos recursos financeiros. A letra, por sua vez remete à experiência vivida na capital paulista, que Itamar Assumpção conheceu de “ponta a ponta”, entregando carnês de IPTU: Girando! Girei esse tempo todo Batendo de porta em porta À procura de um abrigo Um apego, um horizonte Tentando de cabo a rabo São Paulo de ponta a ponta Na batalha do sossego Alívio ou mesmo a morte Eu giro no embalo do sábado à noite 32 https://www.youtube.com/watch?v=Qt6Jj0Vt0ts E a fila que não tem mais fim Revela pra mim Que o mundo todo gira assim Que o mundo todo gira Que o mundo todo gira assim Que o mundo todo gira Que o mundo todo gira assim Que o mundo todo O uso de onomatopeias para criar ritmo e tessituras harmônicas é um recurso bastante utilizado na obra de Itamar Assumpção, apesar de serem os dois primeiros discos – Beleléu Leléu Eu e À.s próprias custas S.a, momentos em que esses recursos são melhor desenvolvidos e apresentados. Não é raro encontrar, no decorrer da carreira do músico, sonoridades criadas com palavras estrangeiras, como em Ich Liebe Dich, do disco Pretobrás, de 1998 em que a voz brinca com o som “iishh” da frase em alemão; ou Tristes Trópicos, do disco Bicho de 7 cabeças - volume II, em que o jogo acontece com os entroncamentos em “TR” e “QUE”, em palavras como “tropica”, “trambique”, “treta”, “petrifique” e expressões como “truque chique”. O primeiro disco, em si, é repleto de “lero-lero”, “ticticá”, “blá-blá-blá” entre outras palavras ou expressões onomatopaicas utilizadas de forma que, além de complementar o sentido apresentado pela letra desenvolvido pela voz principal, ainda contribuem para a construção do ritmo e da harmonia. É praticamente impossível falarmos de Beleléu Leléu Eu sem mencionarmos o fonograma que dá título ao disco: Nego Dito. Essa faixa é iniciada pela Vinheta Radiofônica, cujo texto é carregado de teor jornalístico: “Ouvidos atentos! Finalmente Beleléu e a banda Isca de Polícia resolveram se entregar depois de um loooonnnnngo período de resistência. Eis aqui, em primeira mão, as verdadeiras identidades desse perigosíssimo bando”. Após essa intervenção, ocorre a apresentação da banda, um após o outro, como ao final de um show ao vivo. Entretanto, ao apresentar-se, Itamar o faz por meio da música que se inicia com a frase: “Meu nome é Benedito João dos Santos Silva Beleleu, vulgo, Nego Dito, cascavé”, reforçando a ideia de identificação entre autor e personagem, como apontamos acima, citando Luiz Tatit. Nego Dito é um reggae-samba (ou samba-reggae) estilizado pela inventividade de Itamar 33 https://www.youtube.com/watch?v=16QbOrvJJEU Assumpção, que faz uma mescla desses gêneros simples com outro, o jazz – que deixa forte marcas na execução do piano e da bateria. O piano – instrumento que improvisa em boa parte dessa faixa, em nenhum momento assume a posição de solista, ficando restrito ao pano de fundo para que as vozes e o contrabaixo assumam o primeiro plano. Nessa faixa, o coro é utilizado de várias maneiras distintas: como resposta à voz principal, na frase “Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, cascavé”; contribuindo para a construção do ritmo, como nos momentos em que executam “ticticá, ah, ah, ah, ticticá”; inserindo camadas de informação para além da letra cantada pela voz principal, como no final da música onde ocorre uma inversão na qual a voz principal de Itamar vai para o fundo, cantando “Eu vou cortar sua cara, vou retalhá-la, sabe com quê? Com navalha”, enquanto o restante do coro assume a frente, cantando “E se chamar a polícia, a boca espuma de ódio”, em cânon. Por fim, as vozes são usadas quase como sonoplastia da própria música, como no momento em que a voz principal canta “apaguei um no Paraná” e coro complementa com “Pá! Pá! Pá! Pá!”, imitando o ruído dos tiros. Segundo Regina Machado, ‘“Nego Dito”, da maneira como está realizada no disco Beleléu, Leléu, Eu, (...) oferece-nos uma mostra muito rica de como a voz pode ser usada na canção popular de maneira criativa e eficaz”20. Essa eficácia se dá pela relação intrínseca entre os recursos musicais e os vocais na execução da canção, que consegue transmitir a ideia de terror, de ameaça e de medo, atravessada pelo humor advindo de uma exacerbação desses mesmos elementos. A letra principal conta as peripécias da personagem Nego Dito, homem negro de “cabelo ruim” de origem humilde (o que evidenciamos pelos seus sobrenomes, bastante populares no Brasil: Santos e Silva) e que concatena em si alguns estereótipos colados à imagem de negras e negros, considerados violentos, imprevisíveis e pouco confiáveis21. Ideia reforçada pela navalha colocada, como vimos, na contracapa do encarte que embalava o disco, sendo esse instrumento 20 MACHADO, Regina. A voz na canção popular brasileira: um estudo sobre a Vanguarda Paulista. Dissertação de mestrado (Música), UNICAMP, 2007. P. 84. 21 Sobre os estereótipos colados historicamente homens e mulheres negras no Brasil e, de forma geral, em países que exerceram algum papel na escravidão africana falaremos nos próximos capítulos desse trabalho. 34 um símbolo há tempos relacionados a pessoas livres e escravizadas que, no período colonial brasileiro usavam esse instrumento como forma de defesa no jogo de capoeira. Apesar de serem proibidos de usarem armas de qualquer espécie, a navalha era instrumento de trabalho dos barbeiros, ocupação largamente exercida pelos negros. Em Luzia, segunda faixa do disco, a companheira de Nego Dito pergunta, provocando: “que black navalha é você Beleléu? Tá mais é parecendo chamariz de turista e isca de polícia, onde tá sua malícia meu, onde tá sua malícia?” Ao que Beleléu responde: “Chega pra lá, Luzia / ainda vou desfilar/ Tetracampeão, Luzia / Porta estandarte”, ironizando a ideia de que no Brasil, negras e negros só teriam espaço para serem bem- sucedidos como jogadores de futebol, ou sambistas. Itamar zomba dessas ideias ao criar uma personagem atrapalhada e cheia de humor. A letra nos diz: Eu me invoco, eu brigo Eu faço e aconteço Eu boro pra correr Eu mato a cobra e mostro o paulatinamente Pra provar pra quem quiser ver e comprovar Me chamo Benedito João do Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, cascavé. Tenho sangue quente, não uso pente, meu cabelo é ruim Fui nascido em Tietê Pra provar pra quem quiser ver e comprovar Me chamo Benedito João do Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, cascavé. Não gosto de gente, nem transo parente Eu fui parido assim Apaguei um no Paraná Pá,pá,pá,pá Meu nome é Benedito João do Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, cascavé. Quando tô de lua Me mando pra rua pra poder arrumar Destranco a porta a pontapé Pra provar pra quem quiser ver e comprovar Me chamo Benedito João do Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, cascavé. Se tô tiririca, tomo umas e outras pra baratinar Arranco o rabo do satã Pra provar pra quem quiser ver e comprovar Me chamo Benedito João do Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, cascavé. Se chamá a polícia Eu viro uma onça eu quero matar 35 https://www.youtube.com/watch?v=V1BDQxxccGo A boca espuma de ódio Pra provar pra quem quiser ver e comprovar Me chamo Benedito João do Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, cascavé. Se chamá polícia Eu vou cortar sua cara, vou retalhá-la, canalha, com navalha Podemos compreender esse primeiro disco da carreira de Itamar como um “disco conceitual” - a exemplo do emblemático Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band dos Beatles, tanto no que se refere aos procedimentos composicionais e utilização das tecnologias de gravação popularizadas por este álbum, lançado pelo quarteto britânico em 1967, quanto no que diz respeito à criação de personagens e de um conceito que abrange todas as faixas. Tal relação não passa despercebida por Luiz Chagas, guitarrista que fazia parte da banda Isca de Polícia e acompanhou Itamar em diversos trabalhos: “[Nego Dito] Identificava-se por meio de uma vinheta, que voltaria depois transformada em música, como os Beatles fizeram com a canção que dá título ao álbum Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band.”22 Fato também percebido por Luiz Tatit: À maneira de Sgt. Pepper’s, o LP era inteiramente dedicado às peripécias de seus artistas. Mas enquanto os músicos ingleses cantavam as carências amorosas da famosíssima banda, Itamar contava as proezas e fracassos de seu “perigosíssimo bando”. Se lá os meninos de Liverpool se sentiam ligados a um sargento, aqui os instrumentistas marginalizados se sentiam como isca de polícia, não querendo nada com milícias ou qualquer corporação disciplinar. Se lá reinava a música branca, criada pela família Lennon-McCartney, aqui prevalecia a “nêga música”, produzida pelo “nego dito”, que não transava parente. Talvez pólos diurnos e noturnos do mesmo talento.23 Segundo José Adriano Fenerick e Eduardo Marquioni24, o disco Sgt. Pepper’s inaugura, no campo da música popular cantada, um momento em que a ideia de autor passa a se relacionar 22 CHAGAS, TARANTINO (ORGS). Pretobrás: Porque não pensei nisso antes? Livro de canções e histórias de Itamar Assumpção. Vol I. São Paulo: Ediouro, 2006. P.12. 23 TATIT, Luiz. In: A transmutação do Artista. In: CHAGAS, TARANTINO (ORGS). Op. cit. P. 22-23. 24 FENERICK, José Adriano; MARQUIONI, Carlos E. SGT. Peppers Lonely Hearts Club Band: uma colagem de sons e imagens. Fênix, Revista de História e Estudos Culturais. vol. 5, ano V, nº 1, jan/fev/mar de 2008. 36 diretamente com a de obra, ou seja, o LP não seria apenas um compilado de singles, ou faixas individuais, mas um álbum que abarca uma ideia que atravessa todas as músicas que dialogam entre si, articuladas com o significado do encarte. Esse procedimento só seria possível graças à introdução do LP de 33 e 1/3 rotações por minuto (RPM) como principal suporte, além do desenvolvimento de novas tecnologias de gravação multicanal, que permitiram o uso técnicas antes reservadas a outros campos das artes, como a colagem, característica do cinema e das artes plásticas, além da possibilidade de registrar acontecimentos musicais simultâneos (verticais) e sobrepostos, transformando o fazer musical num verdadeiro projeto arquitetônico. Os autores apontam ainda que há um processo de dissolução dos próprios Beatles diante da banda do Sgt. Pepper, que assume a autoria do disco pensado para reproduzir a ideia de um show realizado pelo grupo fictício, essa ideia, explorada tanto nas imagens da capa, quanto na canções e suas sonoridades, compondo uma traquinagem do quarteto que brincam com a noção de obra de autor. Em Beleléu Leléu Eu, por sua vez, a criação do personagem Nego Dito e as canções em torno de suas façanhas, acabam por reforçar, como bem pontuou Tatit, a forte presença de seu autor, desse “eu” que aparece indissolúvel, assinalando as diferenças e semelhanças entre os dois álbuns. Entretanto, independentemente de Itamar Assumpção ter se inspirado diretamente no álbum dos Beatles ou não, as conquistas técnicas assinaladas em Sgt. Peppers marcam um caminho sem volta na história da música popular cantada, funcionando como um dos melhores exemplos de utilização dos avanços tecnológicos alcançados pela indústria fonográfica em finais da década de 1960. Sérgio Molina nos diz que a possibilidade de “montar” uma música, por meio de colagens sonoras e efeitos eletrônicos, utilizados como parte intrínseca do próprio processo criativo – e não mais como simples meios de gravar e reproduzir os sons – passam a ser fundamentais, sendo a tecnologia uma nova ferramenta na criação de sonoridades, como se fossem verdadeiros instrumentos musicais, trazendo à tona o caráter coletivo da produção de um álbum, que passa a depender cada vez mais, para além de musicistas e intérpretes, da presença de técnicos que realizem a mixagem e acrescentem as camadas sonoras a serem alcançadas por meios eletrônicos. Segundo esse autor, 37 No decorrer do período que se estenderia até o início da década de 80, as técnicas e procedimentos composicionais foram utilizados e explorados em larga escala em fonogramas de artistas que usufruíam de amplo espaço de divulgação nas mídias de massa, tempo suficiente para consolidar uma tradição que, a partir de então, continuaria seu caminho em uma via marginal, muitas vezes de forma independente da indústria de disco.25 No Brasil, Molina destaca o uso dessas novas técnicas e tecnologias em obras de Milton Nascimento e Gilberto Gil (o que não significa que o uso desses procedimentos se resume a esses dois exemplos) que, ainda, prezavam – assim como os próprios Beatles – pela mescla de gêneros simples, na criação de gêneros complexos, marcando uma verdadeira revolução na música popular brasileira que teria seu momento mais significativo no movimento que ficou conhecido como Tropicália26, cuja musicalidade era familiar a Itamar Assumpção, ouvinte assíduo, que a estes artistas se entendia, de alguma forma, relacionado. O autor argumenta27 que a escuta do rádio consolida uma nova maneira de se relacionar com a música. Este pode ter sido um fator importante na concepção de Sgt Pepper’s – e eu acrescento aqui a musicalidade de Itamar Assumpção. Os programas de rádio permitiam uma apreciação de músicas de diferentes gêneros musicais, executados de maneira encadeada, uma após a outra. Essa experiência de escuta diversificada era muito mais provável nas rádios do que nos discos, que antes de 1960 eram mais padronizados, já que um mesmo LP costumava apresentar composições que poderiam ser encaixadas dentro de um único gênero musical. Itamar Assumpção, em entrevista a Patrícia Palumbo afirmou que sua educação musical foi mediada por um rádio a pilhas: E o professor foi o rádio! Televisão, nem pensar... Não existia naquele tempo. Sei que meu método de aprendizagem foi muito estranho, porque comecei a fazer isso sozinho, sem ter nenhuma noção, nenhuma orientação. Minha mãe 25 MOLINA, Sérgio. Música de Montagem: a composição de música popular no pós- 1967. São Paulo: É Realizações, 2017. P.31. 26 Não é objetivo deste trabalho um aprofundamento no que foi a Tropicália e o impacto que as artitstas envolvidas nesse movimento tiveram na música popular brasileira. Apontaremos um ou outro aspecto quando necessário e quando relacionado à obra de Itamar Assumpção. 27 Essa afirmação é realizada em palestra proferida no III Encontro de Estudos do canto e da canção popular, em novembro de 2018. Palestra disponível em: https://www.youtube.com/watch? v=9iTfI3LFoPs 38 https://www.youtube.com/watch?v=9iTfI3LFoPs https://www.youtube.com/watch?v=9iTfI3LFoPs tinha um rádio portátil, daqueles que tinhas umas antenonas e funcionavam com oito pilhas deste tamanho. Eu saía de manhã e só voltava à noite, com aquele rádio a todo volume pela rua. (...) Eu ouvia de tudo: os programas matinais, programas de meio-dia e à tardezinha, música caipira: Tião Carreiro e Pardinho, Tonico e Tinoco, Canário e Passarinho... Música realmente caipira. Nessa época eu já conseguia tocar alguma coisa, mas não sabia o nome dos acordes28. Além da música caipira, Itamar afirma que “tirava de ouvido” e imitava músicas de Jerry Adriani, Tim Maia, Roberto Carlos e demais artistas que ele acompanhava pelas ondas de seu radinho. Podemos concluir que o que acontece em meados da década de XX e principalmente nos anos 1960 foi uma certa conformação dos ouvidos a um modo específico de escuta, a radiofônica, com seus personagens, sua dicção, sua programação e escolhas musicais. Partindo dessas considerações, fica mais fácil a compreensão a escolhas das faixas que compõem o disco Beleléu e a complexidade apresentada por cada uma delas. Voltando a Beleléu Leléu Eu, a partir de uma mirada mais abrangente, percebemos que o disco é atravessado por uma atmosfera de medo, violência, terror e dissolução, com uma pitada de loucura e exagero29, como em faixas como Luzia, Fico Louco, Nego Dito e Baby (“baby não se assuste, hoje o tempo é de terror (...) Baby nada existe / resguardando nossa vida (...) E sob nosso céu de chumbo/ As pessoas se disfarçam de carne e osso/ De velho e de moço”). Mesmo as canções que parecem destoar dessa lógica, como Nega Música e Fon fin fan fin fun, quando observadas demonstram reforçar essa ideia, corroborando tanto a crítica à própria canção, quanto à sociedade em que o autor se inseria. Essa atmosfera, contudo, é comunicada por meio da comicidade que beira o sarcasmo. Em tempos de ditadura militar, mesmo que ainda nos seus últimos suspiros antes da redemocratização, como poderia Itamar Assumpção abordar temas tão duros e polêmicos quanto a violência, o racismo e a falta de perspectiva da população sem ter sua obra censurada de alguma forma? Acreditamos que justamente o humor possa ter permitido que suas músicas chegassem ao público. Isso faz sentido se considerarmos que Itamar havia sido censurado anteriormente com a canção I’m Black, no IV Festival Universitário de Música 28 PALUMBO, Patrícia. Vozes do Brasil: entrevistas reunidas. São Paulo: Edições SESC, 2019. 29 Essa leitura concorda e corrobora as interpretações realizadas por FALBO, Conrado Vito Rodrigues. Beleléu e Pretobrás: palavra, performance e personagens nas canções de Itamar Assumpção. Dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Letras, UFPE, 2009; MACHADO, 2007 op cit. e BRUYN, 2013, op. cit. em suas respectivas dissertações de mestrado. 39 Popular30, cujo conteúdo podemos supor pelo título. A esse respeito, Maria Clara Bastos nos diz que Parece que Itamar procurava transcender essas questões, pelo menos dentro da obra, embora sempre fosse questionado a respeito. Pessoalmente viveu situações de racismo. Há palavras e temáticas que resvalam nesses fatos em alguns momentos pontuais. Referências sutis à cultura negra, à negritude em si, à escravidão, às raízes das religiões afro-brasileiras, às diferenças sociais, mas aparecendo sem conterem algum teor reivindicatório. As música Batuque, Lambuzada de Dendê, Quem é cover de quem, Cabelo Duro ou o fato de citar São Benedito na música Santo de Casa podem ser exemplos.31 Apesar de Itamar Assumpção não elaborar uma obra repleta de “canções de protesto”, como as que marcaram a MPB durante a década de 1960 e a América Latina, como a Nova Canção Chilena, isso não significa que sua obra fosse alheia às questões sociais. Essa sutileza, como aponta Bastos na citação acima, pode ser entendida também como uma estratégia apreendida das manifestações culturais de origem africana, em que alguns casos, a crítica é feita por meio do humor, da ironia e do sarcasmo, como o Batuque de Umbigada, manifestação cultural de origem centro-africana caracterizada pelo uso de tambores e pela dança em pares que se assemelha a diversas outras formas de sociabilidade negra, tais como o tambor de crioula (Maranhão); o bambelô (Rio Grande do Norte); o coco (região nordeste); o samba de roda (Bahia), o partido alto (Rio de Janeiro); o samba-lenço (São Paulo), o batuque (São Paulo); e o jongo-caxambu (região sudeste), às quais Edison Carneiro32, inclusive, irá denominar sambas de umbigada. No Batuque de Umbigada, especificamente, a ironia, o sarcasmo e o humor são recursos são bastante utilizados na criação das “modas” e das “carreiras”. As primeiras servem de 30Segundo consta em: GIOGIO, Fábio. Na Boca do Bode - entidades musicais em trânsito. Londrina, PR: O autor, 2005. Este festival foi promovido pelo Centro de Atividades Culturais da Universidade de Londrina, nesta mesma edição Itamar Assumpção apresentou a música Caboclo da Mata, premiada, inusitadamente, com o título de Melhor Apresentação Total. 31 BASTOS, Maria Clara. Processos de Composição e Expressão na Obra de Itamar Assumpção. Dissertação de mestrado/ Departamento de Música – ECA/USP. Defendida em maio de 2012.P.19 32 CARNEIRO, apud. BUENO, André Paula; TRONCARELI, Maria Cristina; DIAS, Paulo. Coautores: Comunidade do Batuque de Umbigada: Tietê, Piracicaba e Capivari [SP] O Batuque de Umbigada: Tietê, Piracicaba e Capivari, SP. São Paulo: Associação Cultural Cachuera!, 2015. [Edições Acervo Cachuera!]. 40 acompanhamento para o batuque e a dança da umbigada e, assim como as segundas, falam da vida cotidiana, discutem questões relacionadas à vida, à política, à memória da comunidade, fazem alertas, passam recados etc. As carreiras são comumente cantadas enquanto os batuqueiros esperam que os tambores aqueçam diante do fogo, até alcançarem a afinação desejada. Nesse ínterim, o carreirista improvisa usando metáforas com o intuito de “proteger” a mensagem a ser transmitida, desafiando os outros participantes a improvisarem com a mesma temática. Não raramente, essas carreiras evocam os tempos do cativeiro, passando aos mais novos as memórias daquelas vivências. A carreira do Tatu Pombinho, reproduzida a seguir, é de autoria de Gilberto Assunção e Paulo Bonilha: Eu quero cantar um pouco/ Linha do tatu pombinho/ De dia mora no mato/ De noite sai no caminho Eu quero cantar um pouco/ Linha do tatu pombinho/ De dia cachorro pega/ Caça que anda sozinha Eu quero cantar um pouco/Linha do tatu pombinho/ Meu cachorro come pouco/ Eu como carne seguidinho Eu quero cantar um pouco/Linha do tatu pombinho/ Da carne faço trassaio/ Do coro faço toicinho Ainda não morreu/ O meu tatu pombinho Eu bebo a ninhada inteira/ E ainda taco fogo no ninho Eu sou que nem gato pardo/ Desde a ponta do focinho/ Cabra que dá no meu rastro/ Vai no inferno direitinho Tatu Pombinho, aqui, é o nome atribuído ao capitão do mato, que vigiava os escravizados e caçava os fugitivos. Segundo Affonso Dias, citado no livro Batuque de Umbigada – Tietê, Piracicaba e Capivari – SP: (…) a carreira explica que o capitão do mato durante o dia ficava escondido próximo a lugares onde os negros escravizados trabalhavam ou passavam, tentando ouvir as conversas deles. À noite o tatu anda, como fazia o capitão do mato pelas estradas, procurando fugitivos. Quando os negros escravizados estavam conversando e percebiam a presença dos capitães, cantavam o ponto do tatu pombinho para avisar seus companheiros, que se calavam.33 Essas funcionaram como maneira de resguardar a vida e o convívio social das pessoas sequestradas e escravizadas em solo brasileiro. O uso desses recursos linguísticos e poéticos está 33 Idem. P. 30-32. 41 presente também na tradição iorubá, como apresentado na obra do músico nigeriano Fela Kuti, com a utilização dos yabis como uma forma de transmitir ideias políticas e críticas sociais.34 Segundo Bastos35, o batuque de umbigada foi o substrato criativo do qual Itamar Assumpção extraiu a base de seu pensar musical, nesse sentido, as “modas” e as “carreiras” cantadas pelos batuqueiros, acreditamos, podem ter inspirado o músico em sua afiada ironia e no humor que atravessa as experiências de seus personagens. Além do uso dos recursos linguísticos apresentados, a autora que, além de pesquisadora, foi baixista da Banda Orquídeas do Brasil, destaca em sua dissertação de mestrado outros modos como Itamar Assumpção utiliza-se do batuque de umbigada e da vivência no terreiro de Umbanda de seu pai biológico para criar as bases de sua musicalidade, como veremos. A orquestra do batuque de umbigada apresenta uma instrumentação que remete tanto à África Central, quanto a outras regiões do Brasil e da diáspora36. É composta por dois tambores, o quinjengue e o Tambu, e por dois instrumentos percussivos de acompanhamento, o guaiá e a matraca . O quinjengue tem forma de cálice, ou taça, com um longo “pé”, não escavado, que funciona de suporte, feito com pele de animais fixadas no topo oco por pinos de madeira. Já que não é vazado de ponta a ponta, esse instrumento possui um pequeno furo, chamado de “respiro”, por onde o ar sai quando o é tocado. Sua afinação é conseguida por meio do aquecimento: o instrumento é colocado ao lado de uma fogueira para que o couro possa esquentar, mudando o som que o instrumento produz. Quando a tonalidade certa é alcançada, os batuqueiros finalizam jogando cachaça para que o som saia mais bonito. Com o “pé” do Quinjengue apoiado no Tambu, se o batuqueiro souber tocar com maestria, pode-se extrair deste tambor até sete “línguas”37, ou maneiras de tocar. 34 Ver: SILVA, Rosa A. Do Couto. Fela Kuti: contracultura e (con)tradição na música popular africana. São Paulo: Alameda/FAPESP, 2017. 35 BASTOS, Maria Clara. Op. cit. 36 BUENO, André Paula; TRONCARELI, Maria Cristina; DIAS, Paulo. op.cit. 42 O Tambu, por sua vez, é considerado o tambor principal, o grande comunicador. Feito a partir de um tronco de árvore (caviúna, taiúva ou peroba vermelha) oco, escavado por dentro, é um tambor grande no qual o batuqueiro precisa montar, como um domador, para tocar. Assim como o quinjengue, é feito de pele animais fixadas e afinadas ao fogo, sendo o mais grave dos dois tambores e também o que tem mais liberdade para solos e improvisações. Seus grandes mestres e improvisadores, como mestre Cassimiro, poderiam dançar, fazer performances como tocar deitado sem perder o tempo da umbigada. O som do Tambu é que sinaliza o momento para a umbigada e que dinamiza a dança. Gerard Kubik apontou que, tanto o nome, quanto o modelo deste tambor, possui analogias no continente africano, especificamente na parte noroeste de Angola e sudoeste da República Democrática do Congo, local onde floresceu o antigo “Reino do Congo”38. Além dos dois tambores, outros instrumentos são fudamentais na orquestra do batuque de umbigada, sendo eles a matraca e os guaiás, dois instrumentos percussivos, com timbres mais agudos, com função de marcar o pulso das modas executadas. As matracas são dois paus batidos incessantemente no corpo do Tambu, percutindo um topos, ou time line39 com variações e pequenas defasagens entre as batidas dos dois paus, que funcionam como um verdadeiro coração para os batuqueiros, marcando o pulso e alinhando o tempo para que todos possam tocar seus instrumentos de maneira sincronizada e, ao mesmo tempo, livre. O guaiá, por sua vez, é uma 37 Idem. P. 56-58. O termo “línguas” é utilizado por Bomba, coautor da obra citada, membro da comunidade de batuqueiros. Apesar de se referir à maneira de tocar, é interessante notar como os tambores têm ocupado, tanto em diferentes regiões da África, quanto na diáspora africana, a função de comunicar – tanto através dos toques que neles são executados, quanto por serem grandes agregadores. É em torno deles que as pessoas se reúnem e podem se inteirar melhor acerca dos acontecimentos. Impossível não citar os “tambores falantes”, também conhecidos como Dundum, do Oeste Africano, que – por meio do tensionamento do sistema de cordas que o rodeia – pode reproduzir tonalidades das línguas locais, como o iorubá e, literalmente, formar palavras imitando a tonalidade e cadência da fala. 38 Aqui, “Reino do Congo” é utilizado entre aspas pois o autor aponta que, na verdade, o que foi compreendido como reino pelos portugueses que naquela região aportaram no final século XV eram povos “cuja organização política era caracterizada por uma federação de pequenas repúblicas autônomas e não de estados monárquicos”. MUKUNA, Kazadi wa. Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira. São Paulo: Global/ Brasiliense, s/data. P. 20. 39Termos utilizados para designar um padrão rítmico regulador do fluxo musical, normalmente de uso 43 espécie de chocalho feito de dois cones de metal preenchidos com sementes, pequenas pedras ou mesmo pequenas esferas de metal. Sua função é acentuar os pulsos básicos, dando a rítmica para o canto e a dança. Normalmente este instrumento é utilizado pelas cantadoras, modistas e carreiristas. Esses dois instrumentos, provavelmente, têm origens nas regiões do norte e noroeste de Angola e sul do Zaire.40 Matracas apoiadas no Tambu ao lado do Quinjengue. Fonte: Facebook Casa de Batuqueiros Kazadi Wa Mukuna, em sua emblemática obra Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira, argumenta que é impossível rastrear as contribuições do povo bantu para a cultura brasileira sem se perder na diversidade cultural dos povos que ocupavam a região do antigo “Reino do Congo” no século XVI e aponta que, ao se referir ao berço cultural bantu, está incluindo aí povos do vale do rio do Zaire e a “zona de interação cultural” na fronteira entre Zaire e Angola. Apesar dessa diversidade citada, o autor vai entender que esses povos compartilharam “denominadores culturais comuns”. A origem cultural e linguística dos bantos e seus movimentos migratórios (que levaram a radicação em cerca de um terço do continente africano) são objeto de 40 BUENO, André Paula; TRONCARELI, Maria Cristina; DIAS, Paulo. op.cit. 44 intensas discussões acadêmicas, entretanto, o autor nos diz que, Independentemente da preferência que possamos ter por uma dentre as hipóteses apresentadas resumidamente na presente discussão ou outras (...) deve-nos ser permitido sustentar que as tribos bantas dispersas compartilhavam uma origem comum, e que, pelo mesmo fato, têm valores, normas, práticas, etc culturais básicos comuns. (...) Por outras palavras, posteriores contatos (fusão, reuniões comerciais temporárias, campos de batalha), que ocorreram nas respectivas rotas de migração e/ou em suas respectivas radicações, forçam a modificação ou reinterpretação desses “denominadores culturais comuns”, diferenciando um grupo (tribo) de outro. Pode-se então estimar, dentro dessa corrente de pensamento, que cada grupo moldou, a partir dos “denominadores culturais comuns”, um foco cultural peculiar com conceitos ideológicos e materialistas peculiares; conceitos que regulam e condicionam a manifestação do comportamento do homem (expressão artística), seu mito, organização social, sistema de parentesco, etc. 41 Ainda acompanhando o pensamento de Kazadi wa Mukuna, o autor irá apontar a participação dos povos dessa região no comércio de escravizados estabelecido pela coroa portuguesa que, apesar de reconhecer a soberania daquele povo e seu representante, o Manikongo, irá transformar o Reino do Kongo em região de caça humana, pelas mãos de mercadores e missionários, desestabilizando as relações políticas e econômicas da região e iniciando um intenso processo de introdução desses povos no Brasil, que durou três séculos. A lógica da escravidão e todo o seu processo – desde a captura, a espera nos portos africanos, a viagem em tumbeiros e a chegada no Brasil, teria forçado um convívio em tempo suficiente para “formar um estoque cultural do que tinham em comum culturalmente e para cristalizar esses denominadores comuns no que Maurice Halbwachs chamou de “memória coletiva’”.42 A estratégia de separar homens e mulheres escravizados da mesma região para evitar revoltas e levantes não impediu uma concentração regional de pessoas que compartilhavam de culturas semelhantes. Uma das regiões brasileiras que mais recebeu esse contingente de mulheres e homens advindos da região Congo-Angola foi justamente a sudeste e seus interiores, região na 41 MUKUNA, Kazadi wa. Contribuição Bantu… op. cit. P. 31 Aqui, cito as palavras do autor, mas atento para as críticas recentes sobre o uso do termo “tribo”, muitas vezes atrelado à ideia de primitivismo de “povos inferiores” desenvolvida nos primeiros momentos das ciências sociais europeias, especialmente. Ver: SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 1990. Ver também, do mesmo autor: Cultura e Imperialismo. São Paulo: Cia das Letras, 2011. 42 Idem. 45 qual Itamar Assumpção passou a infância. Em seu litoral, o tráfico Atlântico desembarcou mais de dois milhões de africanos (quase a metade de todo o contingente de escravizados trazidos para o Brasil), a grande maioria proveniente da África Central; o volume maior de deportações deu-se no século XIX, atendendo à monocultura cafeeira. A presença relativamente recente de um enorme contingente de centro-africanos no Sudeste brasileiro deixou marcas profundas na região.43 No estado de São Paulo, especificamente, a região de Capivari, Tietê e Piracicaba foram especialmente marcadas, tendo até os dias atuais a realização dos batuques, não sem resistência de certas camadas populares, como a classe média branca e católica que insistia que essa manifestação fosse realizada somente em locais afastados do centro desses municípios. Segundo relato de Antônio Cândido em viagem a Tietê em 1943 para assistir a um batuque de umbigada a convite do pesquisador Affonso Dias, prevalecia entre os religiosos e a classe média a ideia preconceituosa de que essas manifestações incentivavam orgias e bebedeiras e que deveriam ser extintas, sendo este fato uma violenta externalização do medo que essas classes tinham de ser identificadas com os negros, medo que não foi verificado entre os mais ricos – que tranquilamente se identificavam como brancos, e nem entre a camada mais pobres, formada majoritariamente por negros e negras. Essa insegurança, de alguma forma, reflete a dinâmica de embranquecimento pela qual passou historicamente o Brasil. As cidades do oeste paulista, de forma geral, empreenderam uma verdadeira perseguição aos batuques, no sentido de empurrá-los para regiões cada vez mais afastadas, forçando uma forma de apartheid que atingia – e atinge - a população negra brasileira de maneira geral. Essas manifestações só voltaram para a região central desses pequenos municípios depois dos anos 2000 num processo de resistência cultural e valorização das manifestações culturais de origem africana empreendidas pelos próprios batuqueiros. Foi à margem do rio que dá nome à cidade, o local desde o qual Itamar Assumpção costumava ouvir os batuques ao longe, quando criança. Sobre este fato, o músico declarou em 43 BUENO, André Paula; TRONCARELI, Maria Cristina; DIAS, Paulo. op.cit. P. 108. 46 entrevista para o programa Ensaio, que foi ao ar em 1999: “eu lembro que ia dormir e ficava ouvindo na noite um batuque na beira do rio”44 e, na mesma entrevista, o músico afirma que é de origem bantu, demonstrando o modo como forjou sua identidade cultural, dentro da lógica em que cresceu e viveu, até os 13 anos, no interior paulista. Como assinalamos acima, a memória auditiva e afetiva dessas manifestação servirão de material para Itamar Assumpção, o que se manifesta tanto no modo como músico organiza o núcleo de sua obra – com as composições partindo principalmente das linhas do contrabaixo acrescentando camadas de diálogos em canto-e-resposta vocais e instrumentais. Essa preferência pela sonoridade grave do contrabaixo e suas possibilidades rítmicas viria, justamente, do papel desempenhado pelo Tambu, tambor grave e improvisador.45 Ocorre uma semelhança especialmente interessante entre a instrumentação presente nos Batuques de Umbigada e aquela que Itamar utiliza em suas próprias composições e arranjos. Nos Batuques o tambor grave (o tambu) é aquele que “conversa” e que improvisa. Os instrumentos agudos mantêm a condução enquanto o grave é quem fala e dialoga, “argumenta”. Na música de Itamar esse papel é desempenhado pelo contrabaixo (instrumento de tessitura grave). É ele quem se contrapõe à melodia e às palavras dos poemas que são veiculados. Tanto é assim que algumas de suas canções podem ser executadas, sem haver comprometimento da inteligibilidade, somente com a entoação da melodia em contraponto com a linha de baixo. Portanto, quando Itamar opta por sons graves, desenha uma faixa de frequência que estará sempre presente, uma tessitura, como se fosse uma voz dizendo algo além das palavras.46 Sobre a relação com o contrabaixo e o fato de utilizá-lo para compor ao invés do violão, instrumento com o qual iniciou sua educação musical, Itamar Assumpção afirma, em entrevista à Patrícia Palumbo que, O contrabaixo é o mais percussivo dos instrumentos de cordas. É um instrumento percussivo que dá nota, e o que me pega é a possibilidade do ritmo, porque o meu negócio é o ritmo. O contrabaixo me deu uma possibilidade maior de frases. 44 Programa Ensaio, Itamar Assumpção, TV Cultura. 1999. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uiQxFFWrx-Y 45 Sobre a função do contrabaixo, estou utilizando a interpretação de BASTOS, Maria Clara. Op. cit. 46 Idem. p. 20 47 https://www.youtube.com/watch?v=uiQxFFWrx-Y Às vezes nem componho no violão.[...] componho para o contrabaixo. Assim não há harmonia, acorde, são só notas.47 Nesse sentido, a fala e a musicalidade de Itamar dão base à argumentação apresentada por Bastos, que aqui acatamos. Nessa mesma entrevista, o músico comenta acerca do forte impacto que a obra de Jimi Hendrix teria causado em sua maneira de pensar a música, influenciando intensamente seus arranjos nos primeiros discos, em que “podemos ouvir as linhas de baixo dobradas com as linhas da guitarra”48, como na obra do guitarrista americano. Além da musicalidade, cabe acrescentar outra dimensão em que Itamar sofreu uma forte influência de Hendrix: a força da performance e a atualização dos referenciais afrodiaspóricos frente às inovações tecnológicas de seu tempo. O primeiro aspecto, no que se refere a obra de Itamar Assumpção, falaremos mais pausadamente na segunda parte deste trabalho. Steve Waksman49 afirma que a obra de Jimi Hendrix é extremamente pautada na experiência de gravação em estúdio e exploração das possibilidades que aparelhagens elétricas permitiam em termos de criação de sonoridades que poderiam ser controladas por sua guitarra. Segundo o autor, quando perguntado por Albert Goldman qual a diferença entre o velho e o novo blues, Hendrix teria respondido: “eletricidade”. Considerando as questões discutidas anteriormente neste capítulo, essa resposta significa toda uma gama de possibilidades compositivas e de criação, com a introdução de sons que nunca tinham sido ouvidos até então. Hendrix fez uso criativo de grande parte das inovações surgidas na década de 60, desde os amplificadores Marshall (alguns adaptados e feitos especialmente para o artista), até o uso das “stompboxes”, pedais que permitiam distorções, feedbacks e a criação efeitos como o wah-wah. Apesar de extremamente inovador, o autor aponta que Hendrix ainda se aproximava, no que se 47PALUMBO, Patrícia. op.cit. P.34 Grifos meus. 48 BASTOS, Maria Clara. op.cit .p. 40 49 WAKSMAN, Steve. Black sound, black body: Jimi Hendrix, the electric guitar, and the meanings of blackness. IN: BENNET, Andy; SHANK, Barry; TOYNBEE, Jason (editors). The Popular Music Readers. USA: Routledge, 2006. 48 refere à forma, dos antigos bluesmen como Buddy Guy e Muddy Waters, que também buscaram explorar ao máximo os limites de seus instrumentos. Waksman nos diz que “o próprio Hendrix procurou explorar uma variedade similar de expressões musicais, desconfigurando padrões através do poder do som elétrico combinado com seu virtuosismo”50, numa combinação de um estilo de execução inovador de velhas formas, mantendo um forte senso de raízes ou origens musicais, tornando-se um dos mais emblemáticos musicistas do século XX ao manipular tradições que, em nenhum sentido, devem ser consideradas estáticas. Essa forma de articular o referencial do blues com as tecnologias elétricas disponíveis para a produção musical é atravessada por sua forma de articular a negritude, a exemplo de sua execução de Voodoo Child (Slight Return) na qual “a música permanece como uma espécie de blues da era espacial em que a tradição ganha força, mesmo quando é desnaturalizada e tecnologizada”51 Além do uso da tecnologia para atualizar um arcabouço cultural de matriz africana, como é o caso do blues, no caso de Hendrix, e o samba e o batuque, no caso de Itamar, existe outro aspecto que aproxima os dois artistas: o